lundi 3 avril 2017

Gênesis Um, a física e a mística judaica (I)

O texto inteiro você encontra em 

Jorge Pinheiro, Imago Dei, a teologia do ser humano, Fonte Editorial, 2016, pp. 126-151.


Podemos dizer que há um criativo pensamento judaico, que através dos séculos soube combinar Torá e conhecimento, ética e epistemologia. Nosso propósito é, numa primeira aproximação, mostrar que os estudos judaicos dos conteúdos de Gênesis Um produziram uma epistemologia que interliga o conceito espaço/tempo em Gênesis Um com a teoria da relatividade. Essa correlação tem especial importância para a teologia, já que a partir dela podemos entender melhor a realidade de Gênesis Um.

“No começar Deus criando o fogo-água e a terra/ E a terra era lodo torvo e a treva sobre o rosto do abismo/ E o sopro-Deus revoa sobre o rosto da água”. [1]

Parto da hipótese de que a teologia judaica nos últimos mil e novecentos anos apresenta hermenêuticas criativas do Gênesis Um. Essas hermenêuticas ou midrashim não ficaram restritas aos círculos rabínicos, mas fizeram parte da tradição e da cultura do judaísmo através dos séculos. Escritores, artistas e cientistas judeus utilizaram esses conhecimentos em seus campos de trabalho. Einstein conhecia essas fontes, em parte desconhecidas para o mundo cristão, mas ricas e cheias de significados para todo intelectual judeu. Por isso, esta leitura da teoria da complexidade tem como roteiro a cosmogonia judaica, entendida como as narrativas ou teorias a respeito da origem do universo, e as idéias centrais da teoria da relatividade. 

Albert Einstein era judeu, acreditava em Deus criador, mas não aceitava o conceito de Deus pessoal. Foi um sionista militante durante toda sua vida, a ponto de em 1952 lhe ser oferecida a presidência de Israel. Não aceitou. Estava casado com a física. “As equações são mais importantes para mim porque a política é feita para o presente, ao passo que uma equação é algo para toda a eternidade”. [2]

Apesar de seus matizes, o judaísmo mostrou uma coerência em relação às hermenêuticas de Gênesis Um, a defesa da criação ex nihilo. Assim, o recuo de Deus para permitir que surgisse o vazio, o nada, e nele o universo finito, é desenvolvido na teoria da contração, em hebraico tzimtzum. Essa teoria formalizada pelo rabino Luria (1534-1572) é uma das concepções mais surpreendentes da hermenêutica judaica. Isaac Luria, um dos maiores expoentes da tradição mística no judaísmo, nasceu no Cairo, mas desenvolveu seu ministério em Safed, na Palestina. A expressão tzimtzum significa originariamente concentração, mas acabou sendo entendida como retirada. Luria partiu de textos do Midrash, onde encontramos que Deus concentrou sua Shekiná, sua presença, no Santo dos Santos, assim todo seu poder retraiu-se num único ponto. É assim que surge a expressão tzimtzum. [3] As duas expressões, concentração e retirada, que deveriam ser entendidas como complementares, já que Deus se retira e então concentra a sua luz sobre este ponto, passou a dividir os estudiosos em dois grandes grupos: os que defendem o tzimtzum como base para a doutrina da creatio ex nihilo e também para aqueles que defendem a doutrina da emanação (em hebraico atsilu) ou processio Dei ad extra. Dessa maneira, o próprio Luria, apesar de partir de uma expressão que naturalmente deve levar à creatio ex nihilo, torna-se o principal expositor dentro do misticismo judaico do processio Dei ad extra, que tem por base não um processo no tempo, mas uma estrutura da realidade, enquanto emanação, criação, formação e ação. Assim, para esses rabinos, níveis inferiores de realidade emanaram de níveis superiores que, por sua vez, tiveram origem em Deus. Dentro dessa concepção há um midrash, a teoria do vaso quebrado, que trabalha com a hipótese de que o mundo foi feito de remanescentes de mundos anteriores que Deus havia destruído. Uma conhecida lenda rabínica explica esse processo como o desprender de uma chama de carvão da roupa de Deus.

