A identidade batista, ontem e hoje
Quando em qualquer parte do mundo, sejam quais forem as circunstâncias, uma comunidade de fé praticar as doutrinas do Novo Testamento teremos aí uma igreja batista.
Através dos tempos, os batistas se notabilizaram pela defesa de sete princípios:
1º - A aceitação das Escrituras Sagradas como regra de fé e conduta.
2º - O conceito de igreja como comunidade local, democrática e autônoma,
formada de pessoas regeneradas e biblicamente batizadas.
3º - A separação entre Igreja e Estado.
4º - A liberdade de consciência.
5º - A responsabilidade individual diante de Deus.
6º - A autenticidade e apostolicidade das igrejas.
E sétimo -- Nos caracterizamos também os batistas pela cooperação entre as igrejas. Não havendo poder que possa constranger a igreja local, a não ser a vontade de Deus, manifestada através de seu Santo Espírito.
Os batistas, baseados no princípio da cooperação voluntária das igrejas, realizam uma obra geral de missões; de evangelização, de educação teológica, religiosa e secular; de ação social e de beneficência.
Para a execução desses fins, organizam associações e convenções, não tendo estas, no entanto, autoridade sobre as igrejas; devendo suas resoluções ser entendidas como sugestões ou apelos.
Para os batistas, as Escrituras Sagradas, em particular o Novo Testamento, constituem a regra de fé e conduta, mas, de quando em quando, as circunstâncias exigem que sejam feitas declarações doutrinárias que esclareçam os fiéis, dissipem dúvidas e reafirmem posições.
Os batistas são, depois do pentecostalismo, o movimento mais numeroso do protestantismo radical, compreendido como um cristianismo biblicista, conversionista e militante. É a principal confissão protestante norte-americana e tem um crescimento significativo no Brasil. Em termos gerais, desenvolveu-se a partir de cinco traços distintivos:
1. A prática do batismo por imersão da pessoa convertida,
como testemunho de compromisso e fé
2. As Escrituras como regra em matéria de doutrina, ética e fé
3. Eclesiologia congregacionalista e de proclamação,
com autonomia da assembléia local composta de militantes engajados
4. Teologia de inspiração calvinista, com destaque para a conversão pessoal
5. Defesa da liberdade de consciência e de expressão,
e oposição à interferência da autoridade civil ou eclesiástica na vida da igreja.
Esse protestantismo radical se caracteriza, assim, pela referência à tradição confessional, mas também por uma plasticidade marcante.
A nível global, a Aliança Batista Mundial reúne cerca de 35 milhões de batistas e busca definir políticas de evangelização, reconciliação entre batistas, defesa da liberdade religiosa e assistência às igrejas batistas localizadas em regiões carentes do mundo. A Aliança Batista Mundial foi fundada em Londres em 1905.
Os precursores dos batistas foram, ideologicamente, os anabatistas da época da Reforma. Congregações anabatistas da Holanda no início do século XVII e grupos de puritanos independentes ou congregationalistas, que fugiram da Inglaterra para a Holanda fazem parte dessa construção histórica. Influenciados pelos anabatistas, puritanos independentes convenceram-se de que o batismo cristão é apropriado apenas para adultos convertidos, como testemunho de seu compromisso e fé pessoal.
De volta à Inglaterra, este grupo formou a primeira congregação batista em 1611, com John Smyth. Duas décadas depois, Roger Williams (1639) formou a primeira congregação batista em Providence (Rhode Island). A partir de então, os batistas, já com influências da teologia calvinista, cresceram rapidamente nos Estados Unidos. A democracia informal centrado nas Escrituras tornou-se uma referência política na construção de igrejas em situação de fronteira, sob nas regiões rurais do Sul, Meio-Oeste e Extremo Oeste norte-americano. Assim, essas regiões foram povoadas pelos batistas, uma tendência que se mantém até hoje.
Os batistas olham a vida cristã como fé pessoal, serviço e testemunho. Isso faz dos batistas militantes da causa protestante radical. Cada pessoa deve nascer de novo, estar convertido para uma nova vida e a partir daí congregar numa igreja. Para os batistas, a igreja local é o resultado da conversão e da graça, uma comunidade de crentes reunidos: não é a mãe da experiência cristã, nem fonte de graça, como na tradição católica.
A igreja local é santa porque a fé e a vida de seus congregados são santas. A igreja local, pelo menos em princípio, não tem nenhuma autoridade sobre seus membros, em sua liberdade de consciência ou em assuntos eclesiásticos.
