Davi
Justiça e graça não se
opõem. Antes, são atitudes do Eterno inseridas em seu propósito de redenção da
espécie humana. Respostas à realidade criada pela aceitação ou não-aceitação
da libertação oferecida pelo Criador.
O segundo livro de
Samuel, dos capítulos 11 ao 20, fala da profunda depressão vivida por Davi em
conseqüência do seu ato de possessão da mulher de Urias, e como tal situação desencadeou a
desestruturação de seua clã e do reino.
Depois do ciclo menstrual, o banho
Tudo começou quando
Davi, que possuía oito mulheres, resolveu possuir também a mulher de Urias, que terminado seu ciclo menstrual se lavava na laje de sua casa. Urias, era um general mercenário, heteu de nacionalidade, a serviço do exército de Davi. O rei viu a mulher, mandou trazê-la e teve relações com ela no terraço
da casa real. É interessante notar, que tempos depois, quando Bate-Seba manda lhe informar que está grávida, o rei só pensa em esconder o acontecido. E assim faz o caminho da dissolução, tentando fazer com que Urias volte para casa, quebre as regras militares do aquartelamento, que impedem os guerreiros de manterem relações sexuais em época de batalha, e tenha relações sexuais com Bateseba para que o futuro filho possa ser apresentado como do casal. Mas como tal tática não dá certo, Davi opta pelo assassinato do heteu mercenário, já ninguém se importaria com a morte de um estrangeiro. Posição racista que traduz hipocrisia, ingratidão e que culmina com o homicídio.
O medalhão da morte de Urias
Nem bem o cadáver de
Urias esfriara, já que o luto de sete dias foi puramente formal, Bate-Seba
recolhe-se à casa real e torna-se mulher de Davi. Passado nove meses, o profeta
Natã apresenta a Davi a parábola do homem rico que se apropria da ovelha do
homem pobre.
"Tu és este homem", vocifera Natã.
Denunciado publicamente, Davi chora o seu erro diante de Deus. Arrepende-se e
é perdoado. Mas os frutos das três faltas cometidas, adultério, dissimulação e assassinato,
ele haveria de colhê-los na sua própria família.
Não somente o reino
sofreu as conseqüências da quebra da Lei, já que a confiança que o povo
depositava no rei foi imediatamente quebrada. Da mesma maneira, sua família
olhava com desconfiança esse pai que se mostrava fraco e evasivo diante de suas
obrigações familiares.
Temos, então, a morte
do primeiro filho de Davi e Bate-Seba, o incesto de Amnom e Tamar, e o ódio
crescente de Absalão pelo seu meio-irmão Amnom. É impressionante notar que
passados dois anos, a única postura de Davi em relação ao filho incestuoso foi
apenas de muita ira. Não há da parte do pai nenhuma atitude objetiva. Não há
diálogo, crítica, punição... Nada. Apenas ira acumulada. Podemos imaginar como
isso tocou o coração de Absalão, irmão de sangue de Tamar, ao ver dois anos passarem-se
sem que o pai tomasse qualquer atitude.
E Absalão fez justiça com as próprias mãos, assassinando o irmão.
Tal situação fracionou
mais ainda as relações familiares. Davi amava a Absalão, e este ansiava pelo
perdão do pai. Mas nunca mais foram reatadas as relações de amor entre pai e
filho. É verdade que depois de três anos de separação, Absalão consegue ver o
pai, que o beija. Até que ponto este beijo foi o pedido de perdão de um pai
omisso a seu filho rebelado, não sabemos. O beijo como cumprimento era um
costume oriental. O certo é que o ressentimento de Absalão não foi curado.
Temos, então, mais uma
seqüência de tragédias. Absalão lidera uma conspiração contra o próprio pai,
toma o trono e obriga Davi a fugir com toda a sua família e soldados de
confiança. O rei é apedrejado e amaldiçoado. Em fuga, "o rei Davi e todo o povo que ia com ele
chegaram exaustos ao Jordão, e ali descansaram".