“No princípio (Gênesis 1:1), a vontade do Rei começou a gravar signos na esfera superior. Do recesso mais oculto, uma negra chama brotou do mistério do ein sof, o Infinito, como um novelinho de massa informe, como que inserido no aro dessa esfera, nem branca nem preta, nem vermelha nem verde, de nenhuma cor. Somente depois de distender-se como um fio, produziu ela cores para luzir em si. Do âmago da chama, jorrou uma fonte da qual brotaram cores e se espalharam sobre tudo embaixo, oculto na ocultação mais misteriosa do ein sof. Mal rompeu ela, inteiramente irreconhecível, seu círculo de éter, sob o impacto da irrupção, um ponto oculto, superior fulgiu da irrupção final. Aquém desse ponto está excluído todo conhecimento e por isso ele é chamado reschit, princípio, a primeira palavra do Todo”. [4]

Apesar de sua riqueza hermenêutica não estaríamos longe da verdade ao classificar a doutrina da emanação como um panenteísmo, que define o mundo material como o desdobramento de Deus em diferentes níveis. E porque o mundo existe dentro de Deus, os defensores do processio Dei ad extra consideram necessário descobrir o que há de divino nos fenômenos do cotidiano. Se entendermos, porém, a teoria do tzimtzum, como a correlação de dois movimentos, o da retirada e o da concentração ficará mais fácil aproveitar os estudos de Luria. Mas, o que queremos destacar aqui é que o tzimtzum explica o recuo de Deus para permitir que surgisse o vazio, o nada, e nele o universo finito. Como Deus é infinito, sem o tzimtzum não haveria o nada no qual pudesse produzir a estrutura espaço/tempo de uma criação separada. 

Fato histórico interessante é que as concepções de Luria influenciaram o filosofo judeu holandês, Baruch de Espinoza (1632-677). Ele nasceu em Amsterdã, de família portuguesa sefardita e é o fundador do moderno criticismo bíblico. Foi um estudioso da Torá e do Talmude, dos grandes pensadores judaicos, como Maimônides, Ben Gershon, Ibn Erza, e outros, mas também dos filósofos gregos clássicos. Racionalista, considerou Deus um mecanismo imanente da natureza e a Torá uma obra alegórica. Como consequência, em 1656, a Sinagoga Portuguesa de Amsterdã o puniu com o chérem, a excomunhão.

Deixando Espinoza de lado, é importante dizer que se por um lado a correlação da autocontração e concentração divina deu origem ao mundo material, o choque entre o movimento restritivo e o transbordante amor de Deus criou também a possibilidade do mal. Nesse sentido, a cosmogonia judaica vê a criação em primeiro lugar como consciente autolimitação e na sequência como revelação e julgamento. E como julgamento é entendida a imposição de limites, ele faz parte da revelação, que se expressa pela primeira vez como criação de Deus. Em outras palavras: se o mal é uma probabilidade que surge da correlação amor divino e retração, o julgamento passa a ser inerente a tudo na criação, já que todas as coisas estão determinadas enquanto limites.

A tradição do debate sobre a creatio ex nihilo é antiga no pensamento judaico. Na verdade, podemos dizer que começa a ser realizada no segundo século. Por isso, não é de estranhar que encontremos reflexões profundas sobre Gênesis Um nos séculos posteriores. Assim, em um dos textos mais representativos do pensamento caraíta, movimento medieval de retorno à letra da Escritura, considerado por muitos um protestantismo judeu de coloração pietista, a “Explanação dos Mandamentos”, de Aha Nissi ben Noah de Bassorá, que ensinou em Jerusalém na segunda metade do século nove, lemos: 

“No primeiro dia Deus criou sete coisas: o céu, a terra, as trevas, a luz, a água, o abismo e o vento (Gênesis 1.1-12). Primeiro criou tohu e bohu (a solidão e o caos), dos quais surgiu a terra (Gênesis 1.1-2). Criou as trevas: ‘Ele formou a luz e criou as trevas’ (Isaías 45.6). Criou o vento, conforme a palavra: ‘e criou o vento’. Criou a água, pois com a criação da terra havia água. Criou o abismo, para que a água tivesse uma profundidade e uma submersão. Criou a luz (Gênesis 1.3). Para a criação do mundo foram necessárias quatro coisas: a ordem, o trabalho, a determinação e a proclamação”. [5]

Nesse texto aparentemente tão simples, encontramos dois conceitos muito importantes: tohu e bohu fazem parte da criação e para que haja criação é necessário ordem.

