jeudi 30 janvier 2020

A aberração do Cristo

A aberração do Cristo
Jorge Pinheiro, PhD



Você já leu? Não! Então compre!


Bem, vou lembrar e recorrer a um filme que marcou minha vida jovem. Em 1967, Jean-Luc Goddard a partir de um artigo sobre donas de casa de um conjunto habitacional no subúrbio de Paris, que se prostituíam para alimentar o consumo supérfluo, fez “Duas ou três coisas que eu sei dela”, que apresenta uma Paris dos anos 1960, um retrato da sociedade de consumo, em meio à pobreza das massas e a tragédia da guerra do Vietnã. Numa reflexão sobre espiritualidade e alta-modernidade, numa leitura a partir de Slavoj Zizek e John Milbank, quero falar de duas ou três coisas que nascem da referida discussão.

Tal abordagem, como o amor de Goddard por aquela Paris, também parto do coração. E nasceu no jovem sefardita, marxista, militante, que mais tarde, já na terceira década de vida, reconheci no rabino de Nazaré o mashiah esperado. E é exatamente esse itinerário de construção de vida e teologia que me levam a uma empatia com o materialismo do Cristo pensado por Zizek.

Slavoj Zizek e John Milbank discutiram a aberração/monstruosidade do Cristo, pensando paradoxo e dialética. Nesta discussão, Zizek apresenta a possibilidade de um materialismo da fé cristã e a deidade do Cristo, ou seja a encarnação do Criador. Mas Milbank, a partir de uma leitura ortodoxa, podemos dizer tomista, faz a defesa do escândalo da encarnação a partir da ontologia.

Nesta reflexão, há três coisas que penso, quando tratamos de espiritualidade e alta-modernidade, numa leitura a partir da aberração do Cristo/ do Mashiah: a primeira coisa é que na modernidade colonial e eurocêntrica se conjugava missão a partir do verbo ir, mas neste momento de alta-modernidade em caos e crise se faz necessário pensar o verbo receber; a segunda coisa, é que naquela modernidade referida a lógica da expansão colonial e eurocêntrica era a dialética, mas nesta alta-modernidade somos chamados a pensar a analética; e como terceira coisa que penso nesta introdução, é que na modernidade o Yeshua era o logos joanino, mas nesta alta-modernidade o Yeshua precisa ser entendido como aná-logos.

Ora, estas três percepções permitem leituras críticas da aberração do Mashiah, num confronto entre paradoxo e dialética, e colocam preocupações que devem ser levadas em conta quando se pensa espiritualidade e alta-modernidade.

Como sefardita, ou seja, do povo da estrela, que só aceitou o mashiah na maturidade, vivi e vivo a aberração da encarnação e o mesmo acontece com todos aqueles não-cristãos que pensam o cristianismo, quer sejam muçulmanos ou judeus e essa aberração da encarnação, deus/homem, homem/deus, não desafia apenas Zizek, está presente no mundo da alta-modernidade, e tem a ver com os excluídos e expropriados do terceiro mundo.

Quando pensamos a espiritualidade a partir da América Latina temos elementos para uma análise do clamor dos excluídos e expropriados a partir do conceito de outro e vamos fazer isso, a leitura do mesmo -- aquele que se fecha em si, sente-se autossuficiente, etnocêntrico e não aceita o outro, não aceita a alteridade --, trazendo para o momento presente a discussão entre Slavoj Zizek e John Milbank. 

A ontologia, a partir do iluminismo, ou melhor, a partir de Hegel, e este é um dos problemas da abordagem tomista de Milbank, não se baseou na relação pessoa-pessoa, mas na relação sujeito-objeto. Essa ontologia de uma só pessoa levou ao discurso solipsista, onde não há espaço para o outro, pois é não-ser e negatividade. O olhar europeu colocou-se como superioridade em relação ao outro, externo, primitivo e subalterno, o que conduziu à colonização e à expropriação das vidas. Tal situação teve justificação teológica: o outro é revestido da impessoalidade do inimigo, do estranho, do inferior donde, não há problema se for exterminado, já que este outro está fora da totalidade. Nada acrescenta ou diminuiu à totalidade.

