A missão no contexto europeu
Jorge Pinheiro
Montpellier, 10/12/2020
"Deus é o Criador e o Juiz de todos os homens. Devemos, portanto, compartilhar sua preocupação pela justiça e reconciliação em toda a sociedade humana e pela libertação dos homens de todo tipo de opressão ... expressamos penitência tanto por nossa negligência quanto por ter às vezes considerado o evangelismo e a preocupação social como mutuamente excludentes". John Stott
Duas ou três coisas
Quando me perguntam por que fazer missão na França, eu parto
do que, realmente, está acontecendo hoje na Europa, e que os jornais e revistas
nos relatam sobre isso.
Ao som de bateria e teclado, quatro back vocais dão o tom do
culto na igreja, enquanto são acompanhados por fiéis que, com os braços
erguidos, louvam e repetem as letras projetadas no telão. Logo acima, pode-se
ler Dieu est amour. A cena, comum nas igrejas brasileiras, é novidade na
França, que viu a fé protestante renascer nos últimos anos.
A presença dos muçulmanos traduziu a primeira abertura para
a naturalização da expressão religiosa em lugares públicos na França. Mas isso
criou um problema: tanto a condição de migrantes quanto a identidade associada
a uma religião com grande visibilidade fez da população muçulmana um alvo de
discriminações e intolerâncias.
Mas voltemos aos jornais e revistas francesas. Longe do
anonimato das ruas, nas manhãs de domingo na entrada da Église Réformée de
Belleville a recepção é calorosa e personalizada.
“É a proximidade entre nós, os pastores, e nossos fiéis que
faz a força do movimento protestante", afirma Amos Ngoua Mouri, pastor da
Communauté Évangélique la Bonne Nouvelle, no norte de Paris.
Segundo Frédéric Rognon, professor de Filosofia das
religiões na Faculdade de Teologia Protestante de Estrasburgo, na França,
"os protestantes expressam a fé de forma contemporânea, enquanto os
cristãos tradicionais utilizam ainda modelos antigos que não respondem à
realidade da vida atual.
“O lado da expressão pública da fé protestante, quase
publicitário, choca numa cultura francesa que relega a religião ao domínio
privado”, afirma Fath, garantindo porém que as coisas estão mudando no país da
laicidade. O pastor Mouri, por exemplo, confirma que o movimento protestante é
cada vez mais reconhecido.
A presença do Islã na França decorreu da colonização do
mundo muçulmano e a questão da presença árabe-muçulmana, ou seja, da migração,
tornou-se uma questão fundamental da política da União Europeia. Nas próximas
décadas se estima que cerca de 70 milhões de pessoas serão migrantes na Europa.
Donde, é inútil negar as razões da crise europeia, já que a gestão da migração,
principalmente, a presença muçulmana, deve respeitar os direitos à vida. Mas
tanto a União Europeia como os Estados-membros não sabem, nem tem como resolver
o desafio.
Para vencer o ódio e construir cidadania, a missão deve defender
uma cidadania, por exemplo, que inclua as crianças migrantes, nascidas fora da
Europa. O que pode ser enquadrado nas regras do reagrupamento familiar. Ou
seja, a cidadania deve ser europeia em primeiro lugar, e ser válida para
migrantes e refugiados. Para os povos em diáspora que escolhem esta terra
europeia como cidade de refúgio.
Ao se falar de crianças, devemos lembrar que, segundo a
UNICEF, o número de crianças refugiadas dobrou entre 2005 e 2015, e essas
crianças desenraizadas devem ser levadas em consideração.
Qualquer que seja seu status, uma criança é uma criança.
Assim, os milhões de crianças refugiadas que tiveram que deixar seus países
devem ser protegidas e ter pleno acesso a todos os seus direitos, garantidos
pela Convenção Internacional sobre os Direitos da Criança. O grande número de
crianças afetadas nos obriga a agir. Cada uma delas tem esperanças e sonhos.
Conflitos violentos, perturbações causadas pelas mudanças climáticas não devem
impedir que essas crianças tenham um futuro.
Para entender a escala do fenômeno, aqui estão alguns dados:
11 milhões de crianças são refugiadas ou requerentes de asilo fora do seu
próprio país. Isto é o equivalente à população da Bélgica. 17 milhões de
crianças foram deslocadas à força de suas casas. Cerca de 50% das crianças
refugiadas vêm da Síria ou do Afeganistão.