Outro grande hermeneuta judeu, que fez oposição ao pensamento caraíta, foi Saadia Gaon (892-942). Influenciado pela efervescente teologia do Islã e pelo pensamento helenístico clássico, Gaon combateu a presença heterodoxa, de tendência maniqueísta, os remanescentes de Filo e a crítica gnóstica. Seu texto sobre a doutrina da creatio ex nihilo é de uma profunda beleza, apesar de apresentar imperfeições normais ao conhecimento da época, como, por exemplo, sua visão geocêntrica. Mas, de forma brilhante enfrenta opositores bem parecidos aos que encontramos hoje em dia. 

“Aqueles que acreditam na eternidade do mundo procuram provar a existência de algo que não tem começo nem fim. Por certo, nunca depararam com uma coisa que percebessem, pelos sentidos, sem ser começo nem fim, mas procuram estabelecer sua teoria por meio de postulados da razão. Semelhantemente, os dualistas empenham-se em provar a coexistência de dois princípios separados e opostos, cuja mistura fez que o mundo viesse a ser. Sem dúvida, nunca testemunharam dois princípios separados e opostos, nem o pretenso processo da mistura, mas tentaram suscitar argumentos derivados da razão pura em favor de sua teoria. De maneira similar aqueles que acreditam numa matéria eterna consideram-na como um hilo, isto é, algo em que não há originalmente qualidade de quente ou frio, de úmido ou seco, mas que se transforma por uma determinada força e assim produz aquelas quatro qualidades. Indubitavelmente, seus sentidos nunca perceberam uma coisa carente de todas essas quatro quantidades, nem jamais perceberam um processo de transformação e a geração das quatro qualidades como é sugerido. Assim sendo, é claro que todos concordam em admitir alguma opinião concernente à origem do mundo que não tem base na percepção sensorial”. [6]

Para sua defesa da criação ex-nihilo, Gaon trabalha com quatro argumentos, três dos quais muito bem expostos: de finitude do universo, estrutura e acidentalidade. 

“Continuou a afirmar que nosso Senhor, louvado e enaltecido seja, informou-nos que todas as coisas foram criadas no tempo, e que Ele as criou do nada. Ele nos comprovou essa verdade por meio de sinais e milagres e nós a aceitamos. Examino ainda mais nesta matéria com o intuito de saber se ela podia ser comprovada por especulação como foi comprovada por profecia. Achei que era este o caso por certo número de razões, das quais, devido à brevidade, selecionei as quatro seguintes: (1). A primeira prova baseia-se no caráter finito do universo. (2). A segunda prova é derivada da união de partes e da composição de segmentos. Vi que os corpos consistem de partes combinadas e de segmentos ajustados entre si. (3). A terceira prova baseia-se na natureza dos acidentes. Verifiquei que nenhum dos corpos são desprovidos de acidentes que os afetem direta ou indiretamente. Animais, por exemplo, são gerados, crescem até que alcançam sua maturidade, então, definham e se decompõem. Então eu disse a mim mesmo: Será que a terra como um todo é livre destes acidentes? (4). A quarta prova baseia-se na natureza do tempo. Sei que o tempo é triplo: passado, presente, futuro. Embora o presente seja menor do que qualquer instante, tomo o instante como se toma um ponto e digo: Se um homem tentasse em seu pensamento ascender deste ponto no tempo ao ponto mais elevado, ser-lhe-ia impossível fazê-lo, porquanto o tempo é agora admitido como infinito e é impossível ao pensamento penetrar no ponto mais remoto daquilo que é infinito”. [7]