Este mal é transmitido de geração em geração. A prática histórica ganha característica de lei, por isso, apesar de injusta, a exploração se torna legal. Mas a legalidade não pode ser o fundamento da moralidade. Toda prática justa deve ir além do pré-estabelecido, da ontologia da totalidade, além da ordem legal vigente. A origem de uma moralidade justa não está no mesmo, mas no outro, por isso a prática originada no mesmo é uma prática alienante, dominadora e opressora. 

No final dos anos 1960, a partir da constatação de que a dialética era limitadora para a formulação de uma teologia da práxis, Enrique Dussel e Juan Carlos Scannone buscaram uma expansão que chamaram analética. A expressão foi cunhada por B. Lakebrink e traduzia uma releitura da analogia tomista. Mas foi Scannone o primeiro a utilizar o conceito, opondo totalidade e alteridade, ao dizer que tal processo, mais que dialético, para distingui-lo da dialética hegeliana, era analético. 

Assim, Dussel e Scannone buscaram uma alternativa às dialéticas hegeliana e marxista clássica, o que foi possível pela afirmação da existência de um âmbito antropológico alterativo, além da identidade da totalidade, que abria a possibilidade de uma refundação do fundamento, deixando de ser tal para destacar-se como fundado. Mais tarde, Dussel dirá que seu método parte de Lévinas, mas que tem como pano de fundo a realidade latino-americana. A princípio foi formulado como leitura de uma ética da libertação latino-americana, mas ao definir a ética como filosofia primeira, a analética torna-se, em Dussel, a compreensão apropriada a uma filosofia latino-americana de libertação.

Em 1976, teólogos reunidos em Dar-er-Salam afirmaram que o método interdisciplinar na teologia e, por extensão a espiritualidade, tem que levar em conta a interrelação entre as teologias e a análise política, psicológica e social, quando se afirma que a criação é fundamentalmente boa e que a presença do Espírito no mundo e na história é contínua. É importante ter em mente o mal que se manifesta na alienação do ser humano e nas estruturas socioeconômicas. As desigualdades são diversas e apresentam muitas formas de degradação humana e, por isso, exigem fazer do evangelho um bem novo para o pobre. São exatamente essas leituras que nos levam a formular a necessidade de uma espiritualidade que chamamos da libertação.

Em América Latina dependência e libertação, Dussel afirma que na passagem diacrônica, desde o ouvir a palavra do outro até a adequada interpretação, pode-se ver que o momento ético é essencial ao método. Somente pelo compromisso existencial, pela práxis libertadora no risco, por um fazer próprio, pode-se ter acesso à interpretação, conceituação e verificação da revelação do mundo do outro. Dessa maneira, só aparentemente o pensamento europeu antepôs a teoria à práxis, pois o eu colonizo, o eu conquisto precedem o ego cogito. A exploração e a opressão criaram as condições históricas das quais nasceu uma espiritualidade da justificação e do paradoxo, uma falsa consciência da realidade. A práxis da dominação formou a subjetividade do conquistador: o eu moderno é imperial, livre e violento. O pensamento eurocêntrico e sua extensão estadunidense ocultam o conceito emancipador de modernidade como saída do estado de menoridade, o que traduz a justificação da práxis de violência por parte de culturas que se autocompreendem como desenvolvidas. Esta superioridade impôs um processo civilizatório de via única. 

Uma afirmação de Zizek – devemos, então, de um ponto de vista materialista radical, pensar destemidamente nas consequências de se rejeitar a realidade objetiva. A realidade se dissolve em fragmentos subjetivos, mas esses fragmentos incidem de volta no ser anônimo, perdendo sua consistência subjetiva e nos remete à questão do paradoxo.

O esquivar-se da realidade e de uma leitura materialista do mashiah, a partir da ontologia do paradoxo, nos leva à frase exposta por Tertuliano de Cartago, escritor cristão do século terceiro, credo quia absurdum!, creio porque é absurdo. 

