mercredi 10 avril 2024

Paul Tillich, Justiça, paz e alegria

O pensar cristão hoje


Paul Tillich 
Justiça, paz e alegria 


Jorge Pinheiro 

“Eles transformarão as suas espadas em arados e as suas lanças em foices. Nunca mais as nações farão guerra, nem se prepararão para batalhas". (Profeta Isaías). 


Jorge Pinheiro 
Montpellier, Hérault, France, janeiro de 2022. 
É Pós-Doutor (2011), Doutor (2006) e Mestre em Ciências da Religião pela Universidade Metodista de São Paulo (2001). Graduado em Teologia pela Faculdade Teológica Batista de São Paulo (2001). Professor e Jornalista Profissional. Atua nas áreas das Ciências da Religião e Teologia, com especialização nas relações entre política e religião. 


Sumário 

Para início de conversa 

I. O socialismo religioso 
uma teologia em construção 


II. A política 
como tradução do socialismo religioso 


III. O socialismo religioso fermenta a história 


IV. Afrobrasilidade e cristianismo social 


V. Como ler Tillich 


Para pensarmos juntos 


Textos de Paul Tillich 


Anexos 



Para início de conversa 

Diante de cristãos distanciados de sua fé e da palavra cristã que virou mercadoria, faço uma pergunta: afinal, existe uma relação entre o presente e o espírito crítico e transformador do cristianismo? 

Exorto homens e mulheres a uma reflexão sobre o que significa o presente enquanto desafio político para a multicultura brasileira. Bem, falar do presente, em primeiro lugar, significa dizer que vamos de uma contingência a algo diferente, que pode ser inferior ou superior, mas nunca igual. 

O presente é sempre parte de uma situação mais geral e está enquadrado no caminhar de um processo. E para fazer a leitura do presente pode-se recorrer à análise histórica, à avaliação crítica ou à construção filosófica. Algumas vezes, porém, algum desses elementos falha. Por isso, não basta observar o presente. Estamos excessivamente ligados a ele, o que pode nos levar a escorregar num julgamento do aqui e agora e esquecer que devemos estar voltados para o futuro. 

O momento é importante, mas transformar o exame do presente em apreciação subjetiva é realizar uma redução, é ver a situação como totalidade e permanência. Olhando assim colocamos a situação num patamar muito elevado e a perspectiva que temos se torna global, apesar de seu caráter individual e limitado. 

Tal análise do presente pode levar a uma ampla aprovação e tocar emocionalmente setores expressivos de comunidades inteiras. Esta é uma maneira de ver, mas é irresponsável, mesmo quando apresenta análises de conjuntura e perspectivas para o futuro. E por que irresponsável? Por não aceitar suas responsabilidades. Por não reconhecer os limites daquele que observa, assim como de seu próprio horizonte. 

Mas se existe um nível mais amplo do que este analisado, somos levados a falar da situação do presente como possibilidade. Mas é possível chegar a tal patamar de observação? Caso exista um ponto de vista mais amplo, a partir do qual se posicione um observador do presente, ele precisa estar livre das amarras do historicismo. Por isso, vamos aqui partir do caminhar trilhado por Paul Tillich, filósofo da religião e teólogo da cultura. 

Um profeta do Antigo Testamento, Sofonias, disse que os humildes devem se voltar para o eterno, devem seguir pelo caminho dado … Façam o que é direito e sejam humildes. Talvez assim vocês escapem do castigo no Dia da ira do Senhor. 

Pode-se dizer que pessoas, militantes e revolucionários, souberam interpretar uma época dada. Eis aqui o ponto de intersecção entre o presente e o espírito crítico e transformador do cristianismo. Seguindo a trilha aberta, é possível afirmar que o cristianismo quando radical traduz inquietude e descontentamento em relação aos acontecimentos sociais concretos. 

Há uma busca ética de respostas entre o cristianismo que se faz radical e a ação consciente do intelectual militante. Ambos representam determinada comunidade, têm função que vai além das estruturas dadas e, apesar de sua organicidade, exercem autonomia em relação às pressões sociais que sofrem. É dessa postura que nasce a força crítica e a compreensão de que diante da realidade há alternativas diferentes daquelas expressas pelo poder. 

Este cristianismo social diante do presente não pode ser apreendido a partir da leitura do apresentado no passado, porque procura uma compreensão que não possa ser abalada. E essa interpretação não pode estar pousada sobre experiência própria e nem mesmo sobre a história das comunidades de fé. 

Toda mudança, toda transformação exige uma compreensão do momento vivido que vá além do meramente histórico, do aqui e agora. Deve projetar-se no futuro, deve entender que há na busca permanente da justiça um choque entre necessidade e transformação, entre criatividade e novidade. Tal desafio não pode ser resolvido por uma pessoa, por mais protestante e social que seja. O sujeito da transformação, da justiça, paz e alegria será, em última instância, o sujeito social, as massas em mobilização. Mas o cristianismo social, assim como a intelectualidade militante, têm aí um importante papel a cumprir, ser voz e ação crítica para que o sonho aconteça no presente concreto: que o juízo corra como as águas e a justiça como ribeiro perene. E vamos percorrer este caminhar com a teologia da justiça, paz e alegria, com Paul Tillich e com seu socialismo religioso. 


O socialismo religioso uma teologia em construção 


Em 1933, Paul Tillich publicou A Decisão Socialista. E como mais uma vez nos vemos diante de variantes do nacional-socialismo, considero válido pensar a multicultura brasileira a partir de Tillich. Em A Decisão Socialista, Tillich apresenta uma leitura político-teológica que ele chamou de socialismo religioso. 




Em seu livro, Tillich focou duas raízes equivocadas do pensamento, o romantismo político, que considera a história e a ação política a partir de um retorno às origens. Ou seja, para as correntes nacionais-socialistas, o futuro repousa atrás de nós, nas nossas origens, que foram abandonadas ou perdidas. 




A outra raiz equivocada do pensamento é o princípio burguês, que define a história e a ação apenas a partir do objetivo a atingir. Tal princípio burguês comete um erro, dissolve nossas origens na ação política que está voltada para um fim no futuro. Essa idéia repousa no liberalismo econômico e político, que a partir de uma sonhada e hipotética harmonia natural levariam à possibilidade incondicional de igualdade e justiça. 




Ora, esse princípio burguês e esta harmonia liberal proposta, na sociedade capitalista, levam ao drama desumanizador que gera expropriação de bens e direitos. 




A compreensão ordinária apresenta o Adão bíblico, o humano que veio da terra, e Eva, aquela que é a vida, defenestrados da floresta tropical. Bem, defenestrados é um pouco forte, porque lançados pela janela seria impossível, porque floresta não tem janela. Mas a palavra defenestrados traduz bem o ato de violência e serve como ilustração sobre a apreciação que o senso comum faz da saída do casal daquele paraíso tropical. 




A ideia do errar o alvo -- significado original da palavra pecado -- é uma maneira transversa de ver a estória humana e flui em direção a um mar grande, uma outra ideia, a do estado de degradação da humanidade. Considera que a natureza humana foi corrompida por um erro original e que todo o humano erra o alvo porque é descendência de Adão e Eva. Este errar o alvo toma formas diferentes na pluralidade do pensamento cristão, o que o leva a ser descrito de diferentes maneiras, indo da simples deficiência à ideia de que somos flores do mal. 


Feios, sujos e malvados. Será que Ettore Scola tinha razão, estamos condenados a viver em um muquifo? Homem, mulher, filhos e parentes, amontoados? E até com a ou o amante, junto, a brilhar na meia luz lilás? A ideia do errar o alvo parte de algumas referências das escrituras judaico-cristãs, das cartas de Paulo aos romanos e aos coríntios e de uma passagem dos salmos. Mas a primeira exposição sistemática sobre a condenação ao barraco foi proposta por Agostinho de Hipona, no século IV. 


É importante notar, porém, que o texto do apóstolo Paulo, fundante do relato, não faz menção a um pecado original. O pensamento rabínico, no geral, não concorda com a visão da danação de origem. Ao contrário, a considera uma perversão da mitologia cristã. E tal compreensão também está ausente no Corão, embora não seja visto assim por todos os muçulmanos. O certo é que para Mahommed, Adão é o pai comum dos humanos e o primeiro profeta do Islã. 


Mas a formalização do conceito, entre os cristãos do medievo, partiu de Agostinho, feita na época em que combatia o monge celta Pelágio, que via a existência como convite ao belo, puro e bom, mesmo depois do casal ter deixado a floresta tropical. 


Agostinho, pateando nas pegadas de Orígenes, a partir do neoplatonismo, procurou responder a algumas questões: por que o mal existe? Por que a morte existe? E deu uma resposta instrumental, ao citar o apóstolo Paulo quando disse que se por um Adão o errar o alvo entrou no cosmo, e com o errar o alvo a corrupção, assim a corrupção passou a toda a humanidade porque todo mundo erra. O texto escrito à comunidade de fé de Roma, mencionado acima, fala do erro de Adão como a ofensa de uma pessoa, não dogmatiza o ato, como Agostinho se sentiu obrigado a fazer, numa leitura sem paralelo com o texto das Origens, bereshit, gênesis. 


Paulo disse que sua formação intelectual aconteceu aos pés de Gamaliel, ou seja, que ele era um fariseu. E por ser fariseu, usou a hermenêutica, middot, ensinada pelos perushim, fariseus. A leitura tipológica era uma regra dessa hermenêutica. O princípio é: "o gesto dos pais é um espelho para o filho”. Em outras palavras, "a experiência de tudo o que foi vivido pelos patriarcas, incluindo Adão, vai acontecer aos seus descendentes". Paulo aplica este método em sua primeira carta aos coríntios, que é um midrash baseado no texto antigo de Números 20.8. Este é um processo hermenêutico que sobrevive no ditado rabínico: "A história não se repete, gagueja". 


Assim, ao ler o relato do texto das Origens, duas questões devem ser levadas em conta na leitura: o casal foi defenestrado ou deixou para trás a natureza de onde brotou? O casal fez algo que os animais não fazem, que a natureza não faz, agiu de forma livre? Donde a pergunta retorna: o casal foi defenestrado por que usou tal prerrogativa e teve que arcar com as consequências de deixar a floresta? Ou a alienação, o distanciamento, rompeu com sua condição existencial natural e fez dele homo sapiens sapiens, que tem metalinguagem, pensa seus próprios pensamentos e a projeção de seu agir? 


A alienação tende a levar à úbere, conceito que traduz a idéia de algo fértil, fecundo, luxuriante, de uma pessoa da qual emana alguma coisa útil e vantajosa, mas que paradoxalmente é cheia de confiança excessiva, de orgulho, ou mesmo de insolência contra suas origens. O apóstolo Tiago descreve o processo da alienação que dá origem à úbere e segue em direção à corrupção, da seguinte maneira: primeiro se deseja o que não deveria ser desejado. Depois, mergulhado no emaranhado do desejo mal pensado, caminha-se na direção de sua realização, erra-se, então, o alvo existencial, o que leva à corrupção. 


Ou como disse o Criador a Caim, o-lança: se você tivesse feito o que é certo, estaria sorrindo, mas você agiu mal e, por isso, lehatati está na porta, querendo saltar em cima de você. Ele quer dominá-lo, mas você precisa vencê-lo. 


Adão e Eva antes do distanciamento de suas origens não tinham desenvolvido o pensamento hipotético-dedutivo. Metaforicamente, viam em preto e branco. Não eram inocentes no sentido de um recém-nascido, mas sua compreensão de mundo repousava sobre o pensamento lógico-formal. As origens estavam presentes. O casal no ato do distanciamento de suas origens não sabia que estava a construir a consciência humana, porém, a partir da separação e da úbere percebeu que não era natureza e isso é constatado quando pensa a sua existência e se vê desnudo. 




Assim, de forma desigual e combinada, na dialética afastamento/ aproximação, ao deixar a natureza para trás, tem início a construção do pensar humano. Faz sua primeira experiência existencial e deixa a floresta tropical. No ato abre a vereda do caminhar humano, e no engatinhar pleno de úbere perde o colo quente e tem início a difícil experiência da liberdade. Deixa o útero, nasce para a compreensão moral do fazer bem e do malfazer e passa a necessitar do exercício diário da livre escolha. Mas é esse caminho, que se por um lado traduz distanciamento, possibilita o encontro, aquele da escolha consciente do humano que está diante, que é o espelho de minha liberdade. 




Para pensar política e religião optei por alguns caminhos, já que religião e política não são realidades estanques. Isto porque as raízes do pensamento político não são apenas pensamentos. Pensamento político é a expressão de um ser político, de uma situação social. Não se pode entender o pensamento quando se subestimam as realidades sociais das quais vem o pensamento político. 




As raízes do pensamento político não podem agir com uma força igual em todo momento e em todo grupo. Um ou outro pode predominar, depende de uma situação social, grupos ou formas de dominação determinadas. Depende de estruturas sociais e psicológicas, da interação com a situação social objetiva. 




Partimos das paixões, de uma antropologia da imago Dei e de uma teologia da existência. Assim, o primeiro referencial é o ser. Nesse sentido, podemos dizer que trabalhamos com uma fenomenologia política quando analisamos questões como o ser, a origem do pensamento político, enquanto mito, e a partir daí procuramos trazer à tona os elementos não reflexivos do pensamento político. 




A questão existencial presente na teologia, nos leva a uma antropologia existencial. Ora, a questão existencial está imbricada à religião, que é a dimensão da profundidade, o espectro da profundidade na totalidade do espírito humano. 




A metáfora profundidade significa que o aspecto religioso aponta em direção àquilo que, na vida espiritual do ser humano, é último, infinito e incondicional. No sentido mais amplo e fundamental do termo, religião é preocupação última. E a preocupação última se manifesta em absolutamente todas as funções criativas do espírito humano. Assim, a religião constitui a substância, o fundamento e a profundidade da vida espiritual do ser humano. 




Nem sempre é necessário perguntar pelas raízes de um fenômeno espiritual ou social. Muitas vezes tal pergunta mostra-se supérflua, principalmente quando um testemunho saudável revela a integridade das raízes. Mas quando se apresentam distorções ou desvios, quando o testemunho congela ou a vida principia a desaparecer, então se torna necessário perguntar: quais são suas raízes? 




É necessário procurar as raízes do pensamento político no próprio ser humano. Sem uma imagem do ser humano, de suas forças e tensões, não se pode dizer nada sobre as fundações políticas do pensamento e do ser político. Sem uma teoria do ser humano, não se pode construir uma teoria das orientações políticas. 




O humano diferente da natureza, é um ser dividido. Não importa saber onde termina a natureza e onde começa o ser humano, não importa que a passagem entre os dois se faça através de lentas transições ou por um salto. O importante é que em determinado momento, a diferença ficou clara. 




Há, no entanto, um processo vital indiviso, que desdobra a natureza sem interrogar nem requerer, um processo que está ligado àquilo que se encontra nele e faz parte do que ele é. Assim, existe um processo vital que deseja saber sobre o ser humano, e que coloca algumas questões para ele: já não é indiviso, mas também dividido. É idêntico a si mesmo quando diante de si mesmo, no ato de pensar e de conhecer. Mas não apenas isso. 




O ser humano tem consciência de si mesmo, ou, em outras palavras, distingue-se da natureza enquanto ser que se desdobra, é o que faz dele ser consciente de si mesmo. A natureza ignora esta divisão. Por isso, o ser humano não é uma combinação de duas partes autônomas, tais como natureza e mente ou corpo e alma, mas um só ser, porém fendido em sua unidade. 



Estas determinações gerais levam a algumas considerações no que se refere à pesquisa do pensamento político. Elas negam qualquer dedução do pensamento político enquanto puro movimento de pensamento, de exigências ético-religiosas, ou considerações ditadas por determinada cosmovisão. 




O pensamento político vem do ser humano enquanto unidade. Tal pensamento está enraizado no ser e na sua consciência, mais precisamente em sua unidade indissolúvel. É por isso que não se pode entender um sistema de pensamento político sem contextualizar seu enraizamento no ser humano enquanto ser social, ou seja, o emaranhado de pulsões e interesses, os constrangimentos e as aspirações constituintes do ser social. 




Mas também é impossível separar o ser de sua consciência, ou ver o pensamento político como simples subproduto do ser. Assim, a consciência estrutura todo o ser do ser humano, todo o ser social, em cada um de seus elementos, inclusive as sensações pulsantes mais primitivas. 




Quando tenta desfazer laços passa-se ao largo da primeira e mais importante característica da essência humana, o que produz uma distorção no quadro geral que ele faz de si próprio, de que há uma consciência inadequada ao ser, uma falsa consciência, mas que não invalida a unidade do ser e da consciência. Isto porque, afirma, o conceito de falsa consciência não é possível quando a coisa que se designa é não conhecível. Assim, a consciência justa é uma consciência que emerge do ser e ao mesmo tempo o determina. Não pode ser uma coisa sem ser a outra, porque o ser humano é uma unidade na divisão, e desta unidade nascem as duas raízes de todo pensamento político. 




O ser humano se encontra enquanto realidade dada assim como seu ambiente. Mas estar no mundo enquanto realidade significa que ele não vem da si mesmo, que ele não é sua própria origem. Conforme disse Heidegger, o ser humano é um “ser lançado”. Esta situação leva o ser humano a colocar-se o problema da fonte, da origem. O que mais tarde vai aparecer como questão filosófica. Mas tal discussão é uma construção, e o mito apresenta a primeira resposta, enquanto determinante para a discussão de conjunto. 



A origem é o que faz emergir. Este aparecimento dá lugar a algo novo, que não existiu antes, que produz uma consciência própria, mas diferente da origem. A realidade que somos está colocada, mas também é algo próprio. É uma tensão entre o ser-posto e o ser-próprio. 




Mas, a origem não nos liberta. Não se pode dizer que era e que não é mais. Constantemente somos puxados pela origem: ela nos faz emergir, nos segura firme. É ela que nos estabelece como algo, enquanto essência. Dessa maneira, ser-posto no mundo supõe caminhar para a morte. 




Três grandes áreas do pensamento moderno no século vinte foram preocupações centrais de Tillich, o socialismo, a cultura e o existencialismo, mas todas abordadas dentro de uma teologia de fronteira. E tal teologia nasceu de condições vida, pessoais, de guerra, perseguição, exílio. Mas também do encontro teológico com pensadores que estavam construindo um novo momento, mas ainda não consolidado, dentro da filosofia, da ciência e da esperança de uma nova sociedade que fosse além daquela que vivia sua maior crise. Assim, a cada momento Tillich teve que fazer escolhas e teve que questionar suas heranças intelectuais e teológicas. Fronteira é isso: ele estava de um lado, que no caso apresentava caos e esfacelamento, e de outro, ainda que coberto de névoa apresentava opções de novidade, de construção de um mundo novo. Mas caminha na fronteira significa correr riscos e romper as pequenas seguranças que ainda tem. Todo o pensamento de Tillich traduz o desafio e o risco da fronteira. E mais do que isso, revela seus próprios limites. 




Se a nível intelectual é possível romper e atravessar a fronteira e isso pode ser feito em termos filosóficos e teológicos, mas nunca de forma definitiva e completa, em termos históricos o atravessar a fronteira não depende da pessoa. E tarefa social. Ou seja, cultura, socialismo e existencialismo estão imbricados na teologia de fronteira produzido por Tillich. Talvez possamos definir tempos para cada construção tillichiana, e então diríamos está é a fase socialista, esta é a fase cultural, esta é a fase existencialista. Mas ao fazer isso eliminar da produção de Tillich a dor da realidade contrária que martela e frustra. E não entenderemos que toda a teologia de Tillich nasce da angústia diante de realidades que vão além dele. Donde a fronteira está presente, Moisés olha a terra, imagina, sonha, mas não pisa nela. 




A produção teórica de Paul Tillich sobre o socialismo é muito vasta e cobre dezesseis anos de produção, indo de 1919 a 1935, fora textos produzidos posteriormente em sua fase norte-americana. Embora tenhamos feito uma leitura de seus principais textos, editados em francês, em 1990, 1992 e 1994, nos concentramos em algumas formulações que consideramos fundamentais para a compreensão do fenômeno político e do socialismo em particular. Nossa abordagem de Tillich e de sua produção procura a compreensão de métodos de análise e de crítica da condição socialista e não tomar as idéias e argumentos de Tillich como cânon. 




Entendemos que seus escritos foram elaborados sob condições especiais e refletem conjunturas e realidades peculiares à modernidade do século XX e, embora nos sirvam de roteiro para reflexão, não podem ser entendidos como palavra final. Metodologicamente optamos por uma leitura não histórica e não cronológica, mas sistemática. Assim, procuramos compreender o pensamento político de Tillich em seu conjunto, situando nessa compreensão as questões do socialismo religioso e do desafio da existência, que nos remetem a busca de sociedades solidárias que construam justiça, paz e alegria. 




Paul Tillich nasceu num lar luterano, na cidade alemã de Starzddel, perto de Berlim, em 1886. Em 1910, graduou-se doutor em Filosofia, em Breslau, e em 1912 licenciou-se em Teologia, em Halle. Durante a I Guerra Mundial serviu como capelão no exército alemão. Psicologicamente, foi muito afetado pela visão das mortes e da destruição em massa causadas pela guerra. Sofreu dois colapsos nervosos e sua fé num cristianismo calcado no romanticismo alemão do século XIX desabou. Ele conta como foi esse sofrimento, que produziu a grande transformação de sua vida: 




“A transformação ocorreu durante a batalha de Champagne, em 1915. Houve um ataque noturno. Durante toda a noite, não fiz outra coisa senão andar entre feridos e moribundos. Muitos deles eram meus amigos íntimos. Durante toda aquela longa e terrível noite, caminhei entre filas de gente que morria. Naquela noite, grande parte da minha filosofia clássica ruiu em pedaços; a convicção de que o homem fosse capaz de apossar-se da essência do seu ser, a doutrina da identidade entre essência e existência... Lembro-me que sentava entre as árvores das florestas francesas e lia “Assim Falou Zaratustra”, de Nietzsche, como faziam muitos outros soldados alemães, em contínuo estado de exaltação. Tratava-se da liberação definitiva da heteronomia. O niilismo europeu desfraldava o dito profético de Nietzsche, ‘Deus está morto’. Pois bem, o conceito tradicional de Deus estava mesmo morto”. 




Para Tillich, o mundo entrara em colapso, e com ele o otimismo naquela cultura que tinha depositado sua confiança no ser humano e acreditado no progresso da civilização. "A experiência dos quatro anos de guerra -- escreveu Tillich --, abriu diante de mim e de todos de minha geração tal um abismo que nunca pôde ser fechado novamente". E foi em Verdun que Tillich situou sua ruptura com o liberalismo teológico alemão. Como vimos, ele fala com tristeza daquela noite que, em meio ao trovejar dos canhões, depois de procurar durante horas dar um pouco de conforto aos moribundos que chegavam ao acampamento, ao amanhecer, exausto, dormiu entre cadáveres. E ali morreu seu idealismo teológico. 




Há nesta descrição da batalha de Verdun uma releitura das memórias de Goethe quando este fala da batalha de Valmy: "Neste lugar e neste dia começa um tempo novo da história do mundo". Goethe disse que Valmy foi o começo do século XIX, marcado pela fé na razão, na paz, na justiça e na democracia, convencido de que a cultura européia chegava a um momento especial de sua história. Em Verdun, Tillich descreve o fracasso desta fé, a queda desta convicção e, também, o fim do século de XIX. 




A experiência que Tillich viveu como capelão durante a I Guerra Mundial, não foi simplesmente uma experiência particular, mas em última instância a compreensão da condição humana, enquanto demonstração da situação espiritual do momento que se abria para o mundo. Nesse sentido, seu destino pessoal coincide com o destino de milhões de pessoas e da Europa inteira. Com a guerra, a derrota da Alemanha e o fim da monarquia, algo novo emergiu do desastre, surgiu das profundezas, da dimensão da profundidade do inconsciente de milhões de pessoas. Se durante alguns anos, o destino da morte cobriu uma geração inteira, derrubando por terra o edifício do século XIX, desse caos surgia a possibilidade de mudança, de construção de algo novo. 




O julgamento da I Guerra Mundial levou Tillich à compreensão de que não se pode divinizar nenhuma construção política. Mas ao se fazer o julgamento da guerra, também se faz o julgamento das possibilidades humanas. Ora, tal julgamento tem um aspecto positivo, que Tillich chamará de kairós: é um momento de graça onde a possibilidade humana se torna plena de força divina. Mas este kairós é diferente das propostas apresentadas por aqueles socialismos que se posicionam a favor da guerra, pois o kairós aponta para a possibilidade de um mundo novo. E a esperança que ele gera é maior que a simples ilusão humana, pois esta esperança tem o próprio eterno por fundamento, já que aqui a graça gera o kairós. 




Herdeiro do pensamento alemão do século XIX, Paul Tillich é devedor do idealismo alemão, em especial de Hegel e Schelling, mas é a partir de 1919, na Alemanha destruída pela I Guerra Mundial que começa a trabalhar sobre a idéia de uma teologia da cultura. Para ele, cultura tem uma leitura diferente daquela que terá para a antropologia da segunda metade do século XIX, que inclui a produção humana em toda a sua riqueza e diversidade. Para ele, cultura é a produção da intelectualidade européia ilustrada. E por baixo das manifestações culturais específicas se faz presente a religião. Assim, a religião expressa o incondicional, dando margem a manifestações especiais, que se apresentam enquanto cultura. Daí seu interesse em manter um permanente diálogo com artistas, escritores e com o mundo social-democrata da época. Dessa maneira, durante toda sua vida Tillich será um teólogo da cultura e um filósofo da religião. 




Para Tillich, depois da I Guerra Mundial, era preciso abandonar aquele deus concebido pela teologia do século XIX e fazer o cristianismo responder aos problemas e às exigências contemporâneas. Assim, depois da guerra começou a repensar seu cristianismo e se aproximou do socialismo do Partido Social Democrata alemão. Conforme explica o próprio Tillich, ele poderia ter desenvolvido sua filosofia a partir da leitura de Nietzsche, mas a experiência da revolução alemã de 1918 dirigiu suas preocupações em direção a uma filosofia da história, a partir da sociologia e da politica. E seu estudo de Ernst Troeltsch (1865-1923) preparou a mudança de direção. 




