A ressurreição, de Rafaello Sanzio
Ela virou e respondeu em
hebraico: Meu mestre!
[De Montpellier, França, 2005] -- Na
sala, o notebook toca música brasileira. Eu, Naira e Paloma convidamos
quatro jovens para o almoço de Páscoa: Andreas, alemão, que estuda engenharia;
Georgine, de Barcelona, que estuda economia; Térèse, alemã, que estuda
Teologia; e Serge, de Barcelona, que veio passar uma semana em Montpellier.
Jovens cujas famílias estão longe, cristãos na diáspora acadêmica.
Enquanto eles conversam, Djavan
canta que amar é um deserto e seus temores, e a vida vai na cela dessas
dores. Lá fora, junto ao pinheiro, companheiro da janela da sala, a
primavera chega a passos largos. Eu preparo coelho a caçadora e Naira manchon
de canard. Essas serão as carnes do almoço. O almoço é a francesa, com toda
a liturgia que isso implica. E os paralamas do sucesso dizem que o calibre
do perigo é não saber de onde vem o tiro.
Como vocês
notaram estamos em pleno domingo de Páscoa. E quando se fala de Páscoa, se fala
de morte, já que não haveria ressurreição se não houvesse morte. Donde,
procedem os temores de Djavan e dos paralamas. E isso me leva à teologia,
através de um velho amigo dos últimos anos, Paul Tillich.
Ele conta em sua
autobiogafia, “Minha busca pelo Absoluto”, que a primeira Guerra Mundial
colocou um ponto final em sua formação, pois sua geração foi chacoalhada de tal
maneira pela guerra, que deixou para trás sua existência individualista e
predominantemente teórica.
Tillich serviu
como capelão do exército alemão de setembro de 1914 a setembro de 1918. Ele
conta que “antes que as primeiras semanas tivessem passado, meu entusiasmo
original desapareceu, e depois de alguns meses me convenci de que a guerra
duraria indefinidamente e arruinaria toda a Europa. Acima de tudo, vi que a
unidade das primeiras semanas era uma ilusão, que a nação estava fendida em
classes, e que as massas industriais consideravam a Igreja como um aliado
incontestado dos grupos governantes. Esta situação se tornava mais clara
conforme se aproximava o fim da guerra. Produziu a revolução que fez desmoronar
a Alemanha imperial. O modo como tal situação deu origem ao movimento
socialista religioso na Alemanha já foi descrito. Porém, eu quero acrescentar
algumas reflexões”.
Revela que
apoiou o movimento socialista que fez a revolução de 1918 na Alemanha,
revolução que foi morta pela fraqueza dos proprios socialistas, por seus erros
politicos, como a utilização do Exército na repressão aos comunistas; por
razões econômicas, como a inflação galopante; e pela volta das forças
reacionárias que cresceram nos anos vinte. “Minha empatia com os problemas
sociais da revolução alemã teve raízes em minha infância (...). Talvez fosse
uma gota do sangue que induziu minha avó a construir barricadas na revolução de
1848, talvez a impressão deixada pelas palavras dos profetas hebreus contra
injustiça e pelas palavras de Jesus contra os ricos, estas palavras eu aprendi
de cor quando menino”.
E Tillich
constata que essa empatia aumentou com o passar dos anos e se transformou em
militância socialista religiosa que, depois da segunda Guerra Mundial definhou
em resignação e amargura por ver o mundo dividido em dois grupos
todo-poderosos, que esmagaram as sobras de um socialismo democrático e
religioso. Mas, confiante no futuro,
afirma: “se a mensagem profética é verdadeira não há nada além do
socialismo religioso”.
Quando Tillich
fala de socialismo, fala da necessidade incondicional de justiça, presente no
coração humano, e que deve fundamentar toda ação política. E isso só é possível
se o amor ágape fecundar a política e produzir frutos de justiça. Por isso,
socialismo verdadeiro é aquele socialismo que está pleno de sentido último [ultimate
concern] e transcendência. Se isso não se der, o socialismo se transformará
em quase-religião, idolatria que violenta e oprime o ser humano.
Ao falar de Páscoa,
ao nos lembrarmos da ressurreição, nos vem à mente os dois dias e meio de
silêncio e tristeza, que marcaram a pós-morte de Jesus. Por que esses quase
três dias? Na verdade, eles fazem parte de uma pedagogia que transcende.
Através desses quase três dias de silêncio e tristeza, Deus possibilitou aos
discípulos a aprendizagem da unidade do corpo. Em meio ao silêncio daqueles que
fogem e se escondem, em meio ao silêncio da dor da separaçao daquele que é
querido, e da tristeza diante daquele que está morto, mas devia estar vivo, os
discípulos se uniram, abandonaram velhas brigas e juntos oraram pela
misericórdia daquele que é amor.
A unidade foi
selada por condições tão adversas. E Jesus levantou-se para dizer que o que
separava não separa mais. Agora, ao invés de silêncio temos louvores; ao invés
de tristeza, alegria; ao invés de morte, vida.
E assim, como a
primavera que cobre de flores o jardim em frente de minha casa, que faz algumas
semanas estava seco, a Páscoa possibilita o encontro. Estamos reunidos ao redor
de uma mesa, brasileiros, espanhois, alemães. Oramos em francês, mas falamos
também em português, espanhol, alemão.
Quero dizer a Djavan
que de fato há o momento do deserto, do temor e da dor, mas já não pode durar
para sempre. Quero dizer aos paralamas que já sabemos de onde vem o tiro, por
isso o perigo pode ser enfrentado. A mensagem é verdadeira e por isso o mundo
será coberto pela justiça. O Cristo ressurreto nos une, e o mundo conhecerá sua
glória e o amor que tem por nós.
O banquete da Páscoa
estava delicioso, porque foi multiplicado, porque foi ágape de paz, amor e
justiça.
Jesus disse:
Não me segure, pois ainda não subi para o meu Pai. Vá se encontrar com
os meus irmãos e diga a eles que eu vou subir para aquele que é meu Pai e o Pai
deles, o meu Deus e o Deus deles. [João 20.16-17].
Fonte: Jorge Pinheiro, Teologia Bíblica e Sistemática, o ultimato da práxis protestante, São Paulo, Fonte Editorial, 2012.
Rafaello Sanzio (1483-1520), autoretrato
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