Este absurdo paradoxal sobressalta à concretude e nos chama a mergulhar na imensidão do divino/humano e a fechar os olhos e a dizer como o fez um rabino chamado Shaul, que ficou conhecido como Paulo, o pequeno: os judeus pedem um sinal e os gregos a sabedoria, mas nós pregamos a Yeshua crucificado, que é escândalo para os judeus, e loucura para os gregos.

Absurdo, escândalo, paradoxo, tudo como fundamento da fé. Essa mesma emunah que justifica Abraham em meio à loucura de um pai que deve sacrificar o filho da promessa. Logo, a fé deixa de ser a emunah hebraica, que define posicionamento militar, e se transforma em paradoxo, não delírio ou devaneio, mas a loucura da confiança no divino, já que somos incapazes de compreender.

Ora, desde Paul Tillich, enquanto herdeiro de Hegel e do jovem Marx, a práxis é a mediação entre a ontologia e a efetivação do real. Esta correlação, que em Tillich vai virar método, é a procura da superação das dialéticas anteriores, que tratavam do conhecimento do ser e de suas manifestações fora da práxis histórica. Devemos, nesta introdução sobre espiritualidade e alta-modernidade também fazer este trânsito, ao construir uma lógica que não será hegeliana, nem marxista no sentido clássico, mas procurará correlacionar ontologia, lógica e metodologia na dinâmica da práxis espiritual.

Essa correlação com a exterioridade caracteriza a mobilidade da espiritualidade da libertação que, por isso, será uma espiritualidade da práxis, pois, desenvolve o caminho da correlação entre exterioridade e ontologia face à dinâmica da práxis, tratando das formulações de método que acompanham a superação dos horizontes ontológicos. Dessa maneira, coloca a afirmação da exterioridade como fonte anterior às exigências da ontologia, fazendo o caminho que leva um cruzamento comum: a ética. 

Espiritualidade na alta-modernidade deve ser construída a partir de duas abordagens, o outro enquanto revelação de um mistério incompreensível da liberdade e a comunidade de fé enquanto infraestrutura que denuncia o poder excludente. E, assim, a fé nasce como ato da inteligência, é um modo de ver quem é, ou o que é, que realmente ultrapassa o que se vê, que vai além do que se vê. Em primeiro lugar, a esperança de que o outro se revelará concretamente e é a possibilidade da produção e reprodução da vida o que vai além da visão do rosto. Assim, a espiritualidade da libertação significa um pensar sobre um outro, mas um outro que se revela na história, que se revela através do outro, que é o mistério incompreensível de nossa liberdade. Crer na revelação do outro é compreender o sentido da história.

Para que a espiritualidade liberte é necessário descobrir o sentido do presente histórico. E esse desvelar o sentido do presente histórico chamou-se profecia, o falar diante. Mas falar diante de quem? Na modernidade, este falar diante nos levou a leitura formal do ir: deveríamos ir para falar diante. Ora, se profecia é isso: falar do sentido dos acontecimentos presentes através da vida cristã, nesta alta-modernidade de caos e crise, o desafio não é ir, mas receber. Vivemos a localidade global, não somos chamados a ir, mas a receber, porque os excluídos e expropriados estão entre nós, conosco. Assim, contra a lógica que não aceita a exterioridade, espiritualidade na alta-modernidade é receber e viver a realidade da fé no chão da vida. 

A espiritualidade libertadora reconhece a vida a partir da analética: onde o outro se apresenta como alteridade, pois irrompe como estranho, diferente, excluído, que está fora do sistema e clama por justiça.

Ora, a ação espiritual é uma atividade de afrontamento, que diz respeito aquelas pessoas que sabem que é preciso consultar e interpelar, e não situar-se como espectadores passivos.

A analética é uma contribuição à questão metodológica, que parte da exterioridade, que é real devido à existência da liberdade humana, capaz de constituir outras histórias, outras culturas e outros mundos. A lógica hegeliana e por extensão a dialética só chegam até o horizonte do mundo, onde engolfa o outro, anulando-o em sua alteridade. Porém, além da identidade divina e além da dialética ontológica de Heidegger existe um momento antropológico, que afirma uma nova maneira de pensar a espiritualidade.