Para definir os contornos do socialismo tillichiano em sua fase inicial devemos nos remeter a dois textos escritos nos dois anos subseqüentes à revolução de 1918, redigidos no calor da vitória revolucionária, e que se encontram em “Christianisme et socialisme I e II”. Embora esses textos não tenham a profundidade sistemática dos escritos socialistas dos anos 1920-30, eles procuram explicar de um ponto de vista teológico o papel da revolução que acabava de acontecer na Alemanha. Assim, em 1919, Tillich deu uma conferência pública cujo conteúdo foi um esforço para dar fundamento teológico a um artigo que tinha escrito antes, onde dizia ser tarefa do cristianismo assegurar a unidade interior do ser humano futuro, através da construção de uma nova síntese entre a religião e a cultura. 




Na conferência afirmava que tal exigência estava fundamentada na radicalidade da teologia. A conferência recebeu o título de “Sobre a idéia de uma teologia da cultura”. Aqui Tillich empreende pela primeira vez uma definição da tarefa da teologia, no quadro das ciências da cultura. Ela aparece como ciência normativa, não por impor sua autoridade sobre as normas da conduta humana ou por traduzir o processo dos julgamentos de valor que esta conduta requer, mas porque está interessada em situações concretas, que constituem seu conteúdo. Ou, em outras palavras, ela é normativa porque é reveladora de sentido. 




A teologia, para Tillich, enquanto ciência do indivíduo deve partir do contexto histórico e cultural. Ele observa que as éticas teológicas anteriores tinham se dado como tarefa analisar as bases da vida moral, ou seja, a raiz concreta do indivíduo em sua comunidade. Mas, agora, no momento em que a teologia reconhece a existência de uma comunidade cultural externa à igreja, comunidade que constitui o horizonte imediato das decisões do indivíduo e que se enraíza numa cultura contemporânea global, a constituição de uma ética teológica pura não é mais possível: torna-se necessário elaborar uma teologia da cultura. 




Anos mais tarde, em janeiro de 1933, o nacional-socialismo chegava ao poder. Entre os anos de 1919 e 1924, Tillich tinha participado do Círculo Kairós, um grupo de reflexão sociológico, filosófico e teológico do socialismo. Entre os anos 1920 e 1927 ajudou a editar os Cadernos do Socialismo Religioso, e em 1929/30 os Novos Cadernos do Socialismo. Mas com o advento do nazismo ao poder, ele percebe que o socialismo havia nascido como kairós, com a reflexão contextual da revolução socialista, e deveria desaparecer com ela. Nesse contexto de ascensão do nazismo, de crise e derrota da revolução socialista, não se poderia esquecer o fato de que o julgamento divino se apresenta paradoxal porque declara absoluto, perfeito e santo aquilo que é relativo, imperfeito e pecador, o ser humano. Assim, partindo da teologia de Lutero e de seu conceito de salvação pela graça, Tillich faz uma nova abordagem da questão social na Alemanha e na Europa: aquilo que aparece como abismo da realidade, que reduz a nada o que existe, que coloca todas as coisas sob julgamento, tem um lado positivo. É possível afirmar que o contexto de julgamento pode levar a uma vontade de moldar o mundo de maneira imanente, momento do novo, quando o reino do eterno se faz presente no mundo. 




Fruto desses anos de reflexão e militância intelectual, Tillich formulou seu conceito de socialismo religioso e escreveu A Decisão Socialista, livro que foi queimado publicamente pelos nazistas em 1933. Se tivesse ficado na Alemanha, possivelmente Tillich tivesse terminado seus dias num campo de concentração, mas salvou-se ao aceitar o convite para lecionar na Universidade de Columbia e no Union Theological Seminary, em Nova York. 




No século XX, poucos teólogos tiveram tanta influência como Paul Tillich, que procurou responder às questões universais relacionando cultura e fé. Em termos teológicos sua pressuposição básica era de que a fé não é necessariamente inaceitável para a cultura e a cultura contemporânea não é necessariamente inaceitável para a fé. Buscou desenvolver uma teologia cujo método consistiu em relacionar fé e cultura, a fim de responder ao desafio de contextualizar a mensagem cristã num primeiro momento para a intelectualidade socialista e, posteriormente, para o ser humano contemporâneo. 




A cultura socialista no início do século XX via a religião como ópio, fator de alienação das massas. A contribuição de Tillich foi oferecer ao pensamento socialista, a partir de uma nova maneira de fazer teologia, respostas sobre o significado de vida. O que Tillich procurou demonstrar é que uma compreensão do eterno é consistente com a compreensão socialista do mundo, e o que o intelectual via como uma deficiência na construção das idéias cristãs, Tillich encarava como uma oportunidade de alcançar o conhecimento não-empírico. 




Se para pensador socialista a gênese do futuro repousava sobre a luta de classes, para Tillich o socialismo traduzia o clamor contra a desumanidade, era um protesto contra sociedade industrial, que substituía os seres humanos por máquinas, dilacerando-os nos dentes da engrenagem da produção e do consumo capitalistas. Se a tecnologia levava a isso, onde estava a esperança e a resposta ao descontentamento vivido por essas gerações? O elemento perdido nesse processo era o espírito. Assim, Tillich resgata Kierkegaard quando dá ênfase à potência da individualidade humana, à existência. O que deve ser encontrado só o será através de sua própria coragem interna. Dessa maneira, a pergunta fundamental de existência humana é: o que eu sou? E essa pergunta só pode ser respondida por aquele que pergunta. 




O intelecto permite um conhecimento do funcionamento do universo físico e das complexidades dos sistemas do macrocosmo. Antes de uma pessoa poder dominar as técnicas, a consciência do observador precisa conhecer o lugar dele no esquema das coisas. Porém para entender o conceito, a razão, é necessário entender a ontologia fundamental que expressa as condições de essência e existência. Por isso, a ontologia existencial em Tillich eleva a pergunta pelo ser e pelo não-ser à teologia, que pode responder à pergunta sobre o eterno a partir da luz que o não-ser reflete. O que Tillich apresentou ao mundo é um modo de unir verdades infinitas à uma cultura que parece desconsiderar a consistência histórica. O medo de um propósito perdido prevaleceu naquelas décadas de violência e destruição. Diante do equilíbrio perdido e da presença do caos permanente, Tillich redescobriu o equilíbrio e usou o presente como fogo que acende a pira. Para ele a chave está no espírito, pois sem poder criativo não há vida. 




O espírito é poder, assim como a razão, que se unem e transcendem. As obras de arte, a literatura e a poesia, a filosofia e a política são frutos não só da razão, mas também do espírito. São criações individuais, mas também universais da razão e do espírito. Em todo trabalho humano de relevo pode-se ver a profundidade do que é individual, a grandiosidade de algo único, que acontece, mas que não pode ser repetido, e que, não obstante, por atravessar os séculos é universal, mas acessível ao conjunto dos seres humanos. 




Assim a teologia, enquanto conhecimento humano, particular, mas também universal, traduz-se enquanto maneira de busca do transcendente. A distância entre a fé e cultura, através da teologia, deve ser estreitada para que o ser humano possa resistir à tentação de que apenas o que é físico e material é o padrão maior da civilização. A teologia da cultura de Tillich é um marco para aqueles que investigam a espiritualidade humana aparentemente perdida, isto porque o mundo tecnológico não pode ser compreendido em profundidade sem a admissão de que a espiritualidade faz parte do conhecimento e busca do gênero humano. Assim, o fundamento da teologia da cultura está no fato de que a ontologia da cultura é um desdobramento da ontologia do ser humano. 




Na direção desse fundamento está a pergunta sobre a unidade ontológica da cultura: qual o princípio antropológico da criação cultural? Quando dizemos que o ser humano é o único animal que cria seu próprio universo de significação é na cultura que vamos encontrar o ato e a forma da expressividade humana como ser histórico. O primeiro momento da reflexão teológica sobre a cultura consiste em assegurar, seja ao ato da criação cultural, seja na forma do seu objeto, a unidade que só pode ser pensada em oposição ao fluxo do tempo e à dispersão do espaço onde a experiência se situa. A unidade ontológica da cultura reside na relação dialética que vigora entre a estrutura transcendental do sujeito, que se manifesta no ato da criação cultural, e a idealidade transcendental da obra na cultura, manifestada num transpor do tempo e do espaço que lhe assegura perenidade simbólica. A teologia apresenta-se, então, como paradigma da ontologia da cultura, pois tematiza a transcendência do ato como interrogação sobre o que é, tanto no que se refere à idealidade da forma, como na objetividade do ser. 




A partir dessa leitura teológica da cultura, o resultado da relação entre a politica e a fé cristã levou Tillich a um sofisticado sistema de pensamento, onde a teologia da cultura tornou-se algo especial dentro da história da teologia. Talvez, pudéssemos falar de uma teologia sociopolítica, ou mesmo de uma teologia do socialismo, já que a concepção teológica de Tillich parte de uma leitura sociológica e histórica, e de uma análise crítica. 




Para ele, a relação entre teologia e política nunca pode ser descrita apenas pela conjunção “e”, mesmo quando um movimento político está fundamentado numa concepção de mundo. Nesse caso, duas atitudes são possíveis: pode-se ver a política sob o ângulo da luta pelo poder e seu objetivo estratégico; ou pode-se levar em conta as pretensões desse grupo político em encarnar uma concepção de mundo e submeter suas pretensões ao tribunal das categorias teológicas. Neste caso, não estamos falando mais de política, mas de "teologia política". Em outras palavras, há um setor da teologia da cultura, que a teologia não pode esquecer se quiser manter a exigência da incondicionalidade da mensagem cristã. 




Segundo Eberhard Amelung, que foi orientado por Tillich em sua tese de doutorado, em Harvard, os principais conceitos desenvolvidos com o socialismo religioso, como kairós, o tempo bom, e teonomia, a autoridade de lei divina, são fruto da leitura da situação histórica dos anos 1920 na Alemanha. Dessa maneira, para Amelung, o compromisso socialista religioso de Tillich constitui a matriz de sua teologia da cultura, e possivelmente de toda a sua teologia. 




O socialismo significou muito mais para Tillich do que apenas militância num partido político. Traduzia, em última instância, o novo destino de Alemanha e da Europa. Para Tillich, uma pessoa só poderia falar de um compromisso sem reservas com este novo tempo, se falasse também em compromisso com as idéias socialistas. E para ele socialismo era movimento socialista, enquanto tradução das diferentes realizações da mente socialista, ou da idéia socialista, como gostava de dizer. Mas este compromisso com as idéias socialistas era um compromisso crítico onde toda a realização concreta deveria ser examinada no contexto histórico daquilo que se buscava, a construção do destino humano. 




Assim, o método de correlação em Tillich parte de questionamentos filosóficos para formular perguntas à teologia, realizando uma construção a partir da ontologia existencial, enquanto estudo do ser, conceito que ele toma de Heidegger, que usou como base para discutir o não-ser, pois para ele a ansiedade do não-ser está presente em tudo que é finito. É natural aos seres humanos desejarem saber sobre seu próprio estado em relação ao ser, porque nas situações-limite têm consciência de sua finitude, transitoriedade e temporalidade: podem não-ser da mesma maneira que são. Na verdade, não-ser faz parte da existência, porque todos estão diante da ameaça de não-ser em todo momento. A pergunta sobre o não-ser nos leva a outra pergunta: o que mantém os seres finitos. Tal poder não pode ser finito, pois poderiam não-ser da mesma forma que são. Isto levanta a questão daquilo que transcende, do infinito, do eterno. Para Tillich, a única maneira de entender o eterno parte da pergunta sobre o não-ser. A ontologia existencial apresenta a pergunta pelo ser/não-ser e a teologia esta desafiada a responder tal questão. Nem o filósofo, nem o teólogo podem evitar a questão ontológica. Mas Tillich não pára aí. Ele parte da simbologia cristã, culturalmente condicionada, que expressa a experiência da comunidade da fé, enquanto poder que se faz presente de um modo especial. 




Para Tillich, o símbolo se diferencia do signo no sentido de que o símbolo não se restringe em designar de maneira extrínseca e convencional um significado, mas possui enquanto significante um poder próprio, intrínseco, que lhe permite exprimir a realidade incondicional, última ou mais simplesmente o objeto buscado pelo pensamento ou pela ação humana. Um símbolo é religioso quando remete explicitamente ao incondicional. Graças aos símbolos, a fé pode se orientar de imediato em direção ao incondicionado. O símbolo é, então, um ponto de encontro da finitude humana com a infinitude divina. Ele nos abre um nível de realidade e de significação que não poderíamos descobrir, nem exprimir de outra forma. Assim, só o símbolo nos permite de fato exprimir o ato de fé no incondicional. A isso Tillich chamará de preocupação última, ultimate concern. Dessa maneira, Tillich apresentou à teologia uma teoria do símbolo como meio da comunicação fundamental da fé, de todos os atos humanos orientados para uma realidade transcendente ou sagrada. Probst agrega que a correlação autêntica significa o restabelecimento, a restauração, a reforma da relação do ser humano com o eterno, e que nenhuma aliança, mesmo sob a forma de uma sutil preparação, não pode prevalecer sobre o encontro com Cristo e a revelação especial do eternos nos escritos. 




A partir das discussões das idéias socialistas e do uso do método de correlação há uma outra questão que será fundamental na obra de Tillich. Ora, se para ele razão e revelação não são termos opostos, já que a revelação é a resposta às perguntas da razão, e também porque a razão não resiste à revelação, somos obrigados a ver em que sentido ele utiliza o conceito razão. 




O conceito razão relaciona-se a três outros: essência, existência e essencialização. A essência não é apenas aquilo que uma coisa é, mas também aquilo que faz com que uma coisa possa ser. Nesse sentido, essência é potencialidade, o poder de ser e a fonte de existência: origem do Ser. Mas também é o reino da cognição, do pensamento, impossível de penetrar. Pari passo à essência, Tillich fala do lógos, que correlaciona mente e realidade, tornando possível o conhecimento. Quando alguém compreende e fala sobre a realidade, faz juízos e define padrões, que são comuns aos outros seres humanos, se comunica. E quem possibilita a comunicação é o lógos. Assim, o lógos é a origem da razão e também do Ser. Mas, origem do Ser aqui não significa conhecimento a priori, mas estar colocado à parte do reino da finitude e por isso a origem do Ser só é conhecida por um ato de revelação. 




Já a existência refere-se ao que é finito, enquanto parte de seu verdadeiro ser. Quando Tillich fala de finitude apresenta sempre termos que se correlacionam: como heteronomia/ autonomia, formal/ emocional e estático/ dinâmico. A solução destes aparentes conflitos da existência se dá no reino da essência, fundamento do Ser, dos quais os seres humanos foram arrancados e por isso se encontram dependentes e alienados. Dessa maneira, para Tillich, existência é alienação. 




Ora, a essencialização traduz o movimento final da ontologia, que se traduz no Novo Ser, quando a existência realiza aquilo que devemos Ser, nossa essência. No cristianismo, o Novo Ser é o Cristo. A imagem do Cristo expressa o que o eterno quer que sejamos: o que os seres humanos são essencialmente e deveriam ser. Aquilo que todo ser humano é potencialmente foi expresso em Jesus, enquanto Cristo. Assim, a doutrina de salvação para Tillich é regeneração, a participação no Novo Ser, justificação, a aceitação do Novo Ser, e santificação, a transformação pelo Novo Ser. Com seu conceito de essencialização, Tillich subverteu a compreensão da existência e de seus conflitos, ao mostrar que servem para enriquecer o ser essencial. Ao voltar-se para o que é eterno, a existência é derrotada em sua reivindicação de ser positiva, ou seja, o eterno nega à finitude sua reivindicação de infinitude. Assim, Jesus, finito, tornou-se Cristo no seu auto-sacrifício e morte. Recusou a tentação demoníaca inerente à existência finita de reivindicar infinitude. 




Dessa maneira, a ontologia, através da análise da essência, existência e da essencialização, conduziu a uma releitura da compreensão do eterno na fé cristã. Por isso, Tillich, afirmou que o eterno não tem existência, já que ele é além da essência e da existência. Falar do eterno enquanto existência é negá-lo, porque existência é alienação e finitude, mas não enquanto relação mecânica e formal como creram Schelling e Kierkegaard, por ele criticados. Para Tillich há uma finitude essencial e uma alienação existencial. 




Por não entender a afirmação de Tillich, muitos religiosos o acusaram de ateu. Mas o que ele fez foi nos conduzir a uma compreensão de Deus além do deus existencial. Ora, o eterno, o fundamento do Ser, está além do reino da finitude, que relaciona ser/não ser, e por isso o eterno não pode ser um ser. Deus está além do reino finito. Tudo que se faz existência é corrompido por sua ambigüidade e finitude. Dessa maneira, as afirmações sobre o eterno são simbólicas, inclusive a afirmação de que Deus é o fundamento do ser. E embora se reivindique o conhecimento de Deus, o infinito, isso é impossível, pois quando Deus é trazido da essência para a existência, Deus é corrompido pela finitude e pela compreensão limitada. No reino da finitude é impossível conhecer plenamente quem Deus realmente é, pois o infinito não permanece infinito no reino finito. 




Nos textos intitulados Christentum und Sozialismus, Tillich nos dá um roteiro teórico para a leitura do socialismo. Como já dissemos, ao analisar o surgimento do socialismo, Tillich leva em conta aspectos históricos, assim como os grandes movimentos ideológicos que se estruturam a partir da Reforma. Tal metodologia é relevante para a compreensão do contexto a partir do qual ele constrói a sua leitura socialista, que tem por base a chamada a um posicionamento transcendente, de resistência ao impacto da catástrofe histórica, que deveria levar os cristãos a elaborar uma mensagem de esperança para o mundo. Nesse contexto, vai definir o ser humano moderno como autônomo, embora inseguro na sua autonomia. Isto levou a Igreja católica à tentativa de emancipá-lo através da submissão à hierarquia e à tradição. Mas na autonomia já foi experimentado algo e esta é uma experiência que une aquele que protesta àqueles com autonomia secular. 




O conceito de situação-limite, que se traduz como ameaça final à existência, é o diferencial do protestantismo. Essa expressão nasce em torno da justificação pela fé. A vida em liberdade significa a aceitação da exigência incondicional de realizar a verdade e fazer o bem. Tillich vê no reconhecimento da existência da situação-limite, que deve traduzir-se em julgamento e transformação, a diferença entre qualquer cristianismo que faça a defesa da hierarquia e da tradição e o princípio protestante. 




Poder formativo é o poder de criar formas, mas o protestantismo enquanto princípio é o protesto contra as formas. E protesto protestante só pode existir em relação à gestalt a qual pertence. Aqui gestalt é a estrutura total de uma realidade viva. A igreja deve expressar seu protesto por causa do caráter incondicional do divino e por causa do caráter concreto da situação histórica. Por isso, as teologias que não forem atingidas pela “teologia da crise” e que não perceberem a importância do não crítico e transformador não podem ser levadas a sério. Então, é o caso de perguntar: quais são os princípios do poder formativo do protestantismo? De que maneira a crítica e a criação poderão se unir? 




O protestantismo, enquanto princípio, deve viver na realidade da graça, e a luta dos reformadores não faria sentido se começassem a falar em estruturas sagradas da realidade. A hierarquia não pode se apoderar do direito à graça, levando os cristãos a se submeterem à autoridade na busca pela salvação. A fé é humana, mas não vem do humano, embora se realize no humano. A graça é pregada e assim vem a fé. Ter fé significa ser tomado e transformado pela graça. 




Quatro princípios são determinantes para as formas protestantes: (1) em todas as formas protestantes o elemento religioso deve se relacionar com o elemento secular e se deixar relacionar com ele; (2) em todas as formas protestantes o elemento eterno deve ser expresso em relação a situação presente, (3) em todas as formas protestantes a realidade da graça deve ser expressa com ousadia e risco; (4) e em todas as formas protestantes expressa-se necessariamente a atitude do realismo da fé. Por isso, o realismo religioso quer entender as coisas e os eventos em seu sentido religioso e na relação que tem com o transcendente, isto significa falar a respeito do eterno de tal maneira que não pareça mero objeto acima dos outros, nem simples símbolo, mas realmente real. O poder formativo do protestantismo age sempre quando a realidade é interpretada em relação com seu fundamento e seu sentido último. A justificação pela fé é, então, melhor entendida a partir da situação-limite. Para Tillich, sem uma relação universal com o mundo essencial a noção de vocação individual não é a medida correta para se construir uma ética. Ou seja, não se pode fundar uma ética protestante apenas sobre o terreno da individualidade. 




Numa conferência realizada em 1941, Tillich se perguntava se temos condições de falar de mudanças e de transformações éticas: será que os princípios fundamentais da moral permanecem os mesmos através dos tempos? Será que depois de milhares de anos, o decálogo guarda a mesma pertinência? Será que uma ética social hoje difere daquela do passado? Tillich considera que as duas respostas dadas a essas questões são insuficientes: tanto a que declara ser a ética absoluta e imutável, como aquela que considera a ética mutável e relativa, pois as duas conduzem a impasses. A primeira sucumbe às regras abstratas, distantes da realidade da vida das pessoas. A segunda deixa a ética ao sabor das flutuações da moda, não guia, nem dirige a existência humana, e não diz o que se deve ou não fazer: perdeu o seu caráter normativo. Por isso, a ética deve combinar uma performance fundamental com uma renovação permanente. Procura aplicar os mesmo valores em diferentes situações, mas, se nunca é exatamente a mesma, também não é inteiramente diferente. 




É importante entender que não existe uma interpretação absoluta do mundo da essência, fonte e razão de toda ética, já que essa essência não é uma grandeza estática, mas se realiza de forma dinâmica na existência. Por isso, não se pode subscrever nem a construção tomista de uma ética social absoluta, nem uma construção de tipo racionalista. Toda compreensão real da essência e como conseqüência toda ética real são concretas. Essa essência se situa no kairós, naquele momento temporal determinado, pleno. Sua universalidade comporta riscos concretos. Ela não se move num universal abstrato, separado do tempo e da situação atual. O que é válido tanto para o indivíduo, quanto para a consciência de um grupo social. Exatamente por isso, para Tillich, toda realidade essencial comporta dois aspectos: aquele que a traz de volta à sua origem, ao fundamento e abismo de todo ser; e um outro que indica seu caráter particular, sua inserção na finitude. 




A realização da essência deve se orientar em direção a ela própria, na medida em que essa manifestação de sua origem criativa remete ao que é eterno. Ela exprime o que lhe próprio, sua solidariedade no plano formal e sua finitude. Por isso, toda ética transporta ao eterno e ao mundo, que em última instância são o bem decisivo de nossa existência concreta. Dessa maneira, ao se posicionar por uma ética que parte da essência, se posiciona por uma ética da vida. A posição de Tillich sobre a ética se inscreve no quadro de que o pensamento se desenvolve sobre relações triangulares entre a religião, a cultura e a moralidade. É necessário existir um equilíbrio dinâmico entre estes três componentes: quando se ignora um ou se dá valor absoluto ao outro, desliza-se em direção ao demoníaco. A religião, a moralidade e a cultura para Tillich são três funções do espírito, que se originam de sua unidade essencial. Fundamentalmente, participam na estrutura do ser, mas, concretamente, há entre eles um equilíbrio dialético que pode ser rompido pelo ser humano. E tal compreensão leva-o estudar o desenvolvimento criativo e estratégico desta essência enquanto vida que brota na história, criadora do novo. 




O cristianismo, segundo o pensamento de Tillich, é em sua essência uma experiência transcendente ao nível da materialidade humana, uma experiência que acontece em todos os tempos e em todas as situações e é em si mesma independente de formas sociais e econômicas. Nesse sentido, o cristianismo não pode ser identificado com um tipo determinado de organização social, em detrimento de seu caráter transcendente e universal. Mas, ao mesmo tempo, o cristianismo é portador de poder e oferece à humanidade uma mensagem de vida, de conhecimento e de verdade, tanto para a pessoa como particularidade, como para a sociedade como um todo. Exatamente por isso, apresenta-se como capenga toda forma de cristianismo que se fecha na pura interioridade. Também não se pode dizer, conforme expõe Tillich, que o cristianismo é um movimento que mecanicamente parte da interioridade em direção à exterioridade, apropriando-se de formas culturais ou simplesmente passando ao largo delas. Na verdade, ele dá forma às expressões culturais e, concomitantemente, toma novas formas a partir delas. Dessa maneira, o cristianismo está ligado à interpenetração de formas de consciência filosófica, à experiência estética e ao ideal ético de pessoalidade e, logicamente, aos grandes modelos sociais e econômicos. 




Por isso, para Tillich, todas as questões políticas convergem para uma mesma questão: a humanidade deve ter origem nas profundezas de um novo conteúdo, onde será superada a oposição entre pessoa e massa. Onde um novo conteúdo será produto da graça e do destino. É sempre necessário perguntar pelas raízes do fenômeno, seja ele espiritual ou social. Muitas vezes tal pergunta mostra-se supérflua, principalmente quando um testemunho revela a integridade das raízes. Mas quando se apresentam distorções ou desvios, quando o testemunho congela ou a vida principia a desaparecer, então se torna necessário perguntar: quais são suas raízes? 




Assim, quando se levanta a pergunta pelas raízes do pensamento socialista, faz-se necessário ir mais fundo, porque o socialismo é um movimento de mão dupla: de oposição à sociedade burguesa, mas enquanto mediação uniu-se à sociedade burguesa na oposição às formas feudais e patriarcais de sociedade. Entender esta raiz do socialismo possibilita entender as raízes do pensamento político que lhe deram origem. Por isso, é necessário procurar pelas raízes do pensamento político no próprio ser humano. Para ele, sem uma imagem do ser humano, de suas forças e tensões, não se pode dizer nada sobre as fundações políticas do pensamento. Sem uma teoria do ser humano não se pode construir uma teoria das orientações políticas. 




Um dos conceitos trabalhados por Tillich é especialmente importante para a construção de nosso referencial teórico: o de socialismo religioso. O socialismo religioso, teorizado por Paul Tillich, parte da consideração de que as forças demoníacas da injustiça, do orgulho e da vontade de poder jamais serão completamente erradicadas da história. Como conseqüência, o socialismo religioso acredita que a corrupção da situação humana tem raízes mais profundas do que as meras estruturas históricas e sociológicas. Estão encravadas nas profundezas do coração humano. Para o socialismo religioso, por isso, o momento decisivo da história não foi o surgimento do proletariado, mas o novo sentido da vida na manifestação existencial do eterno. 




Essa é uma diferença central com o pensamento de Karl Marx e do marxismo posterior. Para Tillich, é tarefa do socialismo religioso fazer a crítica, trazer à tona as questões últimas e decisivas da sociedade. Assim, o socialismo religioso se faz radical e revolucionário, porque vê a crise social do ponto de vista do incondicionado e a partir do espírito crítico do profetismo e com os métodos do marxismo é capaz de entender e transcender o mundo atual. 




