Desafios à igreja brasileira
Desejo abordar a questão das espiritualidades da
igreja protestante/ evangélica a partir da fenomenologia da religião. Quanto
falamos em fenomenologia da religião falamos de como captar o lado único da
experiência religiosa. E utilizamos como método científico a observação,
explicando as simbologias e as crenças. Assim, a fenomenologia procura
compreender a espiritualidade a partir do ponto de vista do fiel, bem como o
valor dessa espiritualidade na vida do mesmo. Por estas razões evita os juízos
de valores e os conceitos de época.
Quando
olhamos para a espiritualidade da igreja protestante/ evangélica podemos ver
dois tipos de espiritualidades: a exotérica e esotérica. A espiritualidade
exotérica é aquela que pertence ao lado de fora, racionalista e literalista.
Assim, esta espiritualidade apresenta estruturas de crenças que procuram explicar
os mistérios do mundo através de leituras racionalistas da revelação, ao invés
de utilizar testemunhal ou experiência direta. Apresenta, também, na maioria
das vezes, uma interpretação fundamentalista da fé, das doutrinas e da
dogmática.
Já
a espiritualidade esotérica traduz a idéia de uma espiritualidade íntima, que
se situa no interior, naquilo que vem de dentro. O fato de a espiritualidade
esotérica, que também podemos chamar de mística, apresentar-se como oculta não
surge do fato de ser secreta, mas porque traduz uma experiência direta ou
percepção pessoal. Esta espiritualidade não acredita em dogmas por obediência,
mas faz a viagem das experiências pessoais. Sua base é a experiência direta e
esta experiência pode ser validada por outras pessoas desde que executem o mesmo
experimento. E o maior experimento da espiritualidade mística é o êxtase.
Para
explicar esta espiritualidade vamos recorrer à matemática. Não há prova de que
menos um elevado ao quadrado seja igual a um, ou seja, (-1)2 = 1.
Não há prova empírica para tal afirmação. Mas, consideramos o enunciado acima verdadeiro
por lógica interna. Não há menos um (-1) no mundo exterior, só na mente. Mas
isso não significa que tal afirmação não seja verdadeira, já que é validada por
matemáticos, ou seja, por aqueles que sabem como funciona o experimento lógico-matemático.
Para a espiritualidade esotérica o processo é parecido: a experiência do êxtase
é conhecimento interno, que pode ser validado por outros fiéis, aqueles que
conhecem a lógica interna da experiência do êxtase.
Dessa
maneira, o oculto da espiritualidade esotérica reside no fato de que se não há
o experimento, não há condições de conhecer. Ou seja, essa espiritualidade está
oculta para aqueles que não realizam o experimento. De certa forma, podemos
dizer também que as espiritualidades esotéricas das igrejas evangélicas
apresentam uma unidade no que diz respeito ao Espírito e à natureza da sua
identidade. Superficialmente, as estruturas das igrejas de espiritualidade
esotérica variam, mas na essência são semelhantes, e refletem de certa forma a
unanimidade do Espírito acerca das leis fenomenologicamente reveladas.
Já
as espiritualidades exotéricas não apresentam esta unidade estrutural, isto
porque repousam sobre peculiaridades culturais e de época que transformadas em
construções racionalistas, hermenêuticas, doutrinas e dogmáticas, as levam ao
choque. É verdade que os textos antigos e suas simbologias podem ser
interpretados como alegorias ou metáforas para as questões transcendentais. Mas,
como estamos fazendo fenomenologia, devemos dizer que os fiéis da espiritualidade
exotéricas não vêem as simbologias dos textos como alegorias, mas revelação que
deve ser lida e entendida literalmente.
A
espiritualidade esotérica, que vem de dentro, no entanto, dá significado para aos
textos e seus símbolos a partir da experiência interior, do êxtase, e não de um
sistema exterior de crença.
No correr do século vinte, no Brasil, na
igreja protestante/ evangélica essas duas espiritualidades se confrontaram.
Cada uma delas apresentava argumentos contra a outra. Fracionamentos aconteceram
e essas espiritualidades se afastaram. Mas é o caso de perguntar: elas são
antagônicas ou correlatas? Na verdade, a espiritualidade exotérica, por
privilegiar o texto, as doutrinas e os dogmas, situa-se no passado, enquanto a
espiritualidade esotérica por situar-se dentro, na experiência da pessoalidade,
situa-se no presente, apesar de fazer na maioria das vezes uma leitura estática
e privatizada desse presente.
Por
isso, a correlação dessas espiritualidades nos leva aos três desafios vividos
hoje pela igreja evangélica brasileira.
Vou sintetizar o que quero dizer
e depois a gente desenvolve essas idéias. Diria que em relação ao passado
devemos ser conservadores; em relação ao presente devemos ser criticamente contextuais,
contemporâneos e conterrâneos; e em relação ao futuro, revolucionários.
Esses desafios de vida evangélica
para a igreja brasileira nascem da própria experiência profética. Os profetas
clássicos do Antigo Testamento eram ao mesmo tempo revolucionários voltados para o
passado e conservadores impulsionados pela paixão do futuro. Nada faziam sem
invocar a tradição. No entanto, suas mensagens apontavam para os tempos futuros.