Analético é o fato pelo qual o ser humano, comunidade ou povo se situa sempre além do horizonte da totalidade. O momento analético é o ponto de apoio de novos desdobramentos. Entretanto, o ponto de partida do discurso metódico é a exterioridade do outro, como uma alternativa à dialética que trabalha com a contradição, identidade e diferença. O princípio não é o de identidade, mas de distinção. O momento analético segue uma sequência, a totalidade é posta em questão pela interpelação provocativa do outro. Escutar sua palavra é ter consciência ética, é aceitar a palavra interpelante por respeito à pessoa que fala, por não poder interpretá-la adequadamente. É lançar-se à práxis do excluído e expropriado.

Desde o século dezesseis, a América Latina é um continente ontologicamente oprimido por uma vontade de poder exercida na totalidade mundial pela Europa. Vontade de poder é uma potência que não somente critica os valores estabelecidos, mas que propõe novos, propõe valores na totalidade a partir do lado dominante da bipolaridade: a América Latina tem então como ideal ser europeia.

Na analética se faz necessária a aceitação ética da interpretação do clamor e a mediação da práxis. Esta práxis é constitutiva, condição de possibilidade da compreensão: traduz ser levado à exterioridade, lugar do exercício da consciência crítica. Sem o momento analético o método pode se dizer científico, mas se reduz ao fático natural, ao lógico ou matemático. 

O momento analético é a afirmação da exterioridade: não é somente a negação da negação do sistema desde a afirmação da totalidade, é a superação da totalidade a partir da transcendentalidade interna ou da exterioridade daquele que nunca esteve dentro. O momento analético é crítico por isso:é a superação do método dialético negativo, mas não o nega, como a dialética não nega a ciência, simplesmente o assume e completa, lhe dá seu justo valor. Afirmar a exterioridade é realizar o impossível para o sistema, o imprevisível para a totalidade, aquilo que surge a partir da liberdade não condicionada, inovadora. Só através da analética é possível comprometer-se com o outro, a ponto de arriscar a vida na luta pela libertação desse outro, além do que possibilita a justiça do sistema como consequência. A analética é prática: é uma economia, uma erótica, uma pedagogia e uma política que trabalham para a realização da alteridade humana, alteridade que nunca é solitária, mas a epifania de pessoas, gêneros, crenças, de uma geração, de um tempo e da espécie humana. 

A questão pedagógica não é tratada por Heidegger porque pensa que o ser-no-mundo procede unicamente da pessoa, mas se esquece que quem dá sentido ao meu mundo é o outro. É no processo pedagógico que se organiza o meu mundo, quando me descubro outro que está no outro, me descubro novo. 

A analética, então, não é pura teoria como a ciência e a dialética, mas é prática, porque sua essência constitutiva é a ética. Quando não há práxis não há analética, porque a prática -- a relação pessoa/pessoa -- é a condição para compreender o outro e exercer a plenitude da consciência crítica diante do sistema. O momento chave da leitura analética é o saber ouvir, o saber ser discípulo do outro, para poder interpretá-lo: isto é comprometer-se com sua libertação. Isso implica derrotar a totalidade ontológica divinizada, descer da oligarquia acadêmica e cultural, para expor-se a favor dos excluídos e expropriados pelo sistema. 

Ao citar Bento XVI, de forma crítica, Zizek diz que o papa condenou o secularismo sem Adonai, ocidental, no qual o dom divino da razão foi deturpado em doutrina absolutista. A conclusão do papa parece clara, pois razão e fé deveriam se juntar de uma nova maneira e descobrir seu fundamento comum no logos divino. E seria para esse grande logos, para essa amplitude da razão, que deveriam nortear o diálogo entre as culturas. 

Mas será mesmo? Em sua reflexão sobre a superação das totalidades ontológicas a partir da abertura à alteridade, Dussel afirma que tal superação se dá com a metafísica, entendida como além da totalidade ou além do fundamento. E se dá assim porque a metafísica não é somente ontológica, mas opera através da descoberta de um mais-além do mundo e como em grego aná significa mais além, e logos significa palavra, análogo toma o sentido de palavra que irrompe no mundo desde um mais além do fundamento. O método ontológico-dialético chega até o fundamento do mundo desde um futuro, porém se detém diante do outro como um rosto de mistério e liberdade, de história distinta, mas não diferente. Por isso, quando o logos irrompe enquanto interpelante, deixa de ser paradoxo, é análogo. 