Em 1936, Tillich explicou sua visão do socialismo religioso dizendo que não é de surpreender que suas idéias anteriores sobre os papéis da religião e da cultura, sobre o profano e o sagrado, sobre a heteronomia e a autonomia fossem incorporadas à sua compreensão do socialismo religioso, que se tornou o ponto central de todo o seu pensamento. O socialismo forneceu a Tillich fundamentos teórico e prático, quando se esforçou para elaborar uma filosofia da história a partir da teonomia. Assim, ao analisar o conceito de tempo histórico, enquanto diferente dos tempos físico e biológico, desenvolveu um conceito de história, onde entrava um componente: o movimento em direção ao novo, que é por sua vez exigência e espera. Esse conteúdo do novo em direção à história, que se movimenta e que pode ser visto através dos acontecimentos, ele chamou de “centro da historia”. E agregou: “do ponto de vista cristão o centro é a aparição de Jesus, o Cristo”. 




Religião e política, para Paul Tillich, não são realidades estanques, isto porque as raízes do pensamento político não são apenas pensamentos. Pensamento político é a expressão de um ser político, de uma situação social. Não se pode entender o pensamento quando se subestimam as realidades sociais das quais vem o pensamento político. 




As raízes do pensamento político não podem agir com uma força igual em todo momento e em todo grupo. Um ou outro pode predominar, depende de uma situação social, grupos ou formas de dominação determinadas, pois dependem de estruturas culturais e psicológicas, da interação com a situação social objetiva. Assim, o primeiro referencial é o ser. Nesse sentido, Tillich trabalha com uma fenomenologia política quando analisa questões como o ser, a origem do pensamento político, enquanto mito, e a partir daí procura trazer à tona os elementos não reflexivos do pensamento político. E a questão do ser, presente na teologia, leva a uma antropologia existencial. Ora, a questão existencial é traspassada pela religião, que é a dimensão da profundidade, o espectro da profundidade na totalidade do espírito humano. 




O ser humano tem consciência de si mesmo, ou em outras palavras, distingue-se da natureza enquanto ser que se desdobra, tornando-se um ser consciente de si mesmo. A natureza ignora esta divisão. Por isso, o humano não é uma combinação de duas partes autônomas, tais como natureza e mente ou corpo e alma, mas um só ser, porém fendido em sua unidade. Estas determinações gerais levam a algumas considerações no que se refere à pesquisa do pensamento político. Elas negam qualquer dedução do pensamento político enquanto puro movimento de pensamento, de exigências ético-religiosas, ou considerações ditadas por determinada cosmovisão. 




O pensamento político vem do ser humano enquanto unidade. Está enraizada no ser e na sua consciência, mais precisamente em sua unidade indissolúvel. É por isso que não se pode entender um sistema de pensamento político sem contextualizar seu enraizamento no ser humano enquanto ser social, ou seja, da correlação de pulsões e interesses, dos constrangimentos e das aspirações constituintes do ser social. Mas também é impossível separar o ser de sua consciência, ou ver o pensamento político como simples subproduto do ser. Assim, a consciência estrutura todo o ser do homem, todo o ser social, em cada um de seus elementos, inclusive as sensações pulsantes mais primitivas. Quando se tenta desfazer laços passa-se ao largo da primeira e mais importante característica da essência humana, o que produz uma distorção no quadro geral que ele faz de si próprio, de que há uma consciência inadequada ao ser, uma falsa consciência, mas que não invalida a unidade do ser e da consciência. Isto porque, afirma, o conceito de falsa consciência não é possível quando a coisa que se designa é não conhecível. Assim, a consciência justa é uma consciência que emerge do ser e ao mesmo tempo o determina. Não pode ser uma coisa sem ser a outra, porque o humano é uma unidade na divisão, e desta unidade nascem as duas raízes de todo pensamento político. O ser humano se encontra enquanto realidade dada, assim como seu ambiente. Mas estar no mundo enquanto realidade significa que não vem de si mesmo, que não é sua própria origem. Conforme diz Heidegger, o humano é um ser lançado. Esta situação leva o ser humano a colocar-se o problema da fonte. O que mais tarde vai aparecer como questão filosófica. Mas tal discussão é uma construção, e o mito apresenta a primeira resposta, enquanto determinante para a discussão de conjunto. 




A origem é o que faz emergir. Este aparecimento dá lugar a algo novo, que não existiu antes, que produz uma consciência própria, diferente da origem. A realidade que somos está colocada, mas também é algo próprio. É uma tensão entre o ser-posto e o ser-próprio. Mas, a origem não nos liberta. Não se pode dizer que era e que não é mais. Constantemente somos puxados pela origem: ela nos faz emergir, nos segura firme. É ela que nos estabelece como algo, enquanto essência. Dessa maneira, ser-posto no mundo supõe caminhar para a morte. 




A concepção conservadora admite o surgimento do eterno no tempo, que repousa no passado. Por essa razão nega toda mudança, presente ou futura. A força dessa concepção repousa no fato de que considera o eterno como dado e não como resultado da ação cultural e religiosa do ser humano. 




Paul Tillich ao falar da plenitude do tempo no evento Jesus, explica a construção de sua concepção de kairós: um tempo carregado de tensão, de possibilidades e impossibilidades, qualitativo e rico de conteúdo. Nem tudo é possível sempre, nem tudo é verdade em todos os tempos, nem tudo é exigido em todo momento. Diversos mestres, diferentes poderes cósmicos, reinam em tempos diferentes, e o Senhor que triunfa sobre anjos e poderes, reina no tempo pleno de destino e de tensões, que se estende entre a Ressurreição e a Segunda vinda. Ele reina no tempo presente que, em sua essência, é diferente dos outros tempos do passado. É nessa viva e profunda consciência da história que está enraizada a idéia de kairós, e é a partir dela que deve ser elaborado o conceito de uma filosofia consciente da história. A concepção conservadora também reconhece o kairós, mas o situa no passado. Desconsidera que se aconteceu no passado como acontecimento único, é ele quem se revela em todos os sim e não do passado, do presente e futuro. Sob tal visão repousa o pensamento político conservador. Perdeu o sentido do kairós enquanto tempo além do tempo. 




O mito expressou com profunda riqueza este estado de coisas, com o testemunho de objetos e eventos nos quais o grupo humano percebe sua origem. Em todos os mitos ressoa a lei cíclica do nascimento e da morte. Todo o mito é mito da origem, responde à pergunta da providência e conta porque somos segurados na origem e estamos debaixo de seu império. A consciência mítica original é a raiz de todo o pensamento político conservador e romântico. A consciência mítica não apresenta a origem de forma abstrata, mas concreta, sob a forma de poderes originais determinados. A existência humana distinta e suas origens são diferentes, assim como o são os poderes da origem, percebidos no mito e atualizados no culto. Porém, é possível se descobrir presenças significantes dos poderes originais que têm uma grande importância política. 




Embora haja pontos de contato entre os conceitos expressos por Paul Tillich e o pensamento marxista, principalmente no que se refere à construção de um pensamento político conservador, é interessante ver as diferenças. Numa leitura dogmática do marxismo, o mito deve ser entendido enquanto conceito antropológico, no qual a narrativa é a solução imaginária para tensões, conflitos e contradições que não encontram caminhos para serem resolvidos no nível da realidade. 




Dessa maneira, o mito seria sempre falsa consciência. Mas o ser humano vai além do colocar-se como realidade dada, vai além do saber colocar-se diante do ciclo do nascimento e a morte. Faz a experiência de uma exigência que separou o imediato da vida e o leva a colocar-se diante da pergunta da providência uma outra pergunta: por que? Esta pergunta quebra o ciclo de uma maneira fundamental, eleva o ser humano acima da esfera do simples viver. Porque é a exigência de algo que não está aí, que tem que se tornar realidade. Quando se faz a experiência desse tipo de exigência não se está mais colado à origem. Vai-se além da afirmação do que já está. A exigência nomeia o que deve ser. E o que deve ser não é determinado com a afirmação daquilo que já é, disso que é, significa que tal exigência impôs ao ser humano o incondicional. O por que não está dentro dos limites da fonte. É o incondicionalmente novo. Através desse por que o ser humano deve alcançar algo de incondicionalmente novo. Este é o sentido da exigência, quando o humano, por ser dividido, faz esta experiência. Ele detém um conhecimento próprio, por isso é possível ir além da realidade, além daquilo que o cerca. Tal é a liberdade do ser humano: não que ele tenha uma vontade livre, mas não está preso, enquanto humano, ao que está dado. O ciclo do nascimento e morte foi quebrado, sua existência e sua ação não estão amarradas na simples propagação de sua origem. Quando esta consciência se impõe, são rasgados os laços da origem, o mito original está quebrado. A ruptura do mito original pela exigência incondicional é a raiz do pensamento político liberal, democrático e socialista. 




A concepção progressista considera o eterno um alvo infinito, existente em cada época, mas que não se apresenta enquanto revolução. Assim, os tempos tornam-se vazios, sem decisão, sem responsabilidade. Na concepção progressista existe uma tensão diante do que foi. Mas a consciência de que o alvo é inacessível a debilita e produz um compromisso continuado com o passado. A concepção progressista não oferece nenhuma opção ao que está dado. Transforma-se em progresso mitigado, em crítica pontual desprovida de tensão, onde não há nenhuma responsabilidade última. Este progresso mitigado é a atitude característica da sociedade burguesa. É um perigo que ameaça constantemente, é a supressão do não e do sim incondicionais, a supressão do anúncio da plenitude dos tempos. É o verdadeiro adversário do espírito crítico e transformador da práxis. A exigência que o ser humano faz na experiência diante do incondicional não é estranha a ele. Se fosse estranha à sua essência, não lhe seriam concernentes e ele não poderia discernir tal coisa como exigência. Se ela lhe toca é porque coloca diante de seus olhos sua essência enquanto exigência. Funda-se a incondicionalidade, a irrevogabilidade com que o dever-ser aborda o humano e exige ser afirmado por ele. Se a exigência é a própria essência do humano, então ela encontra seu fundamento na sua origem, e então a providência e o destino não pertencem a mundos diferentes. Ainda, diante do original, o que é requerido é o incondicionalmente novo. Assim, a origem é ambígua. Há nela uma separação entre origem verdadeira e a origem real. O que é realmente original não é o que é original de verdade. Dessa maneira, a realização da origem é esta exigência e este dever-ser pelo qual o humano é confrontado. O por que do ser humano é a realização da sua providência. A origem real é negada pela origem verdadeira; mas certamente, não é uma pura e simples negação. A origem real tem que levar à verdadeira, ela é sua expressão, mas também disfarce e distorção. A pura consciência mítica original ignora todas as ambigüidades da origem. É por isto que esta consciência está presa à origem e considera sacrilégio toda a ultrapassagem da origem. Só a consciência que, fazendo a experiência da exigência da incondicionalidade, se livra dos laços de origem e se apercebe da ambigüidade da origem. 




A exigência quer a realização da origem verdadeira. Porém o ser humano não recebe uma exigência incondicional. É no reencontro do eu e você que a exigência torna-se concreta. Seu conteúdo é reconhecido no você com a dignidade do eu, a dignidade para ser livre, portador da realização daquilo que apontada à origem. Reconhecer no você uma dignidade igual a do eu, isto é justiça. A exigência que nos arrasta à ambigüidade da origem é a exigência de justiça. A origem não rompida conduz a poderes em tensão que procuram a dominação e destroem um ao outro. Quando a origem é rompida vem o poder do ser, o declínio dos poderes que expiam e são julgados por seu sacrilégio, de acordo com a ordem do tempo, como já evocou a filosofia grega. A exigência incondicional da justiça nos coloca acima deste ciclo trágico. Diante do poder e da impotência do ser, opõe a justiça, a paz e a alegria que provem do dever-ser. Mas essa teoria de uma justiça criativa e incondicional não deve levar aquele que a pratica ao esquecimento das violências do passado, quando grupos se lançaram uns contra os outros, mas nos opormos a essas ações e outras semelhantes, pois o amor pode ir além da separação, não ignorando diferenças, mas dirigindo as partes aos valores mais elevados. 




Esse é o desafio da justiça criativa: trabalhar a partir das relações pessoais e comunitárias para sobrepujar os problemas do passado e as estruturas existentes, a fim de desenvolver novos modelos de relacionamento e criar leis novas que contribuam para unir as pessoas e os povos, e aumentar o poder. A justiça criativa constitui a última interrelação do amor, do poder e da justiça, mas podemos senti-la e mesmo experimentá-la de maneira fragmentária e momentânea, em meio às ambigüidades da vida. A justiça criativa põe em evidência o poder transformador do amor. Portanto, não há oposição entre justiça e poder, porque o dever-ser é a realização do ser. A justiça é o verdadeiro poder do ser. Nisto se torna realidade o que é apontado na origem. Na relação entre os dois elementos da existência humana e as duas raízes do pensamento político, a exigência predomina sobre a pura origem, e a justiça, sobre o puro poder do ser. A pergunta do por que é superior à da providência. O mito original não deve representar no pensamento político mais do que uma crença rompida, uma crença desvelada. Esse é o caminho da utopia. Sem o espírito utópico não há protesto, nem crítica profética. Para Tillich, esse espírito da práxis, crítico e transformador, profético, está envolvido na situação histórica concreta, tem coragem de decidir e colocar-se sob julgamento ao nível do particular, sem esquecer que sua relação aponta ao incondicional, e que o ponto mais elevado que é possível alcançar no tempo está submetido ao não. Por isso, o espírito crítico e transformador da práxis, profético, não deve perder a audácia do não e do sim concretos. 




Isto é verdade porque cada tensão orientada para adiante comporta uma representação daquilo que deve vir e de como se entende a realização desse ideal. A utopia está presente em todo agir incondicionalmente orientado à transformação do presente. A utopia quer realizar a eternidade no tempo, mas esquece que o eterno abala o tempo e todos seus conteúdos. É por isso que a utopia leva, necessariamente, à decepção. Progresso mitigado é o resultado da utopia revolucionária desencantada. 




A idéia do kairós nasce da discussão com a utopia. O kairós comporta a irrupção da eternidade no tempo, o caráter absolutamente decisivo deste instante histórico enquanto destino, mas tem a consciência de que não pode existir um estado de eternidade no tempo, a consciência de que o eterno é, em sua essência, aquele que faz a revolução no tempo, sem, contudo, fixar-se nele. Assim, a realização da visão profética se encontra além do tempo. Metodologicamente, toda transformação exige uma compreensão do momento vivido que vá além do meramente histórico, do aqui e agora. Deve projetar-se no futuro, deve entender que há no espírito profético da responsabilidade inelutável um choque entre este kairós e a utopia, que pensa poder fixar a eternidade no tempo presente. 




É a partir dessa compreensão do que significa o espírito da profecia no tempo presente, que voltamos ao kairós, mas agora com novos conteúdos, construído enquanto responsabilidade fundamental. Kairós significa tempo concluído, o instante concreto e, no sentido profético, a plenitude do tempo, a irrupção do eterno no tempo. Kairós não é um momento qualquer, uma parte do curso temporal: kairós é o tempo onde se completa aquilo que é absolutamente significativo, é o tempo do destino. Considerar uma época como um kairós, considerar o tempo como aquele de uma decisão inevitável é considerá-lo enquanto espírito da profecia. Tal desafio não pode ser resolvido por um homem ou por uma mulher, por mais que encarnem o espírito da profecia. O sujeito da transformação será, em última instância, a massa. 




Essas duas raízes do pensamento político mantêm entre elas uma relação que é mais do que simples justaposição. A exigência predomina na origem. Considerando as várias tendências políticas, não se pode supor que elas sejam atitudes humanas justificadas. Onde são requeridas decisões, o conceito tradicional de realidade não é aplicável, diferente de quando estamos diante de uma exigência do incondicional. 




Ninguém pode entender o socialismo se não experimentar a exigência de sua justiça como uma exigência do incondicional. Quem não é confrontado pelo socialismo não pode falar do socialismo, a não ser enquanto expressão que vem do exterior. Não pode falar dele porque é contrário às tendências políticas que defende. Aí está o nó da origem. Mas, todo sistema político requer autoridade, não só no sentido de possuir instrumentos de força, mais também em termos de consentimento tácito das pessoas. Tal consentimento só é possível se o grupo que está no poder representa uma idéia poderosa, que goze de significado para todos. Existe, pois, na esfera política uma relação entre a autoridade e a autonomia. Toda estrutura política pressupõe poder e um grupo que o assume. Mas um grupo de poder é também um conglomerado de interesses opostos a outras unidades de interesses e sempre necessita uma correção. A democracia está justificada e é necessária na medida em que é um sistema que incorpora correções contra o uso errôneo da autoridade política. Assim, religião e política não são realidades estanques, porque as raízes do pensamento político não são apenas pensamentos. Religião e política estão imbricadas, mas não existem sem a necessidade de correção, ou seja, da democracia, enquanto grupo no poder. 




Para Tillich, o cristianismo tem mais afinidades com determinadas formas de organização social do que outras, pois tem por base uma ética calcada no amor, que possibilita um objetivo estável para os grandes desafios sociais: reunir o que está separado e mudar o que não deve ser. A separação toma diferentes formas através dos tempos, das relações e das circunstâncias. O amor deve, como conseqüência, partir da intuição criadora para superar a separação. Não pode se contentar com velhas receitas, deve imaginar sempre novas soluções. Não pode ficar preso aos mandamentos, as leis, as regras, e embora parta delas e seja inspirado por elas, deve modificá-las e atualizá-las em função das novas situações que se apresentam. A ética do amor leva o cristianismo a ter uma postura crítica diante da ordem social que se apóia na opressão e na exclusão social: faz a crítica da ordem social que está erigida sobre o egoísmo político/econômico, e proclama a necessidade de uma nova ordem, na qual o sentido de comunidade seja o fundamento da organização social. O amor denuncia o egoísmo da economia das multinacionais e dos governos que servem à elas, que levam à expropriação de muitos em benefício de poucos, e propõe uma economia solidária onde a alegria não seja fruto do ganho, mas do próprio trabalho. E condena o egoísmo de classe, onde cada qual procura enriquecer através da exploração de seu próximo, e as conseqüências desse processo, como o privilégio da educação para uma elite. Mas nega também a afirmação da luta de classes enquanto princípio e propõe a supressão das classes, o fim dos privilégios na educação e da exploração de setores profissionais por outros. 




O amor condena também o egoísmo do comércio e da força, que justifica a violência e a guerra sobre povos, nações e continentes. Assim, a ética do amor prega a submissão dos povos, sejam ricos ou pobres, à idéia do direito, e à construção de uma consciência comunitária, soldada sobre a paz, que leve a um internacionalismo real entre as nacionalidades. Muitos dirão que eliminar o egoísmo como forma de estímulo econômico, afirma Tillich, diminuirá o desenvolvimento e reduzirá a produção. No entanto, para ele, a partir do amor, vemos que o ser humano não foi criado para a produção, mas a produção para suprir necessidades humanas e que, por isso, o objetivo da economia não é a produção da maior quantidade possível de bens para uma classe em particular e sim a produção de bens necessários à vida para o maior número de pessoas. 




Para Tillich, na história, uma ruptura espiritual vem sempre associada a uma ruptura econômica, da mesma maneira que um processo de unidade espiritual vem associado a um processo de unidade econômica. A alma dessa unidade espiritual é a religião. O fracionamento espiritual característico de determinadas épocas traduz fracionamento econômico, distanciamento e choque entre classes. E naquelas épocas em que temos um processo cultural de unidade temos também uma nova base de unidade e solidariedade social e econômica. Nesse sentido, há um processo de desenvolvimento que se realiza de forma desigual na história, mas que combina mudanças espirituais e transformações econômicas e sociais. Diante de tais circunstâncias, para Tillich, o cristianismo está eticamente obrigado a fazer uma escolha: ou participa do processo, inspirando e atuando a favor desse desenvolvimento ou se retrai e entra em processo de caducidade, ao afastar-se da vida real das comunidades nas quais está inserido. 




Em artigo publicado em Das neue Deutschland, em 1919, Tillich disse que o socialismo é o produto da evolução espiritual e econômica, que foi lentamente preparado e que se impõe com a Renascença, a Reforma e no surgimento do capitalismo. Visão que é compartida por teóricos marxistas, como Gramsci, por exemplo. Assim, o socialismo surge em oposição à cultura autoritária e unitária da Idade Média, sedimenta suas bases nas criações culturais dos últimos séculos, e só pode ser compreendido a partir desta evolução: sua permanência está ligada a esse desenvolvimento. Mas não devemos esquecer, porém, que é do interior do cristianismo que brota o socialismo e aqueles que defendem o socialismo devem defender também os princípios sobre os quais ele repousa. 




A organização espiritual e econômica da Idade Média estava fundada sobre um sistema de centralização da autoridade que associava a natureza e o sobrenatural numa unidade poderosa. Ou, como diz Costa, não distinguia aparência de essência. Ela era a substância mesma do que significava viver. Foi o romanticismo de Rousseau, a educação burguesa e a invenção do “homem trabalhador” que reduziram a sociabilidade em dois domínios separados: um domínio afetivo, interpessoal, no qual podemos ser sinceros e honestos, e um domínio público, impessoal, no qual dissimulamos o que sentimos para melhor exercer a função de cidadão. Mas foi a Reforma, sustentada pela visão humanista que surgiu com a Renascença, que golpeou o sistema de autoridade, trouxe a fé para o plano formal ao recorrer à autoridade das Escrituras e no plano material valorizou a subjetividade da consciência individual. E a Revolução francesa, em 1789, propôs ao mundo um novo tipo de sociedade. 




A França tornou-se o primeiro país da Europa a viver uma realidade politico-social até então inédita, que transformaria de alto a baixo a vida da Igreja cristã. Na verdade, a Igreja já tinha vivido crises, como a da Reforma protestante, mas mesmo esta tinha acontecido no âmbito da consciência cristã. Agora, a partir da Revolução surgia uma sociedade que não tinha como fundamento as evidências ou afirmações de fé da Igreja. Ao contrário, a França e, por extensão, a Europa escolhiam o caminho oposto, da secularização, que tem por base o ideal triplo de liberdade, igualdade e fraternidade. Nesse caso, a nova sociedade buscou uma razão cujos ideais aparentemente eram estranhos à revelação. 




Apoiado formalmente sobre as Escrituras, o protestantismo eclesiástico engendrou novas contradições, mas o sistema centralizado de autoridade já estava em frangalhos. Coube ao indivíduo decidir a que grupo ele queria ligar-se. Por causa das guerras religiosas, essa realidade viveu um processo lento, transmitindo a cada lado a esperança de que poderia chegar a uma vitória exclusiva. Mas com o fim dos combates o que se viu foi que as oposições às confissões se tornaram permanentes. Dessa maneira, brotou o espírito autônomo nos mais variados campos: a consciência européia ocidental se tornou adulta, atacou as muralhas autoritárias das confissões e não deixou subsistir sob o solo protestante nada mais que os destroços do constrangimento autoritário. Para Tillich, o pensamento cartesiano deu um golpe decisivo no autoritarismo eclesiástico ao afirmar que a certeza que eu tenho de mim mesmo é o princípio de toda certeza objetiva. Embora a autoridade não possa me livrar da dúvida, é em mim mesmo, somente, que se enraíza a certeza. Assim, no século XVIII uma profunda mudança de mentalidade teve lugar na cultura européia, que foi dominada por um apaixonado desejo de felicidade, de confiança no progresso sem limites e em projetos para transformar o ser humano e a sociedade. Nesse processo, a autonomia da razão era olhada como fonte de tolerância e maturidade, e única norma para a liberdade. Tal mudança fixou aspirações e projetos, unidos ao sentimento de que o ser humano havia arrancado das mãos do eterno o conhecimento da natureza e a partir daí definiria a condução de seu próprio destino. 




O Iluminismo tirou suas conclusões: toda tradição deve ser submetida à crítica. Mas se o racionalismo levou ao Iluminismo, possibilitou também o surgimento de novos movimentos religiosos, como o pietismo, que surgiu na Europa continental. O pietismo levou a um novo interesse pelo estudo das Escrituras, pela ação e função do Espírito Santo, gerando um avivamento da igreja luterana na Morávia. Este avivamento alastrou-se pelo continente, pela Inglaterra e chegou aos Estados Unidos. O conde de Zinzendorf (1700-1760) e o teólogo August Spangensberg, assim como o pietismo morávio de conjunto, influenciaram John Wesley (1793-1791), fundador do Metodismo e um dos líderes do avivamento na Inglaterra. Assim, a partir do Iluminismo, no domínio espiritual, político, econômico, nada ficou de positivo que não fosse pensado, confrontado com a consciência pensante, medido e negado. Os sistemas de fé, as formas de Estado, as definições econômicas sofreram o assalto da autonomia, que não teve nenhum respeito pelas autoridades estabelecidas. Lamentou-se a perda do sistema de autoridade ou festejou-se tal acontecimento como um passo em direção à maturidade cultural. De todas as maneiras, deu-se o reconhecimento de que a vida cultural não pode ser pensada sem autonomia. Líderes e camponeses tiveram o mesmo sentimento, conquistar a liberdade das mãos do autoritarismo irracional, fosse ele imanente ou transcendente. Esse é um fato fundamental que o cristianismo deve levar em conta. 




Do lado positivo, a autonomia significou o reinado da razão. Pela primeira vez, depois de um milênio e meio, a razão humana não via limites para seu poder. Através da análise ela penetrou as profundezas da vida cultural e social, simultaneamente, e através da síntese dos elementos descobertos apresentava um sistema novo, racional. O pensamento moderno, que surgiu com o fim da Guerra dos Trinta Anos na Europa continental e da revolução puritana na Inglaterra, deu origem à filosofia racionalista, à ciência empírica e ao formalismo religioso. Este último, durante quase um século predominou no Velho Mundo e na jovem América. Para entender o empirismo e o racionalismo é importante notar que a partir do final da Idade Média o conhecimento científico começou a desenvolver-se numa velocidade até então desconhecida. Nicolau Copérnico (1473-1543), Galileu Galilei (1564-1642), Francis Bacon (1561-1626), René Descartes (1596-1650), Sir Isaac Newton (1642-1727), John Locke (1632-1704) foram cientistas e filósofos que mudaram a maneira do mundo pensar. Cada vez mais, o mundo buscava as razões naturais, compreensíveis à razão. O universo deixava de ser um desconhecido e tornava-se máquina movida por leis mensuráveis. Depois de séculos de arbítrio, os homens foram possuídos por uma vontade de dar forma ao mundo de maneira racional. 