Entre 2005 e 2015, o número de crianças migrantes aumentou
21%. Quanto ao número de crianças refugiadas, ele dobrou durante este período.
Ou seja, 28 milhões de crianças foram deslocadas à força. Entre os 164 mil
refugiados e migrantes que entraram na Europa em 2017, 29 mil são crianças.
Mais de 90% das crianças que chegam à Itália estão sozinhas ou foram separadas
de suas famílias. Cada uma delas enfrenta perigos consideráveis em sua jornada em
busca de segurança. A rota do Mediterrâneo central, que está entre as mais
perigosas, também é a mais utilizada. No final do percurso, essas crianças são
frequentemente confrontadas com condições de acolhimento deploráveis: detidas,
vítimas de discriminação, acumulam traumas que prejudicam o seu
desenvolvimento. Muitas delas não têm acesso à educação ou aos serviços básicos
de saúde. E outras optam pelo suicídio.
Vamos pensar a partir da teologia. Quando pensamos em
missiologia na Europa e logicamente na França, devemos ouvir e ver o grito dos
migrantes, muçulmanos e refugiados a partir do conceito de outro. E se não
fizermos assim, vamos ver o próximo como se fosse uma projeção, e deixamos de
entender a alteridade.
O renascer do protestantismo
Na França, a cada dez dias uma nova igreja evangélica abre as portas, de acordo com dados do CNEF -- Conselho Nacional dos Evangélicos da França.
“A primeira razão é simplesmente a necessidade de esperança”, explica o sociólogo batista Sébastien Fath, especializado na história do protestantismo francês e autor dos livros Do gueto à rede, o protestantismo evangélico na França; e A nova França protestante, desenvolvimento e crescimento no século XXI.
"O contexto de crise, que atinge a sociedade francesa, tem por consequência um certo número de patologias sociais, como a solidão. O Estado não pode fazer tudo, as prestações sociais e capacidades de intervenção são em geral fragilizadas, pois há menos dinheiro público. A igreja evangélica responde às necessidade que o Estado não se encarrega mais”, avalia Fath, que enfatiza o caráter otimista do discurso evangélico, em um país onde o pessimismo é a regra.
Fath explica que embora a fé cristã esteja chegando a todos as classes sociais, inclusive às mais favorecidas, ela vem atraindo jovens e imigrantes, principalmente aqueles originários das antigas colônias francesas.
"Muitos franceses estão desencorajados diante da crise e da globalização. Há uma certa depressão e uma necessidade de perspectiva”, diz Fath. Já para Étienne L’Hermenault, pastor batista e ex-presidente do CNEF, o crescimento das igrejas evangélicas é fruto da sede espiritual. "A crise não é simplesmente financeira, mas também moral. Há um cansaço de uma sociedade que perdeu muitas referências e que busca valores”, argumenta.
Fath crê que o retorno ao protestantismo está ligado também
à crise do discurso político. “Os franceses estão decepcionados com a política.
O país que, durante muito tempo exportou pensamento político, se desencantou com
as soluções políticas, há 15 ou 20 anos atrás”, avalia.
Evitar a realidade que nos circunda e fugir de uma leitura
humana e presencial do Cristo nos remete à frase proposta por Tertuliano de
Cartago, escritor cristão do século III, "credo quia absurdum!".
Creio porque é um absurdo.
Esse absurdo paradoxal atinge o concreto e nos chama a
mergulhar na imensidão do divino humano. Fechemos os olhos e digamos como
aquele judeu que se chamou Paulo, o Pequeno: "Os judeus pedem um sinal, e
os gregos sabedoria, mas nós pregamos o Cristo crucificado, que é um escândalo
para os judeus e uma loucura para os gregos”.
Absurdo, escândalo, paradoxo... assim como o fundamento da
fé, a mesma fé que justifica Abraão no meio da loucura de um pai que deve
sacrificar o "filho da promessa". Portanto, a fé deixa de ser a emuná
hebraica, que define uma posição militar, e se torna um paradoxo. Nenhuma
ilusão ou devaneio, mas a loucura da confiança no divino, que não podemos
compreender.