De todos os pensadores judeus medievais, talvez o mais conhecido fora dos meios judaicos, seja o talmudista francês Shlomo bar Itzhak, o rabi Rashi de Troyes (1040-1105). Exegeta, Rashi apresenta uma tradução para o versículo um de Gênesis que leva em conta estrutura e acidentalidade: “No princípio, ao criar Deus os céus e a terra, a terra era vã...” E segundo seu midrash, o texto não está preocupado em mostrar a ordem da criação, mas em afirmar o ato criador de Deus. Rashi mostra-se preocupado com o sentido literal, mas define claramente sua hermenêutica: 

“Todo texto se divide em muitos significados, mas, afinal nenhum texto está destituído de seu sentido literal”. [8] Dessa maneira, tanto para expositores da creatio ex nihilo como para os defensores do processio Dei ad extra a intenção primeira de Gênesis Um é apresentar Deus como criador, que utiliza tohu e bohu como matéria prima para a formação do universo. E é a partir dessa relação entre criação e revelação, que os estudiosos judeus entenderão a redenção, já que o fim messiânico ou estágio final do mundo revelado significa uma volta ao começo, uma nova criação. “A redenção deveria ser conseguida não por um movimento tempestuoso na tentativa de apressar crises e catástrofes históricas, mas antes pela remarcação do caminho que conduz aos primórdios da criação e da revelação, ao ponto em que o processo do mundo (a história do universo e de Deus) principiou-se a desenvolver-se dentro de um sistema de leis. Aquele que conhecia a senda pela qual viera podia ter esperanças eventualmente de poder retornar sobre seus passos”. [9] Assim, mais do que qualquer intencionalidade em apresentar a cronologia da criação, Gênesis Um apresenta uma ordem enquanto correlação da estrutura e acidentalidade. Esse processo é interpretado por Scholem como “o primeiro ato, o ato do tzimtzum, no qual Deus determina e limita a Si mesmo, é um ato de julgamento que revela as raízes dessa qualidade em tudo o que existe. Essas raízes do julgamento divino subsistem em mistura caótica com o resíduo da luz divina que remanesceu, após a retirada ou retraimento original, dentro do espaço primário da criação de Deus. Então um segundo raio de luz emanado da essência do ein sof traz ordem ao caos e põe o processo cósmico em movimento, ao separar os elementos ocultos e moldá-los em nova forma”. [10]

Observação
As notas e referências você encontra no livro de Jorge Pinheiro citado.











Gênesis Um, a física e e a mística judaica (II)

O texto inteiro você encontra em 
Jorge Pinheiro, Imago Dei, a teologia do ser humano, Fonte Editorial, 2016, pp. 126-151.


Dois escritos antigos nos mostram que a doutrina da creatio ex nihilo tem suas bases tanto no Tanach, como nos apócrifos intertestamentários. Lemos em Isaías: “Assim diz Iavé, teu redentor, aquele que te modelou desde o ventre materno. Eu, Iavé, é que fiz tudo, e sozinho estendi os céus e firmei a terra. Com efeito, quem estava comigo?” (Isaías 44.24). E em II Macabeus 7.28: “Eu te suplico, meu filho, contempla o céu e a terra e observa tudo o que neles existe. Reconhece que não foi de coisas existentes que Deus os fez, e que também o gênero humano surgiu da mesma forma”. Esta, aliás, é a primeira afirmação explícita da criação ex nihilo.

