Fonte: Ireneu
de Lyon. Livros I, II, III, IV, V. Coleção Patrística.
Tradução de Lourenço Costa. São Paulo: Paulus, 1995.
O Logos recebeu de Maria, virgem, a
geração recapitulada de Adão. O primeiro Adão foi tirado da terra, soprado, e
fez-se imagem de Deus. O logos encarnado, enquanto recapitulação de Adão, foi
feito modelagem de Deus em Maria. Erram os que sustentam que o Cristo nada
recebeu de Maria para poder rejeitar a herança do corpo. Ao dizer assim
rejeitam também a imagem. Com efeito, se aquele primeiro recebeu a sua
modelagem e substância da terra pela mão e arte de Deus e este não, então não
conservou a semelhança com o homem que foi feito à imagem e semelhança de Deus,
e o Artífice pareceria inconstante e sem nada que demonstre a sua sabedoria.
Isto quer dizer que ele apareceu como homem sem sê-lo realmente e que se fez
homem sem tomar nada do homem!
Mas se não recebeu de nenhum ser humano a
substância da sua carne, ele não se fez nem homem, nem Filho do homem. E se não
se fez o que nós éramos, não tinha importância nem valor o que ele sofreu e
padeceu. Ora, não há quem não admita que nós somos feitos de um corpo tirado da
terra e de uma alma que recebe de Deus o Espírito. E é isso que se tornou o
Verbo de Deus ao recapitular em si mesmo a obra por ele plasmada, e é este o
motivo pelo qual se declara Filho do homem (...). O apóstolo Paulo, na epístola
aos Gálatas, disse abertamente: “Deus enviou o seu Filho, nascido de mulher”; e
na epístola aos romanos diz: ... acerca do seu Filho, que nasceu da posteridade
de Davi, segundo a carne, declarado Filho de Deus, com poder, segundo o
Espírito de santificação, pela ressurreição dentre os mortos, Jesus Cristo
Senhor nosso. (Gl 4.4; Rm 1.3-4)
22,2. De outra forma, a sua descida em
Maria seria supérflua; pois para que desceria nela se não devia receber nada
dela? Se não tivesse recebido nada de Maria então nunca teria tomado alimentos
terrenos com os quais se alimenta um corpo tirado da terra; após o jejum de
quarenta dias, como Moisés e Elias, seu corpo não teria experimentado a fome e
não teria procurado alimento; João, seu discípulo, não teria escrito: “Jesus,
cansado pela caminhada, estava sentado”; nem Davi teria dito dele: “E
acrescentaram sofrimento à dor das minhas feridas”; não teria chorado sobre o
túmulo de Lázaro; não suaria gotas de sangue, nem teria dito: “A minha alma
está triste” (Jo 4.6; Sl 69.27; Mt 26.38; Jo 19.24); e de seu lado transpassado
não teriam saído sangue e água. Tudo isso são sinais da carne tirada da terra,
que recapitulou em si, salvando a obra de suas mãos.
22,3. Por isso Lucas apresenta uma
genealogia de setenta e duas gerações, que vai do nascimento do Senhor até
Adão, unindo o fim ao princípio, para fazer entender que o Senhor é aquele que
recapitulou em si mesmo todas as nações dispersas desde Adão, todas as línguas
e gerações dos homens, inclusive Adão. Por isso Paulo chama Adão de figura
daquele que devia vir, porque o Verbo, Criador de todas as coisas, prefigurara
nele a futura economia da humanidade de que se revestiria o Filho de Deus, pelo
fato de que Deus, formando o homem psíquico, dera a entender que seria salvo
pelo homem espiritual. Por isso, visto que já existia como salvador, devia
tornar-se quem devia ser salvo, para não ser o Salvador de nada.
22,4. Da mesma forma, encontramos Maria,
a Virgem obediente, que diz: “Eis a serva do Senhor, faça-se em mim segundo a
tua palavra”, e, em contraste, Eva, que desobedeceu quando ainda era virgem.
Como esta, ainda virgem se bem que casada — no paraíso estavam nus e não se
envergonhavam, porque, criados há pouco tempo ainda não pensavam em gerar
filhos, sendo necessário que, primeiro, se tornassem adultos antes de se
multiplicar — pela sua desobediência se tornou para si e para todo o gênero
humano causa da morte, assim Maria, tendo por esposo aquele que lhe fora
predestinado e sendo virgem, pela sua obediência se tornou para si e para todo
o gênero humano causa da salvação. E por isso que a Lei chama aquela que é
noiva, se ainda virgem, de esposa daquele que a tomou por noiva, para indicar o
influxo que se opera de Maria sobre Eva. Com efeito, o que está amarrado não
pode ser desamarrado se não se desatam os nós em sentido contrário ao que foram
dados, e os primeiros são desfeitos depois dos segundos e estes, por sua vez,
permitem que se desfaçam os primeiros: acontece que o primeiro é desfeito pelo
segundo e o segundo é desfeito em primeiro lugar.
Eis porque o Senhor dizia que os
primeiros serão os últimos e os últimos os primeiros. E o profeta diz a mesma
coisa: Em lugar dos pais nasceram filhos para ti. Com efeito, o Senhor, o
primogênito dos mortos, reuniu no seu seio os patriarcas antigos e os regenerou
para a vida de Deus, tornando-se ele próprio o primeiro dos viventes, ao passo
que Adão fora o primeiro dos que morrem. Eis por que Lucas, iniciando a
genealogia a partir do Senhor subiu até Adão, porque não foram aqueles
antepassados que lhe deram a vida, e sim foi ele que os fez renascer no
evangelho da vida. Da mesma forma, o nó da desobediência de Eva foi desatado
pela obediência de Maria, e o que Eva tinha amarrado pela sua incredulidade
Maria soltou pela sua fé.
Sobre Ireneu: Ireneu de Lyon, em grego Εἰρηναῖος [pacífico], em latim Irenaeus, (ca.130—202) foi um pai da Igreja que nasceu na província romana da Ásia Menor, na parte ocidental da Turquia, provavelmente em Esmirna. Desenvolveu uma teologia singular sobre Maria, considerando-a perpetuamente virgem e co-redentora. Ireneu fez um paralelismo, dentro do quadro da redenção operada por Cristo, entre a mãe de Jesus, figura da obediência e da humildade, e Eva, imagem-tipo da desobediência e do orgulho.
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