Sem dúvida, esses
últimos cinco anos tinham sido terríveis. Esse Davi, deprimido à beira do
Jordão, estava longe de lembrar o pastor alegre e confiante que
derrotara Golias. A auto-suficiência do rei, sua insensibilidade e
racionalização levaram-no à transgressão. Agora estava ali, às margens do rio, tendo
dentro de si uma confusão de sentimentos acumulados: culpa, medo, ira, rejeição.
Quando se arrependera,
depois da exortação de Natã, Davi escreveu o salmo 51 e posteriormente o salmo
32. Dois textos belíssimos. O primeiro, sobre a confissão do pecado e o
arrependimento. O segundo, sobre a felicidade daquele que recebe o perdão.
Agora, no fundo do poço, com a família destroçada, suas concubinas sendo
possuídas publicamente pelo próprio filho, destronado e amaldiçoado, só lhe
restava descansar em Deus.
O reinado de Absalão
será curtíssimo. Ele é assassinado e o rei Davi vive um momento de profunda
angústia. Recupera-se da dor da morte do filho rebelde, mas tão amado, e começa
a reconquistar cada uma das tribos, em parte graças à participação diplomática
e militar de seu amigo e braço direito durante todos esses anos: Joabe.
A tempestade estava
passando. Os anos de chumbo terminavam. E Davi recomposto emocional e
espiritualmente poderá dizer no final de sua vida:
"Disse o Deus de Israel, a Rocha de Israel me
falou: aquele que domina com justiça sobre os homens, que domina no temor de
Deus, é como a luz da manhã, quando sai o sol, como manhã sem nuvens, cujo
esplendor, depois da chuva, faz brotar da terra a erva. Não está assim com Deus
a minha casa? Pois estabeleceu comigo uma aliança eterna, em tudo definida e
segura. Não fará ele prosperar toda a minha salvação e toda a minha esperança?”.
O Senhor Deus
restaurara a vida de Davi.
Mas fica uma pergunta:
será que o rei durante esses anos trágicos tinha consciência do processo que
estava vivendo? Temos uma pista bastante interessante: os já citados salmos 51
e 32. Vejamos o que eles dizem.
No salmo 51, salmo de
confissão e arrependimento, logo no versículo três, Davi afirma: "(...) eu conheço as minhas transgressões e o
meu pecado está sempre diante de mim".
Davi, na verdade tinha
consciência do erro cometido. Quando escreve o salmo, ele já parou de
racionalizar o seu erro. Ele não se justifica mais. É interessante ver como
essa compreensão que tem de si próprio é real. Davi, neste salmo, usa palavras
como purificar, lavar, renovar, restituir, sustentar, livrar e abrir, para
dizer o que Deus precisa fazer por ele. Aqui ele vê suas limitações, vê sua
humanidade decaída e pede a Deus que seja Deus pleno em sua vida.
Duas coisas ficam
claras nessa oração do rei Davi. Por um lado, reconhece que está vivendo o
momento mais terrível de sua vida: distante do Eterno, esse Deus que
transformou um menino desprezado pelo pai, pastor de ovelhas, sem perfil para
nada mais heróico, em rei ungido de Israel. Mas, se tem esta autocompreensão de
seu estado de pecador pusilânime e irremediavelmente perdido, por outro, tem
consciência de que não é isso que o Eterno quer para ele. "Cria em mim, ó Deus, um coração puro e
renova em mim um espírito reto".
E no salmo 32, o rei
canta a alegria do perdão recebido. Ele se diz feliz, bem-aventurado, e explica
que esses sentimentos existem porque "não
ocultei os meus pecados".
Depois de reconhecer
suas limitações, de ter seus erros perdoados e de viver a alegria do perdão,
Deus diz a Davi: "Instruir-te-ei e
te ensinarei o caminho que deves seguir; e sob as minhas vistas, te darei
conselho".
Davi superara seus erros, mas o Eterno continuaria presente. Cresceria no conhecimento do Eterno, de si próprio, e do próximo. Graças a esse crescimento, gerações foram abençoadas com os momentos de chumbo da vida do rei Davi, com
seu arrependimento e com o conhecimento posterior que o Eterno lhe deu.
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