Como disse Paul Tillich, herdeiro de Hegel e do jovem Marx,
a práxis é a mediação entre a ontologia e a realização da realidade. Essa
correlação, que para Tillich se tornará um método, é a busca de superação da
dialética anterior, que tratava do conhecimento do ser e de suas manifestações
fora da práxis histórica. Devemos, nesta reflexão sobre missão na
alta-modernidade europeia fazer essa passagem construindo uma lógica que não
será hegeliana nem marxista no sentido clássico, mas buscará correlacionar
ontologia, lógica e metodologia na dinâmica da práxis missiológica.
Essa correlação com a exterioridade caracteriza a mobilidade
da missiologia integral que é uma missiologia da práxis. Desenvolve, assim, o
caminho da correlação entre exterioridade e ontologia face à dinâmica da
práxis, tratando de formulações de métodos que acompanham a superposição de
horizontes ontológicos. Desse modo, tal missiologia coloca a afirmação da
exterioridade como fonte anterior às demandas da ontologia, o que leva a uma
intersecção comum: a ética.
Por isso, a missão na alta-modernidade deve ser construída a
partir de duas leituras: o próximo como revelação de um mistério que nasce da
liberdade, e da igreja como comunidade que denuncia os poderes que negam a
milhões de pessoas a possibilidade a bens e direitos. A fé nasce do ato da
inteligência -- essa é uma forma de ver. Mas quem, realmente, vai além do que
vemos? Em primeiro lugar, a esperança de que o outro se revele. Ou seja, a
possibilidade de produção e reprodução da vida que está além da visão do rosto.
Assim, missiologia para a Europa na alta-modernidade significa pensar o outro,
mas um outro que se revela na história, que é o mistério da nossa liberdade.
Acreditar na revelação deste próximo é entender o significado da história.
Para que a missão seja integral devemos descobrir o
significado do presente histórico, quer venha da África ou de regiões
desfavorecidas do planeta. E o significado do presente histórico é profecia, é
a palavra. Mas falar para quem? Na modernidade, falar ao outro nos levou à
leitura formal do ir. Atravessar os mares e ir até os confins da terra. Devemos
ir, sim. É claro que a profecia deve falar do significado dos acontecimentos
presentes para nossa vida cristã. E isso é igreja. Mas, nesta alta-modernidade
de caos e crise, o desafio não é apenas ir, mas receber. Vivemos na localidade
global, não somos chamados somente a ir, mas a receber, porque muçulmanos,
migrantes e refugiados estão entre nós, conosco. Assim, missão na
alta-modernidade é receber e viver no chão da vida a realidade da fé.
A missão reconhece a vida do ponto de vista integral: onde o
outro se apresenta como próximo, irmão, e não como como estranho, diferente,
excluído. E esse é o conceito cristão de outro, sempre próximo, mesmo
fisicamente distante, que no encontro nos pede novas atitudes e comportamentos.
A atividade missiológica é uma atividade de confronto que
diz respeito a pessoas que sabem que muitas vezes devem discordar, pois não
somos espectadores passivos.
A integralidade é uma contribuição para a questão metodológica,
pois parte daquilo que está fora da igreja e mesmo do nosso círculo de
amizades, que reconhece a existência da liberdade humana como graça de Deus. A
lógica da missiologia moderna era dialética, não chegava ao horizonte do mundo,
não incluía o outro porque anulava em sua alteridade. Mas, a missão integral
nos apresenta um momento antropológico, uma maneira diferente de viver a
missiologia, já que é uma missão holística, que abrange tanto o evangelismo e a
presença junto às igrejas, quanto a responsabilidade social.
Desde 1974, a missão integral influencia o mundo
latino-americano, mas hoje se faz necessário que seja presença em todo o mundo,
em especial na Europa. Ela nos mostra que o ser humano e a comunidade estão
localizados além do horizonte da totalidade. Ser integrado, porque o outro é um
ser inteiro, é o fulcro para novos desenvolvimentos. No entanto, o ponto de
partida do discurso metódico é a externalidade do outro. Como alternativa à
dialética que trabalha com a contradição, a identidade e a diferença, o
princípio não é o da identidade, mas o da distinção. O estar e ser integral
segue uma sequência, a totalidade é posta em causa pelo questionamento
provocador do outro. Ouvir a palavra é ter consciência ética, é aceitar a
palavra questionadora de quem fala. É ouvir e ver a necessidade real daqueles
que estão na Europa, mas que tiveram sua ancestralidade longe dela.
