lundi 3 avril 2017

Gênesis Um, a física e a mística judaica (I)

O texto inteiro você encontra em 

Jorge Pinheiro, Imago Dei, a teologia do ser humano, Fonte Editorial, 2016, pp. 126-151.


Podemos dizer que há um criativo pensamento judaico, que através dos séculos soube combinar Torá e conhecimento, ética e epistemologia. Nosso propósito é, numa primeira aproximação, mostrar que os estudos judaicos dos conteúdos de Gênesis Um produziram uma epistemologia que interliga o conceito espaço/tempo em Gênesis Um com a teoria da relatividade. Essa correlação tem especial importância para a teologia, já que a partir dela podemos entender melhor a realidade de Gênesis Um.

“No começar Deus criando o fogo-água e a terra/ E a terra era lodo torvo e a treva sobre o rosto do abismo/ E o sopro-Deus revoa sobre o rosto da água”. [1]

Parto da hipótese de que a teologia judaica nos últimos mil e novecentos anos apresenta hermenêuticas criativas do Gênesis Um. Essas hermenêuticas ou midrashim não ficaram restritas aos círculos rabínicos, mas fizeram parte da tradição e da cultura do judaísmo através dos séculos. Escritores, artistas e cientistas judeus utilizaram esses conhecimentos em seus campos de trabalho. Einstein conhecia essas fontes, em parte desconhecidas para o mundo cristão, mas ricas e cheias de significados para todo intelectual judeu. Por isso, esta leitura da teoria da complexidade tem como roteiro a cosmogonia judaica, entendida como as narrativas ou teorias a respeito da origem do universo, e as idéias centrais da teoria da relatividade. 

Albert Einstein era judeu, acreditava em Deus criador, mas não aceitava o conceito de Deus pessoal. Foi um sionista militante durante toda sua vida, a ponto de em 1952 lhe ser oferecida a presidência de Israel. Não aceitou. Estava casado com a física. “As equações são mais importantes para mim porque a política é feita para o presente, ao passo que uma equação é algo para toda a eternidade”. [2]

Apesar de seus matizes, o judaísmo mostrou uma coerência em relação às hermenêuticas de Gênesis Um, a defesa da criação ex nihilo. Assim, o recuo de Deus para permitir que surgisse o vazio, o nada, e nele o universo finito, é desenvolvido na teoria da contração, em hebraico tzimtzum. Essa teoria formalizada pelo rabino Luria (1534-1572) é uma das concepções mais surpreendentes da hermenêutica judaica. Isaac Luria, um dos maiores expoentes da tradição mística no judaísmo, nasceu no Cairo, mas desenvolveu seu ministério em Safed, na Palestina. A expressão tzimtzum significa originariamente concentração, mas acabou sendo entendida como retirada. Luria partiu de textos do Midrash, onde encontramos que Deus concentrou sua Shekiná, sua presença, no Santo dos Santos, assim todo seu poder retraiu-se num único ponto. É assim que surge a expressão tzimtzum. [3] As duas expressões, concentração e retirada, que deveriam ser entendidas como complementares, já que Deus se retira e então concentra a sua luz sobre este ponto, passou a dividir os estudiosos em dois grandes grupos: os que defendem o tzimtzum como base para a doutrina da creatio ex nihilo e também para aqueles que defendem a doutrina da emanação (em hebraico atsilu) ou processio Dei ad extra. Dessa maneira, o próprio Luria, apesar de partir de uma expressão que naturalmente deve levar à creatio ex nihilo, torna-se o principal expositor dentro do misticismo judaico do processio Dei ad extra, que tem por base não um processo no tempo, mas uma estrutura da realidade, enquanto emanação, criação, formação e ação. Assim, para esses rabinos, níveis inferiores de realidade emanaram de níveis superiores que, por sua vez, tiveram origem em Deus. Dentro dessa concepção há um midrash, a teoria do vaso quebrado, que trabalha com a hipótese de que o mundo foi feito de remanescentes de mundos anteriores que Deus havia destruído. Uma conhecida lenda rabínica explica esse processo como o desprender de uma chama de carvão da roupa de Deus.

“No princípio (Gênesis 1:1), a vontade do Rei começou a gravar signos na esfera superior. Do recesso mais oculto, uma negra chama brotou do mistério do ein sof, o Infinito, como um novelinho de massa informe, como que inserido no aro dessa esfera, nem branca nem preta, nem vermelha nem verde, de nenhuma cor. Somente depois de distender-se como um fio, produziu ela cores para luzir em si. Do âmago da chama, jorrou uma fonte da qual brotaram cores e se espalharam sobre tudo embaixo, oculto na ocultação mais misteriosa do ein sof. Mal rompeu ela, inteiramente irreconhecível, seu círculo de éter, sob o impacto da irrupção, um ponto oculto, superior fulgiu da irrupção final. Aquém desse ponto está excluído todo conhecimento e por isso ele é chamado reschit, princípio, a primeira palavra do Todo”. [4]