Mas também a vida econômica deve ser formulada racionalmente. Não é o prazer de certos indivíduos ou povos que deve fazer a lei, mas é a humanidade inteira, que é sujeito e objeto dos processos econômicos, quem deve fazê-lo a partir de critérios racionais. A mesma autonomia que substituiu a autoridade, a partir da razão precisa construir um mundo sem arbítrio. Eis um segundo fato que o cristianismo não pode esquecer. Mas, explica Tillich, sem dúvida foi Marx quem introduziu o pensamento histórico objetivo do idealismo alemão no socialismo, ao dizer que a razão precisa ser separada da decisão humana e colocada ao nível das necessidades objetivas. O processo dialético é racional e a fé nele é uma fé na razão: uma fé que adquire uma força enorme graças à sua amarração metafísica objetiva e que se tornaria o dogma fundamental de milhões de pessoas. 




Foi o processo da própria história que fez o mundo conformar-se à razão e levou este combate a tornar-se vitorioso. E foi essa vitória que deu cara ao mundo que conhecemos como moderno. Para Tillich, a fé na razão está fundamentada sobre os resultados conquistados pela ciência da natureza. Mas atrás da ciência da natureza veio a cultura moderna. Preparada de várias maneiras a partir do fim da Idade Média, ela surge com uma força irresistível na Renascença e conduziu a uma afirmação alegre deste mundo, que durante muito tempo foi negado e rebaixado por um outro mundo, sombrio e místico. Os outros mundos empalideceram diante da validade universal das leis da natureza, diante da beleza do real redescoberta na arte, diante da consciência de unidade do finito e do infinito na filosofia da natureza. É assim que a imanência ressoa no humanismo e na filosofia das Luzes, com Goethe e no idealismo alemão, da mesma maneira que o socialismo se une à consciência da autonomia e à fé do poder formador da razão na construção de um sentimento unitário da vida e do mundo. Este é o terceiro fato que o cristianismo deve levar em conta. 




Se o socialismo é, nesse sentido, uma herança da cultura universal, ele tem, no entanto, uma originalidade que não se restringe aos conceitos, mas à experiência vivida. O conceito de humanidade, diz Tillich, que manifesta a vitória da ideia de tolerância, não teve na evolução da burguesia mais que uma realização acidental. A consciência da humanidade é neutralizada pela consciência de classe, educação e de dependência nacional. A humanidade se colocou antes de tudo no campo das confissões, sob formas absolutamente contrárias à idéia de uma transformação racional do mundo. Foi somente pela pressão sobre os trabalhadores nos primeiros decênios do moderno capitalismo, que nasceu uma consciência solidária, no coração da qual está presente o sentimento universal de humanidade, que se opõe àquele que vê no ser humano um meio e não um fim. O combate contra o feudalismo, o capitalismo, o nacionalismo, assim como as confissões constituem a expressão negativa da consciência incondicional de humanidade, que derruba barreiras e reconhece o humano em cada pessoa. Este é o quarto fato que o cristianismo deve levar em conta. 




O que fica claro é que autonomia e socialismo são processos históricos que se complementam, mas que não são idênticos. O processo de autonomia vivido pela sociedade européia no período que se abre a partir do Iluminismo e que põe em xeque a tradição e o autoritarismo, servirá de base para a ação socialista. E a autonomia será o momento supremo da razão e da imanência e é a partir daí que o socialismo vai construir um sentimento unitário da vida e do mundo. A luta dos trabalhadores contra a alienação e exclusão social vai gerar consciência solidária e sentimento universal de humanidade. Mas, ainda assim, ao se limitar ao campo da autonomia, sem uma atitude que permita à incondicionalidade apoderar-se da própria autonomia, o socialismo deixa aberto o caminho para o autoritarismo e o arbítrio. Assim os elementos formadores do movimento socialista são fundamentais para a compreensão das relações entre cristianismo e socialismo. Eles abrem a possibilidade para um diálogo construtivo entre cristianismo e socialismo. 




A pergunta sobre as possíveis relações entre protestantismo e socialismo exige definições sobre a religião cristã e o socialismo. Não podemos esquecer que ambas correntes de pensamento sofreram diferentes interpretações, que derivaram dos diferentes usos que se fizeram de ambas. Em nome do cristianismo foram violados e esquecidos os direitos mais elementares dos seres humanos nas diferentes fases da história. O mesmo aconteceu com o socialismo. Talvez por isso tenha sido tão difícil estabelecer um diálogo entre ambas concepções. Porém, tanto na história do cristianismo, como na história do socialismo moderno há características coincidentes. Claro que não é de nosso interesse nesta tese analisar as duas histórias, mas é necessário realçar os elementos que estão presentes nessas duas maneiras de pensar, em especial, a crença na capacidade do ser humano para transformar sua própria realidade. Assim, a questão humana é uma das linhas condutoras desse diálogo possível. Mas tal diálogo deve ir além do ser humano abstrato para pousar sobre o companheiro histórico que faz sua história e se revela quando confrontado com a alienação e a opressão. 




Quando falamos do cristianismo temos que entender sua antropologia, que apresenta o ser humano como transformador e revolucionário, tradição que remonta ao judaísmo antigo. A partir da recuperação da tradição profética é possível entender a antropologia cristã enquanto procura da emancipação humana. A leitura social dos textos antigos, que descrevem movimentos proféticos, são rastros que remetem ao reino de Deus na terra, que segundo Tillich, não somente tornam existencial a reflexão teológica, mas apresentam a salvação e a fé como imperativos ontológicos. 




Mas aqueles sistemas religiosos erigidos sobre o princípio da autoridade centralizada, só podem se opor a um movimento autônomo como o socialismo. Pois, são opostos na medida em que tal sistema se afirma enquanto sistema de autoridade. Eles se colocam como opostos mesmo quando tal sistema aceita as exigências do socialismo em matéria de economia política. Para o catolicismo da Contra-Reforma continua a ser determinante a ética social de Tomás de Aquino, estabelecida de maneira autoritária. Ela permite uma ampla margem de manobra, mas a unidade desse catolicismo impõe limites bem definidos, que uma doutrina econômica autônoma tem dificuldades de reconhecer. Da mesma maneira, o protestantismo, embora tenha quebrado o sistema de autoridade em seu princípio-base e dado voz à autonomia, erra ao considerar a partir de uma leitura heterônoma as palavras de Jesus. Do ponto de vista histórico, os fatos não são simples, porque Jesus não levantou, de fato, nenhum esboço de programa de reforma social, embora, convencido da revolução iminente do reino de Deus tenha apresentado aos seus discípulos as conseqüências do mandamento do amor. Sobre essa relação que envolve reino de Deus e justiça, Tillich dirá que “o fim está limitado à eternidade e nenhuma imaginação pode atingir o eternal. Mas antecipações fragmentárias são possíveis. A própria Igreja é uma antecipação fragmentária. E há grupos e movimentos, que embora não pertençam à Igreja visível, representam algo que podemos chamar de Igreja latente. Mas nem a Igreja visível, nem a Igreja latente são o reino de Deus”. 




Por isso, deve-se reconhecer que no terreno da autonomia, a justiça social, a paz, assim como a alegria não dependem de sua conformidade às Escrituras, mesmo quando são apresentadas sob a autoridade das palavras de Jesus. Para Tillich, o socialismo pode ter por base, num determinado contexto, um sólido apoio psicológico a seu favor, enquanto convicção pessoal, que não nasce da autoridade imposta. Para ele, quando os laços do cristianismo e do socialismo estão fundamentados a partir da heteronomia sobre as palavras de Jesus ou das Escrituras, não há um protestantismo autêntico, mas uma legalidade sectária. Isto porque o protestantismo como essência é autônomo. 




Seja qual for a opinião sobre a relação entre cristianismo, capitalismo e socialismo, um fato deve ser ressaltado: é possível e necessário para o cristianismo manter um relacionamento com todas as formações econômicas e sociais, em especial com o socialismo, já que a rejeição do princípio socialista em nome do cristianismo contradiz a universalidade do cristianismo. E se o cristianismo não somente pode, mas deve manter um relacionamento com o socialismo, devemos nos perguntar se o contrário da premissa é verdadeiro: pode e deve o socialismo ter um relacionamento construtivo com o cristianismo? Embora, haja razões históricas para criticar a Igreja, o socialismo erra quando nega a existência da base solidária e comunitária do ideal cristão, tal como pode ser percebida na pregação do Jesus apresentado nos Evangelhos. Quer dizer, ainda há em setores do socialismo uma hostilidade contra o cristianismo. Hostilidade esta que fere a ética socialista, tão próxima daquela proposta pelas comunidades cristãs dos primeiros séculos. Se as idéias socialistas não traduzem nenhuma oposição essencial, de princípio, com o cristianismo e com a Igreja que vive o princípio protestante, os cristãos podem sem nenhum temor ter uma atitude positiva em relação ao socialismo. 




Atitude positiva deve ser entendida como a realização do princípio do amor cristão, que entende a necessidade de eliminar as condições que geram miséria e exclusão. Tal atitude traduz a urgência de combater os fundamentos do egoísmo econômico e de ações para a construção de uma outra ordem social, que sem deixar de ser globalizada, inclua periféricos e excluídos. Isto porque o socialismo não é só tarefa e necessidade de operários e trabalhadores fabris, mas um ideal ético que traduz anseios e esperanças dos mais variados setores da sociedade. Ou, nas palavras de Tillich: 




O socialismo que nós queremos é aquele que coloca na teoria e na pratica a pergunta pela possibilidade de que a vida tenha sentido para todas as pessoas e todos os grupos da sociedade. Esse socialismo procura responder a essa pergunta tanto no plano da realidade como no do pensamento. Um tal socialismo é mais que um simples movimento político, e mais que um simples movimento proletário. É um movimento que procura apreender cada aspecto de vida e cada grupo da sociedade. Tem uma pretensão universal que não exclui ninguém. Quando tomamos isso em sua profundidade última, também é necessário tomá-lo em sua universalidade. Deve então tornar-se o fundamento da ação espiritual de transformação política, quer dizer a ação que leva a tudo aquilo que o socialismo pode ser. 




Para muitos, a concepção materialista da história nega a possibilidade dessa aproximação. Mas se entendemos que em Marx esta concepção de fato não é materialista, mas econômica, conforme afirma Tillich, vemos que ela mostra somente uma relação de causalidade entre fundamento econômico e organização espiritual da cultura. E, ao contrário, tal fundamento dá as ciências do espírito uma possibilidade metodológica fecunda, que não tem nada a ver com ateísmo ou materialismo. As doutrinas de Marx sempre foram discutidas com seriedade como parte da fundamentação teórica do socialismo religioso. E na maioria dos casos, como resultado disso, muitos religiosos rejeitaram o marxismo, enquanto outros o aceitaram parcialmente ou até mesmo transformaram essencialmente as doutrinas de Marx. Mas para Tillich, é importante que a fé enquanto experiência da incondicionalidade apóie a vontade de dar forma ao mundo e a livre do vazio de uma simples tecnificação do mundo. Assim, o espírito religioso estaria vivo no movimento socialista, enquanto vibração religiosa que circula através das comunidades. E essa santificação da vida cultural no socialismo, para o teólogo, é uma herança cristã, que lhe transmite coragem e vida. 




Ao buscar as raízes antropológicas do socialismo, Tillich achou um aliado nos textos do jovem Marx, especialmente nos Manuscritos econômico-filosóficos de 1844, publicados por J. P. Mayer e Siegfried Landshut, dois colaboradores do Neue Blätter für den Sozialismus, jornal socialista religioso co-editado por Tillich. Ele descobriu o Marx humanista, que contrasta com o Marx da maturidade, voltado para a leitura econômica da realidade. Porém, resistiu à tendência de lançar um contra o outro, afirmando que o Marx real deve ser visto no contexto de seu próprio desenvolvimento. Mas, há uma razão para se fazer a crítica teológica de Marx, e esta é exatamente a impressionante analogia estrutural existente entre a interpretação profética e a interpretação marxista da história. Para Tillich, a resistência ao impacto da catástrofe histórica é tarefa profética, que deve elaborar uma mensagem consciente, de esperança. Nesse sentido, o princípio profético envolve um julgamento e relaciona este julgamento com a situação humana inteira, não deixando de lado nenhum aspecto da existência. O espírito crítico da profecia leva, sob o capitalismo, ao princípio da autonomia protestante. O que fica óbvio, em situações-limite, que ameaçam à vida. E porque a situação do proletariado não é algo opcional, que podemos considerar ou não; Tillich diz que devemos nos perguntar, se “o socialismo não representa certo tipo religioso especial, originado no profetismo judaico que transcende o mundo dado e vive na expectativa de uma ‘nova terra’ — simbolizada na sociedade sem classes, numa época de justiça e paz”. E eu diria de alegria. 




O princípio profético e Marx partem de interpretações capazes de ver sentido na história. Para essas duas leituras da realidade, a história vai na direção de um alvo, cuja realização dará sentido a todos os eventos vividos. E se a história tem um fim, tem também um começo e um centro, onde o sentido da vida se torna visível e possibilita a tarefa de interpretação, tanto do profeta como do militante socialista. Assim, para o profetismo e para o pensamento neo-marxista, o conteúdo básico da história encontra-se na luta entre o bem e o mal. As forças do mal são identificadas como injustiça, mas podem ser derrotadas. Esta interpretação cria nos dois casos certa atmosfera escatológica, visível na tensão da expectativa e no direcionamento para o futuro, coisa que falta completamente em todos os tipos de religião sacramental e mística. O profetismo e o marxismo atacam a ordem vigente da sociedade e a piedade pessoal como expressões do mal universal num período específico. Ora, há um desafio ético, apaixonado, como afirma Tillich, das formas concretas de injustiça, que levanta um protesto, o punho ameaçador, contra aqueles que são responsáveis por este estado de coisas. Assim, o espírito profético e Marx colocam os grupos governantes sob o julgamento da história e proclamam a destruição desses grupos. Tanto o profetismo como o pensamento neo-marxista acreditam que a transição do atual estágio da história em direção a uma época de plena realização se dará através de uma série de eventos catastróficos, que culminará com o estabelecimento de um reino de paz e justiça. Dessa maneira, o espírito profético e o marxismo são portadores do destino histórico da humanidade e agem como instrumento desse destino por meio de atos livres, já que a liberdade não contradiz o destino histórico. Mas, a analogia estrutural entre o espírito profético e o pensamento de Marx não se limita à interpretação histórica, mas se estende à própria doutrina do homem. É uma semelhança, inclusive, que vai além de uma cosmovisão profética do homem, que se apresenta como doutrina cristã do homem. 




O ser humano, para Marx, não é o que deveria ser, sua existência real contradiz seu ser essencial. Marx nos Manuscritos econômico-filosóficos de 1844 escreve: "quanto mais produz o operário com seu trabalho, mais o mundo objetivo, estranho que ele cria em torno de si, torna-se poderoso, mais ele empobrece, mais pobre torna-se seu mundo interior e menos ele possui de seu". Ao partir de sua preocupação central, o estudo da economia política de seu tempo, Marx diz que "a miséria do operário está em razão inversa do poder e da grandeza de sua produção". Mais produz, maior é a sua miséria. Assim, a produção não faz apenas do ser humano mercadoria (a mercadoria humana), mas o faz também ser espiritual e fisicamente desumanizado... Se o desenvolvimento das forças produtivas ao mesmo tempo em que desenvolve as possibilidades humanas cria a reprodução da desumanidade, evidenciam-se os limites antropológicos e existenciais de tal desenvolvimento, já que toda relação social não se dará apenas através de uma elevação espiritual, mas de movimentos que deixam em aberto as possibilidades para a própria destruição do humano. A idéia da queda está presente no marxismo. Já que se o ser humano não caiu de um estado de bondade original, caiu de um estado de inocência primária. Alienou-se de si mesmo, de sua humanidade. Transformou-se em objeto, instrumento de lucro e quantidade de força de trabalho. 




Para o cristianismo, como sabemos, o ser humano alienou-se de seu destino divino, perdeu a dignidade de seu ser, separou-se de seus semelhantes, por causa do orgulho, da desesperança, do poder. O cristianismo e o pensamento marxista concordam que é inviável determinar a existência humana de cima para baixo, por isso a existência histórica é determinante na construção da antropologia. A analogia entre cristianismo e marxismo vai mais longe ainda. Vêem o ser humano como ser social, e que por isso o bem e o mal praticados não estão separados de sua existência social. O indivíduo não escapa dessa situação. Faz parte do mundo caído, não importando se a queda se expressa em termos religiosos ou sociológicos. Tem a possibilidade de fazer parte do novo mundo, não importando se o concebemos em termos de transformação supra-histórica ou infra-histórica. Dessa maneira, a idéia de verdade tanto no cristianismo como no marxismo vai além da separação entre teoria e prática. Ou seja, a verdade para ser conhecida deve ser feita. Vive-se a verdade. Sem a transformação da realidade não se conhece a realidade. Donde a capacidade de conhecimento depende da situação de conhecimento em que se está. E apoiando-se no apóstolo Paulo, Tillich explica que só o “homem espiritual” consegue julgar todas as coisas, da mesma maneira aquele que participa da luta do “grupo eleito” contra a sociedade de classe consegue entender o verdadeiro caráter do ser. Assim, com a deformação da existência histórica, praticamente em todas as esferas, torna-se muito difícil a percepção da condição humana e do próprio ser, por isso a presença da igreja e do proletariado na luta é o lugar onde a verdade tem mais condições de ser aceita e vivida. 




O auto-engano e a produção de ideologias surge como inevitáveis em nossas sociedades carentes de sentido, a não ser naqueles pequenos grupos que enfrentam suprema angústia, desespero e falta de sentido. A verdade então aparece e pode ser vivida, porque os véus ideológicos foram rasgados. Mas, alerta Tillich, a verdade pode se transformar num instrumento de orgulho religioso ou de vontade de poder político. Em tudo isso o cristianismo e o marxismo estão juntos em oposição ao otimismo pelagiano ou de harmonia em relação à natureza humana. 




Segundo Tillich, não podemos ver o pensamento de Marx como se fosse uma coisa do passado, quando aceitamos o espírito profético enquanto socialistas religiosos. O socialismo religioso se quiser continuar a ter sentido não pode se transformar numa justificativa ideológica das atuais democracias, nem num idealismo progressivo ou num sistema de harmonia autônoma. O socialismo religioso dentro do espírito do profetismo e com os métodos do marxismo é capaz de entender e transcender o mundo atual. Mas até que ponto a metodologia marxista e uma hipotética conquista do poder político poderiam dar sentido à vida? Na verdade, por ser marxista, tal metodologia não entende que a corrupção também está localizada nas profundezas do coração humano. Por isso, o alerta de Tillich, sobre as diferenças entre espírito profético e marxismo, cresce em importância e deve ser ressaltado. 




O socialismo religioso, diz Tillich, sempre entendeu que as forças demoníacas da injustiça e da vontade de poder jamais serão plenamente erradicadas da cena histórica. O socialismo religioso acredita que a corrupção da situação humana tem raízes mais profundas do que as meras estruturas históricas e sociológicas. Estão encravadas nas profundezas do coração humano. “Como Kierkegaard, Marx fala da situação alienada do homem na estrutura social da sociedade burguesa. Empregava a palavra alienação (entfremdung) não do ponto de vista individual, mas social. Segundo Hegel essa alienação significa a incursão do Espírito absoluto na natureza, distanciando-se de si mesmo. Para Kierkegaard era a queda do homem, a transição, por meio de um salto, da inocência para o conhecimento e para a tragédia. Para Marx era a estrutura da sociedade capitalista”. Por isso, considera que a regeneração da humanidade não é possível apenas mediante mudanças políticas, mas requer mudanças na atitude das pessoas em favor da vida. Assim, para o socialismo religioso, o momento decisivo da história não é o surgimento do proletariado, mas o aparecimento do novo sentido da vida na manifestação existencial de Deus. Essa diferença tem extrema importância, mas de nenhuma maneira – pensa o teólogo -- impede a inclusão de elementos básicos da doutrina marxista da história e do ser humano no cristianismo profético. 




Quanto às organizações socialistas, é necessário ver que têm uma atitude em relação ao cristianismo e uma outra em relação às estruturas hierárquicas da Igreja. A história da Igreja tanto no passado, como no presente, é passível de muitas críticas. Suas opções e alianças fizeram como que se afastasse e dificultasse seu relacionamento com parte da população excluída de bens e possibilidades. Tal situação facilita e potencializa a pregação do ateísmo e do materialismo. Mas, ao contrário do que pode parecer, não podemos dizer que o ateísmo materialista seja um fenômeno constitutivo do socialismo. Para Tillich, é uma herança da cultura burguesa, crítica e cética. Essa herança foi adotada pelo socialismo sob a crença de que ajudaria a extirpar a idéia de opressão e abriria o caminho para a construção de um novo mundo, mais justo e digno. 




Para Paul Tillich em Masse et Esprit, Études de philosophie de la masse, a palavra massa transformou-se em slogan político e social, e em expressão que conota superioridade e idolatria. Por isso, quando se deseja discutir seriamente o conceito massa é necessário definir seus contornos e esfriar um pouco a fervura do slogan. 




Segundo Tillich há dois conceitos de massa, um formal e outro material, o primeiro de ordem psicológica e sociológica e o segundo de ordem histórica e social. Em termos formais, a massa consiste numa associação de pessoas que, na associação, deixam de ser indivíduos. Sua individualidade se perde e ele se submete à coletividade. A pessoa se torna um átomo, desprovido de suas qualidades, seu movimento próprio, e se transforma em pura quantidade subordinada ao movimento da massa. Através da psicologia das massas pode-se ver como a alma perde sua forma individualizada uma vez que toma a forma da massa e como o indivíduo entra em contradição com ele próprio, já que é um átomo da massa ou um ser bem singularizado. 




Tillich considera que no movimento psíquico da massa alguns elementos se separam e se isolam, adquirindo eficiências por eles próprios. Isto porque um indivíduo é o resultado de uma longa evolução interior e sua alma está ligada por milhares de liames à vida da alma em sua totalidade, que assim torna-se autônoma. Na massa, as forças de inibição, de reflexão e os matizes caducam. Tudo se transforma. Assim, podemos resumir essas transformações em duas leis. A lei da imediaticidade, segundo a qual a massa não reflete, mas é. Ela tem uma existência objetiva, não subjetiva como afirmou Hegel, ela é em si, não para si. A massa não sabe porque ela faz aquilo que faz. Quando acede a ela própria é sempre através de certos indivíduos, um orador ou chefe. A massa é imediata, vive inteiramente o presente, sem ligações com o passado ou o futuro, sem lembranças ou reflexões. Suas motivações são irracionais. Mas para Tillich, a lei da imediaticidade, do agir aqui e agora, explica o desabrochar dos instintos biológicos imediatos, que estavam inibidos. Também mostra a existência de um princípio espiritual imediato que se faz presente, que pode ser traduzido como o abandono ao instinto do momento em direção à disponibilidade da revelação espiritual do presente, revelação de uma espiritualidade subjetiva impura. Ou seja, a irracionalidade das motivações pode dirigir ao irracional de baixo, à demência, ou ao irracional de cima, à novidade criadora. 




A outra lei da psicologia das massas, segundo Tillich, é a lei da amplificação. Se a vida espiritual do indivíduo perde suas inibições, se tal fato se repete em cada indivíduo presente, como num alternador, o vivido por um, suscita em outro experiência idêntica, porque a massa vivencia ela própria o ser massa. Essa lei nos leva a dois aspectos da vida da alma, o aspecto emocional e o aspecto intelectual. Em todo movimento da massa podemos observar a força do entusiasmo, a amplificação das paixões, da coragem, que podem levar ao seu sacrifício e destruição. Do lado intelectual, a lei da amplificação age de forma mais discreta, porque o processo de reflexão não convém à massa por causa de sua complexidade. 




De certo ponto de vista, explica Tillich, o indivíduo está mais alerta que a massa, mas a massa pode se elevar bem acima das consciências subjetivas, com suas intuições mais simples, mas também maiores e também com sua clarividência disso, que prepara o espírito objetivo no momento presente. A amplificação pode levar ao monumental e ao heroísmo, mas também ao demoníaco e à destruição. E as intuições da massa podem se conformar ao espírito ou lhe ser refratário. As leis da psicologia das massas são leis naturais, afirma Tillich. Elas são sempre válidas e necessárias onde uma pluralidade se encontra reunida. Elas têm valor para todos os estamentos sociais, para um grupo de marginais, assim como para uma assembléia de nobres. Com ironia superior, elas regem uma reunião de convencidos individualistas, assim como explicam o sentimento de superioridade existente na palavra massa, quando usado como slogan. 




Segundo Paul Tillich, no conceito material de massa, a essência de um grupo determinado é ser essencialmente formado conforme a psicologia das massas. Por isso, no sentido histórico do termo, a massa, quer sejam classes ou ordens, raças ou círculos, partilha do destino de ser excluído de toda formação espiritual individual. Vemos, então, que para Tillich a imediaticidade da massa, do agir aqui e agora, faz com que desabroche nela instintos biológicos que estavam inibidos no indivíduo, o que traz à tona um princípio espiritual imediato: a disponibilidade à revelação espiritual do momento presente. Essa imediaticidade é o que leva a massa ao irracional de baixo, à demência, ou ao irracional de cima, à novidade criadora. No agir aqui e agora, como fruto da mediaticidade, os aspectos emocional e intelectual são amplificados. As forças do entusiasmo e da coragem são amplificadas de tal modo que podem levá-la ao sacrifício e destruição. Assim, a massa se eleva acima das consciências individuais com intuições simples, mas com clarividência disso. Este processo prepara o espírito objetivo no momento presente. Quando objetivamente a massa vive esse processo de espiritualização, nela, religião e cultura se misturam. A esse primeiro momento de evolução da massa Tillich chama de massa mística. 




No contexto geral de uma análise socialista, não se pode deixar de levar em conta que a evolução histórica dá nascimento a diferentes tipos de massa, conforme o modelo de desenvolvimento das relações entre religião e cultura. 