A primeira vista, a cosmogonia judaica define a centralidade de Gênesis Um no ato criativo de Deus apenas enquanto espacialidade. Seria uma busca do lugar, da centralidade espacial. O que leva muitos a afirmarem que não há nenhum elemento espaço-temporal em Gênesis. Mas, isso não é verdade. Em 1740, Anton Lazzaro Moro, cristão novo, geólogo e exegeta italiano, desenvolveu uma sofisticada defesa da hipótese espaço-temporal em Gênesis Um. Dizia ele que tudo que está “envolto e fechado” precisa de um tempo para libertar-se e tornar-se evidente, e que Deus, ao criar a natureza, colocou-se com administrador das leis criadas. Daí conclui: “Quando a Escritura afirma que ‘Spiritus Dei ferebatur super aquas’ indica uma função que traz consigo sucessão de tempo”. [13] Desenvolvendo sua tese espaço-temporal, explica que toda a criação sofreu duas produções diferentes, que precisam ser cuidadosamente separadas: “a primeira é a do nada pela mão imediata do criador; a outra provém do seio das segundas causas acionadas pelo administrador da natureza. A primeira produção é instantânea e é ato divino proporcionado pela onipotência e eternidade de Deus; a segunda [produção] implica que o ato divino seja adaptado às exigências da natureza que Deus estabeleceu em cada coisa”. [14] A partir daí sua cosmogonia é surpreendente. Explica que foi o Eterno quem moveu circularmente “a celeste matéria de todo o planetário vórtice”, obrigando essa matéria que formaria o Sol a colocar-se no lugar que lhe era destinado. Constatando que seja qual for a velocidade que se queira atribuir ao movimento diário do Sol e de seu vórtice, “isso não aconteceu num só dia e em só vinte e quatro horas”. A formação do Sol, assim como a produção dos planetas, afirma Moro, “comprova que aqueles seis dias não foram de medida igual aos dias modernos, mas que foram espaços de tempo de duração muito mais longa, ou seja, de uma duração proporcional à atividade das causas segundas e à exigência dos efeitos produzidos; espaços esses que foram chamados dias, conforme o costume frequentemente usado nas Escrituras de exprimir com o nome de dias certos espaços de tempo longos e indeterminados” [15] É interessante ver como a física do século vinte, principalmente aquela que sofreu influências dessa mesma cosmogonia, traduziu para uma nova linguagem antigos conceitos.

Desde Aristóteles a ciência avaliou equivocadamente o conceito tempo, considerando-o absoluto, sem relação imediata e causal com o espaço. Pensou um tempo sem ambiguidades, achando que se fosse medido corretamente, entre dois espaços ou eventos, o intervalo de mensuração seria sempre igual. Durante séculos, inclusive para Newton, o tempo foi independente do espaço. Mas, em 1905, Einstein tornou pública uma nova teoria de espaço, tempo e movimento, que ele chamou de relatividade especial. Comprovada em experiências de laboratório, essa teoria, aceita pela maioria dos físicos atuais, levanta algumas hipóteses simplesmente impressionantes, como a equivalência da massa e da energia, a elasticidade do espaço e do tempo e a criação e destruição da matéria. Dez anos depois, na sequência da teoria anterior, Einstein publica a sua teoria da relatividade geral, com novas previsões: a curvatura do espaço e do tempo, a possibilidade de que o universo seja finito, mas ilimitado e a possibilidade de o espaço e o tempo se esmagarem, deixando de existir.

“Estas considerações levou-nos a conceber teoricamente o universo real como um espaço curvo, de curvatura variável no espaço e no tempo, de acordo com a densidade de distribuição da matéria, susceptível, porém, quando considerada em larga escala, de ser tomado como um espaço esférico. Esta concepção tem, pelo menos, a vantagem de ser logicamente irrepreensível, e de ser aquela que melhor se cinge ao ponto da teoria da relatividade geral”. [16]

E ao criticar a teoria do tempo absoluto, Einstein vai mostrar que à medida que o deslocamento de um objeto se aproxima da velocidade da luz, sua massa aumenta mais rapidamente, de forma que gasta mais energia para aumentar sua velocidade. Por isso, possivelmente não poderia atingir a velocidade da luz, pois deixaria de ter massa intrínseca. O importante dessa teoria é ter modificado a compreensão de tempo e de espaço. Antes, considerava-se que a velocidade da luz era a distância que ela percorre, dividida pelo tempo que leva para fazer isso. Agora, compreendemos que a velocidade pode ser a mesma, mas não a distância percorrida. A partir da teoria da relatividade, o conceito de simultaneidade, ou seja, da existência de um mesmo momento em dois lugares diferentes, deixou de ter qualquer significado em termos de universo. Em linguagem da física da relatividade o tempo gasto é a velocidade da luz multiplicada pela distância que a luz percorreu. Temos então várias medidas de tempo, ou seja, medições diferentes entre dois eventos ou espaços. Gênesis nos apresenta este conceito de tempo com “yom” que aparece como não-determinação-quando em Gênesis 3.5; não-determinação-período em Gênesis 1.14,16 e18; não-determinação-época em Gênesis 2.4. Deixamos de ter, então, dois conceitos separados e absolutos: o tempo e o espaço, para termos um, o espaço-tempo. Ora, um evento é algo que acontece num determinado ponto do espaço e logicamente num tempo também determinado. Só que não há separação entre essas duas unidades.

