mardi 10 janvier 2012

A democratização das nações árabes



A construção democrática do mundo árabe nos leva à discussão de questões imbricadas à teologia, como alienação e ética. Hoje, as nações se perguntam: quem deve dirigir o processo de democratização do mundo árabe? Alguns crêem que devem ser os Estados Unidos. Outros, a Europa. Mas há aqueles que apostam na presença do Brasil e do conjunto das nações reunidas em assembléia geral. Antes de responder quem, uma questão não pode ser colocada de lado: quais devem ser os critérios dessa democratização?

Vamos analisar tal questão a partir do conceito de estranhamento em Marx e da proposta de uma ética crítica de defesa da vida. Para tal partiremos de dois trabalhos acadêmicos, um de Maria Norma Alcântara Brandão de Holanda e outro de Tarcyane Cajueiro Santos, citados na bibliografia.

Então eu me arrependi de ter trabalhado tanto
e fiquei desesperado por causa disso.” Eclesiastes 2.20.

Karl Marx em Teorias sobre a mais valia, conforme expõe Maria Norma Alcântara Brandão de Holanda, considera que o desenvolvimento das forças produtivas enquanto "desenvolvimento da riqueza da natureza humana como fim em si" se efetiva mediante "um processo no qual os indivíduos são sacrificados".

O que está em questão aqui não é o desenvolvimento das forças produtivas, mas o reconhecimento de seus limites ontológicos, que se expressam no âmbito do desenvolvimento econômico-social.

O desenvolvimento das forças produtivas é também o desenvolvimento da capacidade humana, mas este não produz obrigatoriamente desenvolvimento da pessoalidade humana. Ao contrário, muitas vezes, potencializando capacidades singulares, pode desfigurar tal pessoalidade.

Estamos aí diante de um processo de alienação antropológica e existencial. Diante de um paradoxo, desenvolvimento das forças produtivas e desenvolvimento da pessoalidade humana. E, pelo que vemos hoje, mais desenvolvidas as forças produtivas mais evidentes tais contradições.

As exigências colocadas pelo desenvolvimento da economia globalizada, ao mesmo tempo em que apresenta possibilidades para o desenvolvimento humano, tem produzido um impressionante nível de desumanidade.

Marx, nos Manuscritos econômico-filosóficos de 1844 escreveu: "quanto mais produz o operário com seu trabalho, mais o mundo objetivo, estranho que ele cria em torno de si, torna-se poderoso, mais ele empobrece, mais pobre torna-se seu mundo interior e menos ele possui de seu".

Ao partir de sua preocupação central, o estudo da economia política de seu tempo, Marx diz que "a miséria do operário está em razão inversa do poder e da grandeza de sua produção". Mais produz, maior é a sua miséria.

Assim, a produção não faz apenas da pessoa mercadoria, a mercadoria humana, gente sob forma de mercadoria, mas o faz também ser espiritual e fisicamente desumanizado....

Se o desenvolvimento das forças produtivas ao mesmo tempo em que desenvolve as possibilidades humanas cria a reprodução da desumanidade, evidenciam-se os limites antropológicos e existenciais de tal desenvolvimento, já que toda relação social não se dará apenas através de uma elevação espiritual, mas de movimentos que deixam em aberto as possibilidades para a própria destruição do humano.

Como a justiça encaminha para a vida,
quem insiste no mal caminha para a morte”. Provérbios 11.19

Se olharmos sob a perspectiva da ética, tal processo leva ao esgotamento da moral, que deveria ser presente na história ocidental cristã diante da emergência da amoralidade globalizada, mas se transformou em instância de definição da legitimidade do comportamento imperial hegemônico em detrimento das singularidades culturais e nacionais.

O choque entre projetos imperiais hegemônicos e diferenças culturais deve nos levar a uma consciência crítica de defesa das fronteiras éticas contra a destruição do humano, fruto, como vimos, tanto do desenvolvimento das forças produtivas, como do estranhamento humano presentes nesse mesmo desenvolvimento.

É nessa fronteira entre elevação espiritual e degradação, que culturas e globalidade devem negociar as margens do caos.

Aqui a ética nascerá da delimitação da violência capitaneada pelos impérios hegemônicos, já que a globalização se tornou personagem principal do processo de desenvolvimento das forças produtivas mundializadas.

Assim, a ética crítica, como meio e não como fim, “está baseada no livre exercício do corpo e da alma, no desejo e na afirmação da vida”, como afirma Tarcyane Cajueiro Santos.

Porém, a virtude esbarra na heteronomia, na contradição do estranhamento, conforme detectou Marx. Somos parte da natureza, vivemos circundados por número ilimitado de efeitos externos e poderosos. Somos seres cheios de paixão ou passivos, enquanto causa parcial, conduzidos e dominados por forças externas à nossa alma e ao nosso corpo.

E as paixões, como afirma Spinoza, não são em si nem boas nem más, pois fazem parte da natureza: a alegria, a tristeza e o desejo vibram em nosso ser. Assim, a alegria aumenta a capacidade de existir, enquanto o estranhamento degrada a existência.