O primeiro estado, conforme explica Richard, consiste em uma unidade onde os dois ainda não se distinguem. Uma segunda etapa é marcada pela autonomia da cultura: assim, ela se diferencia mais e mais da religião, a ponto de gerar a secularidade moderna. Mas esta ruptura e separação são catastróficas tanto para a cultura como para a religião. E serão então superadas pela etapa final da teonomia, caracterizada pela presença de conteúdo religioso em todas as formas autônomas da cultura. Podemos facilmente reconhecer os elementos desse esquema na descrição que Tillich faz dos diferentes tipos de massa, diz Richard. A massa mística corresponde à religião de origem: é a fusão dos indivíduos numa única comunidade que engloba tudo. Vem em seguida a etapa da autonomia, onde os indivíduos se diferenciam cada vez mais da comunidade de origem, até tornarem-se completamente independentes e separados. Mas ainda é massa sem forma e cultura, que não se colocou em movimento e caminhou para um estado de individualização. Essa é o estado de massa técnica ou mecânica, característico da moderna sociedade industrializada. A partir daí surge a perspectiva de uma etapa final onde a massa e a individualidade pessoal formarão uma nova união, uma síntese nova, chamada massa orgânica, que corresponderá ao ideal da teonomia. Logicamente, nem sempre se caminhará em direção a este ideal: mas o tempo histórico que orienta nessa direção é o da massa dinâmica. 




Dessa maneira, para Tillich, a massa dinâmica é sempre revolucionária, não unicamente no sentido político do termo – inclusive este é o sentido menos freqüente --, mas sempre em um sentido de fé espiritual e social. É necessário que ela seja revolucionária, porque o sentido de seu movimento é precisamente ir além do estado de massa e todas as formas que são responsáveis por este regulamento. Assim, explica Richard, para Tillich o movimento da massa dinâmica parte da massa mecânica e é essencialmente um movimento de libertação: o movimento da massa dinâmica parte da massa mecânica, já existente ou em perigo de aparecer, e visa a supressão da massa, visa à massa orgânica, não importando que esse começo seja ou não atendido. 




Vemos aqui que Tillich tem uma compreensão diferente daquela de Gramsci, que entende a vanguarda enquanto intelectualidade orgânica, mas não vê a massa em processo dinâmico que pode levar ao surgimento de uma massa orgânica. Sem desejar nesta tese – já que este não é seu objetivo – fazer um confronto entre os dois pensadores, tocamos apenas no ponto que metodologicamente nos interessa: o espírito crítico da profecia, conforme vimos, não se limita ao profeta ou ao intelectual, é um processo maior que tem na massa orgânica uma dupla ação, de liderança da sociedade e de transformação da situação-limite. 




Na perspectiva do socialismo, Tillich não se limita à consideração da massa orgânica. Para ele, a passagem da heteronomia à autonomia e posteriormente à teonomia, que fazem parte da estrutura de sua teologia, constituem ciclos que se encontram em diversas épocas. Assim, os movimentos de massa dinâmica são encontrados no movimento religioso do cristianismo primitivo helenístico, no movimento político e racial da migração dos povos, no movimento espiritual e religioso da Reforma, no movimento econômico do socialismo. Embora esses movimentos possam ser encontrados em diversas épocas, também o são em diferentes esferas da cultura. Mas sempre como movimentos de libertação: a massa dinâmica é parteira de escravos oprimidos, de povos bárbaros excluídos, de leigos passivos, ou desses escravos livres que são os trabalhadores assalariados, sempre que a mecanização real ou ameaçadora deu lugar a um movimento que transbordou a história. 




A práxis solidária e o cristianismo social 




Devemos nos distanciar do marxismo lido a partir do ateísmo e do cristianismo que faz a legitimação da dominação. E a partir desse distanciamento, procurar definir caminhos para a militância política das comunidades cristãs. E aqui, sem dúvida, encontramos uma complementaridade fundamental e necessária ao pensar cristão: a atividade militante no interior das comunidades é motivada por diferentes razões, tanto a favor da legitimação da dominação, que pode ser chamada de cristianismo super/estrutural, como a favor do pensar crítico e transformador da práxis, ou seja, do cristianismo infra/estrutural. Entre os dois lados situa-se um amplo campo ambíguo, já que o cristianismo como instituição necessita tanto do organizador como do profeta. E é a partir da análise dessa ambiguidade que devemos traçar as questões centrais que envolvem realidade brasileira e dão forma à práxis do militante cristão. 




O momento pós-dialético é a afirmação da exterioridade: não é somente a negação da negação do sistema desde a afirmação da totalidade. É a superação da totalidade a partir da exterioridade daquele que nunca esteve dentro. O momento pós- dialético é crítico por isso: é a superação do método dialético negativo. Afirmar a exterioridade é realizar o impossível para o sistema, o imprevisível para a totalidade, aquilo que surge a partir da liberdade. Como consequência, o pós-dialético é prático: é uma economia e uma política que trabalham para a realização do outro, outro que nunca é solitário, mas tem o seu centro e fundamento na pessoa real. 




Discutir o cristianismo como infra/estrutura e super/estrutura é superar a visão de que as lutas de emancipação em solo brasileiro tiveram origem apenas em movimentos místicos, que se adaptaram e organizaram movimentos políticos ou retrocederam convertendo-se em cultos alienados no sentido mais limitado do termo. A religião é a primeira consciência que o ser humano tem de si mesmo, e as relações morais, do filho com os pais, do marido com a mulher, do irmão com o irmão, do amigo com o amigo, enfim do ser humano com seu próximo, são relações religiosas. 




O cristianismo, enquanto conjunto de mediações simbólicas e rituais, como doutrina explicativa do mundo e que se posiciona a partir da referência ao eterno, participa do fechamento do sistema sobre si mesmo. Essa totalidade do sistema é um processo de divinização, que cumpre a função de ocultar a dominação. A noção de cristianismo super/estrutural traduz esse processo de divinização do sistema: significa negar a história, a totalidade social, significa dar sentido negativo à dialética, negar processos que têm origem, crescimento e plenitude. A divinização leva a um outro processo, ao fetiche, que apresenta uma compreensão não histórica da totalidade social vigente. O fetiche consiste, então, na identificação da estrutura atual com a natureza, ou seja, ela está aí, está colocada por vontade divina. 




As massas, enquanto excluídas e passivas, vivem a ideologia das classes dominantes, pois o sistema apresenta de forma ambígua ideais utópicos que oferecem respostas às suas necessidades. Ao aceitar o cristianismo super/estrutural da classe dominante enquanto rito simbólico do triunfo dos dominadores e derrota dos dominados, as massas vivem sob a resignação passiva, a paciência derrotista e a humildade aparente. 




A miséria cristã é expressão da miséria real, entretanto, é também uma forma de protesto contra a miséria real. O cristianismo em nosso país é o suspiro da pessoa excluída, carente de sentido pleno de vida. A necessidade do cristianismo em abandonar as ilusões sobre sua própria situação é a exigência de que abandone uma situação que necessita de ilusões. Por isso, a crítica do cristianismo é a crítica do sofrimento enquanto expressão de santidade. A crítica do cristianismo não descarta as necessidades reais daqueles que carecem de bens e possibilidades. A crítica do cristianismo denuncia o mito da prosperidade mágica, para que o ser humano pense, para que atue e transforme sua realidade como pessoa consciente. 




A tarefa do político cristão social consiste em verificar a verdade que está aqui. E é tarefa do cristianismo solidário, que se encontra ao serviço da vida, uma vez que está desmascarada a santidade da auto-alienação humana, desmascarar a auto-alienação em suas formas não santas. De tal modo que a crítica do céu se transforme em crítica da terra, e a crítica do cristianismo em crítica da política. 




A expressão cristianismo infra-estrutural indica a anterioridade da responsabilidade prática que se tem com o excluído dentro do sistema. Essa anterioridade não diz respeito exclusivamente à super/estrutura de um sistema futuro, mas diz respeito também à sua infra/estrutura. O cristão transcende o sistema vigente de dominação e vê como sua responsabilidade o serviço ao excluído. O cristianismo nesse caso é a instauração de uma nova práxis. O fato de que a práxis cristã infra-estrutural possa se tornar super-estrutural não nega o fato de que o pensamento crítico e transformador da práxis continua a irromper na história. Essa presença de responsabilidade social com o excluído mostra a vigência do clamor crítico e transformador da práxis e funciona como freio das pressões alienadas e super-estruturais. 




O ateísmo, enquanto negação dessa necessidade de essencialidade, perde sentido, pois, ao negar o absoluto, afirma mediante a negação a existência do ser humano. Mas o cristianismo social não necessita dessa mediação, pois surge enquanto consciência sensível, teórica e prática do ser humano. É autoconsciência positiva do ser humano, não mediada pela superação do cristianismo, do mesmo modo que a vida real é realidade positiva para o ser humano, não mediada pela superação da propriedade privada. O cristianismo solidário surge como negação da negação da emancipação e da recuperação humana, é o princípio dinâmico do porvir, mas não é em si a finalidade do desenvolvimento humano, a forma última e única da sociedade humana. 




A militância cristã faz parte de uma luta mais ampla, onde o cristianismo infra/estrutural cumpre papel de aliado estratégico, levando o militante cristão a assumir tarefas, práxis nos níveis político, econômico e não apenas ideológico. O ateísmo, por isso, oculta, pois fecha as portas ao aliado estratégico, ao cristianismo infra-estrutural, que se fará presente enquanto houver pessoas obstinadas pela responsabilidade diante do excluído, sentido incondicional de justiça, esperança de um novo kairós. 




Assim, para o político cristão a história universal é produção humana a partir do trabalho humano, que transforma a natureza e produz o nascimento do ser humano em sociedade. É nesse processo permanente que o ser humano constrói sua essencialidade: do ser humano em direção ao ser humano, como essência da natureza, e da natureza para o humano, como existência humana. 




O êxito nesse processo depende das condições de possibilidade, ou seja, é impossível separar teoria e prática. Por isso, um pensar cristão social e solidário deve saber integrar os princípios enunciados na escolha de fins, meios, e métodos que devem levar à práxis crítica e transformadora do sujeito histórico, aqueles que estão excluídos do sistema-mundo. Este sistema-mundo ao impossibilitar a produção e reprodução da vida semeia doenças, fome, terror e morte. As vítimas são os seres humanos, cuja dignidade e vidas são destruídas. 




A globalidade excludente e a onda fascista que ameaça nações e povos leva ao assassinato em massa e ao suicídio coletivo. A práxis social e solidária enfrenta, hoje, de um lado o anarquismo contrário à instituição e de outro o reformismo pró-integração. Por isso, estratégia e tática devem ser enquadradas dentro de princípios gerais, ético e crítico, a fim de que de forma factual ético-crítica se possa negar as causas da negação do excluído. Essa é uma luta des/construtiva, que exige meios proporcionais àqueles contra os quais a luta é travada. Mas, se a práxis traduz uma ação des/construtiva, promove transformações construtivas: leva à um novo momento com base num programa planejado que é realizado progressivamente, mas nunca totalmente. 































II. A política 

como tradução do socialismo religioso 







Em 1968, estudantes, lembrando o velho dito judaico relido em Karl Marx, escreveram num muro de Paris: a história não se repete, gagueja. E eu releio tal dito pensando nos dias de hoje: a política não se repete, gagueja … O conflito interno do socialismo tem como ponto de partida a própria situação proletária. Donde, para se entender as contradições do socialismo devemos entender o conflito interno da condição proletária. Essa antinomia nos remete às forças que se digladiam internamente no proletariado. E é impossível resolver o problema teoricamente se não partirmos de uma síntese daquilo que de fato corresponde à realidade do movimento. Ou seja, o que Tillich se pergunta é se podemos saber até que ponto o proletariado tem consciência de seus conflitos internos e se pode ele mesmo chegar a uma solução deles. Se isso é verdadeiro e possível, então, ele tem condições suficientes para a solução não somente de seus conflitos, mas também daqueles presentes no socialismo. 




O conflito da situação proletária vem do fato de que o proletariado tem que se apoiar no princípio burguês e ao mesmo tempo deve se opor a esse princípio. Ou seja, o conflito tem por base o fato de que o proletariado deve ir além, sobrepujar o princípio burguês com os meios deste mesmo princípio. Esta oposição é inevitável, pois a existência proletária é a expressão conseqüente do princípio burguês: a objetivação, a reificação e a ruptura com sua própria origem estão presentes em sua existência. Então, o proletariado não pode reagir ao pensamento burguês inteiramente, com total liberdade e independência. Isto porque não se pode responder à reificação apenas com o ethos. Mas como então ele se rebela? Como se levanta e propõe o fim do pensamento e do regime burguês? No proletário há o ser humano real que reage, não o ser humano como é visto racionalmente, mas o que está ligado com a origem, com essa força que nos leva a resistir a cortar nossas raízes. Nem na natureza, nem na produção técnica mais refinada, não se encontra esse elemento de manutenção do poder interior que leva o ser humano a resistir a uma assimilação completa. Da mesma maneira, com maior razão, não há ser humano que se deixe desapropriar completamento daquilo que ele tem e daquilo que ele é. O que reage no proletário é esse romanticismo político que se levanta como princípio exclusivo do ser humano e da sociedade: a origem. 




Temos aqui outro ponto em comum com o princípio burguês. A única divergência entre os dois, é que o romanticismo político deseja acabar com o princípio burguês, acreditando que o socialismo pode substitui-lo. Nesse caso, parte da revolta do ser humano contra a desumanização do princípio burguês, e leva para o socialismo o romanticismo político como leitura comum da realidade. 




A burguesia sempre evitou cortar suas relações sociais e afetivas com a origem. Nunca foi até o fundo em seu próprio princípio. Por outro lado, o proletariado está forçado a isso por sua própria situação. Mas, pelas alianças que deve fazer, sempre se viu obrigado a esconder isso de si próprio, de seus aliados e de seus adversários, o que se constituiu num conflito interno permanente. Os teóricos socialistas não entenderam o que a burguesia sabe por instinto de classe, que o princípio analítico, racional, nunca pode agir como portador da fundação do ser individual ou social, mas apenas como norma crítica. A teoria socialista enfrentou esta dificuldade da seguinte maneira: por um lado diagnosticou a completo reificação do proletariado, o que significa que relacionou sua identidade humana de proletariado com a situação econômica de trabalhador assalariado, vendedor de força de trabalho. Mas por outro lado, fez desse proletário um ser puro, vanguarda e portador de uma ordem social nova. Não pode reconciliar estas duas afirmações. E por incrível que pareça o engano maior esta na primeira afirmação. A situação econômica não é suficiente para interpretar a situação humana. Ao contrário, no proletário há o ser humano que reage contra a situação econômica, há um ser proletário que a reificação não define e que se levanta em luta contra o princípio burguês. 




No movimento proletário está presente o ser humano proletário, que reaciona à ameaça de reificação econômica e de reificação completa do ser humano. Apesar da louvável intenção dos teóricos socialistas quando descrevem a situação proletária a partir da negatividade, eles, na verdade, deram aos adversários argumentos que apresentam o proletariado como destituído de força para conduzir uma luta revolucionária, sem o poder interior suficiente para construir uma sociedade nova. Porém esta leitura negativa da situação proletária muitas vezes se transforma em discurso do próprio proletariado. Por isso, devemos entender que movimento proletário é bem mais que luta política a favor do socialismo. 




Associados a essa luta, sem ser idênticos a ela, estão os movimentos de união, as associações de produtores e consumidores, os grupos religiosos, espirituais e de fins educacionais, enquanto subgrupos do proletariado, e as oposições e alianças de comunidades, os modos de relacionamentos entre sexos e gerações, há movimentos centrados na vida cotidiana, que definem atitudes frente o trabalho, o lazer, o amor, o destino, a morte. A isso estão somadas as tradições nacionais e regionais, que também repercutem na situação proletária. E há ainda as tendências ao aburguesamento, que, na verdade, não passam de uma aspiração nostálgica das pressões da origem. E, deve-se acrescentar, a isso as comunidades e seitas políticas e religiosas, os movimentos proletários de mocidade, e as várias expressões do impulso de luta: emulação e doutrinamento do exército, do qual faz parte a atitude com respeito ao corpo, à vida e à terra, que desembocam no heroísmo do proletariado e sua disposição para o sacrifício. 




A situação proletária mostra que a situação da existência humana está em contradição com o destino do ser humano. É por isso que o princípio protestante tem função especial na compreensão da situação humana quando se olha a partir da situação proletária, pois esta se apresenta como cisão demoníaca ou alienação Todos estes elementos estão imbricados à situação de classe e pela consciência socialista, mas também têm uma significação universal. Eles não são atributos de uma classe, mas fazem parte do conteúdo humano e estão presentes na história. O proletariado descobriu que esses elementos o ligam aos outros grupos humanos. Nele, os elementos originais do ser humano são realidade presente que o leva a uma luta a favor do ser humano, a uma recusa do princípio burguês. Não há uma oposição entre o proletariado e o desafio da origem. Assim, o movimento proletário repousa em forças originais, mas também sob um tipo, disforme, de princípio burguês. Esta situação é geradora do princípio socialista. 




A situação proletária, quando analisada a partir do princípio protestante, mostra que a miséria humana toca tanto o corpo como a alma. E o socialismo, por sua parte, lembra ao protestantismo que o dualismo platônico, idealista ou burguês, não corresponde nem à mensagem bíblica, nem à teologia de Lutero. Tillich diz que “o protestantismo esta livre para o materialismo proletário”. De sua parte, o princípio protestante diz ao socialismo que a miséria humana não é somente uma miséria socioeconômica. 




Os elementos que constituem o princípio socialista têm suas raízes no romanticismo político e na sociedade burguesa, da presença do princípio burguês na luta das classes, e do conflito interno do socialismo. Esses três elementos que levam ao socialismo traduzem sua força de origem, a quebra da harmonia e sua orientação para o que é requerido. No princípio socialista há um sim para o poder da origem, que pressupõe uma ruptura com o romanticismo, mas é também um sim para o princípio burguês, ruptura do mito de origem, enquanto exigência incondicional. E há um não para a fé burguesa na harmonia, problema metafísico do princípio burguês. Estes três momentos são organizados de tal modo que o sim ao princípio burguês rompe o original do romanticismo político, e o não à fé burguesa na harmonia abre um espaço que clareia as forças da origem. Os três momentos têm que ser unidos no conceito da espera, que por isso deixa de ser um conceito no sentido restrito e se torna um símbolo. Pelo símbolo da espera, o socialismo opõe mito original e fé numa nova harmonia. Inclui aspectos de um e de outro, mas vai além deles. Por isso, o princípio socialista e as forças que se acham embutidas nele não podem ser compreendidas sem o símbolo da espera. Esta conjunção dos três elementos do princípio socialista no símbolo de momentos e lugares de espera faz do movimento socialista um movimento profético. 




A profecia é um movimento histórico que fala radicalmente de uma segunda raiz do ser humano, que une os três momentos: o mito de origem, sob a forma da religião do pai; a ruptura com o mito de origem, através de uma exigência incondicional; e a realização do mito de origem, não em um presente interpretado em termos de harmonia, mas em um futuro prometido. Significa que o princípio socialista é profético através de seus conteúdos, que o socialismo é o movimento profético de um mundo onde o mito original foi quebrado e onde domina o princípio burguês. 




O socialismo é a profecia de um mundo autônomo. é fato histórico que o socialismo depende das seitas cristãs revolucionárias, que se conectam a ele através dos elementos proféticos do cristianismo primitivo. Ninguém entende o socialismo se omitir seu caráter profético. Como esquecer seu caráter autônomo das formas de vida e pensamento? Por isso fala-se de relógio da história, de tempo propício, porque por seu caráter profético o princípio socialista está ligado ao símbolo da espera. O termo espera leva a inúmeras imagens, mas o conceito opõe-se sem ambiguidades ao mito original e ao romanticismo político. A espera é tensão, orientação para ação de esperar, é processo que leva ao incondicionalmente novo, ao que não era, mas vai acontecer. Não está fora na propagação original entre nascimento e morte, é realização do ser. A ambigüidade da origem nos nega isso, e o romanticismo procura provar a existência de leis eternas para justificar sua própria existência. Mas leis eternas não existem. O ser humano é uma possibilidade nova em relação à natureza, e na história essa possibilidade nova torna-se realidade. Mas a história, reafirma o presente e nos projeta para o futuro. História é tensão diante daquilo que vem, é tensão diante dessa possibilidade de uma ordem nova de coisas. E é essa ordem nova que o profeta espera. Assim, em cada momento, a história nos lança para além dela, para aquilo que é incondicionalmente novo. 




A espera profética é um bem comum da fé cristã. Para o romanticismo político não foi tarefa fácil tentar eliminar isso. Alias, o romanticismo conservador sempre teve dificuldades quando tentou unir seu princípio burguês com o cristianismo. Sua pedra de tropeço é a espera, atitude fundamental do cristianismo primitivo. O romanticismo procurou então adaptar o elemento profético, sem suprimi-lo completamente. E fez isso separando a espera do fim e destino da alma individual do destino histórico e da transformação do mundo. As esperas individuais apontam para o próprio fim e realização de uma criatura nova. Mas tal coisa faz parte de um movimento de totalidade. A história é um círculo de círculos onde estão frente a frente a miséria humana e a graça divina, a espera do acontecimento de algo de fundamentalmente novo. Conclui-se toda espera aponta em direção a uma estruturação da realidade, onde o novo está além da história. 




Em Tillich, explica Higuet, “a espera surge como atitude espiritual na política. Enquanto símbolo de ruptura com o mito das origens dos políticos conservadores e com a autonomia da burguesia moderna, a espera socialista orienta-se para a realização do futuro prometido. O objeto da espera virá independentemente da ação humana – pois o sentido da vida irrompe incondicionalmente, a partir do seu próprio fundamento -, mas, ao mesmo tempo, é o que deve vir, o que é exigido e só pode realizar-se pela ação humana. Só quando guiados pela espera, o ser humano e a sociedade podem alcançar a sua realização, quebrando o domínio do mito originário: o poder do sangue, do solo, da raça ou do sagrado, produtor de violência e morte. Na espera, manifesta-se radicalmente até que ponto o presente contradiz a sua própria destinação”. 




A partir dessa leitura teológica do romanticismo, o socialismo se organiza como espera, pois reconhece as decepções da história. Ele sabe que não conta com um milagre que transformaria o ser humano e a realidade histórica. É interessante ver como essa perspectiva esta presente no pensamento socialista. Rosa Luxemburg em seu último escrito, datado de 14 de janeiro de 1919, diz a respeito da derrota do levante operário em Berlim: 




“(...) mas, inevitáveis derrotas são a melhor garantia da nossa vitória final... Claro que isso tudo entranha uma condição! E é a de sabermos em que circunstâncias teve lugar cada derrota, quer dizer, se esta foi o resultado de massas imaturas que se lançam à luta ou de uma ação revolucionária paralisada no seu interior pela indecisão, a mornidão e a falta de radicalismo. (...) As massas cumprirão a sua missão, porque fizeram desta nova “derrota” o elo que nos une legitimamente à cadeia histórica de “derrotas” que constituem o orgulho e a força do socialismo internacional. Podemos ter a certeza de que desta “derrota” também há de florescer a vitória definitiva. A ordem reina em Berlim!... Ah! Estúpidos e insensatos carrascos! Não repararam que a sua “ordem” está alicerçada sobre a areia. A revolução se levantará amanha vitoriosa e o terror se estampará em seus rostos ao ouvir anunciar sob trombetas: era, sou e serei!”  




Para o romanticismo político, as greves, assim como as ações proletárias são o caos ou a barbárie que quebram a harmonia do princípio burguês. Mas para o socialismo são momentos que fundamentam a espera, da mesma maneira que a profecia não renunciou apesar de decepções cruéis. Da mesma que a profecia não prediz eventos que logo acontecerão, ou uma predição prova ser verdadeira ou não pelo fato de realizar-se em curto prazo, o socialismo enquanto atitude profética supõe só uma coisa: a cada momento move a história para o novo, para o que é prometido. Mas como vemos em Tillich ou nas palavras de Luxemburgo, a espera não é uma atitude subjetiva. Acha-se fundada no mesmo impulso de tornar-se. é esse impulso que objetiva transformar a utopia em era de abundância. A realização não é um conceito meramente empírico. Quando reduzido a algo empírico gera a utopia e, com ela, a decepção por ter a espera como fim objetivo. A espera é passagem. É bem mais que o mito da origem ou que um esperado fim objetivo. Ao contrario, a espera não é coisa objetiva, mas a revolução do novo no velho. O socialismo tem um caráter profético porque vive tal atitude, mas como a profecia todas as vezes que ameaça chegar ao objetivo, derrapa na resignação ou na utopia. Orientado para o novo, a espera inclui dois momentos: o que é esperado é o que virá, porém o que virá não depende da ação humana. Mas o que é esperado é o que tem que vir, o que é requerido, porém o que não é requerido pode ser alcançado pela ação humana. É a tensão destes dois elementos aparentemente contraditórios que faz a profundidade do princípio socialista. Esta tensão faz extremamente difícil a construção da teoria socialista e confere à prática alta importância. O que caracteriza o caráter profético do socialismo é que o profeta requer e promete. 




O profeta relaciona a situação imediata a uma situação sem igual que nunca se apresentará sob essa forma, cujas exigências não se repetirão e cuja realização só acontecerá uma vez. O que é planejado, requer. A realidade orienta nesse sentido, um evento particular puxa para lá, uma constelação de fatos aponta nessa direção: pode ser alcançado, mas também não ser. Esta conjunção da exigência, assim como a promessa caracterizam a espera como profética. Isso determina a espera socialista, ela se caracteriza claramente como profética. É expressamente o caso da interpretação marxista do socialismo. Como a espera está esperando o que é requerido, ela é diferente da espera passiva, que de fato não está esperando. Até mesmo etimologicamente, há na espera mais que um olhar passivo. A espera inclui a ação. Sem a ação, a espera seria uma teoria fútil. 