Uma das premissas da teoria da relatividade, conforme expõe Hawking, [17] é que o tempo corre mais lentamente perto de um corpo volumoso. Assim, na Terra, para tomarmos um exemplo que nos interessa, o tempo é mais lento que em outros planetas ou luas de menor massa. Isto porque existe uma relação entre energia da luz e sua frequência. Quanto maior a energia, maior a sua frequência. Dessa maneira, à medida que a luz percorre verticalmente o campo gravitacional da Terra perde energia e sua frequência diminui. Em outras palavras, espaço e tempo são quantidades dinâmicas. Quando um corpo se move no universo afeta a curva do espaço-tempo e, por sua vez, a curva do espaço-tempo afeta a forma como os corpos se movem e as forças atuam. Só que, e esse conceito é importante para a relatividade geral, não há como falar de espaço-tempo fora dos limites do universo. Essa premissa é interessante, pois descarta a idéia de um universo imutável, que sempre existiu, para trabalhar com a possibilidade de um universo que teve início, é plástico e encontra-se em expansão.






Gênesis Um, a física e a mística judaica (III)

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Jorge Pinheiro, Imago Dei, a teologia do ser humano, Fonte Editorial, 2016, pp. 126-151.

Ora, o que Gênesis está mostrando é que o universo teve início e construção. “Não há nenhum paralelo bíblico aos mitos pagãos que relatam a morte de deuses mais velhos (ou poderes demoníacos) pelos mais jovens; não se acham presentes nos tempos primevos quaisquer outros deuses. As batalhas de Iavé com monstros primevos, aos quais é feita ocasionalmente alusão poética, não são lutas entre deuses pelo domínio do mundo. As batalhas de Iavé com Raabe, o dragão, Leviatã, no mar, a serpente veloz, etc., não são esclarecidas pela referência ao mito da derrota de Tiamat por Marduque e sua subseqüente tomada do poder supremo”.[1] Assim, para a teoria da relatividade o universo tem começo como singularidade, que ficou conhecida como big bang e deverá ter um final também singular, o colapso total ou big crunch. De certa forma, o big crunch nos remete ao texto de Pedro: “Ora, os céus e a terra estão reservados pela mesma palavra ao fogo. O dia do Senhor chegará como ladrão e então os céus se desfarão com estrondo, os elementos devorados pelas chamas se dissolverão e a terra, juntamente com suas obras, será consumida” (2ª. Pedro 3.7 e 10). Só que, como o espaço-tempo é finito, mas sem limites, o big crunch poderia levar a uma concentração de energia tal, que possibilitaria a formação de um novo universo. E essa hipótese nos leva ao apocalipse de João: “Vi então um céu novo e uma nova terra, pois o primeiro céu e a primeira terra se foram...” (Apocalipse 21.1), mas também a Hawking: 



“De forma semelhante, se o universo explodisse novamente, deveria haver um outro estado de densidade infinita no futuro, o big crunch, que seria o fim do tempo. Mesmo que o universo como um todo não entrasse novamente em colapso, haveria singularidades em algumas regiões determinadas, que explodiriam para formar buracos negros. Essas singularidades seriam o fim do tempo para quem ali caísse. Na grande explosão e demais singularidades todas as leis são inoperantes. Então, Deus ainda teria tido completa liberdade para escolher o que aconteceu e como o universo começou”.[2]

Ora, como a expansão do universo implica em perda de temperatura, que é uma medida de energia, quando o universo dobra de tamanho, sua temperatura cai pela metade. Assim, quando Deus cria o universo, supõe-se que tinha tamanho zero e temperatura infinitamente quente. Mas à medida que se expande, a temperatura cai. Isso explica porque o universo é tão uniforme, e parece igual mesmo nos diferentes pontos do espaço. Uma das consequências, caso consideremos o fiat divino como o big bang, é que a partir da grande explosão não houve tempo de a luz se deslocar por ilimitadas distâncias. É por isso que Gênesis apresenta em primeiro lugar tohu e bohu, as trevas e o abismo, e só no versículo três o surgimento da luz. 