Os profetas sabiam servir-se do passado para a crítica do presente. Todos tinham
uma coisa em comum: uma atitude realista. E ao contrário dos profetas falsos
interessavam-se pelo concreto do presente: eram contextuais, contemporâneos e
conterrâneos. Não viviam envoltos em véus de ilusões e, por isso, condenavam o
palavreado inútil e a eloqüência abstrata. Mas, a pregação do futuro não
constituía o essencial de seus ministérios, eram antes fruto e resultado do
conhecimento do mundo, de suas contradições e possibilidades.
Se partirmos dessa compreensão, podemos dizer que nosso compromisso com
o passado é a manutenção de nossas heranças, da qual a Palavra de Deus é a
principal delas. Guardamos, estudamos, refletimos sobre o que diz e
transmitimos àqueles que não conhecem o rico passado que nos deu origem. Não
negamos nossas origens, sabemos de onde viemos e devemos ser maduros para entender
o que fizemos de certo e de errado na história. Ao compreender assim o passado,
dizemos que no correr dos séculos existiram homens e mulheres que interpretaram
a situação espiritual de suas épocas. Eis aqui o ponto de intersecção entre a
manutenção do passado e o tempo presente: a inquietude e o descontentamento em
relação aos acontecimentos sociais e religiosos concretos.
Nesse sentido, deveria existir busca semelhante de respostas àquelas dos
antigos profetas e a ação consciente dos líderes evangélicos e da igreja. Como
os profetas deveríamos concretamente representar nossas comunidades, nossa
terra brasileira, nosso mundo. Mas, ao lado das organicidades contextual,
contemporânea e conterrânea, precisamos exercer autonomia em relação às
pressões sociais, já que é dessa postura que nasce a força crítica e a
compreensão de que diante da realidade há alternativas diferentes daquelas
expressas pelo presente.
E se compreendemos que não
basta o exame da situação espiritual do presente, como totalidade e permanência
para fazermos diferença e transformarmos o mundo, é necessário entender as
exigências lançadas adiante e, nesse sentido, ir além do próprio presente.
Ora, se presente não pode ser apreendido apenas a
partir do passado e de sua conservação, porque se procuramos a transformação do
mundo, se estamos envolvidos com a construção do Reino de Deus, esse fazer não
pode repousar exclusivamente na experiência da conservação. Porém, ser
contextual, contemporâneo e conterrâneo não significa negar a existência de
alternativas diferentes daquelas expressas pelo presente. Quando analisamos a ação dos
profetas em relação ao presente, vamos constatar que eles não testemunhavam em benefício do presente.
Eles diziam não ao presente. Mas esse não era um não abstrato, era um não
concreto, que partia da militância contextual, contemporânea e conterrânea deles.
Isto porque só através dessa condenação concreta e real do presente podemos, de
fato, denunciar os símbolos das forças demoníacas no presente, que no caso do
Brasil são as exclusões social, racial, de gênero e outras.
E é a partir dessa
compreensão do que significa estar envolvido com o presente para ir além dele, que
podemos falar do futuro, não de um futuro vazio, mas de um futuro construído a
partir de novos conteúdos.
Esse
futuro deve ser momento concluído, texto, tempo e lugar onde a própria
eternidade se faz agora e aqui. Repare, o futuro construído pela manutenção do
passado, pela crítica contextual, contemporânea e conterrânea do presente não é
um futuro qualquer, mas momento novo e pleno: é um futuro onde se completa
aquilo que é significativo.
Esses
desafios, em especial o da relação da conterraneidade com o Reino de Deus,
discuto no meu livro, “Deus é brasileiro, as brasilidades e o Reino de Deus”,
que foi lançado em fevereiro de 2008 pela Fonte Editorial.
No livro digo que a partir dos clamores éticos da profecia
bíblica temos uma compreensão da práxis cristã, que podemos chamar de princípio
protestante. Este princípio central do protestantismo é a doutrina da
justificação pela graça apenas, significando que nenhuma pessoa ou comunidade
humana pode reivindicar para si a dignidade divina em conseqüência de
conquistas morais, de poder sacramental, de sua santidade ou de sua doutrina.
Conseqüentemente, a liberdade profética precisa sempre criticar, condenar e
transformar o status quo ou os sistemas morais, políticos e sociais que
se consideram sagrados. Cada evangélico, e aqui prefiro usar a expressão protestante, tem que decidir por si
próprio se determinada conjuntura, doutrina ou sistema social é verdadeiro ou
falso, se os líderes existentes em seu meio são verdadeiros ou falsos e se o
poder estabelecido é divino ou demoníaco. Para os protestantes tal decisão será
sempre pessoal.
Esses são os desafios protestantes, entendidos como expressão
crítica e livre, para a igreja brasileira e seus líderes. Nesse sentido, é bom
lembrar que onde se proclama o poder do Cristo e onde se denuncia as
situações-limite que ameacem o sentido da vida, aí está o protestantismo no seu
sentido mais profundo e abrangente.
Prof. Pós-Doutor Jorge Pinheiro, cientista da religião
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