Dialético é um a-través-de, analético é logos que vai além. No logos, num primeiro momento surge a palavra interpelante, mais além do mundo. Este é o ponto de apoio do método dialético, que passa da ordem antiga à ordem nova. Esse movimento de uma ordem a outra é dialético, porém é o outro como excluído e expropriado que é de fato o ponto de partida. A leitura analética surge desse outro e avança dialeticamente, há uma descontinuidade que surge da liberdade do outro. Este método tem em conta a palavra do outro como outro, implementa dialeticamente todas as mediações necessárias para responder a essa palavra, se compromete pela fé-posicionamento na palavra histórica, esperando o dia em que possa viver com o outro e pensar sua palavra.

Os antecedentes da analética foram colocados pelos pós-hegelianos e por Lévinas, não pelos filósofos modernos, nem por Heidegger, porque estes incluem tudo na concepção do ser. Mas, os verdadeiros críticos do pensamento eurocêntrico são os movimentos de libertação do terceiro mundo, porque escutam o outro, o não-europeu que foi excluído e expropriado. Para este, que está mais além, a dialética não basta, é necessário a analética, capaz não de ver, mas de ouvir a palavra crítica do outro, capaz de despertar a consciência ética e aceitar essa palavra, por respeito e fé-posicionamento ao outro, cuja interpelação não é interpretada adequadamente porque sua fundação transcende o nosso horizonte. Partimos da crítica de Lévinas, mas em Lévinas o outro é um outro abstrato. Lévinas ficou no meio do caminho, porque tem uma pedagogia, mas carece de uma política: nunca imaginou que o outro possa ser um muçulmano. Seu método se esgota no começo. Por isso, há que ir mais além de Lévinas e, por suposto, além de Hegel e Heidegger. Mais além que estes por serem ontólogos e mais além que Lévinas por este permanecer numa metafísica da passividade e numa alteridade equivocada. 

Zizek diz que não há provas – e não pode haver – de que Deus exista. Mas em vez de ser motivado por provas, o fiel, seja ele judeu, cristão ou muçulmano é motivado pelo desejo de que Adonai exista. Essa, no entanto, é a melhor prova de que Deus não existe, pois uma vez que só podemos desejar que exista aquilo que não existe, o teísmo é a melhor prova da não existência de Deus. Isso é o que Lacan afirma: os teólogos são os únicos ateístas verdadeiros. 

Mas será assim tão simples? Depois da questão judaica, Marx faz a crítica econômica do cristianismo. Essa crítica está dirigida às comunidades de fé, já que para Marx elas são a expressão da miséria. Mas também faz a crítica da religião quando analisa o fetichismo da mercadoria, porque a leitura religiosa do mundo real só vai desaparecer quando desaparecerem as condições atuais de vida. Mas por que é assim? Em que consiste essa leitura do mundo real? Porque o olhar religioso vê a existência separada das relações construídas pelos seres humanos, mas essa existência independente das relações sociais, essa existência não-real, é reflexo de outro real. Essa divisão entre a aparência que encobre a existência e esconde a realidade é o fenômeno do fetichismo. O fetichismo da mercadoria, um modo estranho de fetichismo, consiste nisso: esconde o caráter social do trabalho e se manifesta como se fosse um caráter material dos próprios produtos do trabalho. Ou seja, em relação à mercadoria, acontece o mesmo que no mundo da religião: a realidade se apresenta separada, alienada, das relações de trabalho, do essencial concreto e de seu produto, criando uma realidade aparente, como se o valor da mercadoria pertencesse por direito a sua própria estrutura independente. 