Devido à sua plasticidade, os batistas temos mostrado características opostas na história. Pela ênfase na autoridade da Bíblia, na compreensão puritana estrita, na ética vitoriana, e compreensão da absoluta necessidade da fé e santidade pessoal, a maioria dos batistas é conservadora, tanto nas questões de fé, como de moral. Mostram-se temerosos diante das filosofias e teologias modernas e da política liberal. O evangelho e a Bíblia são interpretados literalmente, dentro dos princípios tradicionais batistas. A ética cristã são os princípios básicos das Escrituras, que nenhum batista deve abandonar. Por esta razão, muitas convenções batistas se recusam a aderir ao movimento ecumênico e ignoram o evangelho social, e sua preocupação com a justiça econômica, política e social.
Porém, devido a ênfase na liberdade de consciência e de crença pessoal e a importância da vida cristã longe da autoridade eclesiástica, de dogmas e rituais, os batistas são líderes do liberalismo, parece contraditório, mas não é, tanto a nível político como teológico. Muitos seminários e igrejas batistas são conhecidas por estilo de adoração, atitudes sociais e teologias liberais. Os batistas foram importantes na criação do movimento ecumênico no início do século XX e por suas participações nas controvérsias que dominaram o século XX nos Estados Unidos: entre teologia moderna versus fundamentalismo, entre o evangelho social versus o evangelho individual, e entre ecumenismo versus exclusivismo.
Mas, os batistas tiveram sempre papéis de destaque nos dois polos, apesar de contrários. Exemplo disso foi Walter Rauschenbusch, pastor e teólogo batista e um dos teóricos do Evangelho Social. E no Brasil podemos citar o Manifesto dos Ministros Batistas de 1963, de claro conteúdo político e social a favor das reformas de estrutura no país.
O século XXI confronta. Diante disso, questões entram na ordem-do-dia: sabemos mais ou menos o que fomos e um pouco do que somos, mas pouco do que seremos. O pensamento batista tem raízes na revolução liberal inglesa do século XVII, porém somos também herdeiros da Reforma radical e da Reforma magisterial. Mas foi no século XVIII, sob o Iluminismo, que o pensamento batista europeu lançou raízes se espraiou.
E desempenhou papel na história do pensamento na Inglaterra, na Europa continental e nos Estados Unidos. Combinou Escrituras judaico-cristãs e espiritualidade e no século XIX deu ao mundo pensadores de vanguarda, ao construir o que veio a se chamar Evangelho social.
Ser batista brasileiro, hoje, não é algo definido e preciso, principalmente quando se entra na discussão se somos ou não protestantes e se pertencemos ou não ao tronco dos cristãos radicais da Idade Média. Por isso, os batistas são olhados como seitas autônomas sem representatividade civil e opositores de toda e qualquer expressão do Estado.
Idéia que em parte se justifica se olharmos os batistas a partir da ótica de Ernst Troeltsch e Max Weber. E como é difícil definir a diversidade, já que encontramos movimentos batistas fideístas, fundamentalistas, liberais e racionalistas, vamos fazer o caminho da análise daquilo que nos é próprio, ou seja, das características do ser batista, que atravessa e permanece em todas as leituras batistas.
O pensamento batista busca uma fé inteligente. Nega o divórcio entre a fé e o pensamento, embora reconheça a importância das correntes cristãs que olham a fé como ruptura da lógica, distanciamento da razão, e salto na irracionalidade do mistério insondável.
Assim, o pensamento batista procura a consistência e as correlações entre fé e razão. Por isso, interage com a cultura. Sem negar que existe o mistério, e que não se pode confundir fé e razão, entende o pensamento como construção que não pode prescindir nem da fé, nem da razão.
O Brasil nesses tempos da alta modernidade combate o pensamento que se quer autônomo, que tende à massificação das ideias. A sociedade brasileira na alta modernidade tem optado por reproduzir a globalização da indústria de entretenimento e da comunicação de massas. A vida proposta pela alta modernidade, para além dos problemas estruturais da sociedade brasileira, nos faz inquietos e superficiais. Visa o espetáculo e se perturba diante de perguntas que procuram razões. Desafiados a avançar, os batistas entendem que aquilo que parece não necessariamente é, e o que não parece, pode ser. Não dá para depositar confiança nas expressões culturais desta alta modernidade.