Não podemos esquecer que 2,4 milhões de pessoas de países
não pertencentes à Comunidade Europeia imigraram para a Europa em 2018. E que
das 446 milhões de pessoas que viviam na Europa em 2019, 21 milhões eram de
países que não pertenciam à Comunidade Europeia. Nas próximas décadas, segundo
projeções da própria União Europeia, 70 milhões de africanos, principalmente
jovens, migrarão para a Europa. O que isso diz a nós missionários?
A missão é holística
Utilizar o método da integralidade da missão significa
aceitar eticamente o grito daqueles que chegam fugidos da miséria, da guerra e
do extermínio. Essa ação é constitutiva, condição da possibilidade de
compreensão: resulta na adoção da exterioridade, lugar do exercício da
consciência crítica.
A integralidade da missão é a afirmação da exterioridade:
não é apenas a negação de um estado de coisas. É a superação da totalidade moderna
a partir da transcendentalidade daquele que nunca esteve dentro. O momento é
crítico por isso: é a superação do pensamento dialético negativo, mas não o
nega, porque a dialética não nega a ciência, ela simplesmente a assume e a
completa. Afirmar a exterioridade é alcançar o impossível para o sistema, o
imprevisível para o todo, que decorre da liberdade. É somente por meio de um
envolvimento integral que alguém pode se comprometer com o outro, a ponto de
arriscar a vida na luta pela conquista de cidadania e direitos deste outro.
Como resultado, a missão integral é prática: é uma uma pedagogia que visa a
realização da alteridade humana.
A expressão missão integral foi criada na década de 1970 por
membros da Fraternidade Teológica Latino-americana. A palavra integral, em
espanhol e em português é usada para descrever a integridade do pão, pão
integral, pão de trigo integral. Assim, a expressão é usada para descrever uma
compreensão da missão que afirma a importância de expressar o amor de Deus e o
amor ao próximo por todos os meios possíveis. Seus teóricos, dos quais eu
citaria três, René Padilla, Samuel Escobar e John Sttot, enfatizaram a
amplitude do Evangelho e da missão cristã. E usaram o conceito de missão
holística para mostrar que a missão não deve se basear na dicotomia entre
evangelismo e envolvimento social.
Mas o conceito não é novo: está presente no Novo Testamento
e no ministério de Jesus. Missão integral é uma expressão que nos leva à
compreensão de que a missão é holística, não é dualista, nem dialética.
A missão integral já fez uma jornada de cerca de cinco
décadas. Em 1966, o Congresso da Missão Mundial da Igreja, realizado em
Wheaton, Illinois, reuniu evangélicos de 71 países. A Declaração de Wheaton
declarou que "nós somos culpados de um isolamento antibíblico do mundo que
muitas vezes nos impede de enfrentar e lidar honestamente com suas
preocupações" e a "falha [da igreja] em aplicar os princípios
bíblicos a problemas como racismo, guerra, explosão populacional, pobreza, desintegração
familiar, revolução social e comunismo”.
E naquele mesmo ano, o Congresso Mundial sobre Evangelização
em Berlim reafirmou a concepção tradicional da missão, que chamamos de moderna.
Billy Graham, neste Congresso, disse que se a igreja voltasse à sua tarefa
principal de proclamar o evangelho, ela teria um impacto muito maior nas
necessidades sociais, morais e psicológicas das pessoas do que poderia alcançar
por meio de qualquer outra ação.
Mas logo depois tivemos o Congresso Internacional sobre
Evangelização Mundial em Lausanne, 1974, o mais importante encontro cristão do
século XX, que propôs a missão integral como método para chegar aos desterrados
neste novo momento da pregação do Evangelho.
Depois do Congresso de Lausanne, a missão integral cresceu. E
na Inglaterra, em 1980, se elaborou um documento -- "Um Compromisso
Evangélico com Estilo de Vida Simples" --, que reafirmou nosso compromisso
com a justiça dentro da concepção de missão.
E em 1982, a Consulta Internacional sobre a Relação entre
Evangelismo e Responsabilidade Social entendeu que a responsabilidade social é
uma ponte e parceira do evangelismo. Ou seja, os dois são, na verdade,
inseparáveis.
Um ano depois, a Consulta sobre a Igreja, realizada em
Wheaton, Illinois, publicou "Transformação: A resposta da igreja às
necessidades humanas", que foi a mais profunda afirmação cristã da missão
integral. Fez a denúncia da injustiça, e uma crítica àquelas igrejas que
através do silêncio dão seu apoio tácito ao status quo sócio-econômico.
