Em tempos de eleição
todos nos perguntamos: e o que o socialismo tem a ver com o cristianismo? É
possível um socialismo religioso? No início do século passado um teólogo alemão
também se fez esta pergunta. E para respondê-la voltamos a ele.
Socialismo Religioso
e Marxismo
Paul Tillich e suas
relações com o pensamento de Karl Marx
Jorge Pinheiro, PhD
As
doutrinas de Marx e dos marxistas sempre foram discutidas com profundidade como
parte da fundamentação teórica do socialismo religioso. Na maioria dos casos,
como resultado disso, muitos religiosos rejeitaram o marxismo, enquanto outros
o aceitaram parcialmente ou até mesmo transformaram essencialmente as doutrinas
de Marx. Terá mudado esta situação? Teria aumentado a distancia entre o
marxismo e o cristianismo? [Paul Tillich, A Era Protestante,
São Bernardo do Campo, Ciências da Religião, p. 267].
Para Paul Tillich, é importante que o olhar
lançado nas profundezas não seja turvado, que a fé enquanto experiência da
incondicionalidade apóie a vontade de dar forma ao mundo e a livre do vazio e
do nada de uma simples tecnificação do mundo. Assim, o espírito
religioso estaria vivo no movimento socialista, enquanto vibração religiosa que
circula através das comunidades. E essa santificação da vida cultural no socialismo,
para o teólogo, é uma herança cristã, que lhe transmite coragem e vida.
Ao buscar as raízes antropológicas do
socialismo, Tillich achou um aliado nos textos do jovem Marx, especialmente nos
Manuscritos econômico-filosóficos de 1844, publicados por J. P. Mayer e
Siegfried Landshut, dois colaboradores do Neue Blätter für den Sozialismus, jornal
socialista religioso co-editado por Tillich [Franklin Sherman, Tillich’s Social Thought: New Perspectives, Christian Century, 25/02/1976, pp. 168-172].
Assim,
Tillich descobre o Marx humanista e profeta, que contrasta com o Marx da
maturidade, voltado para a leitura econômica da realidade. Tillich, porém,
resiste à tendência de lançar um contra o outro, afirmando que o Marx real deve
ser visto no contexto de seu próprio desenvolvimento.
Mas,
há uma razão para se fazer a crítica teológica do marxismo, e esta é exatamente
a impressionante analogia estrutural existente entre a interpretação
profética e a interpretação marxiana da história.
Para Tillich, a resistência ao impacto da catástrofe histórica é
tarefa profética, que deve elaborar uma mensagem consciente, de esperança.
Nesse contexto, o princípio profético envolve um julgamento e relaciona este
julgamento com a situação humana inteira, não deixando de lado nenhum aspecto
da existência. Nesse sentido, o espírito da profecia leva, sob o capitalismo,
ao princípio protestante. O que fica óbvio, em situações-limite, que ameaçam a
vida. A situação do proletariado não é algo opcional, que podemos considerar ou
não. Em A Era Protestante [p.
194] diz que devemos nos perguntar, se “o socialismo não representa certo tipo religioso especial, originado no
profetismo judaico que transcende o mundo dado e vive na expectativa de uma
‘nova terra’ — simbolizada na sociedade sem classes, numa época de justiça e
paz”.
O
princípio profético e o marxismo partem de interpretações capazes de ver
sentido na história. Para essas duas leituras da realidade, a história vai
na direção de um alvo, cuja realização dará sentido a todos os eventos vividos.
E se
a história tem um fim, tem também um começo e um centro, onde o sentido da vida
se torna visível e possibilita a tarefa de interpretação, tanto do profeta como
do militante marxista. Assim, para o profetismo e para o marxismo, o conteúdo
básico da história encontra-se na luta entre o bem e o mal.
As forças do mal são
identificadas como injustiça, mas podem ser derrotadas.
Esta interpretação cria nos dois casos certa atmosfera escatológica,
visível na tensão da expectativa e no direcionamento para o futuro, coisa que
falta completamente em todos os tipos de religião sacramental e mística. O
profetismo e o marxismo atacam a ordem vigente da sociedade e a piedade pessoal
como expressões do mal universal num período específico [A Era Protestante,
p. 268].
Ora,
há um desafio ético, apaixonado, como afirma Tillich, das formas concretas de
injustiça, que levanta um protesto, o punho ameaçador, contra aqueles que são
responsáveis por este estado de coisas. Assim, o espírito profético e o
marxismo colocam os grupos governantes sob o julgamento da história e proclamam
a destruição desses grupos.
Tanto
o profetismo como o marxismo acreditam que a transição do atual estágio da
história em direção a uma época de plena realização se dará através de uma
série de eventos catastróficos, que culminará com o estabelecimento de um reino
de paz e justiça.