Apesar de sua riqueza hermenêutica não estaríamos longe da verdade ao classificar a doutrina da emanação como um panenteísmo, que define o mundo material como o desdobramento de Deus em diferentes níveis. E porque o mundo existe dentro de Deus, os defensores do processio Dei ad extra consideram necessário descobrir o que há de divino nos fenômenos do cotidiano. Se entendermos, porém, a teoria do tzimtzum, como a correlação de dois movimentos, o da retirada e o da concentração ficará mais fácil aproveitar os estudos de Luria. Mas, o que queremos destacar aqui é que o tzimtzum explica o recuo de Deus para permitir que surgisse o vazio, o nada, e nele o universo finito. Como Deus é infinito, sem o tzimtzum não haveria o nada no qual pudesse produzir a estrutura espaço/tempo de uma criação separada. 

Fato histórico interessante é que as concepções de Luria influenciaram o filosofo judeu holandês, Baruch de Espinoza (1632-677). Ele nasceu em Amsterdã, de família portuguesa sefardita e é o fundador do moderno criticismo bíblico. Foi um estudioso da Torá e do Talmude, dos grandes pensadores judaicos, como Maimônides, Ben Gershon, Ibn Erza, e outros, mas também dos filósofos gregos clássicos. Racionalista, considerou Deus um mecanismo imanente da natureza e a Torá uma obra alegórica. Como consequência, em 1656, a Sinagoga Portuguesa de Amsterdã o puniu com o chérem, a excomunhão.

Deixando Espinoza de lado, é importante dizer que se por um lado a correlação da autocontração e concentração divina deu origem ao mundo material, o choque entre o movimento restritivo e o transbordante amor de Deus criou também a possibilidade do mal. Nesse sentido, a cosmogonia judaica vê a criação em primeiro lugar como consciente autolimitação e na sequência como revelação e julgamento. E como julgamento é entendida a imposição de limites, ele faz parte da revelação, que se expressa pela primeira vez como criação de Deus. Em outras palavras: se o mal é uma probabilidade que surge da correlação amor divino e retração, o julgamento passa a ser inerente a tudo na criação, já que todas as coisas estão determinadas enquanto limites.

A tradição do debate sobre a creatio ex nihilo é antiga no pensamento judaico. Na verdade, podemos dizer que começa a ser realizada no segundo século. Por isso, não é de estranhar que encontremos reflexões profundas sobre Gênesis Um nos séculos posteriores. Assim, em um dos textos mais representativos do pensamento caraíta, movimento medieval de retorno à letra da Escritura, considerado por muitos um protestantismo judeu de coloração pietista, a “Explanação dos Mandamentos”, de Aha Nissi ben Noah de Bassorá, que ensinou em Jerusalém na segunda metade do século nove, lemos: 

“No primeiro dia Deus criou sete coisas: o céu, a terra, as trevas, a luz, a água, o abismo e o vento (Gênesis 1.1-12). Primeiro criou tohu e bohu (a solidão e o caos), dos quais surgiu a terra (Gênesis 1.1-2). Criou as trevas: ‘Ele formou a luz e criou as trevas’ (Isaías 45.6). Criou o vento, conforme a palavra: ‘e criou o vento’. Criou a água, pois com a criação da terra havia água. Criou o abismo, para que a água tivesse uma profundidade e uma submersão. Criou a luz (Gênesis 1.3). Para a criação do mundo foram necessárias quatro coisas: a ordem, o trabalho, a determinação e a proclamação”. [5]

Nesse texto aparentemente tão simples, encontramos dois conceitos muito importantes: tohu e bohu fazem parte da criação e para que haja criação é necessário ordem.

Outro grande hermeneuta judeu, que fez oposição ao pensamento caraíta, foi Saadia Gaon (892-942). Influenciado pela efervescente teologia do Islã e pelo pensamento helenístico clássico, Gaon combateu a presença heterodoxa, de tendência maniqueísta, os remanescentes de Filo e a crítica gnóstica. Seu texto sobre a doutrina da creatio ex nihilo é de uma profunda beleza, apesar de apresentar imperfeições normais ao conhecimento da época, como, por exemplo, sua visão geocêntrica. Mas, de forma brilhante enfrenta opositores bem parecidos aos que encontramos hoje em dia. 