A consciência inspirada pelo mito original requer e também age. Entretanto a exigência não é atitude profética socialista. No campo do mito original, a exigência aponta para a manutenção da origem, enquanto a ação procura alcançar aquilo que está nos limites do ciclo que, partindo da origem, volta à origem. A exigência não se move no sentido do novo, para o que está além da origem, mas confirma os poderes patriarcais e feudais da origem. A exigência profética socialista, pelo contrário, submete à sua crítica todos os poderes, grandes e pequenos. Por ultrapassar a origem não depende de qualquer poder estabelecido. Tal é o sentido de igualdade, da exigência de solidariedade na profecia e no socialismo. A exigência incondicional, que fala a cada um, faz todos semelhantes. Por isso, o poder perde toda a significação diante da exigência do sentido de igualdade. Isto porque no limite da existência o ser humano é desafiado à realização de seu destino. é isso que explica a valorização do fraco na profecia e no cristianismo. Pelas mesmas razões, daí parte a exigência de se tratar todo ser humano conforme sua destinação, de lhe permitir alcançar a abundância que lhe está proposta e sem a qual a humanidade como um todo caminha para a estagnação. O ideal do ser é a realização, mas isso não exclui a possibilidade do enfraquecimento extremo do ser, pelo contrário, abundância e fraqueza sempre se fazem presentes. é por isso que a profecia luta contra a opressão do pobre pelo poderoso e para que a injustiça não arraste pessoas ao abismo. E é pelo mesmo motivo que Marx se levanta contra a reificação do ser humano e a favor de um real humanismo. É por isso que o socialismo considera a situação proletária como crise da sociedade burguesa e como confrontação do romanticismo político. Esta luta contra a opressão não exclui, em muitos casos, o sacrifício das vidas daqueles que combatem, mas exclui todas as ideologias de dominação que procuram justificar a situação de excluídos e proletários. 




A origem esta associada à espera e a realização de seu objetivo de duas maneiras: a meta realiza o que a origem apontou, mas é com a espera que a origem obtém a força que lhe permite alcançar a realização de seu objetivo. Estes dois aspectos são importantes para o movimento socialista. O primeiro dá conteúdo à espera socialista, e o segundo indica o modo de sua realização. Esta união da origem com a espera abarca todos os modos de esperar: a espera mítica, a espera profética e a espera racional. Embora esteja ancorada na realidade, a espera mantém uma exigência que não diz nada àqueles a qual não se dirige, mas para aqueles que se interessam por aquilo que ela discerne, apresenta-se como promessa. Ou seja, ela é incompreensível para quem não a aceita. Exigência e promessa têm que interessar a aqueles a quem se dirige para que haja a possibilidade de realização, pois estes conhecem a ausência da abundância. No mito é discernida essa ausência de abundância como uma perda da realização original, que deve ser reencontrada. Para o pensamento conceitual, a ausência de abundância é o contingente, o não necessário, contra o qual se opõe. O mito e sua relação com a ausência de abundância se nutrem mutuamente. Devido a essa correspondência entre tempo primordial e tempo final, o que é esperado remete às características da origem, embora estas características sejam transformadas pelo movimento da história. Em todo caso, a realização não é extinção da origem. Isso também vale para o socialismo e sua espera. Mas agora, no socialismo, a realização não esta dirigida a um ser privado de origem, como se vê no princípio burguês. Não almeja um estado onde a consciência suprima o ser, pois a espera aponta à realização do ser, que deseja estar no controle do poder verdadeiro, com suas particularidades e tensões. Tal poder é o núcleo da exigência profética e socialista, e sua exigência combate os poderes míticos da origem. Por isso, na realização reaparece a origem, mas como realidade nova, transformada pela exigência que a submete. Esta conexão suprime o princípio burguês e possibilita o princípio socialista. Os poderes da origem justificam e limitam o princípio socialista. Deles procedem o conflito interno do socialismo. Em segundo lugar, a origem e a realização estão imbricadas de tal modo que o socialismo perde força e razão de existir se não se mover em direção àquilo que é requerido: o socialismo quando se transforma numa espécie de utopia torna-se impotente para enfrentar os poderes da sociedade. Se não se pergunta a respeito da promessa socialista, sua espera deixa de estar orientada em direção à realização. Aqui mito e conceito andam juntos. O mito para existir deve ser governado pelos poderes da origem. A tradição judaico-cristã expressa o mito através do símbolo da "providência" que se apresenta como aquilo que une o ser com o que deve ser. A idéia de providência expressa que aquilo que não é plenamente, não está tão distante do que deve ser, pois apesar de sua não completude, enquanto realização se move em direção ao ser. Assim, livre das amarras do mito, a idéia de providência procede, pois origem e destino são portadores de realização. 




Marx, afirma Tillich, viveu e denunciou a não completude do ser. A situação proletária revelou a alienação do sistema burguês, por isso Marx submeteu o sistema ao não e levantou a exigência de justiça. Ele devolveu à espera profética o papel que antes lhe era dado, de fé na providência, enquanto realização daquilo que é prometido. Para Tillich, Marx recusou a utopia de uma possível reforma do mundo, mas colocou a exigência incondicional da mudança na direção do que é requerido, de forma que a exigência não se torne abstrata e sem força. Em sua análise da sociedade capitalista confrontou aquilo que presumiu ser seu fundamento, sua base econômica produtiva. E considerou que estruturalmente o capitalismo tendia ao socialismo, a uma sociedade sem classes. Tendencialmente, parecia que a exigência socialista seria confirmada enquanto projeto de uma nova sociedade. A existência da luta proletária, de sua revolta inspirada no ideal humano calcado na exigência da justiça, denotava um movimento em direção à sociedade sem classes. Aparentemente, tais elementos bastavam para possibilitar a viabilidade do socialismo, que Marx analisou sob a forma de análises econômicas. Na última parte de sua vida ele se distanciou da questão humana e existencial, debruçando-se sobre a leitura econômica. Mas, sem a questão humana e existencial, a economia se faz abstrata, e, por outro lado, a questão humana e existencial sem a leitura econômica apresenta-se distorcida. O que se espera de um ser humano realizado ou, como disse o jovem Marx, de um real humanismo, é que a motivação científica deságüe em ações políticas. 




Para o princípio socialista, o segundo problema é a relação entre origem e meta, que leva o sentido da espera ao conceito de esperança, no seu sentido mais profundo. O socialismo é o movimento profético de um mundo autônomo e racional. A substância profética se expressa de uma maneira racional, no conhecimento como também na ação. Esta relação entre profecia e racionalidade é essencial ao socialismo. E aí residem a profundidade e também seus riscos. Por isso, o conflito interno do socialismo deve partir dos perigos que ameaçam o socialismo, tais como o romanticismo politico, que leva à negação da autonomia e da racionalidade. A relação entre a substância profética e a racionalidade são os dois lados da moeda no socialismo, e por isso nos levam a duas questões: uma em relação à meta, outra em relação ao tipo de socialismo. A partir de seu caráter profético, os movimentos da espera têm contextos semelhantes, são previsíveis e maleáveis, mas levam a uma criação nova, ao totalmente outro. Mas a partir de seu caráter racional, a espera apesar de seus contextos semelhantes, aponta para algo que já conhecemos, isto porque na espera há algo que se mantém enquanto continuidade com o presente. A espera profética é um ir além, a espera racional é o realizar agora. Por isso, os dois lados da moeda: a espera profética e a espera racional. A tensão destes dois momentos é incontestável, e sempre está presente na história. Mas a tensão não é oposição. O pensamento e a ação dos socialistas constituem a realidade que não permite que a tensão se torne oposição. Enquanto existir como movimento vivo não sofrerá de esclerose. Princípio socialista implica em ação e pensamento amplos, que não podem ser paralisados nem pela espera profética, nem pela espera racional. O ser humano real está além desta oposição. A espera humana sempre é sobre o ir além de aqui e agora, que estão debaixo do tempo. Para a espera não há nenhuma oposição nisso, ao contrario, é o fim de toda espera profética. Mas para que essa espera possa revelar-se pressupõe a transformação completa do presente, a abolição das leis naturais, o estar aqui abaixo, para poder ir além. Ou, o que vem está separado do presente por um acidente cósmico, está além. Os quadros que descrevem tal realidade vêm da experiência. Por isso, ir além é na verdade partir de baixo. Esses conteúdos estão presentes na espera socialista. E eles já estão presentes aqui embaixo como igualdade, liberdade, satisfação das necessidades. Quando lemos esta realidade a partir do princípio socialista descobrimos que espera supõe uma transformação radical da natureza humana e, a partir da natureza humana, a transformação da natureza e de suas leis. 




Assim, a espera socialista vai além da oposição do previsível e do imprevisível. A profecia conta com o milagre, mas também leva em consideração fatores históricos, políticos e sociais colocados enquanto necessidade para a concretização deste ou daquele evento. Da mesma maneira que a espera socialista é paradoxal, quando se observa a mudança contínua de fatores aparentemente previsíveis, as vezes favoráveis, as vezes desfavoráveis ao socialismo, em todos lugares, a vida real nos remete aquilo que se espera. O socialismo deseja a sociedade sem classes, como bem humano, que deve ir além do símbolo, como objeto daquilo que está em baixo. Por isso, tanto na espera profética como na espera socialista, a vida aponta para uma conquista fundamental e protesta contra as concepções que negam o ir além do que está aqui e agora. 




As dialéticas históricas são mais que nada símbolos da espera socialista. Em primeiro lugar, vemos que essas teorias que analisam a história e e as políticas que lhe dão forma não eliminam o destino que transcende o ser humano. A análise racional, ao contrario, inclui tal fato, enquanto elemento que permanece inacessível, não por sua complexidade, mas porque está presente na própria analise racional, como vimos no jovem Marx. Assim, a fé profética na providência não deixa de lado a analise dos detalhes da situação histórica real e de seus fatores. Uma consciência viva da história, calcada no princípio socialista, compreende tal unidade. O ser humano que age pressupõe, assim, a unidade na tensão do elemento profético e do elemento racional no socialismo, não enquanto contradição, mas expressão autêntica da espera, componente do ser socialista. Dessa maneira, o princípio socialista é a expressão conceitual do poder interior do movimento socialista. é a dynamis do socialismo, que de símbolo se tornou conceito. Por isto, só o princípio socialista tem condições de resolver as contradições do socialismo. Mas não podemos esquecer que a situação proletária revela que a situação humana permanece como situação de espera. O princípio protestante mostra que a realização da espera, enquanto instauração do reino de Deus, está próxima de cada kairós, mas que transcende e não pode realizar-se a não ser de maneira dialética. Assim, o princípio protestante nega a utopia que espera na história ou além da história uma realização completa da existência. O fim da história está sempre presente como verticalidade que corta a horizontalidade, mas que jamais poderá ser completada na horizontalidade. 




As fórmulas “pela graça somente”, “pela fé somente”, diz Tillich, transportam juntas vida e espírito no domínio do conhecimento e rejeitam todo legalismo, todo farisaísmo de ter a posse da verdade absoluta e de querer impor tal verdade aos outros. Através delas, a religião e o espírito autônomo podem tornar-se um, e é somente quando isso se dá que a autonomia se instala e é livrada de cair sob o arbítrio. Diante da decomposição da cultura burguesa, o socialismo propõe criar uma nova vida cultural e social unida sobre a base de uma economia unificada, mas isso só será possível se a autonomia caminhar em direção a uma teonomia, ou seja, uma atitude que permita à incondicionalidade apoderar-se incondicionalmente de todas as coisas. Este é um ponto sobre o qual cristianismo e socialismo devem se colocar de acordo, afirma Tillich. 




A idéia de dar forma racional ao mundo fez oposição à concepção do cristianismo que vê o mundo como essencialmente não divino e a razão como corrompida, e que vê a redenção não como ação que dá feitio ao mundo, e o conhecimento não como razão, mas como revelação. Nesses últimos séculos, a teologia protestante propôs-se a superar a oposição entre razão e revelação, através da idéia de uma história universal da revelação, humana e imanente ao espírito, que nada mais é que a história do espírito em geral e da religião em particular. Para Tillich, essa concepção ética-religiosa elaborada pela cultura protestante considerou que a pessoalidade livre e ética é impossível sem o fundamento natural de sua individualidade psíquica e corporal, com suas inevitáveis particularidades lógicas, fisiológicas e biológicas e que o valor da pessoalidade consiste em ir além, elevar-se acima dessa naturalidade. Tal concepção de mundo, que repousa sobre o absoluto, que aprofunda esta contradição entre o ser e o mérito, fundamento de toda liberdade moral, não é um estado ideal, pois será onírico, desprovido de liberdade verdadeira e de mérito interior. Assim, o cristianismo traduz uma vontade de dar forma ao mundo de maneira imanente: o reino de Deus vem ao mundo. Mas ao mesmo tempo tal concepção apresenta limitações: o dar feitio está situado no âmbito da técnica, não no da ética, no âmbito da categoria de meio e de fim e não dos juízos e do mérito. Fazer é técnica, mas a técnica não é o fim em si, não é um fim último. Mesmo que toda economia fosse uma produção racional, a organização jurídica englobasse todos os povos, a vida material estivesse livre do imprevisível, restaria ainda o mérito da pessoalidade, a revelação do espírito e a idéia criativa que traduzem graça e brotam das profundezas do fazer. 




É importante que a fé enquanto experiência da incondicionalidade apóie a vontade de dar forma ao mundo e a livre do vazio da tecnificação do mundo. Cristianismo e socialismo devem discutir esta questão. É com a experiência da imanência, explica Tillich, que surge claramente a oposição entre o socialismo e o cristianismo, já que o cristianismo está comprometido com o lá em cima, e o socialismo voltado para o aqui embaixo. Mas esta oposição não é correta. Lá onde se vive a profundidade última da experiência religiosa, onde a experiência da incondicionalidade com o sim e o não é pronunciada sobre todas as coisas e sobre todos os méritos, é onde acontece a supressão da oposição entre o em cima absoluto e o embaixo relativo. O termo profundidade é uma metáfora. Significa que o aspecto religioso aponta em direção àquilo que, na vida espiritual do ser humano, é último e incondicional. No sentido mais amplo, religião é esta preocupação última. Preocupação que se manifesta nas funções criativas do espírito humano, nas esferas da moral, do conhecimento, da estética, e no anelo de expressar um significado último. Por isso, quando alguém rechaça a religião em nome da função moral do espírito humano, em nome da função cognitiva do espírito humano, em nome da função estética do espírito humano, rechaça a religião em nome da própria religião. 




A religião, para Tillich, constitui a substância, o fundamento e a profundidade da vida espiritual do humano. Esse é o aspecto religioso do espírito humano. Assim, o sim e o não são pronunciados sobre o aqui embaixo, sobre a realidade. É no coração das pessoas que acontece a separação, o julgamento paradoxal que torna tudo absoluto e relativo, eterno e terrestre. Assim devemos entender a teologia do “somente pela fé”, que não admite nem perfeição absoluta, nem conhecimento absoluto, nem estado absoluto, mas que vê brotar o absoluto em todo relativo. Temos aqui o fundamento da compreensão positiva que o cristianismo nos dá sobre a questão da imanência. Mas também o cristianismo deve oferecer ao socialismo alguma coisa sem a qual ele não pode existir: a experiência vitoriosa da incondicionalidade em tudo que está condicionado, imanente, na totalidade do real. 




Existe uma atitude profana e uma atitude religiosa no olhar o mundo. Essas atitudes se tornam nulas num estado exclusivo. Pode-se conceber um fazer profano, a ciência, a arte, a moralidade, a vida jurídica e econômica, a política nacional e exterior e se pode concebê-las de maneira religiosa. Pode-se vê-las como atividades úteis e agradáveis, necessárias e desagradáveis, mas pode-se ver o espírito agir nelas e ver a vida nelas se revelar, e por isso aproximar-se de tais coisas com respeito sagrado. O espírito religioso está vivo no movimento socialista: é uma vibração religiosa que circula através das massas. Mas há também inumeráveis presenças profanas no movimento, mesmo entre seus ‘padres’ e ‘bispos’. A santificação da vida cultural no geral e no socialismo em particular, é a marca deixada pelo cristianismo. Este é outro ponto sobre o qual cristianismo e socialismo devem entrar em acordo, diz Tillich. 




A santificação da vida cultural não será possível sem uma concentração dos elementos religiosos mais expressivos da cultura e da sociedade, sem a constituição de comunidades que estejam imbuídas em transmitir a experiência religiosa às gerações futuras. É para isso que servem as idéias expressivas, as formas e as instituições, que existem com toda a sua riqueza e sua vitalidade no seio das confissões, e que a partir da força da tradição se opõem ao racionalismo confessional. 




Mas Tillich faz um alerta: apesar de toda aparência de que estamos apresentando uma nova confissão religiosa, com suas verdades e suas formas absolutas que suprimem a comunhão com os fiéis de outras crenças, vamos insistir na necessidade de falar sobre um quarto ponto: a experiência humana universal. Esta experiência tem seu fundamento nada menos que no próprio cristianismo. Nós podemos ver na cruz de Cristo não somente a negação do judaísmo, mas também do cristianismo, no sentido de que se absolutiza enquanto confissão. As igrejas cristãs não podem deixar essa consciência tornar-se efetiva, pois é sobre este terreno que se deram as condições para as sangrentas guerras religiosas. Em relação a isso o espírito deve ser autônomo. O caminho da cultura cristã é entender esta consciência como elemento agregador de todas as culturas e todas as confissões, sem aboli-las, inspirando um sentimento de comunhão mais profundo que todas as barreiras concebíveis. O cristianismo confere assim seu próprio conteúdo à experiência humana do socialismo. A solidariedade nascida da pressão exterior deixa de existir quando a pressão cessa. Os fatos confirmam isso. Mas o socialismo falha em relação ao sentimento de comunidade, que suscita a unidade a partir das profundezas últimas do humano, lá onde o incondicional desperta a alma. Este é mais um ponto sobre o qual o cristianismo e o socialismo devem se colocar de acordo. 




Para Tillich, não devemos entender o cristianismo como confissão exclusiva, mas como revolução da fé absoluta, única incondicionalidade, que vê uma só humanidade, sem as barreiras internas e externas que caracterizam as comunidades. Esta fé não se mostra hostil a não ser com os domínios econômicos, políticos e religiosos, que se colocam eles próprios contra os outros. Nesse sentido, é a teonomia, que traduz a experiência da profundidade última, a incondicionalidade do sim e do não sobre todas as coisas e méritos, e a supressão da distância entre o em cima absoluto e o embaixo relativo, que pode levar transcendência ao socialismo. O espírito religioso que existe no socialismo, enquanto vibração de graça e fé que circula nas massas, não deve ser negado, nem execrado pelo cristianismo. Ao contrário, é o cristianismo que pode fecundar a autonomia socialista. Estes são os fundamentos de uma unidade entre o cristianismo e o socialismo, conclui Tillich, que deve ser mais que uma associação, que traduz um desenvolvimento de ambos através de uma nova forma de fé e vida. 




Mas, afinal, que relação existe entre o tempo presente e o espírito profético? Para responder a esta questão é necessário antes que nada entender como Tillich vê o tempo presente. Em seu artigo Kairós, Zur Geisteslage und Geisteswendung, publicado em 1926 como obra coletiva, Tillich diz que falar da situação espiritual do tempo presente pode significar duas coisas. Pode querer dizer que vamos de uma situação contingente em direção a um ponto de vista superior. O tempo presente seria, então, parte de uma situação mais geral. O momento presente estaria enquadrado no caminhar do processo histórico. E para fazer a leitura desse tempo presente pode-se recorrer à análise histórica, à avaliação crítica ou à construção filosófica. Algumas vezes, porém, algum desses elementos falha. Por isso, não basta observar o tempo presente. Estamos excessivamente ligados a ele, o que nos pode levar a escorregar para um julgamento do ser enquanto aqui e agora e esquecer que devemos estar voltados para o futuro. 




O momento é importante, mas transformar o exame da situação espiritual do tempo presente em apreciação subjetiva é realizar uma redução, é ver a situação como totalidade e permanência. Olhando assim colocamos a situação num patamar elevado e a perspectiva que temos é aparentemente ampla e global, apesar de seu caráter individual e limitado. Tal análise do momento pode levar a uma ampla aprovação e tocar emocionalmente setores expressivos da sociedade e comunidades inteiras. Tillich cita como exemplo o trabalho de Spengler, A decadência do Ocidente, onde o filósofo alemão parte da profunda crise de seu país no primeiro pós-guerra e conclui que a cultura ocidental chegou ao fim. Esta é uma maneira de ver. Ela pode ser qualificada como irresponsável, mesmo quando apresenta análises de conjuntura e perspectivas para o futuro. Mas por que então irresponsável? Por não aceitar suas responsabilidades. Por não reconhecer os limites daquele que observa, assim como de seu próprio horizonte. Mas se existe um nível mais elevado, mais amplo do que este analisado pelo observador, somos, explica Tillich, levados a falar da situação espiritual do tempo presente, possibilidade que pode ser qualificada de responsável. 




É possível chegar a tal patamar de observação? Caso exista um ponto de vista mais elevado, a partir do qual se posicione um atalaia do tempo presente, como deve ser este mirante? Para Tillich, deve estar numa altura absoluta, inacessível a qualquer comparação. Só o absolutamente inacessível, incomparável, incondicional, livre das amarras do historicismo, pode ser de fato responsável. Partindo dessa realidade, pode-se dizer que existiram homens que interpretaram a situação espiritual de uma época dada. Eis aqui o ponto de intersecção entre o tempo presente e o espírito profético. Seguindo a trilha aberta por Tillich, que cita a paixão de Troeltsch no combate ao historicismo, e que terá seus estudos sobre profetismo reconhecidos inclusive por estudiosos judeus, é possível afirmar que o princípio profético traduz inquietude e descontentamento em relação aos acontecimentos sociais e religiosos concretos. 




Há uma semelhante busca de respostas entre aquele que encarna o espírito profético e a ação consciente do intelectual militante. Assim, afirma Gramsci, “se a relação entre intelectuais e povo/nação, entre dirigentes e dirigidos, entre governantes e governados, é dada por uma adesão orgânica, na qual o sentimento paixão torna-se compreensão e portanto saber, não mecanicamente, mas de forma viva, é somente então que a relação é de representação e que se produz o intercâmbio de elementos individuais entre governados e governantes, entre dirigidos e dirigentes, isto é: que se realiza a vida conjunta que, só ela, é a vida social, cria-se um bloco histórico”. Por isso, ambos, profeta e intelectual quando representam determinada comunidade têm função superestrutural e, apesar de sua organicidade, precisam exercer autonomia em relação às pressões sociais que sofrem. É dessa postura que nasce a força crítica e a compreensão de que diante da realidade há alternativas diferentes daquelas expressas pelo poder. Embora o profetismo bíblico não responda às necessidades atuais de análise de situações-limite, mostra que não basta o exame da situação espiritual do tempo presente como totalidade e permanência, ao contrário, mostra que é necessário compreender as exigências colocadas pelo absolutamente inacessível, mostra que é preciso estar livre das amarras do historicismo. 




Tal compreensão, que faz parte do princípio profético, expressão humana e verbal do incondicional, é encontrada no profetismo bíblico, que possuía uma concepção unitária do fato e procurava a síntese entre política e ética. Eram ao mesmo tempo revolucionários voltados para o passado e conservadores impulsionados pela paixão do porvir, nada faziam sem invocar a tradição, no entanto, sua mensagem eram os novos tempos. Os profetas sabiam servir-se do passado para as necessidades do presente. Todos pareciam ter algo em comum: uma atitude realista. Abominavam o palavreado superficial, a eloqüência abstrata. Ao contrário dos falsos profetas, interessavam-se pelo concreto e procuravam não viver envoltos em véus de ilusões. A pregação do futuro não constituía o essencial de seus clamores; era antes, o fruto e o resultado final de conhecimento aprofundado no mundo adjacente, da atualidade e do passado. 




Mas isso não basta. O espírito crítico no tempo presente não pode ser apreendido a partir da leitura dos profetas bíblicos, nem do Novo Testamento, e nem mesmo de Lutero, diz Tillich. Os evangélicos radicais atacavam a doutrina de Lutero a respeito da Escritura, afirmando que Deus não falara apenas no passado, tornando-se mudo no presente. Sempre falou aos corações ou nas profundezas de qualquer ser humano preparado para ouvi-lo por meio de sua própria cruz. O Espírito habita nas profundezas do coração, não no nosso, naturalmente, mas no de Deus. Thomas Müntzer, o mais criativo dos evangélicos radicais, acreditava que o Espírito podia sempre falar por meio dos indivíduos. No entanto, para se receber o Espírito era preciso participar da cruz. Lutero, dizia Müntzer, prega um Cristo doce, um Cristo do perdão. Devemos também pregar o Cristo amargo, o Cristo que nos chama a carregar sua cruz. A cruz, considera Tillich, representa a situação limite. é externa e interna. Surpreendentemente, Müntzer expressa esta idéia em termos existenciais modernos. 




Quando percebemos a finidade humana, desgostamo-nos com a totalidade do mundo. E nos tornamos pobres de espírito. O ser humano é tomado pela ansiedade de sua existência de criatura e descobre que a coragem é impossível. Nesse momento Deus se manifesta e ele é transformado. Quando isso acontece, o ser humano pode receber revelações especiais. Pode ter visões pessoais não apenas a respeito de teologia como um todo, mas sobre assuntos de vida diária. Assim, quando procuramos um lugar que não possa ser abalado, nossa interpretação não pode estar pousada sobre experiência própria e nem mesmo da Igreja. 




Para fazer a leitura deste espírito profético no tempo presente, Tillich analisa o século XIX e constata: o espírito profético aflorou em Karl Marx e Friedrich Nietzsche, no signo da luta contra o cristianismo. Em Marx o espírito da profecia hebréia se manifestou através das palavras e da ação e em Nietzsche aflorou o espírito profético de Lutero. Ambos se levantaram contra o Deus da sociedade burguesa. Marx levantou a bandeira da justiça e Nietzsche da vida criativa. A influência de Marx se fará sentir na filosofia da história, no combate contra o ethos burguês, contra o capitalismo e contra o imperialismo, e também na idéia da cultura comunitária e na tensão apaixonada pelo futuro. Já Nietzsche, por outro lado, influenciou a filosofia da vida, a literatura, a arte expressionista, os movimentos de juventude, a luta contra as convenções burguesas e a valorização da disciplina aristocrática. Enfim, buscou a alegria da vida. 




Não podemos, porém, falar de filosofia da história sem nos remetermos a um pensador alemão que influenciou Tillich: Ernst Troeltsch. Atualmente, os trabalhos dele e a influência que exerceu sobre o pensamento de Tillich são objetos de pesquisa. E ganharam importância a partir do final do século XX, relevância que aumenta na proporção das perguntas referentes ao lugar da religião na sociedade e da discussão sobre a necessidade crescente do diálogo inter-religioso no mundo. Tal preocupação levou especialistas a fazerem comparações sistemáticas das obras dos dois autores, a fim de discernir as diferenças e a complementaridade delas. Tillich nos remete a Troeltsch, porque esse filósofo da religião abriu caminho para uma filosofia social e uma filosofia da história, que posteriormente foram utilizadas por Tillich na construção de sua teologia da cultura. Assim, podemos dizer que a filosofia da religião está no centro das preocupações de Troeltsch e Tillich. O que nos abre um campo de pesquisa sobre o papel da religião na modernidade e nesta alta-modernidade, onde a questão epistemológica da relação entre ciências empíricas e ciências normativas da religião continua na ordem do dia. 