É interessante ver que uma das possibilidades que alguns físicos baralham, um pouco a contragosto, é a de que Deus escolheu a configuração inicial do universo por razões que não temos condições de compreender. Consideram que os acontecimentos do surgimento do universo não se deram de forma arbitrária, mas refletem uma ordem comum. Hawking, que não é teólogo, mas físico, opta por uma variável que chama limitação caótica ou escolha ao acaso. Dentro desse ponto de vista, o universo primordial surgiu como caos. Ora a segunda lei da termodinâmica mostra que há essa tendência no universo, e que a ordem e o equilíbrio, ou seja, a vida, que é a forma mais organizada da matéria, surge como oposição a este caos. Einstein uma vez perguntou que nível de escolha Deus teria tido ao construir o universo? Para Hawking, se a proposta do não limite for correta, ele não teve qualquer liberdade para escolher as condições iniciais. Teria tido a liberdade de escolher as leis a que o universo obedece, mas isso não significaria um grau tão grande de escolha. “Pode ter sido apenas uma, ou um pequeno número de teorias completas unificadas, tal como a teoria do filamento heterótico, que são autoconsistentes e permitem a existência de estruturas tão complexas quanto os seres humanos, que podem investigar as leis do universo e fazer perguntas acerca da natureza de Deus”. [3]

Prigogine e Stengers acrescentam a esta discussão, o conceito de entropia, que nos guia na compreensão do processo vivido pelo universo – será de expansão ou de retração? --, pois “toda variação da entropia no interior de um sistema termodinâmico pode ser decomposta em dois tipos de contribuição: a entrada exterior de entropia, que mede as trocas com o meio e cujo sinal depende da natureza dessas trocas, e a produção de entropia, que mede os processos irreversíveis no interior do sistema. É essa produção de entropia que o segundo princípio define como positiva ou nula”. [4] O conceito de entropia é mais bem entendido quando nos lembramos que as leis científicas não distinguem entre as direções para frente e para trás do tempo. Embora, segundo Hawking, haja pelo menos três setas de tempo que distinguem o passado do futuro, que são a seta termodinâmica, direção do tempo em que a desordem aumenta; a seta psicológica, direção do tempo na qual se recorda o passado e não o futuro; e a seta cosmológica, direção do tempo em que o universo se expande mais do que se contrai. A seta psicológica é essencialmente a mesma que a termodinâmica, de modo que ambas sempre apontam para a mesma direção. “A proposta do não limite para o universo prevê a existência de uma seta termodinâmica do tempo bem definida, porque o universo deve começar num estado plano e ordenado. E a razão por que se observa esta seta termodinâmica se adequar à cosmologia é que os seres inteligentes só podem existir na fase de expansão”. [5] Assim podemos dizer que há uma adequação das setas termodinâmica e cosmológica, pois podemos olhar para trás e ver tohu e bohu. Somos presentes, o que segundo Hawking significaria que o universo se encontra predominantemente em expansão.

Mas a física não parou aí e outros cientistas a partir do estudo do microcosmo levantaram a hipótese da não causalidade dos movimentos dos elétrons dento do átomo. Ou seja, esses movimentos não teriam causas definidas, donde podemos trabalhar apenas com previsões sobre tais movimentos. Ora, se tal fato for real, todo o universo pode mudar de um estado a outro, ou seja, de expansão à retração num espaço-tempo não previsível por nós. Einstein discordou, e disse que Deus não jogava dados com o universo, ou seja, na física não haveria lugar para a sorte. Einstein dará combate às teses da não causalidade na mecânica quântica, defendidas pelas escolas de Copenhagem e Gottingen, afirmando que não podia suportar a idéia de que “um elétron exposto a um raio de luz possa, por sua própria e livre iniciativa, escolher o momento e a direção segundo o qual deve saltar. Se isso for verdade, preferia ser sapateiro ou até empregado de uma casa de jogos em vez de ser físico”. [6] Mas a física quântica foi conquistando terreno. Em 1944, Einstein voltou à carga: “Nem sequer o grande sucesso inicial da teoria dos quanta consegue convencer-me de que na base de tudo esteja o indeterminismo, embora saiba bem que os colegas mais jovens considerem esta atitude como um efeito de esclerose. Um dia saber-se-á qual destas duas atitudes instintivas terá sido a atitude correta”. [7] E a questão continua em aberto.