“Aqueles que acreditam na eternidade do mundo procuram provar a existência de algo que não tem começo nem fim. Por certo, nunca depararam com uma coisa que percebessem, pelos sentidos, sem ser começo nem fim, mas procuram estabelecer sua teoria por meio de postulados da razão. Semelhantemente, os dualistas empenham-se em provar a coexistência de dois princípios separados e opostos, cuja mistura fez que o mundo viesse a ser. Sem dúvida, nunca testemunharam dois princípios separados e opostos, nem o pretenso processo da mistura, mas tentaram suscitar argumentos derivados da razão pura em favor de sua teoria. De maneira similar aqueles que acreditam numa matéria eterna consideram-na como um hilo, isto é, algo em que não há originalmente qualidade de quente ou frio, de úmido ou seco, mas que se transforma por uma determinada força e assim produz aquelas quatro qualidades. Indubitavelmente, seus sentidos nunca perceberam uma coisa carente de todas essas quatro quantidades, nem jamais perceberam um processo de transformação e a geração das quatro qualidades como é sugerido. Assim sendo, é claro que todos concordam em admitir alguma opinião concernente à origem do mundo que não tem base na percepção sensorial”. [6]

Para sua defesa da criação ex-nihilo, Gaon trabalha com quatro argumentos, três dos quais muito bem expostos: de finitude do universo, estrutura e acidentalidade. 

“Continuou a afirmar que nosso Senhor, louvado e enaltecido seja, informou-nos que todas as coisas foram criadas no tempo, e que Ele as criou do nada. Ele nos comprovou essa verdade por meio de sinais e milagres e nós a aceitamos. Examino ainda mais nesta matéria com o intuito de saber se ela podia ser comprovada por especulação como foi comprovada por profecia. Achei que era este o caso por certo número de razões, das quais, devido à brevidade, selecionei as quatro seguintes: (1). A primeira prova baseia-se no caráter finito do universo. (2). A segunda prova é derivada da união de partes e da composição de segmentos. Vi que os corpos consistem de partes combinadas e de segmentos ajustados entre si. (3). A terceira prova baseia-se na natureza dos acidentes. Verifiquei que nenhum dos corpos são desprovidos de acidentes que os afetem direta ou indiretamente. Animais, por exemplo, são gerados, crescem até que alcançam sua maturidade, então, definham e se decompõem. Então eu disse a mim mesmo: Será que a terra como um todo é livre destes acidentes? (4). A quarta prova baseia-se na natureza do tempo. Sei que o tempo é triplo: passado, presente, futuro. Embora o presente seja menor do que qualquer instante, tomo o instante como se toma um ponto e digo: Se um homem tentasse em seu pensamento ascender deste ponto no tempo ao ponto mais elevado, ser-lhe-ia impossível fazê-lo, porquanto o tempo é agora admitido como infinito e é impossível ao pensamento penetrar no ponto mais remoto daquilo que é infinito”. [7]

De todos os pensadores judeus medievais, talvez o mais conhecido fora dos meios judaicos, seja o talmudista francês Shlomo bar Itzhak, o rabi Rashi de Troyes (1040-1105). Exegeta, Rashi apresenta uma tradução para o versículo um de Gênesis que leva em conta estrutura e acidentalidade: “No princípio, ao criar Deus os céus e a terra, a terra era vã...” E segundo seu midrash, o texto não está preocupado em mostrar a ordem da criação, mas em afirmar o ato criador de Deus. Rashi mostra-se preocupado com o sentido literal, mas define claramente sua hermenêutica: 

“Todo texto se divide em muitos significados, mas, afinal nenhum texto está destituído de seu sentido literal”. [8] Dessa maneira, tanto para expositores da creatio ex nihilo como para os defensores do processio Dei ad extra a intenção primeira de Gênesis Um é apresentar Deus como criador, que utiliza tohu e bohu como matéria prima para a formação do universo. E é a partir dessa relação entre criação e revelação, que os estudiosos judeus entenderão a redenção, já que o fim messiânico ou estágio final do mundo revelado significa uma volta ao começo, uma nova criação. “A redenção deveria ser conseguida não por um movimento tempestuoso na tentativa de apressar crises e catástrofes históricas, mas antes pela remarcação do caminho que conduz aos primórdios da criação e da revelação, ao ponto em que o processo do mundo (a história do universo e de Deus) principiou-se a desenvolver-se dentro de um sistema de leis. Aquele que conhecia a senda pela qual viera podia ter esperanças eventualmente de poder retornar sobre seus passos”. [9] Assim, mais do que qualquer intencionalidade em apresentar a cronologia da criação, Gênesis Um apresenta uma ordem enquanto correlação da estrutura e acidentalidade. Esse processo é interpretado por Scholem como “o primeiro ato, o ato do tzimtzum, no qual Deus determina e limita a Si mesmo, é um ato de julgamento que revela as raízes dessa qualidade em tudo o que existe. Essas raízes do julgamento divino subsistem em mistura caótica com o resíduo da luz divina que remanesceu, após a retirada ou retraimento original, dentro do espaço primário da criação de Deus. Então um segundo raio de luz emanado da essência do ein sof traz ordem ao caos e põe o processo cósmico em movimento, ao separar os elementos ocultos e moldá-los em nova forma”. [10]

Observação
As notas e referências você encontra no livro de Jorge Pinheiro citado.











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