lundi 14 janvier 2013

Desafios à igreja brasileira


Desafios à igreja brasileira

Desejo abordar a questão das espiritualidades da igreja protestante/ evangélica a partir da fenomenologia da religião. Quanto falamos em fenomenologia da religião falamos de como captar o lado único da experiência religiosa. E utilizamos como método científico a observação, explicando as simbologias e as crenças. Assim, a fenomenologia procura compreender a espiritualidade a partir do ponto de vista do fiel, bem como o valor dessa espiritualidade na vida do mesmo. Por estas razões evita os juízos de valores e os conceitos de época.

Quando olhamos para a espiritualidade da igreja protestante/ evangélica podemos ver dois tipos de espiritualidades: a exotérica e esotérica. A espiritualidade exotérica é aquela que pertence ao lado de fora, racionalista e literalista. Assim, esta espiritualidade apresenta estruturas de crenças que procuram explicar os mistérios do mundo através de leituras racionalistas da revelação, ao invés de utilizar testemunhal ou experiência direta. Apresenta, também, na maioria das vezes, uma interpretação fundamentalista da fé, das doutrinas e da dogmática.

Já a espiritualidade esotérica traduz a idéia de uma espiritualidade íntima, que se situa no interior, naquilo que vem de dentro. O fato de a espiritualidade esotérica, que também podemos chamar de mística, apresentar-se como oculta não surge do fato de ser secreta, mas porque traduz uma experiência direta ou percepção pessoal. Esta espiritualidade não acredita em dogmas por obediência, mas faz a viagem das experiências pessoais. Sua base é a experiência direta e esta experiência pode ser validada por outras pessoas desde que executem o mesmo experimento. E o maior experimento da espiritualidade mística é o êxtase.

Para explicar esta espiritualidade vamos recorrer à matemática. Não há prova de que menos um elevado ao quadrado seja igual a um, ou seja, (-1)2 = 1. Não há prova empírica para tal afirmação. Mas, consideramos o enunciado acima verdadeiro por lógica interna. Não há menos um (-1) no mundo exterior, só na mente. Mas isso não significa que tal afirmação não seja verdadeira, já que é validada por matemáticos, ou seja, por aqueles que sabem como funciona o experimento lógico-matemático. Para a espiritualidade esotérica o processo é parecido: a experiência do êxtase é conhecimento interno, que pode ser validado por outros fiéis, aqueles que conhecem a lógica interna da experiência do êxtase.

Dessa maneira, o oculto da espiritualidade esotérica reside no fato de que se não há o experimento, não há condições de conhecer. Ou seja, essa espiritualidade está oculta para aqueles que não realizam o experimento. De certa forma, podemos dizer também que as espiritualidades esotéricas das igrejas evangélicas apresentam uma unidade no que diz respeito ao Espírito e à natureza da sua identidade. Superficialmente, as estruturas das igrejas de espiritualidade esotérica variam, mas na essência são semelhantes, e refletem de certa forma a unanimidade do Espírito acerca das leis fenomenologicamente reveladas.

Já as espiritualidades exotéricas não apresentam esta unidade estrutural, isto porque repousam sobre peculiaridades culturais e de época que transformadas em construções racionalistas, hermenêuticas, doutrinas e dogmáticas, as levam ao choque. É verdade que os textos antigos e suas simbologias podem ser interpretados como alegorias ou metáforas para as questões transcendentais. Mas, como estamos fazendo fenomenologia, devemos dizer que os fiéis da espiritualidade exotéricas não vêem as simbologias dos textos como alegorias, mas revelação que deve ser lida e entendida literalmente.


A espiritualidade esotérica, que vem de dentro, no entanto, dá significado para aos textos e seus símbolos a partir da experiência interior, do êxtase, e não de um sistema exterior de crença.

No correr do século vinte, no Brasil, na igreja protestante/ evangélica essas duas espiritualidades se confrontaram. Cada uma delas apresentava argumentos contra a outra. Fracionamentos aconteceram e essas espiritualidades se afastaram. Mas é o caso de perguntar: elas são antagônicas ou correlatas? Na verdade, a espiritualidade exotérica, por privilegiar o texto, as doutrinas e os dogmas, situa-se no passado, enquanto a espiritualidade esotérica por situar-se dentro, na experiência da pessoalidade, situa-se no presente, apesar de fazer na maioria das vezes uma leitura estática e privatizada desse presente.

Por isso, a correlação dessas espiritualidades nos leva aos três desafios vividos hoje pela igreja evangélica brasileira.

Vou sintetizar o que quero dizer e depois a gente desenvolve essas idéias. Diria que em relação ao passado devemos ser conservadores; em relação ao presente devemos ser criticamente contextuais, contemporâneos e conterrâneos; e em relação ao futuro, revolucionários.

