Memórias de Jorge
Pinheiro, no início dos anos 1960, quando adolescente, em Copacabana.
Os
olhos azuis de Jussara
“Já que (...) não posso infundir
a fé no coração de ninguém, não posso, nem devo obrigar ou coagir ninguém a
isso, pois Deus opera isso sozinho e vem habitar anteriormente no coração. Por
isso, se deve deixar a palavra livre e não querer juntar nossa obra a ela: nós
certamente temos o ius verbi, mas não a executionem. Cabe-nos
pregar a palavra, mas as conseqüências pertencem unicamente ao agrado de Deus”. Lutero, reformador do século 16.
Rua
Santa Clara. Posto 4
O sol está de derreter asfalto.
Dá para fritar ovos na avenida Atlântica. Tio Walter joga peteca com os amigos.
E Lolita, minha jovem tia, de maiô cavado nas costas, lembra a personagem de
Nabukov, ao menos na minha cabeça de adolescente.
-- Luís, passa Dagelle nas minhas
costas.
Obediente, gosto dessa mistura do
cheiro do bronzeador com a maresia, cumpro à risca, devagar, a ordem recebida.
Meus primos Marcus e Júlio, à
beira d’água, fazem seus castelos de areia, que a arrebentação, feroz
realidade, desfaz um a um. Como formigas insistem, gritam e dançam, quando uma
onda maior alisa a areia.
Maria, minha mãe, fez para mim um
calção que é uma bandeira. Pegou uma blusa estampada de rosas grandes e como
costura muito bem fez um calção lindo, o mais colorido de toda a praia. Mas
caiu bem.
E minha turma, uma gang
atribulada, quase todos do Externato Duque de Caxias, elogiou. Minha namorada,
Jussara, me agarrou pelo braço e saímos... Eu com ela, ela com o rebelde dela.
Jussara tem 14 anos, faz balé e
mora na rua Serzedelo Correia. Eu tenho 16 e fui aluno de latim do professor
Pompílio da Hora no Atheneu São Luís, no Catete. O velho Pompílio me adorava,
eu era o melhor aluno de latim que ele tinha. Mas, certa vez, me expulsou da
sala. E me fez sair pela janela, aos gritos:
-- Você não é digno de sair pela
porta.
Pulei. E quando já estava fora,
me fez voltar à sala, com um ensinamento estranho:
-- Não viva de tal maneira, que
possam dizer para você: “Puxa, nunca imaginei que você fizesse isso”.
Pompílio, primeiro negro
brasileiro a ser nomeado embaixador na África, dando lições de transgressão a
seu pupilo.
Jussara me agarra pela cintura,
rindo e apontando para o mar. A gang brinca de boto furando as ondas...
Morena de olhos azuis, ela não é
bonita, é linda. Minha vida toda se resume nisso: futebol de areia todas as
tardes depois das quatro, toda televisão que dá para ver, muito livro e Jussara
para me levar ao cinema. E saímos na maior pinta. Eu de rancheira e camisa de
ban-lon branca e ela de vestido de fustão rodado. Depois do cinema, comemos waffles
ali na avenida Nossa Senhora de Copacabana.
Os anos 60 começam a desabrochar.
Lá em casa, Walter e Lolita deram adeus ao JK, um pouco preocupados com os ares
que sopram. Tio Walter prefere o Lott, mas o povo vai de Jânio. O jeitão do
magrela não me agrada. É o homem da caspa de talco, do sanduíche de mortadela e
da Vila Maria, em São Paulo.
Toda minha família sempre foi
juscelinista, até o tio Walter que é austríaco e veio para cá no meio da
guerra. Magro, um metro e noventa, cabelos lisos e negros, foi atleta do
Flamengo. Remava. Foi capataz de fazenda. Levou um tiro de um peão, na barriga.
Casou-se com minha tia Iracema, que era estilista e dona de loja no centro.
Depois da morte de Iracema veio Lolita, filha de mãe espanhola e pai italiano.
Bailarina. É vinte anos mais nova que o Walter. E doze anos mais velha do que
eu. É amiga, confidente, tia e, às vezes, mãe. Esta última função é a que menos
gosto.
Alguns anos depois da morte de
meu pai, Walter e Lolita me adotaram. Os dois filhos, Marcus e Júlio, vieram
mais tarde.
Hoje, tio Walter tem loja de moda,
um Jaguar 53, usa tanga na praia, um escândalo que Lolita aprova, e joga
religiosamente peteca com os amigos domingo de manhã aqui no Posto 4, em
Copacabana.
-- No que você está pensando?
Está tão calado – pergunta Jussara.
-- O azul dos teus olhos é mais
bonito que o azulão besta do mar.
-- Bobo!
-- É verdade. Prefiro esse azul
aqui àquele lá.
-- Bobo duas vezes. Aquele lá é
maior. Olha, nem fim tem...
-- É, mais o teu eu posso levar
comigo.
-- Só se eu deixar...
-- E você deixa?
-- Depende...
-- De que?
-- Ué, para onde?...
-- Quero o azul dos teus olhos
como farol, que baila, na ilha, no meio do mar...
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