Fomos chamados à liberdade. O que significa isso?
Bem, talvez falar de corvos, gaviões e passarinhos ajude...
O menino e o rifle
Jorge Pinheiro
Em 1965, Pier Paolo Pasolini, um
dos gênios do cinema italiano, filmou Gaviões e passarinhos, história
que vi como metáfora sobre liberdade e consciência política. Numa estrada vazia, um senhor (Totó) e
seu filho (Ninetto Davoli) encontram um corvo que fala. O corvo os transforma
em dois monges franciscanos e eles são obrigados a pregar para gaviões e
passarinhos. O próprio Pasolini diria:
“Nunca criei um filme tão desarmado, frágil e delicado
como esse. Ele não se parece com meus filmes anteriores e não se parece com
nenhum outro filme... Seu surrealismo tem pouco a ver com o surrealismo
histórico, mas fundamentalmente com o surrealismo das fábulas”.
O filme é uma parábola sobre a crise do socialismo,
representada pelo corvo, na Itália dos anos 50. “Totó e Ninetto representam os
italianos inocentes, que não se envolvem na história, que conquistam a primeira
noção de consciência ao encontrar o marxismo no semblante do corvo”, afirmou
Pasolini.
Ter vivido parte da infância em
fazenda, no sul de Minas, foi um privilégio que marcou minha vida, não somente
fornecendo memórias para a velhice, mas plasmando conteúdo que amo e defendo: a
liberdade.
Talvez seja essa compreensão
telúrica da liberdade, que fez de mim, já na alta maturidade, batista, e me
permitiu construir uma ponte entre o pensamento liberal inglês e o socialismo
religioso de Paul Tillich.
Voltemos à minha infância. Meu tio Ary tinha uma
Winchester 44 na casa da fazenda. E eu olhava para aquela arma com respeito e
paixão. Eu e milhares de pessoas mundo afora.
Os rifles Winchester 44,
conhecidos como papo amarelo, foram populares no interior do Brasil e
nos Estados Unidos: símbolo de uma época, como a pistola Colt e os cavalos quarto de milha.
Conta-se que Lampião, quando
começou sua vida guerrilheira, usava uma Winchester 44, que os sertanejos
chamavam de cruzeta. Segundo o historiador
Frederico Pernambucano de Mello:
Lampião tinha uma paixão pelo
rifle cruzeta, não somente por ser arma de estréia, mas também por ter
permitido criar um processo de aceleração de tiros. Ele conseguiu transformar a
arma em um modelo automático. A transformação permitia que o rifle, quando
usado, produzisse um clarão que, segundo os sertanejos, alumiava como um
lampião.
A Winchester era mágica e eu
amava ver meu tio usando-a contra alvos imóveis: latas velhas e garrafas. Mas,
certa tarde, um gavião começou a piar e a fazer círculos no céu. O gavião,
accipiter nisus, é uma ave de rapina pequena, de cauda comprida e
vôo certeiro. Pia forte, assustando suas presas, geralmente pequenos
pássaros e pintos soltos na pastagem.
E era isso mesmo que aquele
gavião estava planejando: atacar os pintinhos que, juntos com a galinha,
corriam de um lado para o outro, em pânico.
Meu tio pegou a Winchester, que
reinava numa das paredes da sala, e me chamou. Fomos para a varanda e ele
começou a seguir os círculos do gavião. Esperou. Quando o gavião mergulhou em
direção aos pintos ele atirou.
E eu vi o gavião explodir em
penas.
Onde nos leva a liberdade quando
não temos consciência do que ela significa? A
vida em liberdade significa a aceitação da exigência incondicional de realizar
a verdade e fazer o bem.
Ao
reconhecer a existência de uma situação-limite, de ameaça à vida e à
existência, devemos entender que:
(1)
não podemos virar as costas ao mundo; (2) aquilo que é eterno deve ser expresso
em relação à situação presente; (3) a realidade da graça deve ser expressa com
ousadia e risco; (4) e o poder transformador do Evangelho deve expressar uma fé
não superficial, que vai à raiz.
Por
isso, como na parábola de Pasolini, somos chamados a pregar para gaviões e
passarinhos. Somos livres em Cristo: chamados a viver o desafio incondicional
de realizar a verdade e fazer o bem.
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