A pesquisa de Troeltsch cobriu os domínios da psicologia empírica da religião, mas também procurou formular uma teoria da religiosidade enquanto a priori, numa clara tentativa de ir além do proposto pelo positivismo. Tillich, por sua vez, aprofundará a questão epistemológica e da relação entre ciências empíricas e ciências normativas, apresentando sua concepção de teonomia, onde a religião é concebida como substância da cultura. Em relação à teologia, os dois procuram responder ao desafio de elaborar uma interpretação da fé cristã que respondesse à situação presente. Troeltsch situou seu questionamento no estudo da modernidade, e Tillich partiu da I Guerra Mundial, momento que para ele marcou o fim da moderna burguesia, o que colocava diante de todos nós a possibilidade de um tempo novo, um kairós. Os dois, contudo, partem das mesmas convicções no que se refere à critica ao sobrenaturalismo enquanto método de interpretação da revelação e da fé. Assim, Troeltsch caminhou em direção à perspectiva histórica, enquanto Tillich abriu uma nova perspectiva no contexto do diálogo religioso. Essa influência de Troeltsch está presente nos escritos socialistas de Tillich, tanto na escolha de termos, como no fato de que parte do conceito troeltschiano de “síntese criativa” ao falar da relação entre cristianismo e socialismo. Esse conceito Troeltsch tomou emprestado de Wilhelm Wundt, a fim de superar a contradição "relativismo-absolutismo" presente na filosofia da história. “A síntese criativa, sempre nova, confere ao Absoluto a forma possível ao momento e carrega, portanto, nela o sentimento de não ser mais que uma simples aproximação dos valores verdadeiros e últimos”. 




Mas um terceiro elemento intervém: a tendência dialética da teologia protestante, que se expressa de forma paradoxal, ao fazer a crítica de pontos de vista estabelecidos. Crítica do movimento socialista, ainda em seus primórdios, e crítica da tentativa de limitar a profecia a um ponto de vista particular. Submetido a este tribunal, o espírito do tempo presente ganhou em pureza e profundidade. E esta negação do tempo a partir da eternidade teve uma conseqüência fatal. Recusou-se a ser um simples ponto de vista. Considerou que tudo depende, então, do grau de proximidade existente entre uma profecia e o que acontece no mais íntimo de uma época. Tudo depende do grau de concretude e do tipo de força em seu interior disposto a anunciar o sentido do tempo presente. 




Quando analisamos o espírito profético a partir desta problemática, vamos constatar que ele não testemunha em benefício do presente, diferentemente da profecia clássica dos hebreus. Ele profere um não ao tempo presente. Um não abstrato, amplo, já que não critica o tempo presente em concreto, de forma particular, pelo simples fato de não aceitar os símbolos das forças demoníacas de nosso tempo, como o fizeram os antigos profetas, o cristianismo primitivo, Lutero, Marx e Nietzsche. Ao renunciar a um não concreto à situação presente, apresenta um sim a esta situação. O não abstrato torna profanas todas as oposições e as rebaixa de tal modo que deixam de ter importância última. E por isso a santa paixão profética perde sua razão de ser. 




O individualismo religioso e o criticismo na filosofia são, quando consideramos a situação do tempo presente, movimentos reacionários. E é terrível ver que, muitas vezes, ambos estão sob a proteção de um falso profetismo, cuja essência e mensagem consistem em congregar tudo sob o mesmo não. Assim, o combate profético concreto perde forças e fica amarrado diante das forças demoníacas da época. Ao contrário, agrega Tillich, o espírito profético está envolvido na situação histórica concreta, tem a coragem de decidir e colocar-se sob julgamento, ao nível do particular. Sem esquecer que sua relação aponta ao incondicional, e que o ponto mais elevado que é possível alcançar no tempo está submetido ao não. Mas não deverá, por temer o não, perder a audácia do não e do sim concretos. E é a partir dessa compreensão do que significa o espírito de profecia no tempo presente, que voltamos ao kairós, mas agora com novos conteúdos. Kairós significa tempo concluído, o instante concreto e, no sentido profético, a plenitude do tempo, a revolução do eterno no tempo. Kairós não é um qualquer momento pleno, uma parte ou outra do curso temporal: kairós é o tempo onde se completa aquilo que é absolutamente significativo, é o tempo do destino. Considerar uma época como um kairós, considerar o tempo como aquele de uma decisão inevitável, de uma responsabilidade inelutável, é considerá-lo enquanto espírito da profecia. Diante dessa responsabilidade inelutável existem, para Tillich, três posições distintas, que se definem na sua compreensão do tempo presente. Vamos analisar duas: a concepção conservadora e a concepção progressista, que se apresentam com variáveis e modulações. 




A concepção conservadora admite o surgimento do eterno no tempo, que repousa no passado. Por essa razão nega toda mudança, presente ou futura. A força dessa concepção repousa no fato de que considera o eterno como dado e não como resultado da ação cultural e religiosa do ser humano. A concepção conservadora também reconhece o kairós, mas o situa no passado. Desconsidera que se aconteceu no passado como acontecimento único, não é ele quem se revela em todos os sim e não do passado, do presente e futuro. Sob tal visão repousam os conservadorismos. Perderam o sentido do tempo mais além do tempo do kairós. Noutro extremo, a concepção progressista considera o eterno um alvo infinito, existente em cada época, mas que não se apresenta enquanto revolução. Assim, os tempos tornam-se vazios, sem decisão, sem responsabilidade. Na concepção progressista existe uma tensão diante do que foi. Mas a consciência de que o alvo é inacessível a debilita e produz um compromisso continuado com o passado. A concepção progressista não oferece nenhuma opção ao que está dado. Transforma-se em progresso mitigado, em crítica pontual desprovida de tensão, onde não há nenhuma responsabilidade última. Este progresso mitigado é a atitude característica da sociedade burguesa. É um perigo que ameaça constantemente, é a supressão do não e do sim não condicionados, a supressão do anúncio da plenitude dos tempos. É o verdadeiro adversário do espírito profético. 




Mas ao contrário de negar o conservar e o progresso, Tillich mostra que reação e progresso estão entrelaçados na consciência do kairós. E é esse entrelaçamento que leva a um terceiro caminho. E o terceiro caminho é a utopia. Sem o espírito utópico não há protesto, nem espírito profético. Isto é exato na medida em que cada tensão orientada para adiante comporta uma representação daquilo que deve vir e de como se entende a realização desse ideal. Eis porque o espírito da utopia está presente em todo agir incondicionalmente decidido, em todo agir orientado à transformação do presente. Para Tillich, a utopia quer realizar a eternidade no tempo, mas esquece que o eterno abala o tempo e todos seus conteúdos. É por isso que a utopia leva, necessariamente, à decepção. Progresso mitigado é o resultado da utopia revolucionária desencantada. 












III. O socialismo religioso fermenta a história 













A idéia do kairós, explica Tillich, nasce da discussão com a utopia. O kairós comporta a irrupção da eternidade no tempo, o caráter absolutamente decisivo deste instante histórico enquanto destino, mas tem a consciência de que não pode existir um estado de eternidade no tempo, a consciência de que o eterno é, em sua essência, aquele que faz a revolução no tempo, sem, contudo, fixar-se nele. Eu particularmente penso o kairós como o tempo bom, do que deve acontecer, onde as estruturas são abaladas, onde o tempo e o espaço são transformados e o novo, que antes não existia, brota na história. É a revolução. Na compreensão cristã foi a ressurreição do Cristo, que possibilita a realização da utopia, do Reino de Deus. Na história da França foi a queda da Bastilha, em 14 de julho 1789, que possibilitou o encontro com o ideal de liberdade, igualdade e fraternidade. E dois séculos depois, o maio de 1968, que se traduziu no kairós que deu origem a uma época de renovação de valores, calcada na força de uma cultura jovem. Assim, a realização da visão profética se encontra além do tempo, lá onde a utopia socialista perde força, mas não a sua ação. Toda transformação, metodologicamente, exige uma compreensão do momento vivido que vá além do meramente histórico, do aqui e agora. Deve projetar-se no futuro, deve entender que há no espírito crítico e transformador da práxis um choque entre este kairós e utopia. Ora, aqui é importante ver a utopia, ou seja, o socialismo como aquela sociedade solidária onde reina a justiça, paz e alegria. Ou como nos diz o profeta Isaías, a justiça trará paz e tranquilidade, que por sua vez levará à segurança. Ou seja, na linguagem cristã será o reino do eterno, que o apóstolo Paulo, na sua carta aos Romanos, define como justiça, paz e alegria no espírito. Esta é a utopia, aquilo que move nosso espírito, nosso objetivo. Tal desafio, este choque entre revolução e socialismo, entre kairós e utopia, para Tillich, não pode ser resolvido por uma pessoa, por mais que encarne o espírito crítico e transformador da práxis. O sujeito da transformação será, em última instância, o movimento da massa dinâmica. 




Para Tillich, o período que se abre com o final da Segunda Guerra Mundial, em vez de caracterizar-se por um kairós criativo, surgiu como vazio, que só poderia ser transformado se a humanidade rejeitasse as soluções prematuras e não se afundasse na esperança nula do sagrado. Em junho de 1949, Tillich afirmou não duvidar de que as concepções básicas do socialismo religioso fossem válidas, pois apontavam para o modo político e cultural de vida pela qual a Europa poderia ser reconstruída. Mas não estava seguro de que a adoção dos princípios do socialismo religioso fosse de fato uma possibilidade num futuro próximo. Sua frustração se devia, em grande parte, à ruptura entre Leste e Oeste, e à divisão da Alemanha, fenômeno particular da divisão do mundo em dois blocos. Assim, em conferência realizada em Nottinghan, Inglaterra, em 1953, Tillich disse que a diminuição das soberanias nacionais, o surgimento de grupos de poder abrangentes e a divisão do mundo em dois blocos de poder político abrangentes colocavam a questão da possibilidade ou não de uma humanidade unida. Tillich naquele momento acreditava na possibilidade de que um dos blocos de poder pudesse se desenvolver na direção de um centro mundial, embora isso não representasse o reino de Deus, “pois a desintegração e a revolução não estão excluídas”. 




Tal compreensão da realidade mundial levou-o não a abandonar suas preocupações políticas, mas a se debruçar sobre projetos que tiveram início ainda na sua fase alemã, como o de uma nova leitura da sistemática cristã e suas reflexões sobre a cultura. Mas a maioria de seus companheiros, que esperavam a realização do socialismo religioso, com o crescente desprezo pelas liberdades civis e aos direitos humanos, assim como a descoberta da existência de gulags nos países comunistas, se desiludiu. O movimento marxista, segundo Tillich, não foi capaz de se criticar por causa da estrutura em que caiu, transformando-se no que passou a ser chamado de stalinismo. Dessa maneira, todas as coisas em favor das quais os grupos originais tanto lutaram acabaram sendo reprimidas e esquecidas. 




Porém, é importante lembrar que a oposição entre o marxismo e a fé crista não está no método dialético e nem mesmo no materialismo, mas na leitura dos fatores intra-históricos, que para Marx determinam a história. Já na visão cristã é a combinação dos fatores intra e supra-históricos que define a história. A ausência do elemento mais além da história no marxismo, não somente o colocou em oposição ao cristianismo, mas levou o stalinismo a caminhar numa direção contrária a do próprio marxismo. Assim, o fator decisivo não é o contraste intelectual entre cristianismo e marxismo, mas o contraste na prática. O marxismo percebe a condição humana, incluindo a historia humana, como completamente circunscrita ao tempo. Propõe, então, trabalhar com a organização da sociedade dentro do tempo e, quanto mais está convencido da verdade de sua própria concepção, mais tenta realizá-la em todos os sentidos, a ponto de desconsiderar a dignidade humana. Espera uma reconciliação entre o espaço e o tempo, o que o leva a uma visão utópica, e ao desapontamento que segue toda utopia e, em última instância, ao terror. Já o cristianismo vê a condição humana, incluindo a história humana, a partir de uma posição entre tempo e eternidade. Percebe a infinita dignidade da pessoa, que decorre de sua relação com a eternidade, e percebe também o limite de tudo que é humano, no espaço e no tempo, submisso às condições de finitude e culpa. Por isso, coloca a questão concernente à reconciliação na qual o temporal é elevado ao que é eterno. E o eterno se torna efetivo no reino do tempo. A escolha entre essas duas possibilidades de vida não é nem econômica, nem política, é religiosa. 




O fortalecimento do stalinismo fez com que Tillich, que não se considerava um utópico, constatasse que o amanhecer de uma nova era criativa se distanciava da humanidade. E alertou para o perigo, a partir da experiência stalinista, de o socialismo transformar-se em totalitarismo, já que não aceitava a pluralidade de partidos políticos e as liberdades civis, que ele e os socialistas religiosos defendiam. Mas é interessante ver que descartava qualquer possibilidade de hegemonia permanente, quer por parte do bloco soviético, quer por parte do bloco ocidental: “novos centros de poder podem aparecer, primeiro secretamente, e depois, então, abertamente, levando para a separação de ou para a transformação radical do todo. (...) O poder inicia a luta novamente e o período determinado do império mundial será tão limitado quanto o foi o período augustiniano de paz”. E disse que um mundo sem as dinâmicas do poder, sem a tragédia da vida e da história não é o reino de Deus, nem a finalidade do ser humano, pois o fim está limitado à eternidade e nenhuma imaginação pode atingir o eterno. Mas as antecipações fragmentárias são possíveis. Assim, falar de socialismo religioso significa entender que ele se traduz na defesa do sentido último do significado profundo das raízes do ser humano e, no mundo contemporâneo, que ele, diante do trovejar dos canhões e da ameaça à vida, levanta-se como voz profética de um mundo novo. 




Segundo Higuet, em Tillich, a espera/esperança exorta a luta política a caminhar na direção do futuro prometido. A ação humana deve criar novas possibilidades de existência, provocar antecipações significativas do futuro. Na ação animada pela espera, há transformações e superações, mas não se alcança uma existência humana isenta de ameaça. Nas Escrituras, o objetivo central da espera é a realização do reino de Deus e da sua justiça. O princípio último da justiça é o reconhecimento concreto da dignidade de todo ser humano como pessoa, e, em primeiro lugar, dos injustiçados ou ameaçados pela injustiça. “O ‘espírito da utopia’, que se identifica com o espírito profético, reanima a esperança, que está no coração de toda espera responsável. Assim deve ser também a espera política”. Talvez por isso, Albrecht e Schussler finalizaram a biografia de Tillich, lembrando suas palavras sobre os quatro primeiros versículos do salmo 90: 




“Na noite de 20 de agosto de 1915, meu aniversário de nascimento, fui despertado duas vezes pelos tiros de canhão que me lembravam que eu comemorava um aniversário de guerra. À partir daquele ano, o salmo 90 




[Senhor tu tens sido o nosso refúgio. Antes de formares os montes e de começardes a criar a terra e o universo, Tu és eternamente. Tu dizes aos seres humanos que voltem a ser o que eram antes. Diante de Ti mil anos são como um dia, como o dia de ontem que já passou, são como uma hora noturna que passa depressa.] 




tornou-se uma verdade para mim e ele jamais deixou de soar em meu coração a cada aniversário e a cada entrada de ano (São Silvestre) e, ainda hoje, ele é mais poderoso do que todos os tiros de canhão”. 




Tillich nos apresenta roteiros teóricos que possibilitam abordar a questão socialista a partir de uma leitura teológica. Com a finalidade de orientar este trabalho levantamos pontos que mostram uma direção. 




Condições especiais levam a massa proletária e a individualidade pessoal a formarem uma síntese chamada massa orgânica, que corresponde ao ideal da teonomia. Essa massa orgânica nem sempre caminha em direção ao ideal da lei divina, mas quando o tempo histórico orienta nessa direção temos a massa dinâmica. Esta é revolucionária, não só no sentido político do termo, mas em um sentido de fé espiritual e social. É necessário que a massa dinâmica seja revolucionária, porque o sentido de seu movimento é precisamente ir além do estado de massa. 




O conflito interno do socialismo religioso tem como ponto de partida a própria situação proletária. O conflito da situação proletária vem do fato de que o proletariado tem que se apoiar no princípio burguês e ao mesmo tempo deve se opor a esse princípio. Ou seja, o conflito tem por base o fato de que o proletariado deve ir além, sobrepujar o princípio burguês com os meios deste mesmo princípio. Esta oposição é inevitável, pois a existência proletária é a expressão conseqüente do princípio burguês: a objetivação, a reificação e a ruptura com sua própria origem estão presentes em sua existência. Então, o proletariado não pode reagir ao pensamento burguês com total liberdade e independência. Isto porque não se pode responder à reificação apenas com o ethos, isto é, há necessidade de usar meios políticos. 




A situação proletária mostra que a situação da existência humana está em contradição com o destino do ser humano. É por isso que o princípio protestante tem função especial na compreensão da situação humana quando se olha a partir da situação proletária, pois esta se apresenta como cisão demoníaca ou alienação. Estes elementos estão imbricados à situação de classe e à consciência de luta pelo socialismo, mas também têm uma significação universal. Eles não são atributos de uma classe, mas fazem parte do conteúdo humano e estão presentes na história. O proletariado descobriu que esses elementos o ligam aos outros grupos humanos. Nele, os elementos originais do ser humano são realidade presente que o leva à uma luta a favor de si mesmo, a uma recusa do princípio burguês. 




Quando analisada a partir do princípio protestante, a situação proletária mostra que a miséria humana toca tanto o corpo como a alma. E o socialismo, por sua parte, lembra ao protestantismo que o dualismo platônico, idealista ou burguês, não tem correspondência nem com a mensagem bíblica, nem com a teologia protestante. Tillich diz que “o protestantismo está livre para o materialismo proletário”. De sua parte, o princípio protestante diz ao socialismo que a miséria humana não é somente uma miséria socioeconômica, mas também humana. 




A oposição entre o marxismo e a fé crista não está no método dialético e nem mesmo no materialismo, mas na leitura dos fatores intra-históricos. Na visão cristã é a combinação dos fatores intra e supra-históricos que define a história. A ausência desse elemento além da história no marxismo, tende a levar as correntes socialistas a caminharem numa direção contrária a do próprio marxismo. Assim, o fator decisivo não é o contraste intelectual entre cristianismo e marxismo, mas o contraste na prática. 




A utopia, aquilo que se almeja, o socialismo, quer realizar a eternidade no tempo, mas esquece que o eterno abala o tempo e todos seus conteúdos e que é por isso que a utopia leva, necessariamente, à decepção. E o progresso mitigado é o resultado dessa utopia revolucionária desencantada. A realização da espera socialista não é um conceito meramente empírico. A utopia é impotente para enfrentar os poderes da sociedade, por isso se não se pergunta a respeito da promessa socialista, sua espera deixa de estar orientada em direção à realização. 




Há um choque entre a utopia, que pensa poder fixar a eternidade no tempo presente e o kairós, que se traduz enquanto espírito crítico e transformador da práxis. E é a partir dessa compreensão do que significa o espírito práxis no tempo presente, que voltamos ao kairós, que irrompe no instante concreto, no sentido crítico e transformador, enquanto plenitude do tempo. Kairós não é um momento qualquer, uma parte do curso temporal: kairós é o tempo onde se completa aquilo que é absolutamente significativo, é o tempo do destino. Considerar uma época como um kairós, considerar o tempo como aquele de uma decisão inevitável é considerá-lo enquanto espírito crítico e transformador da práxis. 




Toda mudança, toda transformação exige uma compreensão do momento vivido que vá além do meramente histórico, do aqui e agora. Deve projetar-se no futuro. Tal desafio não pode ser resolvido por um homem ou por uma mulher, por mais que encarnem o espírito da profecia. O sujeito da transformação será, em última instância, o movimento da massa dinâmica. 




A esperança exorta a luta política a caminhar na direção do futuro prometido. A ação humana deve criar novas possibilidades de existência, provocar antecipações significativas do futuro. Ou seja, é aquele momento em que se antevê o sonho de Isaías, o eterno fará das espadas arados e das lanças foices. Nunca mais as nações farão guerra, nem se prepararão para batalhas. Assim, na ação animada pela espera, há transformações e superações, mas não se alcança uma existência humana isenta de ameaça. O princípio último da justiça é o reconhecimento concreto da dignidade de todo ser humano como pessoa e, em primeiro lugar, dos injustiçados ou ameaçados pela injustiça. E aqui entra a questão dos povos negros na multicultura brasileira. 




“Tu és o louco da imortal loucura, o louco da loucura mais suprema. A Terra é sempre a tua negra algema, prende-te nela a extrema Desventura. Mas essa mesma algema de amargura, mas essa mesma Desventura extrema faz que tu'alma suplicando gema e rebente em estrelas de ternura”. “O assinalado”, Cruz e Souza (primeira e segunda estrofes). 




A opressão do negro foi e é fenômeno global. E querer hoje compreender a dinâmica das mobilizações e lutas dos povos negros, nos diferentes países, sem entender as razões econômicas e globais de tal opressão, é não somente cometer um grave erro teórico, mas correr o risco de elaborar estratégias e táticas equivocadas para sua emancipação. 




Os marxistas sempre consideraram o negro, quer esteja trabalhando numa mina da África do Sul, numa fazenda do Sul dos Estados Unidos, num bar na madrugada parisiense, numa indústria do ABC paulista – só para usar alguns clichês que referenciam o nosso imaginário – ou como totalidade, como povos que sofreram diásporas durante fases específicas do desenvolvimento do capitalismo. Nesse sentido, não importa muito de que nação específica procede o negro, a não ser para ele como pessoa, é claro, e sim o fato de que foi parte integrante da grande nação africana, dividida, massacrada e destruída pelo sistema capitalista. Sem determinar este elemento – a existência de povos negros em diáspora – será praticamente impossível entender o papel que o negro cumpre em relação ao capitalismo, tanto nos primeiros séculos que antecederam à Revolução Industrial, como atualmente em sua fase da globalidade imperial. 




Abraham León, teórico marxista, assassinado em campo de concentração nazista durante a Segunda Guerra Mundial, desenvolveu um conceito sobre o povo judeu bastante interessante, e que pode nos ajudar muito na caracterização correta da questão negra. Para León, o judeu – devido ao papel específico que cumpriu durante o surgimento da capitalismo e também durante a sua fase de expansão, como um dos principais responsáveis pela acumulação e controle do capital financeiro – se transformou em “povo classe”, representante direto da burguesia. Ora, algo semelhante aconteceu com o negro. Devido ao papel cumprido pelo negro durante o surgimento do capitalismo, e inclusive agora, ele também se transformou num “povo classe”. Mas, ao contrário do judeu, intimamente ligado ao proletariado moderno. Foi em cima dele, principalmente, que o capitalismo fez nas colônias a sua acumulação primitiva. Nas metrópoles este papel coube também aos camponeses sem terra, que foram matéria-prima para a formação do moderno proletariado industrial. Atualmente, mais que nunca, o negro continua sendo um povo-classe, porque faz parte do grande exército de reserva mundial. E o continente africano continua, centenas de anos após o termino do tráfico de escravos, a fornecer uma mão-de-obra barata para os países avançados, principalmente na Europa. 




Em razão da ideologia do ocultamento, é necessário entender que as bandeiras emancipatórias são indissociáveis da pregação das boas novas, e precisam ser vividas como tradução do cristianismo que professamos. Assim, ética cristã e democracia não podem ser olhadas como excludentes. Ao contrário, se complementam e precisam ser vivenciadas na Igreja e além-muros, se desejamos fazer com que o significado histórico do projeto protestante evangélico marque nossa presença no futuro da nação. 




A partir dos clamores éticos da profecia bíblica, lida através da cosmovisão luterana da Reforma protestante, Paul Tillich apresentou uma compreensão da práxis cristã que ele chamou de princípio protestante. Assim, o princípio central do protestantismo seria a doutrina da justificação pela graça apenas, significando que nenhuma pessoa ou comunidade humana pode reivindicar para si a dignidade divina em consequência de conquistas morais, de poder sacramental, de sua santidade ou de sua doutrina. Consequentemente, a autonomia profética precisa sempre criticar, condenar e transformar o status quo ou os sistemas morais, políticos e sociais que se consideram sagrados. Cada protestante tem que decidir por si próprio se determinada conjuntura, doutrina ou sistema social é verdadeiro ou falso, se os profetas existentes em seu meio são verdadeiros ou falsos e se o poder estabelecido é divino ou demoníaco. Para os protestantes a decisão será sempre pessoal. 












IV. Afrobrasilidade e cristianismo social 










O cristianismo entendido como expressão crítica e autônoma existe onde quer que se proclame o poder do novo ser e onde se denuncie situações-limite que ameacem o sentido da vida. É aí que se encontra esse cristianismo protestante e em nenhum outro lugar. É possível que o protestantismo sobreviva nas religiões organizadas, mas não depende delas, talvez por isso a maioria das pessoas experimente o sentido da situação-limite fora das igrejas, já que o princípio protestante pode ser proclamado por movimentos pertencentes tanto ao domínio secular, sem qualquer filiação eclesiástica, assim como por pessoas e grupos que por meio de símbolos protestantes expressam a situação humana em face do incondicional. Se nessas situações proclama-se com mais autoridade o princípio protestante do que nas igrejas, então é aí e não nas igrejas que o protestantismo se torna vivo e atual. Tomando-se por base tal compreensão, entendemos a luta histórica dos povos negros e de seus descendentes em nosso país como um clamor permanente contra situações-limites a que estiveram e estão expostos. 




A chamada a um posicionamento transcendente, de resistência ao impacto da herança de exclusão deveria levar a Igreja protestante a elaborar uma mensagem para o mundo afrobrasileiro. Mensagem de esperança, de revolução, porque aqui esta será feita por mãos negras. Mas a igreja que não aprendeu a protestar é sempre tentada a emancipar o afrodescendente através da submissão à hierarquia e à tradição, esquecendo-se que ele já experimentou a autonomia e que esta é uma experiência transformadora. 




A questão negra implica muitas coisas. Entre elas, nos leva a pensar porque a miséria é enorme entre os negros em todo o mundo capitalista. E a constatação é: exatamente porque fazem parte do exército de reserva. E nos dá outra resposta teórica mais geral e, esta sim, fundamental: a questão racial é de fato uma questão nacional e não somente democrática e relativa aos problemas específicos do dia-a-dia. É por isto que a necessidade da revolução socialista está intimamente ligada à solução dos problemas mais gerais dos povos negros. 