Esses desafios de vida evangélica para a igreja brasileira nascem da própria experiência profética. Os profetas clássicos do Antigo Testamento eram ao mesmo tempo revolucionários voltados para o passado e conservadores impulsionados pela paixão do futuro. Nada faziam sem invocar a tradição. No entanto, suas mensagens apontavam para os tempos futuros. Os profetas sabiam servir-se do passado para a crítica do presente. Todos tinham uma coisa em comum: uma atitude realista. E ao contrário dos profetas falsos interessavam-se pelo concreto do presente: eram contextuais, contemporâneos e conterrâneos. Não viviam envoltos em véus de ilusões e, por isso, condenavam o palavreado inútil e a eloqüência abstrata. Mas, a pregação do futuro não constituía o essencial de seus ministérios, eram antes fruto e resultado do conhecimento do mundo, de suas contradições e possibilidades.

Se partirmos dessa compreensão, podemos dizer que nosso compromisso com o passado é a manutenção de nossas heranças, da qual a Palavra de Deus é a principal delas. Guardamos, estudamos, refletimos sobre o que diz e transmitimos àqueles que não conhecem o rico passado que nos deu origem. Não negamos nossas origens, sabemos de onde viemos e devemos ser maduros para entender o que fizemos de certo e de errado na história. Ao compreender assim o passado, dizemos que no correr dos séculos existiram homens e mulheres que interpretaram a situação espiritual de suas épocas. Eis aqui o ponto de intersecção entre a manutenção do passado e o tempo presente: a inquietude e o descontentamento em relação aos acontecimentos sociais e religiosos concretos.

Nesse sentido, deveria existir busca semelhante de respostas àquelas dos antigos profetas e a ação consciente dos líderes evangélicos e da igreja. Como os profetas deveríamos concretamente representar nossas comunidades, nossa terra brasileira, nosso mundo. Mas, ao lado das organicidades contextual, contemporânea e conterrânea, precisamos exercer autonomia em relação às pressões sociais, já que é dessa postura que nasce a força crítica e a compreensão de que diante da realidade há alternativas diferentes daquelas expressas pelo presente.

E se compreendemos que não basta o exame da situação espiritual do presente, como totalidade e permanência para fazermos diferença e transformarmos o mundo, é necessário entender as exigências lançadas adiante e, nesse sentido, ir além do próprio presente.

Ora, se presente não pode ser apreendido apenas a partir do passado e de sua conservação, porque se procuramos a transformação do mundo, se estamos envolvidos com a construção do Reino de Deus, esse fazer não pode repousar exclusivamente na experiência da conservação. Porém, ser contextual, contemporâneo e conterrâneo não significa negar a existência de alternativas diferentes daquelas expressas pelo presente. Quando analisamos a ação dos profetas em relação ao presente, vamos constatar que eles não testemunhavam em benefício do presente. Eles diziam não ao presente. Mas esse não era um não abstrato, era um não concreto, que partia da militância contextual, contemporânea e conterrânea deles. Isto porque só através dessa condenação concreta e real do presente podemos, de fato, denunciar os símbolos das forças demoníacas no presente, que no caso do Brasil são as exclusões social, racial, de gênero e outras.

E é a partir dessa compreensão do que significa estar envolvido com o presente para ir além dele, que podemos falar do futuro, não de um futuro vazio, mas de um futuro construído a partir de novos conteúdos.

Esse futuro deve ser momento concluído, texto, tempo e lugar onde a própria eternidade se faz agora e aqui. Repare, o futuro construído pela manutenção do passado, pela crítica contextual, contemporânea e conterrânea do presente não é um futuro qualquer, mas momento novo e pleno: é um futuro onde se completa aquilo que é significativo.

Esses desafios, em especial o da relação da conterraneidade com o Reino de Deus, discuto no meu livro, “Deus é brasileiro, as brasilidades e o Reino de Deus”, que foi lançado em fevereiro de 2008 pela Fonte Editorial.

No livro digo que a partir dos clamores éticos da profecia bíblica temos uma compreensão da práxis cristã, que podemos chamar de princípio protestante. Este princípio central do protestantismo é a doutrina da justificação pela graça apenas, significando que nenhuma pessoa ou comunidade humana pode reivindicar para si a dignidade divina em conseqüência de conquistas morais, de poder sacramental, de sua santidade ou de sua doutrina. Conseqüentemente, a liberdade profética precisa sempre criticar, condenar e transformar o status quo ou os sistemas morais, políticos e sociais que se consideram sagrados. Cada evangélico, e aqui prefiro usar a expressão protestante, tem que decidir por si próprio se determinada conjuntura, doutrina ou sistema social é verdadeiro ou falso, se os líderes existentes em seu meio são verdadeiros ou falsos e se o poder estabelecido é divino ou demoníaco. Para os protestantes tal decisão será sempre pessoal.

Esses são os desafios protestantes, entendidos como expressão crítica e livre, para a igreja brasileira e seus líderes. Nesse sentido, é bom lembrar que onde se proclama o poder do Cristo e onde se denuncia as situações-limite que ameacem o sentido da vida, aí está o protestantismo no seu sentido mais profundo e abrangente.

Prof. Pós-Doutor Jorge Pinheiro, cientista da religião