Dessa
maneira, o espírito profético e o marxismo são portadores do destino histórico
da humanidade e agem como instrumento desse destino por meio de atos livres, já
que a liberdade não contradiz o destino histórico.
A
analogia estrutural entre o espírito profético e o marxismo não se limita à
interpretação histórica, mas se estendem à própria doutrina do homem. É uma
semelhança, inclusive, que vai além de uma cosmovisão profética do homem, que
se apresenta como doutrina cristã do homem.
O
homem, para o marxismo, não é o que deveria ser, sua existência real contradiz
seu ser essencial.
Marx nos Manuscritos econômico-filosóficos de 1844 escreve: "quanto
mais produz o operário com seu trabalho, mais o mundo objetivo, estranho que
ele cria em torno de si, torna-se poderoso, mais ele empobrece, mais pobre
torna-se seu mundo interior e menos ele possui de seu". Ao partir de
sua preocupação central, o estudo da economia política de seu tempo, Marx diz
que "a miséria do operário está em razão inversa do poder e da grandeza
de sua produção". Mais produz, maior é a sua miséria.
Assim, a produção não faz apenas do homem mercadoria, a mercadoria
humana, o homem sob forma de mercadoria, mas o faz também ser espiritual e
fisicamente desumanizado... Se o desenvolvimento das forças produtivas ao mesmo
tempo em que desenvolve as possibilidades humanas cria a reprodução da
desumanidade, evidenciam-se os limites antropológicos e existenciais de tal
desenvolvimento, já que toda relação social não se dará apenas através de uma
elevação espiritual, mas de movimentos de deixam em aberto as possibilidades
para a própria destruição do humano.
A
idéia da queda está presente no marxismo. Já que se o homem não caiu de um
estado de bondade original, caiu de um estado de inocência primária. Alienou-se
de si mesmo, de sua humanidade. Transformou-se em objeto, instrumento de lucro
e quantidade de força de trabalho.
Para
o cristianismo, como sabemos, o ser humano alienou-se de seu destino divino,
perdeu a dignidade de seu ser, separou-se de seus semelhantes, por causa do
orgulho, da desesperança, do poder.
O
cristianismo e o marxismo concordam que é inviável determinar a existência
humana de cima para baixo, por isso a existência histórica é determinante na
construção da antropologia.
Mas a
analogia entre cristianismo e marxismo vai mais longe ainda. Vêem o homem como
ser social, e que por isso o bem e o mal praticados não estão separados de sua
existência social.
O indivíduo não escapa dessa situação. Faz
parte do mundo caído, não importando se a queda se expressa em termos
religiosos ou sociológicos. Tem a possibilidade de fazer parte do novo mundo,
não importando se o concebemos em termos de transformação supra-histórica ou
infra-histórica [A Era Protestante, p. 269].
Dessa
maneira, a idéia de verdade tanto no cristianismo como no marxismo vai além da
separação entre teoria e prática. Ou seja, a verdade para ser conhecida deve
ser feita. Vive-se a verdade.
Sem a
transformação da realidade não se conhece a realidade. Donde a capacidade de
conhecimento depende da situação de conhecimento em que se está. E apoiando-se
no apóstolo Paulo, Tillich explica que só o “homem espiritual” consegue julgar
todas as coisas, da mesma maneira aquele que participa da luta do “grupo
eleito” contra a sociedade de classe consegue entender o verdadeiro caráter do
ser.
Assim,
com a deformação da existência histórica, praticamente em todas as esferas,
torna-se muito difícil a percepção da condição humana e do próprio ser, por
isso a presença da igreja e do proletariado na luta é o lugar onde a verdade
tem mais condições de ser aceita e vivida.
O
auto-engano e a produção de ideologias surge como inevitáveis em nossas
sociedades carentes de sentido, a não ser naqueles pequenos grupos que
enfrentam suprema angústia, desespero e falta de sentido. A verdade
então aparece e pode ser vivida, porque os véus ideológicos foram rasgados.
Mas,
alerta Tillich,
a
verdade pode se transformar num instrumento de orgulho religioso ou de vontade
de poder político. Em tudo isso o cristianismo e o marxismo estão juntos em
oposição ao otimismo pelagiano ou de harmonia em relação à natureza humana [A Era Protestante, p. 269].
As diferenças com o marxismo
Segundo
Tillich, não podemos ver o marxismo como se fosse uma coisa do passado, quando
aceitamos o espírito profético enquanto socialistas religiosos.
O socialismo religioso, se quiser continuar
a ter sentido não pode se transformar numa justificativa ideológica das atuais
democracias, nem num idealismo progressivo ou num sistema de harmonia autônoma.
O socialismo religioso dentro do espírito do profetismo e com os métodos do
marxismo é capaz de entender e transcender o mundo atual [A Era Protestante, p. 274].