Uma espiritualidade da libertação é uma ética da vida. Há aqui uma passagem da razão estratégica, enquanto campo estratégico de forças sem sujeitos, em direção à razão libertadora, situada ao nível da microfísica do poder. Entendo esta questão a partir das barricadas de maio de 1968. Será que a razão libertadora, que se dá como síntese da ação crítico-desconstrutiva, num primeiro momento, para depois passar a ação construtiva de normas, subsistemas e sistemas completos, tem um componente que não é razão instrumental, mas razão de mediações a nível prático? Quando a razão estratégica visa chegar a um fim exitoso é preciso entender que, enquanto razão crítica, esse fim é uma mediação da própria vida humana, principalmente quando excluídos e expropriados são partícipes dessa ação.

É a partir dos excluídos e expropriados enquanto partícipes, que a razão estratégico-crítica realiza a ação transformadora. Mas quem é este sujeito das transformações e como se articula a espiritualidade com este sujeito histórico? Ora, a espiritualidade é a consciência ilustrada da práxis judaico-cristã. Agir no espírito pode vir de uma comunidade estranha ao excluído e expropriado, mas que adere ao clamor da vida não por sentimentos necessariamente religiosos, mas por superação. Por isso, a espiritualidade judaico-cristã está sempre exposta às oscilações oportunistas, por não perder o vínculo ideológico com o chão materno e seu messianismo.

Ora, a espiritualidade libertadora não é apenas uma razão estratégica que procura realizar os fins que as táticas e as circunstâncias impõem. Na verdade, não tem as mãos livres quando se trata de espiritualidade libertadora, em relação aos excluídos e expropriados. O êxito dependerá das condições de possibilidade, ou seja, será impossível separar teoria e prática. Por isso, a espiritualidade da libertação deverá saber integrar os princípios enunciados na escolha de fins, meios e métodos, que levam à práxis crítica e posicionam o outro como análogo.

O sistema-mundo nesta alta-modernidade em caos e crise, ao impossibilitar a produção e reprodução da vida caminha no sentido de aprofundar seu próprio caos e crise ao semear doenças, fome, terror e morte. As vítimas são esses bilhões de seres humanos, cujas dignidades e vidas são permanentemente destruídas. A alta-modernidade e sua globalidade levam a um assassinato em massa e ao suicídio coletivo. São os cavalos do apocalipse. É o fetichismo do capital, que se apresenta como sistema formal performático, onde dinheiro produz dinheiro. 

Cabe, por isso, à espiritualidade libertadora levantar uma ética enquanto recurso diante de uma humanidade em perigo de extinção. A esta espiritualidade cabe a corresponsabilidade solidária, que parte do critério de vida versus morte, de caminhar com dignidade na senda fronteiriça, entre os abismos da cínica irresponsabilidade ética diante de excluídos e expropriados e a paranoia fundamentalista.

Aqui estamos diante do sujeito histórico que aponta para a esperança escatológica, para a construção do Reino, que se realizará com o ir mais além da alta-modernidade, onde o ser humano excluído e expropriado não apenas do sistema, mas do direito à produção e reprodução da vida, colocará na ordem do dia a questão da revolução enquanto promessa escatológica. E a espiritualidade da libertação deve entender que tal ação e postura não nega o análogo crístico, mas que deve deixar de ser apenas hermenêutica teórica e desenvolver-se enquanto presença que fundamenta a transformação prática. E isso só pode acontecer no sentido estrito de uma ética da libertação, não fundamentalista ou salvacionista.

É por isso que a espiritualidade da libertação deve se esforçar para apresentar um princípio universal: o dever da produção e reprodução da vida de cada ser humano. Princípio este que é objetiva e subjetivamente negado pelo sistema-mundo e pela globalização.

E volto ao Goddard de Duas ou três coisas que eu sei dela, quando cita a frase do Tractatus logico-philosophicus de Wittgenstein: os limites do meu mundo são os limites da minha linguagem. Só que em seguida vemos Juliette andando por Paris e dizendo: mas o mundo sou eu. 