Guardadas as devidas proporções, Agostinho, pai e mestre da igreja cristã, também considerou que o caos transcendia o tempo. “E por isso o Espírito, Mestre do vosso servo, quando recorda que no princípio criaste o céu e a terra, cala-se perante o tempo. Fica em silêncio perante os dias. O céu dos céus, criado por Vós no princípio, é, por assim dizer, uma criatura intelectual, que apesar de não ser coeterna convosco, ó Trindade, participa, contudo, da vossa eternidade. Sem movimento nenhum desde que foi criada, permanece sempre unida a Vós, ultrapassando por isso todas as volúveis vicissitudes do tempo. Porém, este caos, esta terra invisível e informe não foi numerada entre os dias. Onde não há nenhuma forma nem nenhuma ordem, nada vem e nada passa; e onde nada passa, não pode haver dias nem sucessão de espaços de tempo”. [8] O bispo de Hipona faz uma separação, não somente neste texto, entre os céus dos céus, uma dimensão além dos limites da ciência, e “o nosso céu e a nossa terra” (universo), que segundo ele é terra. Para ele é totalmente compreensível que essa terra fosse “invisível e informe”, pois estava reduzida a um abismo sem luz, exatamente porque não tinha forma. Diríamos hoje, não há espaço-tempo. E tenta uma definição, apesar de alertar para suas limitações: “certo nada, que é e não é”. Interessante, Nissi ben Noach disse praticamente a mesma coisa. E Hawking concorda: “O conceito de tempo não tem significado antes do começo do universo. O que foi apontado pela primeira vez por Agostinho, quando indagou: O que Deus fazia antes de criar o universo?” [9]

Consideramos que existem três grandes teorias cristãs sobre a criação: tudo é criação original; teoria da brecha; e teoria do caos. A partir dos caminhos percorridos, gostaria de fazer alguns acréscimos à teoria do caos que prefiro chamar de teoria do caos e da complexidade: 

1. O versículo primeiro de Gênesis Um está fora do espaço-tempo. Nesse sentido refere-se à dimensão divina do céu dos céus conforme explicita Agostinho. A criação do espaço-tempo começa com o próprio caos, que não deve ser entendido como negação ou pura ausência, mas como entropia. É ex nihilo enquanto universo espaço-temporal que surge enquanto realidade de Deus que repousa naqueles quatro conceitos enumerados por Noach: determinação, proclamação, trabalho e ordem.

2. O tempo dos primeiros versículos de Gênesis Um não é cronológico no sentido que conhecemos hoje. Antes, é o tempo da ordem/organicidade de Deus, ou se quisermos kairós. Isso é explicável porque não há um tempo, mas diversos tempos. A criação implica na expansão do espaço-tempo. Assim o espaço-tempo de Gênesis 1.3 é totalmente diferente do espaço-tempo de Gênesis 1.12. 

3. Toda discussão que tente uma polaridade entre evolução ou criação de seis dias de vinte e quatro horas não procede. Isto porque o espaço-tempo entre os seis dias não são iguais. Há criação e expansão dinâmica, o que na Bíblia traduz-se em criação e sustentação. “És tu, Iavé, que és o único! Fizeste os céus, os céus dos céus, e todo o seu exército, a terra e tudo o que ela contém, os mares e tudo o que eles encerram. A tudo isso és tu que dás vida, e o exército dos céus diante de ti se prostra”. Neemias 9.6.

Concluímos estas travessias de Gênesis Um na certeza de que os leitores fizeram a construção da importância de novas leituras hermenêuticas, em especial duas delas, a hermenêutica da complexidade e a hermenêutica crítica das ideologias, para análises e compreensões da teologia do ser humano. 


Observação
As notas e referências completas você encontra no livro de Jorge Pinheiro citado.