Depois de "A Questão Judaica", Marx fez a crítica
econômica do cristianismo. Essa crítica foi dirigida às igrejas, porque para
Marx elas eram a expressão da miséria. Mas também criticou a religião quando
analisou o fetichismo da mercadoria, porque para ele a leitura religiosa do
mundo real não desapareceria enquanto as atuais condições de vida não fossem
superadas. Mas, em que consiste essa leitura do mundo real? Ora, o olhar
religioso vê a existência separada das relações construídas pelo ser humano. E
essa existência independente das relações sociais, essa existência irreal, é um
reflexo de outro real. Essa divisão entre aparência que oculta a existência e
oculta a realidade é esta idolatria do fetichismo da mercadoria. Estranho
fetichismo, que consiste nisto: ele oculta o caráter social do trabalho e se
manifesta como se este fosse um caráter material dos próprios produtos do
trabalho. Ou seja, em relação à mercadoria, e infelizmente para o mundo da
religião alienada, a realidade está separada das relações de trabalho, do
essencial concreto e de seu produto. Vê-se, então, uma realidade aparente, como
se o valor da mercadoria pertencesse de direito à sua própria estrutura
independente. É esta visão de mundo alienada, separada da realidade, que a
missão integral se propõe denunciar.
Uma missiologia para a Europa na alta-modernidade é uma
ética da vida. Não é apenas uma razão estratégica que visa levar a revelação
aos alienados de seu destino, mas deve ser capaz de integrar os princípios de
vida que posicionem o outro, o próximo e o diferente como análogos.
O sistema-mundo nesta alta-modernidade de caos e crise, ao
tornar impossível a produção e reprodução da vida, aprofunda seu caos e crise
semeando a exclusão de bens e direitos. As vítimas são milhões de pessoas que estão
aqui do nosso lado. Fome e miséria são cavalos do Apocalipse. Cabe, portanto, à
missão elevar a ética como recurso diante de uma humanidade em perigo. Esta
missiologia é responsável pela solidariedade que parte do critério da vida em
relação à morte, da caminhada digna no caminho da fronteira, entre os abismos
da irresponsabilidade ética e a paranoia fundamentalista.
Estamos aqui diante do sujeito histórico que aponta para a
esperança escatológica, que se abrirá para ir além da alta-modernidade, onde o
ser humano terá pleno direito de produção e reprodução da vida. E a missão,
exatamente por ser holística, deve compreender que esta ação e esta postura não
negam o análogo de Cristo, mas deve deixar de ser uma hermenêutica teórica e se
desenvolver como uma presença que leva a uma transformação real.
É por isso que a missão apresenta um princípio universal: a
defesa do direito à produção e reprodução da vida de cada ser humano. Esse
princípio é objetivo e subjetivamente negado pelo sistema-mundo e pela
globalização.
A revelação é palavra
Missão integral é revelação. E revelação é palavra, é
linguagem e pessoalidade, é ver o próximo, ouvir a pessoa, caminhar com ela.
Por isso, a missão corre no fio da navalha: por um lado está a negação da
presença e recepção do diferente, daquele que veio de longe e, por outro, o
fundamentalismo pró-integração, que quer fazer dele um igual a nós. Por isso,
abrir-se para receber, e tudo o que isso implica, rompe a discussão moderna
entre o paradoxo e a dialética do Cristo. Não há paradoxo porque Cristo é
análogo e o método é holístico.
E não nos esqueçamos das palavras do profeta Miquéias (6:8):
"O que o Senhor requer de você senão que faça justiça, ame a bondade e
ande humildemente com seu Deus". A nossa missiologia mostra que Deus
criador e mantenedor existe nesta esperança e nesta possibilidade de produção e
reprodução da vida. E Cristo não é uma monstruosidade ou um paradoxo, mas
análogo. Assim, os que vem de longe, verão que Deus existe e Cristo é pessoa,
Deus que se fez carne por amor a nós.
E volto ao Goddard de "Duas ou três coisas que sei
dela", quando ele cita o Tractatus Logico-Philosophicus de Wittgenstein:
"Os limites do meu mundo são os limites da minha linguagem." Mas,
então, vemos Juliette cruzar Paris e dizer: "Mas o mundo sou eu".
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