Linguagem e pessoalidade, a espiritualidade libertadora caminha sobre o fio da navalha: de um lado está a negação de presença e recebimento do outro, e de outro o fundamentalismo pró-integração. Por isso, estratégia e tática devem partir de critérios claros e de um princípio geral -- o dever da produção e reprodução da vida -- que possibilitem cumprir às mediações existentes. É nesse sentido que receber, e tudo o que isso implica, rompe a discussão tão moderna entre paradoxo e dialética. Não há paradoxo porque o Yeshua é análogo e o método é analético. Os fins estratégicos devem ser enquadrados dentro desses princípios gerais, a fim de que, com factibilidade ético-crítica a espiritualidade possa negar as causas da negação da vítima. Essa é uma luta desconstrutiva, que exige meios proporcionais àqueles contra os quais a luta é travada.

Mas se por um lado a espiritualidade traduz uma ação desconstrutiva, nesta alta-modernidade de caos e crise, por outro promove transformações construtivas que se projetam na esperança escatológica e Deus é nesta esperança e possibilidade de produção e reprodução da vida, e o Mashiah já não é aberração ou paradoxo, mas análogo. E é nesse sentido que Deus é, e o Mashiah é análogo, pois se projetam no eterno agora, planejado, realizado em progressão, mas nunca totalmente. 

Mais uma vez quero convidar você a fazer esta viagem, onde os textos se imbricam em reflexões a partir da filosofia, teologia, política e vida. 

Bibliografia

DECLARAÇÃO de teólogos do Terceiro Mundo, Dar-er-Salam, Tanzânia, 1976, Tese 32.
DOSSE, François, Paul Ricoeur, Un philosophe dans son siècle, Paris, Armand Colin éditeur, 2012.
DUSSEL, Enrique, América Latina, Dependencia y Liberación, Buenos Aires, Fernando Garcia Cambeiro, 1973.
____________, Histoire et Theologie de la Libération, Ed. Ouvrières, Paris, 1974.
____________, Religión como supraestructura y como infraestructura, Sociológica Conceptos, México, Editorial Edicol, 1977.
____________, Introduccion a Una Filosofia de la Liberación latinoamericana, México D.F., Ed. Extemporâneos, 1977.
____________, Caminhos da Libertação Latino-Americana, 4 volumes, São Paulo, Paulinas, 1984.
____________, Filosofia da Libertação, Editora Loyola, São Paulo, 1986.
____________, Método para uma Filosofia da Libertação, Ed. Loyola, São Paulo, 1986.
____________, Para uma Ética da Libertação Latino-americana I e II. Acesso ao ponto de partida da Ética, Eticidade e moralidade, Edições Loyola, São Paulo,1986.
____________, El encubrimiento del Otro. Hacia el origen del Mito de la Modernidad, Madri, Ed. Utopia, 1992.
____________, Ética da Libertação na idade da globalização e da exclusão, Petrópolis, Vozes, 2000.
GOLFE, Osvaldo Luís, O Mesmo, o Outro, o Ethos Latino-Americano na filosofia de Enrique Dussel in Artigos -- Jung e Pós-Jungianos, www.rubedo.psc.br (acesso em 02.05.2005).
GULDBERG, Horacio Cerutti, Filosofía de la liberación latinoamericana, México D.F., Fondo de Cultura Económica, 1983, p. 236.
MANCE, Euclides André, Dialética e Exterioridade, Curitiba, 1994, B. Lakebrink, Hegels Dialetische Ontologie und die thomistische Analektik, Köeln, 1955. 
NOVOA, Gildardo Díaz, O Método Analético, in Enrique Dussel en la Filosofía Latinoamericana y frente a la Filosofía Eurocéntrica, Valladolid, 2001, pp. 151-152.
SCANNONE, Juan Carlos, El Itinerario Filosofico Hacia el Dios Vivo, Stromata, 30(3):231-256 jul/set 1974, p. 256.
RICOEUR, Paul, Le socius et le prochain (1954), Histoire el Verité, Seuil, 1955.
___________, Autrement, lecture d’Autrement que’être d’Emmanuel Levinas, PUF, 1997.
___________, Soi-même comme un autre, Seuil, 1990.
ZIZEK, Slavoj, O sofrimento de Deus, inversões do Apocalipse, Editora Autêntica, 2015.
__________, John Milbank, A monstruosidade de Cristo, paradoxo ou dialética, São Paulo, Editora Três Estrelas, 2014.




Existência & desafio
Fonte Editorial