A fé exige um pensar que não se atrofie e a espiritualidade não é um adversário, mas um aliado indispensável, precioso, na construção do sentido da vida. A razão sem fé, embora verdadeira, não é razoável, torna-se racionalismo. A razão, convenientemente conduzida, reconhece que há coisas que estão além dela, e que é incapaz de penetrar a contento no mistério da vida e do universo. Aceita seus limites e, portanto, a existência de dimensões para além dela. No entanto, mantém abertura e espírito de crítica. Isso impede que ter fé seja dizer ou fazer qualquer coisa.
Atualmente, temos a piedade emocional exuberante, quente. Cultiva afetos, mas teme o pensamento. Temos, então, dogmatismo, fundamentalismo, que ensina a olhar, a fazer, a dizer, formata opiniões blocadas sobre o mundo. Oferece certezas e, por extensão, conforto e preguiça. Foge das questões e perguntas dolorosas. Essa forma de piedade repousa sobre o realismo literalista. Mas temos um outro lado, a vida no questionamento permanente, que duvida da possibilidade da verdade, embora busque freneticamente a descoberta. Repousa sobre o ceticismo nihilista.
Ora, fé implica em crença, paixão e sentimentos, é experiência com o mistério do Eterno. As Escrituras judaico-cristãs desafiam o amor humano a se realizar diante do Eterno com coração, força, mas também com o pensar. E é esse pensar que aprofunda, fundamenta e direciona a fé. Essa compreensão se contrapõe ao realismo literalista e ao ceticismo nihilista.
O estudo histórico das Escrituras judaico-cristãs, principalmente o Novo Testamento, é uma necessidade. É necessário conhecer a antropologia e a cultura judaicas e não somente o grego koinê. O Novo Testamento não é revelação ditada, mas testemunhos da revelação. É um conjunto de escritos que nos dizem como pessoas, os discípulos, receberam e compreenderam o que Jesus disse e fez no meio do povo.
Jesus mesmo não escreveu. Sabemos de sua doutrina e vida por aquilo que os discípulos relataram. Suas idéias encontram-se nas suas histórias. Dondem temos a documentação neotestamentária, como textos fundantes, para conhecer Jesus de Nazaré e sua pregação. Mas a investigação do Jesus histórico pode continuar, ao menos no nível acadêmico, se utilizarmos outras fontes e métodos, que remetem ao estudo dos textos e contextos, embora muitas vezes ofereçam mais hipóteses do que certezas.
A tradição cristã dá mais importância à pessoa de Jesus do que aos seus ensinos. O Credo apostólico diz a respeito dele: "... foi concebido pelo Espírito Santo, nasceu da Virgem Maria, padeceu sob Pôncio Pilatos, foi crucificado, morto e sepultado, desceu aos infernos, subiu aos Céus ...". Menciona assim o Cristo da fé, encarnação, morte e ressurreição, mas omite seu ministério.
Os eventos crísticos, que são ensinamentos, histórias e relatos, muitas vezes são esquecidos. Não podemos construir uma fé transformadora apenas sobre o Credo. A vida do Evangelho está no que Jesus disse, na forma como apresentou a ação e a presença do Eterno. Assim como sua concepção da existência, sobre o significado da fé. Para o ser humano, a mensagem é tão importante quanto o mensageiro. Em teologia dizemos que Cristo cumpre três funções, um função real – reina sobre o mundo --, uma função sacrificial -- foi oferecido em sacrifício para a salvação dos seres humanos – e uma função profética -- prega e ensina.
Certas correntes do catolicismo romano e ortodoxo privilegiam a função real. O protestantismo magisterial realçou a função sacrificial. Mas não podemos deixar de lado, como que esquecida, sua função profética.
A crucificação de Jesus que respondeu a circunstâncias históricas, dentro do projeto de redenção, é uma necessidade teológica para a salvação dos seres humanos. Passagens neotestamentárias falam da morte de Jesus como sacrifício oferecido ao Eterno, como pagamento pela alforria. Mas esse projeto redentivo estaria capenga sem a função profética, que fez dele messias e salvador.
A mensagem de Jesus foi apresentda dentro das categorias judaicas do pensamento de seu tempo. Temos, então, de traduzi-la, ressignificá-la, não para deformá-la, mas para mantê-la relevante e viva. Para que possa ser aplicada à realidade brasileira, e seja aplicada a nossa existência.
Jorge Pinheiro, pastor batista
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