Miss Météores
Ou da morte e da consciência
Jorge Pinheiro
.
Estou no Buffalo Grill ouvindo country, comendo burguer e lendo Bernard Reymond, À decouverte de Schleiermacher. É, em Paris, nem sempre faço como os franceses. Mas não dá para esquecer que estou aqui, e eu nem quero.
Caí por essas bandas da Gare du Nord porque daqui a pouco parto para Bruxelas, para a casa de Marcela, minha filha. E para assistir ao show Miss Météores, de Olivia Ruiz, a nova Piaf, no Ancienne Belgique, Anspachlaan, 110. É a casa de show mais badalada de Bruxelas. Gosto de cebola roxa e esta está simplesmente deliciosa. As cebolas roxas são como as outras, só que mais suaves. Boas para comer cruas. Não, não estou tomando Coca-Cola. Nem vinho. Parei no suco de laranja.
Não sei por onde começar,
Eu devo viver a lua ou minha bela estrela
Até que a vida acabe por passar,
Ou provocar o destino fatal
Paris desvenda meu amor,
Perdida entre toda essa gente,
Paris entrega meu amor
Eu estarei sobre a ponte dos amantes
(Olivia Ruiz, Paris)
Acho que devo dar sequência a uma crônica anterior. E começarei dizendo que a fé parte da experiência e da compreensão teológica de que não existe acaso ou coincidências. A existência é sempre permeada pela atualidade e pela contingência através das quais se faz presente o incondicionado.
Por isso, a expressão “faça sem culpa” não procede: em primeiro lugar, porque para além do mal fazer ou do não fazer bem está a consciência ontológica da morte, que se traduz existencialmente como ausência e separação. E foi esse estar diante da morte que fez o hominídeo dar o salto existencial/ antropológico: passar de homo sapiens a sapiens sapiens. Conhece a morte, sabe que vai morrer e passa a temer a ausência e a separação definitivas.
Tanta gente e tão poucos olhares,
Tanta gente e tão poucos sorrisos
Nunca têm tempo de se oferecer ao acaso,
Tão pouco tempo que a gente gostaria de acabar
Paris desvenda meu amor,
Perdida entre toda essa gente,
Paris entrega meu amor
Eu estarei sobre a ponte dos amantes
Em sua carta aos Romanos (5.12), o apóstolo Paulo explicita esse processo de construção do humano ao afirmar que a hamartia entrou na vida humana por um primeiro, e com a hamartia, a consciência da morte. Ora, hamartia era uma expressão militar dos gregos que se referia ao ato do arqueiro errar o alvo, quer no treinamento, quer na batalha. Paulo utiliza a expressão no sentido de que vivemos sempre sob a possibilidade de errar os alvos existenciais. Por isso, a compreensão de hamartia é ausência, separação, alienação, já que implica em distanciamento do objetivo existencial. Para um vôo antropológico sugiro o livro de Philippe Ariès, já traduzido para o português, O Homem diante da Morte.
Errar o alvo, ou seja, ausência, separação, alienação, enquanto estado da existência, leva à compreensão da origem do humano enquanto tal. E Paulo fala, então, da consciência da morte. Para o apóstolo, o estado de ausência, separação e alienação na existência produz uma consciência matricial, a consciência da morte.
A partir da consciência da morte temos a consciência do divino, a consciência da diversidade, já que não somos bichos e, por extensão, não somos apenas natureza, a consciência de que podemos escolher, e a consciência de que coisas e ações podem ser boas ou não. Dessa maneira, hamartia implica em conseqüências: necessidades diante da lei, daquilo que é ou está frente à existência, e possibilidades diante da liberdade, daquilo que não existe, mas pode ser criado.
Um pouco cansada
Ela avança em meio à multidão
em sentido contrário
Um barco embriagado sobre a onda
Bela Paris, seja generosa
para com a minha pobre alma triste
Eu direi por toda parte que és maravilhosa,
Se você me encontrar um único eu te amo
Assim, diante da ausência, do distanciamento e da alienação presentes e futuras estão necessidade e lei e possibilidades e liberdade, que não se excluem: estão correlacionadas na existência humana, fazem parte do estado da existência.
Quando proferimos o “fazer sem culpa” rebaixamos a consciência ante os desafios da existência e negamos possibilidades: perdemos esperança e liberdade. E assim a vida é corroída pelas bordas.
Em se falando de tristeza, vejam Olivia Ruiz interpretando Piaf. Mas, não se esqueçam que Olivia é boom entre os roqueiros na Europa. E, sem dúvida, como sempre acontece, é bem melhor ver e ouvir ao vivo.
Lá fora a primavera está nublada, garoenta, nos 15 graus. Toda gente meio que esperando um pouco mais de frio, encasacados, à exceção de uma moça de mini-saia. De onde ela veio? Mistérios da urbanidade global.
Gosto de estar brasileiro. Não, não sou um cidadão do mundo. Percebo o mundo a partir de minha brasilidade, de meu gênero, de minha idade. E, por que não, das letras que me fazem delirar. Afinal, como canta Olivia Ruiz:
Paris encontra meu amor,
Perdida entre toda essa gente,
Paris entrega meu amor
Eu estarei sobre a ponte dos amantes.
Daqui a pouco, de TGV, estarei em Bruxelas. Chez Marcela.
Aucun commentaire:
Enregistrer un commentaire