Mas
até que ponto a metodologia marxista e uma hipotética conquista do poder
político poderia dar sentido à vida? Na verdade, por ser marxista, tal
metodologia não entende que a corrupção também está localizada nas profundezas
do coração humano. Por isso, o alerta de Tillich, sobre as diferenças entre
espírito profético e marxismo, cresce em importância e deve ser ressaltado.
“O socialismo religioso sempre entendeu que
as forças demoníacas da injustiça, do orgulho e da vontade de poder jamais
serão plenamente erradicadas da cena histórica (...).O socialismo religioso
acredita que a corrupção da situação humana tem raízes mais profundas do que as
meras estruturas históricas e sociológicas. Estão encravadas nas profundezas do
coração humano.” [A Era Protestante, op. cit., p. 271].
“Como Kierkegaard, Marx fala da situação alienada do homem na
estrutura social da sociedade burguesa. Empregava a palavra alienação
(entfremdung) não do ponto de vista individual, mas social. Segundo Hegel essa
alienação significa a incursão do Espírito absoluto na natureza,
distanciando-se de si mesmo. Para Kierkegaard era a queda do homem, a
transição, por meio de um salto, da inocência para o conhecimento e para a
tragédia. Para Marx era a estrutura da sociedade capitalista”. [Paul
Tillich, Perspectivas da Teologia Protestante nos séculos XIX e XX, São
Paulo, ASTE, 1999, p. 193].
Por
isso, considera que a regeneração da humanidade não é possível apenas mediante
mudanças políticas, mas requer mudanças na atitude das pessoas em favor da
vida.
Assim,
para o socialismo religioso, proposto por Paul Tillich, o momento decisivo da
história não é o surgimento do proletariado, mas o aparecimento do novo sentido
da vida na automanifestação divina.
Em artigo publicado no Die Tat, Monatsschrift für die Zukunft
deutscher Kultur, em 1922, e republicado em 1948 em inglês com o título de
Kairós I em Main Works/ Hauptwerke, IV, Tillich diz: “Sob todos os aspectos, o
socialismo religioso quer aprofundar a crítica, trazer à tona as questões
últimas e decisivas; ele se faz mais radical e mais revolucionário que o
socialismo, porque vê a krisis do ponto de vista do incondicionado.” [Christianisme
et Socialisme, Écrits socialistes allemands (1919-1931), Les Éditions du
Cerf, Éditions Labor et Fides, Les Presses de l´Université Laval, Paris,
Genebra, Québec, 1992, p. 159].
Essa
diferença tem extrema importância, mas de nenhuma maneira – pensa o teólogo --
impede a inclusão de elementos básicos da doutrina marxiana da história e do
homem no cristianismo profético.
Tillich afirmou, em junho de 1949, não
duvidar de que as concepções básicas do socialismo religioso fossem válidas,
pois apontavam para o modo político e cultural de vida pela qual a Europa
poderia ser reconstruída. Mas não estava seguro de que a adoção dos princípios
do socialismo religioso fosse de fato uma possibilidade num futuro próximo [Além do Socialismo Religioso, artigo publicado no Christian Century em
15/06/1949].
Para
ele, em vez de um kairós criativo, via um vazio que só poderia ser feito
criativo se rejeitasse todos os tipos de soluções prematuras, e não se
afundasse na esperança nula do sagrado. Esta visão levou a uma diminuição de
sua participação em atividades políticas. Na verdade, sua frustração se deveu à
impossibilidade de influenciar no pós-guerra na tentativa de produzir uma
abertura entre Leste e Oeste, que possibilitasse a unificação da Alemanha.
Além
disso, o repúdio às liberdades civis e aos direitos humanos nos países comunistas
desiludiu quase todos seus companheiros que sonharam com a possibilidade do
socialismo religioso.
“O movimento marxista não foi capaz de se criticar por causa da
estrutura em que caiu, transformando-se no que chamamos agora de stalinismo.
Dessa maneira, todas as coisas em favor das quais os grupos originais tanto
lutaram acabaram sendo reprimidas e esquecidas. Em nosso século vinte temos
tido a ocasião de melhor perceber a trágica realidade da alienação humana no
campo social”. [Perspectivas da Teologia Protestante nos séculos XIX e
XX, p. 200].
E tal política comunista fez com que
Tillich, que não se considerava um utópico, constatasse que o amanhecer de
uma nova era criativa se distanciava da humanidade, pressagiando uma era de
escuridão [Além do Socialismo
Religioso, artigo citado].
Assim, Tillich
alertou para o perigo, a partir da experiência stalinista, de o socialismo
transformar-se em totalitarismo, já que não aceitava a pluralidade de partidos
políticos e as liberdades civis, que os socialistas religiosos defendiam.
Por isso, só podemos
falar de socialismo religioso quando entendemos que para Paul Tillich
socialismo religioso é aquele em que a religião traduz a defesa do significado
profundo das raízes do ser humano.
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