Sem conselhos os planos fracassam,
mas com muitos conselheiros há sucesso”. Provérbios 15.22

O movimento da paixão à ação, da rebeldia à autonomia, ocorre na imanência do próprio desejo, a partir do instante que temos condições de controlar e submeter o estranhamento que degrada. Nesse momento, a liberdade torna-se “atividade que transcende o presente pela possibilidade do futuro como abertura no tempo”, conforme disse Marilena Chauí.

Assim no caminhar da globalização, a ética deixa de ser dever moral, imperativo categórico a priori, e passa a ser compreendida como balizadora daquilo que é humano.

Para construir tal ética crítica, que leve à práxis democrática, é necessária a existência a nível mundial de um sujeito ético moral, nas palavras de Chauí, “que sabe o que faz, que conhece as causas e os fins de sua ação, o significado de suas intenções e de suas atitudes e a essência dos valores morais”.

Acreditamos que hoje no planeta, com todas as dificuldades reais, a democratização das nações árabes deve ser obra dos povos árabes, apoiados pelo conjunto das nações reunidas em assembléia geral, crítica aos projetos hegemônicos, de supremacia de nações imperiais  sobre povos em construção de suas democracias.

Fontes

Karl Marx, Manuscritos Econômico-Filosóficos, Coleção Os Pensadores, São Paulo, Editora Abril, 1997.
Maria Norma Alcântara Brandão de Holanda, Lukács e o estranhamento em Marx, Unicamp, Instituto de Filosofia e Ciências Humanas, Centro de Estudos Marxistas: www.unicamp.br/cemarx
Marilena Chauí, Convite à filosofia,  São Paulo, Ática, 1999.
Tarcyane Cajueiro Santos, O eticismo da sociedade tecnólogica e a ética em Espinosa, ECA-USP, Núcleo de Estudos Filosóficos da Comunicação: www.eca.usp.br/nucleos/filocom

O Sermão do Fogo


O príncipe dos pregadores do século XIX, Charles Haddon Spurgeon, proferiu um sermão que ficou conhecido como Apressando a Ló, com base no texto de Gênesis 19.15. O centro dessa mensagem de Spurgeon é que diante de uma cidade que vai arder, justos e errantes devem ser apressados.

O justo deve ser apressado em relação ao que é melhor para sua família, a sair da loucura do século presente e buscar a solidariedade do Eterno. E o errante deve ouvir do perigo iminente e da necessidade de tomar uma decisão imediata.

O pano de fundo do sermão é a cidade que vai arder.

Décadas mais tarde, um poeta norte-americano, de ascendência inglesa, escreveu sobre um mundo que já ardeu. Seus poemas traduzem a angústia profética diante da guerra e do drama humano.
T. S. Eliot

Terra Desolada é um dos mais impressionantes poemas de Thomas Stearns Eliot. É um gemido diante de um mundo árido, onde sobreviventes se arrastam e agonizam. Escrito entre 1921 e 1922, é considerado o mais terrível poema da literatura ocidental no século XX.

Mas, em meio ao desespero, podemos ver o sentido de transcendência que brota na Terra Desolada desse cristão agoniado diante do destino humano. No final da terceira parte do poema, chamado O Sermão do Fogo, terror e êxtase se complementam:

A Cartago então eu vim
Ardendo ardendo ardendo ardendo
Ó Senhor Tu que me arrebatas
Ó Senhor tu que me arrebatas
ardendo

Eliot em suas notas conta que o primeiro verso acima foi tirado das Confissões de santo Agostinho, quando o teólogo diz: “A Cartago então eu vim, onde todos os amores ímpios, como num caldeirão, cantavam em meus ouvidos”.

E o verso seguinte faz parte do Sermão do Fogo, de Buda, que segundo Eliot é tão importante para o mundo oriental quanto o Sermão da Montanha para nós cristãos. E volta às Confissões de Agostinho, com o verso: “Ó Senhor Tu que me arrebatas”.

Eliot afirma que “a inserção destes dois representantes do ascetismo oriental e ocidental no ponto culminante desta parte do poema não é fortuita”, já que através de uma leitura cheia de ecumenicidade transmite ao leitor toda a angústia diante de um mundo que arde.

Três anos mais tarde, Eliot lançou Os Homens Ocos onde, ainda em meio ao mundo desolado, fala de homens vazios, empalhados. E é aqui, neste poema, que a transcendência transborda, apontando para o sentido profundo da mudança de rumo.

Entre o desejo 
E o espanto, 
Entre a potência
E a existência
Entre a essência
E a descendência
Tomba a Sombra 

Porque Teu é o Reino
Porque Teu é
A vida é
Porque Teu é o 

E numa estrofe sublime, genial, completa:

Assim expira o mundo
Assim expira o mundo
Assim expira o mundo
Não com uma explosão, mas com um suspiro. 

Diante de uma cidade que vai arder, de um mundo que já ardeu, ficam a urgência e a esperança... “e como ele estava demorando, os anjos pegaram pela mão Ló, a sua mulher e as suas filhas e os levaram para fora da cidade...

Fontes
Spurgeon, Charles Haddon, Esboços Bíblicos de Gênesis a Apocalipse, aprendendo com o príncipe dos pregadores, São Paulo, Shedd Publicações, 2002.
Eliot, T. S., Poesia, 3a. edição, Rio de Janeiro, Editora Nova Fronteira, 1981.