O capitalismo sempre vendeu uma mesma imagem da África, a de um continente tribal, atrasado, cujos habitantes viviam numa idade de pedra. O que é uma grande mentira. Duas leituras focam historicamente o modo de produção da África nos séculos quinze e dezesseis: uma delas situa grande parte do continente numa variante do modo de produção asiático. E cita como exemplo, Gana e Somali. A outra, expressa por Nahuel Moreno, um velho amigo marxista, é que as nações africanas já eram capitalistas, mais precisamente mercantilistas. Embora esta discussão, por ser histórica, seja difícil de precisar, há elementos que mostram o grau de tecnologia e desenvolvimento alcançados por algumas nações africanas antes da chegada dos colonizadores. Podemos citar, por exemplo, agricultura sedentária, com uso de técnicas de plantio tropical, exército regular, pequenas indústrias, principalmente têxteis e a existência de fundições. 




Esses elementos explicam os quilombos, não como guetos negros, mas como reinos, onde se refugiavam os oprimidos da época. Eram cidades de refúgio. A análise e as caracterizações que tiramos da etapa histórica vivida pelos povos negros na África explica por exemplo o modo de produção dos quilombos, que sem lugar à dúvida, viveu do comércio com a própria colônia. Ou seja, tinha como modo de produção um capitalismo mercantil, apesar de elementos de desigualdade presentes aí, tais como legislação típica da produção asiática, semelhante ao código de Amurábi e mão-de-obra escrava. Mas estas desigualdades são explicadas pela própria situação contraditória dos quilombos, em guerra com a colônia, mas ao mesmo tempo vivendo do comércio com ela, inclusive vendendo escravos para estas mesmas colônias. Este comércio, apesar de seu caráter moral, que pode ser discutido, era capitalista e significava de fato um elemento a mais no processo de acumulação primitiva destas nações africanas. Essa contradição explica a necessidade de uma legislação férrea, que favorecia a centralização do poder, embora em seu aspecto mais geral, de satisfação das necessidades dos homens e mulheres que se refugiavam aí, os quilombos fossem, de fato, estruturas de poder essencialmente democráticas. 




Do ponto de vista econômico-social tal acumulação foi contraditória e, aliada à política colonialista dos europeus, de destruição consciente das forças produtivas africanas, serviu – em última instância – para debilitar o avanço do iniciante capitalismo negro. 




A partir daí podemos entender melhor a situação posterior dos negros escravos durante os primeiros séculos do capitalismo mercantil em terras brasileiras, por exemplo. Eles explicam o nacionalismo negro, as contradições do próprios negros entre si, muitas vezes determinadas pelas relações existentes na África entre as diferentes nações. Explicam também fatos interessantes e pouco estudados, como os aportes dos escravos negros ao desenvolvimento das forças produtivas ao capitalismo mercantilista. Entre eles podemos citar a construção de fundições, e a introdução de técnicas de agricultura tropical, como a utilização de platôs para o plantio do café. 




O conceito de situação-limite traduz aquela ameaça a tudo que dá sentido final à existência, e este o diferencial do protestantismo. Esta expressão, como vimos, nasceu em torno da justificação pela graça, através fé, já que a vida em liberdade significa a aceitação da exigência incondicional de se realizar a verdade e se fazer o bem. Assim, o reconhecimento da existência da situação-limite traduz-se em juízo e transformação, realça a diferença entre a religiosidade que faz a defesa da hierarquia e da tradição e o princípio protestante. A justificação pela fé é, então, entendida a partir da situação-limite. Por isso, sem uma relação universal com o mundo ético a noção de autonomia da pessoa não basta para construir uma ética. Ou seja, não se funda uma ética protestante apenas sobre o terreno da pessoalidade. Mas é importante entender que não existe uma interpretação absoluta da essência, fonte da ética, já que essa essência não é uma grandeza estática, mas se realiza de forma dinâmica na existência. Por isso, não se pode subscrever nem a construção de uma ética social absoluta, nem uma construção de tipo racionalista. Toda compreensão real da essência e como consequência toda ética real são concretas. Essa essência se situa naquele momento especial, pleno de liberdade e que revoluciona conceitos, ações e destinos. A universalidade desse tempo de kairós comporta riscos concretos, já que não se move num universal abstrato, separado da situação atual, o que é válido tanto para a pessoa, quanto para a consciência ética de um grupo social, no nosso caso da brasilidade em sua relação com a afrodescendência. Exatamente por isso, toda realidade essencial comporta dois aspectos, aquele a traz de volta à origem, “ao fundamento e abismo de todo ser, e um outro que indica seu caráter particular, sua inserção na finitude”. 




Assim, a realização da essência da brasilidade, em sua relação com a afrodescendência, deve se orientar em direção a ela própria, na medida em que essa manifestação de sua origem criativa remete ao que é perene nela. Exprime o que lhe é próprio, sua solidariedade no plano formal e sua finitude. Por isso, uma ética da brasilidade deve transportar ao transcendente e ao mundo, que em última instância são o bem decisivo de nossa existência concreta. Ao nos posicionarmos por uma ética que parte da essência de nossa brasilidade nos posicionamos por uma ética da vida. E tal compreensão leva-nos a estudar o desenvolvimento criativo desta essência brasileira enquanto vida que irrompe na história, criadora de um novo ser. 




E a partir daí podemos afirmar que a experiência do cristianismo social em sua essência pode ser uma experiência transcendente ao nível da materialidade afrobrasileira, uma experiência que deve acontecer em todas as situações. Nesse sentido, tal protestantismo não poderia ser identificado com um tipo determinado de organização social, mas ser portador de poder e oferecer aos afrobrasileiros uma mensagem de vida, tanto para a pessoa como particularidade, como para as comunidades como um todo. Exatamente por isso, apresenta-se capenga toda forma de cristianismo que se fecha na pura interioridade. Mas também não se pode dizer que o cristianismo do princípio protestante é um movimento que parte mecanicamente da interioridade em direção à exterioridade, apropriando-se de formas culturais afrobrasileiras ou simplesmente passando ao largo delas. Na verdade, ele toma forma a partir delas, mas também dá forma às expressões culturais afrobrasileiras. Dessa maneira, um tal cristianismo do princípio protestante está interpenetrado pela consciência experiência estética, ética e pelos modelos sociais da afrobrasilidade. 




Olhado do ponto de vista histórico, os quilombos não foram guetos negros, mas protótipos das nações africanas deixadas para trás. E, pelas características desenvolvidas pelos quilombos no Brasil, podemos dizer que eram comunas, onde se refugiavam os oprimidos da época: os negros, índios, perseguidos políticos e os “criminosos” comuns brancos. Todos eles encontravam no quilombo igualdade de direitos e deveres. A partir da análise que fazemos da situação das nações africanas na época e da estruturação que os negros deram aos quilombos podemos dizer que o modo de produção dessas pequenas repúblicas era capitalista. Mais precisamente mercantilista, vivendo com a própria Colônia. Logicamente, não estavam diante de um modo de produção definido e acabado. 




Sem dúvida, os quilombos fornecem grandes lições. Eles foram a única forma de governo dos explorados que conseguiu sobreviver por longo tempo, sem isolar-se da civilização da época, respondendo de maneira perfeita à questão racial. Ou seja, não como questão racial em si, mas como questão nacional. 




A partir do início do século dezenove, as pressões do imperialismo britânico sobre Portugal, que pretendia controlar toda a comercialização da cana-de-açúcar, assim como ter o controle de sua produção nas Antilhas, gerou um processo desigual na vida dos povos negros escravizados. 




É necessário ver que no Império brasileiro os negros como povos já estavam dominados. Apesar dos levantamentos esporádicos, os quilombos já tinham desaparecido como forma alternativa de poder. E a única opção de luta começa a surgir de forma indireta, já não através de movimentos de libertação nacional -- embora tenha se expressado em alguns movimentos místicos como Canudos --, mas na luta pela democracia. A contradição é que os próprios negros não tinham líderes, nem organismos, através dos quais pudesse mobilizar o conjunto dos povos negros pela luta democrática racial. Assim, essa luta não se deu através da mobilização e organização próprias dos povos negros. Foi levada por intelectuais afro-brasileiros, a maioria dos quais republicanos, como Joaquim Nabuco entre outros, mas que não levaram à organização política do negro. A emancipação veio por causa das pressões do imperialismo britânico, da propaganda de intelectuais, e devido à fraqueza da Coroa brasileira diante do Império britânico. Não foi acompanhada pela organização política dos povos negros, nem gerou líderes próprios, o que levou o conjunto dos negros à dispersão política e à falta de perspectiva social. Dessa maneira, os povos negros não conquistaram a democracia racial. O esmagamento em que vivia se aprofundou. 




Totalmente esmagado, os povos negros se viram diante de um fato consumado: tiveram a liberdade de sair das fazendas e das casas-grandes à procura de emprego, tiveram a liberdade de procurar trabalho, mas não o encontram. Tiveram a liberdade de ir morar nas periferias das cidades, em mocambos e favelas, e passaram a ser mão-de-obra desocupada. Assim, após a Lei Áurea, em nenhum momento conheceram ou viveram a democracia racial. E por uma razão terrível: sem organização política própria e independente do poder burguês, os povos negros não têm condições de conquistar a liberdade real de emprego, salários dignos, educação e moradia. Disperso politicamente, o processo de esmagamento dos povos negros aumentam violentamente. 




O princípio protestante, ao fundamentar-se numa ética da liberdade, igualdade e fraternidade, daquele que parte e reparte o pão, tem uma postura crítica diante da ordem social que se apoia na opressão e na exclusão social. Nesse sentido, clama pela necessidade de uma ordem na qual o sentido de comunidade seja o fundamento da organização social. Esta ética do amor propõe uma economia solidária onde a alegria não seja fruto do ganho, mas do próprio trabalho. E condena o egoísmo de classe, onde cada qual procura enriquecer através da exploração de seu próximo e das consequências desse processo, como o privilégio da educação para uma elite. Tais pecados sociais são limitação do bem, porque impedem a universalização do amor; alienação da vontade, porque degradam a possibilidade de escolha dos agentes morais; e dependência do mal, porque aprofundam raízes e escravizam a comunidade. Diante disso o princípio protestante propõe que se enfrente tais pecado com autonomia crítica, solidariedade e transformação social, por acreditar que tais posicionamentos políticos geram justiça, paz e participação solidária. 




Ora, se rupturas espirituais estão sempre associadas a rupturas econômicas, da mesma maneira que um processo de unidade espiritual vem associado a um processo de unidade econômica, como considerou Tillich, o fracionamento espiritual característico de nossa épocas traduz fracionamento econômico, distanciamento e choque entre classes. Tal situação nos exorta a buscar a construção de um novo processo cultural de unidade de onde brote unidade e solidariedade social e econômica, mas também espiritual. Ora, se é viável sonhar e lutar por processos de desenvolvimento que combinem mudanças espirituais e transformações econômicas e sociais, podemos afirmar que o protestantismo está eticamente obrigado a fazer uma escolha, ou participa do processo, atuando a favor desse desenvolvimento ou entra em processo de caducidade, ao afastar-se da vida real das comunidades afrobrasileiras nas quais está inserido. 




Seja qual for a nossa opinião ética sobre a relação entre protestantismo e afrobrasilidade, um fato deve ser ressaltado: é necessário para o protestantismo manter um relacionamento com as pessoas, comunidades e culturas afrobrasileiras, já que a rejeição da afrobrasilidade em nome de um protestantismo sem raízes contradiz a universalidade do cristianismo. E se o cristianismo não somente pode, mas deve manter um relacionamento com a afrobrasilidade, devemos nos perguntar se o contrário da premissa é verdadeira: pode a afrobrasilidade ter um relacionamento construtivo com o protestantismo? Para muitos, a tradição histórica de ausência e negação da negritude nega a possibilidade dessa aproximação, mas devemos ver que tal concepção mais que nada traduz uma relação de causalidade ideológica. Por isso, as pessoas, comunidades e culturas afrobrasileiras estão desafiadas a construir atitudes diferentes em relação ao princípio protestante e em relação às estruturas ideológicas do protestantismo. A história do protestantismo no passado e no presente é passível de muitas críticas. Suas opções fizeram como que dificultasse seu relacionamento com parte da população afrobrasileira excluída de bens e possibilidades. Mas, ao contrário do que pode parecer, não podemos dizer que a ideologia branca do protestantismo de missões seja um fenômeno constitutivo do protestantismo. Antes, é uma herança da cultura burguesa. 




A situação do negro não melhorou com a Lei Áurea. Sem função social definida, marginalizado, atomizado culturalmente, o Brasil capitalista e branco, no século vinte leva à desintegração consciente e total do negro, como raça e nação. Abandonado às leis do mercado capitalista, como exército de reserva, sem praticamente nenhuma possibilidade de contestação frontal da situação social em que se encontra, cada negro de per se sonha em ser assimilado. Esta é a grande desgraça da falta de organização independente ante as pressões da sociedade capitalista brasileira. O negro perde o sentido da luta comunitária e política. E aceita ser assimilado, cooptado individualmente. E assim, aos poucos, ele vai sendo penetrado pelos mitos da ideologia burguesa e branca: deve tentar embranquecer, deve acatar sua condição de discriminado e inferioridade, e em alguns casos deve manter a esperança de algum dia chegar a ser mais um jogador de futebol ou sambista famoso. E só. 




A culpa desse processo, no entanto, não pode ser lançado à industrialização, mas à falta de organização política. Devemos dizer claramente que a luta pela libertação dos escravos e, de forma mais abrangente, pela democracia racial era e é correta. No momento da primeira luta, contra a escravidão, os povos negros, como nação, deveria ter-se aliado ao conjunto da sociedade explorada contra a oligarquia e o Império. Mas deveria, como aconselhou Marx em relação vienenses, após a revolução de 1848, ter formado suas organizações políticas, definido seu programa de luta, aliando-se aos outros setores explorados e oprimidos e, em nenhum momento, confiado na democracia burguesa. Sem organizações partidárias próprias, sem independência política, sem líderes, principalmente a partir de 1930, o negro começa a ser absorvido pela industrialização. Ele vai formar a maior parte do proletariado do país, tanto o urbano como o rural. 




Atualmente, passados tantos anos, existe uma ideologia do ocultamento em relação à questão negra. É comum se ouvir que não existe racismo no Brasil, que há democracia racial e, pior ainda, que a questão racial não é um problema nacional. E a própria esquerda, em sua grande maioria, afirma taxativamente que tudo pode ser resolvido através da aliança imediata dos povos negros com a classe operária. Aqui existe um erro de fundo. Embora sejam aliados estratégicos e, em última instância, o negro seja um povo-classe, a questão nacional não é sinônimo de questão social. Este é um velho debate entre Rosa Luxemburgo e Lênin. E Lênin tinha razão. Algumas questões, como os problemas nacionais, e logicamente raciais, a questão da libertação social da mulher e a questão religiosa não terminam com a tomada do poder pelo proletariado. É lógico que a partir daí se coloca a possibilidade real de solução de tais problemas, já que no capitalismo – exatamente porque destrói forças produtivas sociais – qualquer solução mais geral e profunda é impossível. Nesse sentido, existe uma linha programática de transição para a luta dos povos negros, que começa pelas questões específicas do dia-a-dia -– iguais às reivindicações de todos os demais trabalhadores --, tem como centro o problema da democracia racial – a todos os níveis – e termina com a colocação máxima da questão nacional. 




O problema histórico dos povos negros ainda não foi resolvido. Qual a direção dos povos negros neste capitalismo brasileiro? Como chegar a ela? A questão da direção, do caminho, do objetivo coloca a questão da unificação do movimento, da criação de organismos que interpretem o conjunto das reivindicações, da ação e voz dos negros mobilizados. Ou seja, estamos a falar de política e teologia, já que toda atividade mobilizada a partir do cristianismo social está sempre determinada por dois elementos, as condições da própria realidade objetiva, a situação sócio-cultural da sociedade; e as condições subjetivas, ou seja, de mobilização do próprio movimento, já que a mobilização é formadora de consciência e para que se chegue à consciência da questão negra é necessário percorrer um caminho de construção desta consciência, que parte da luta pelo direito à vida. 




Embora, haja razões históricas para criticar o protestantismo, erramos quando negamos a existência da base solidária do ideal cristão. Quer dizer, há setores do movimento de resistência do povo negro que vê com desconfiança o protestantismo. Mas, se as idéias de emancipação do povo negro não traduzem nenhuma oposição essencial, de princípio, ao cristianismo que vive o princípio protestante, aos cristãos cabe ter uma atitude solidária e fraterna com as reivindicações e lutas da afrobrasilidade. Atitude solidária e fraterna deve ser entendida como a realização do princípio do amor cristão, que entende a necessidade de eliminar as condições que geram miséria e exclusão. Tal atitude traduz a urgência de combater os fundamentos da exclusão racial e social e de ações para a construção de uma outra ordem social, que inclua excluídos e desapropriados de direitos e bens. Isto porque o princípio protestante só existe como ideal ético quando traduz anseios e esperanças dos mais variados setores das comunidades. 




Joaquim Nabuco foi o primeiro brasileiro a apresentar uma visão globalizante de nossa formação histórica. E o fez numa pequena obra de propaganda: O Abolicionismo. Nela, ele mostrou que a escravidão, que durou três séculos, não constituía um fenômeno a mais, de modo que deveria ser analisado em igualdade de condições com a monocultura e a grande propriedade agrária. 




Para Nabuco, foi a escravidão que formou o Brasil como nação. Ela é a instituição que ilumina a compreensão de nosso passado. E é a partir dela que se definiram entre nós a economia, a organização social, a estrutura de classes, o Estado, o poder político e a própria cultura. A escravidão foi a protagonista por excelência da história brasileira. Historiadores, sociólogos e antropólogos começam a entender assim; porém, como representantes da Igreja, nós protestantes, raramente reconhecemos essa dívida intelectual, cultural e social. O autoritarismo tão típico de nossa elite, a dificuldade na construção da cidadania e a exclusão social estão intimamente ligadas a esses trezentos e setenta anos de escravidão e são as heranças trágicas da brasilidade. Assim, a escravidão gerou miséria e exclusão. 




Nossa cultura relacional e os seus códigos devem ser entendidos a partir de uma chave dupla: é necessário partir das matrizes antropológicas, mas não se pode esquecer as pressões da globalização. E as matrizes antropológicas foram construídas a partir da polaridade de dois mundos e de duas realidades que têm suas origens com a escravidão: a casa, enquanto dimensão social permeada de valores, de espaços exclusivos e lugar moral, e a rua, enquanto movimento, trabalho, tripalium. Essa situação traduz a relação existente entre senhores e escravos. A afirmação antropológica do padre Antonil, nosso primeiro economista, no século dezoito, de que “o Brasil é um inferno para os negros, um purgatório para os brancos e um paraíso para os mulatos” não é uma constatação biológica. Era um inferno para os negros porque para estes não havia esperança a não ser a morte, geralmente prematura. Para os portugueses era o purgatório porque estes acreditavam na possibilidade de fazer fortuna e voltar a Portugal. E era um paraíso para os mulatos porque estes já livres da escravidão: podiam transitar entre brancos e negros, crescendo em importância social pelo papel mediador que lhes era confiado. 




Assim, o paraíso aqui é definido como resultante de um relacionamento cultural. Locus do mulato ou mulo, animal ambíguo, híbrido, incapaz de reproduzir-se enquanto tal. Apesar da grosseria racista do termo, será ele aquele que rompe a dualidade cultural, tão típica das comunidades calvinistas, que opõe bem e mal, deus e diabo. Aqui, ao contrário, com a construção da cultura afrobrasileira e com o mulato, dá-se a síntese que traduz nossa cultura relacional. Ótimo exemplo é o nosso Macunaíma, um herói sem nenhum caráter, de Mário de Andrade. Nos países de cultura protestante burguesa, o negativo é o que está no meio. Aqui, o que está no meio é a virtude. 




Antonio Manzatto (1994) analisa a antropologia dos personagens de Jorge Amado. Para ele, Amado vai além do regionalismo e realiza uma síntese magistral da identidade do brasileiro, extrapolando os marcos estéticos da literatura, para formalizar as bases da cultura relacional afrobrasileira, embora não faça a crítica do que se esconde atrás e por baixo da aparente cordialidade do brasileiro. 




A cultura relacional esconde a injustiça social e a opressão sexual. Afirmamos que o Brasil foi formado por três matrizes: brancos, índios e negros, o que, filtrado pela cultura relacional, leva a uma ilusão, a uma mentira, como se brancos, índios e negros tivessem optado pela construção do país. A verdade é que portugueses brancos e aristocráticos exterminaram índios e escravizaram negros. 




Claude-Lévi Strauss em O cru e o cozido (1964) nos leva a conhecer, por meio de uma abordagem estruturalista, como foi determinante no desenvolvimento da humanidade a passagem da alimentação crua para a cozida. A partir do título de inspiração culinária, Claude-Lévi Strauss refere-se às exigências do corpo e aos laços elementares que o ser humano mantém com o mundo. Assim, através da oposição aparentemente trivial entre o cru e o cozido, apresenta a força lógica de uma mitologia da cozinha, tal como concebida pelas tribos sul-americanas. Depois, traz a tona as propriedades gerais do pensamento mítico, onde descobrimos uma filosofia da sociedade e do espírito. E é interessante que este pensamento mítico vai empapar a cultura relacional brasileira. No Brasil há um código relacional que traduz uma equivalência entre comida e sexualidade, que tem como fundamento o prazer, e apresenta novos parâmetros para o cru e o cozido, relacionando alimento, comida e sexo. 




Para a cultura afrobrasileira, alimento é o que mantém os seres vivos, a comida, aquilo que dá prazer, e o sexo é sempre um tipo de comida. O alimento é geral e universal, mas a comida dá identidade e, como consequência, quem come tem o controle. O alimento cru por excelência é a salada, algo de pouco sabor, sem maiores atrativos, diferente da comida que é bem cozida, como papa ou pirão. O alimento é aquilo que é difícil de engolir, já a comida é arroz com feijão, síntese da afrobrasilidade. Herdeiros que somos das culturas das irmandades de angolanos, benguelas, jejes, nagôs e outras, onde o cuidado pela preservação da vida da comunidade cabia à mulher, na cultura afrobrasileira é ela quem faz a mistura e quem dá a comida. E mulher é dona Flor, moquequeira dengosa, articuladora de temperos, de cama e mesa. Ou Gabriela, de cravo e canela. 




Na cultura relacional afrobrasileira, o tempo vivido disputa com tempo lembrado. O tempo vivido é a rua, o movimento, é o tripalium. O tempo lembrado é o sonho, é o que foi e que deveria continua a ser. O tempo vivido é o suor e o cansaço. A festa é a ruptura do tempo vivido. É o momento em que o corpo deixa de ser gasto pelo tripalium e é gasto pelo prazer. Talvez por isso, o maior acontecimento relacional da afrobrasilidade é o carnaval. É o momento do contrário. Troca-se o dia pela noite, a casa pela rua. A regra é o excesso. Não é uma festa de máscaras mas de fantasias. É uma leitura da liberdade considerada fim das regras e convenções. Vive-se o fim da miséria, o fim da escravidão, o fim do pelourinho. É a utopia socialista em versão brasileira. Todos somos iguais diante da possibilidade do prazer. Ou como canta Ney Matogrosso: 




“Não existe pecado do lado de baixo do Equador, vamos fazer um pecado rasgado, suado, a todo vapor, me deixa ser teu escracho, capacho, teu cacho, diacho, riacho de amor. Vê se me usa, abusa, lambuza, que a tua cafusa não pode esperar, quando a lição é de escracho, olha aí, sai de baixo, que eu sou professor, deixa a tristeza pra lá, vem comer, vem jantar, sarapatel, caruru, tucupi, tacacá, vê se me esgota, me bota na mesa, que a tua holandesa não pode esperar, deixa a tristeza pra lá, vem comer, vem jantar, sarapatel, caruru, tucupi, tacacá. (Ney Matogrosso, Não existe pecado ao sul do equador”. Letra e música: Chico Buarque e Ruy Guerra. In: "Feitiço Elektra", 1978). 




Os códigos da afrobrasilidade caminham a par com a questão racial. A solução relacional para a injustiça social é a miscigenação e para a opressão sexual, o sincretismo. A oposição entre cultura latina, cultura indígena e cultura negra não se tornaram irreconciliáveis, mas deram origem a uma síntese, que é a cultura popular afrobrasileira. Essa cultura mestiça, essa síntese, é entendida como a maneira de o brasileiro viver a vida, seu gosto pela festa, pela música, pela dança, pela comida e pelo sexo. Mostra uma forma de viver em que a vida não é algo acabado e definido, mas que se vai construindo no concreto do cotidiano vivido. Essa é uma característica muito especial da cultura relacional afrobrasileira, na qual a vida tem de ser elaborada a cada dia. Não é uma forma cultural fixa, mas vai-se modificando conforme se vai vivendo. 




Esses dados são fundamentais para se entender a questão da identidade do afrobrasileiro. Sua identidade não existe como algo dado. Também a identidade vai sendo construída, e os elementos externos e as pressões mais novas, isto é, da globalização, vão sendo deglutidos e vividos no hoje que se vive. O concreto e imediato da vida do afrobrasileiro o leva a ser um ser relacional. Mais do que estar situado diante das coisas e da natureza, o realizar-se do afrobrasileiro como ser dá-se através do relacionar-se. Assim, não se considera prisioneiro do destino, das forças das coisas ou da natureza. 




É um ser que procura aliados, quer para a realização de seus prazeres, quer para enfrentar os desafios impostos por elementos ou realidades alheias a seu cotidiano. A essa procura de alianças, o afrobrasileiro chama de amizade e companheirismo. E se ele pode relacionar-se com seus pares, também o pode fazer com a transcendência. Para o brasileiro, o relacionar-se com o transcendente jamais significa uma negação do humano. Daí a intimidade que aparenta ter com a divindade. Nas religiões afrobrasileiras, que nasceram do sincretismo, das quais a Umbanda talvez seja o caso mais peculiar, os elementos constitutivos da personalidade dos orixás são traduções antropológicas do afrobrasileiro, inclusive de seus códigos relacionais. 




Tanto o ideal de liberdade como outras características do afrobrasileiro traduzem uma profunda dimensão coletiva. Isso não elimina ou massacra sua pessoalidade, mas, na maioria dos casos, lhe permite reafirmá-la. E o massacre não acontece porque o afrobrasileiro é coletivo e comunitário, mas porque não sobrevaloriza as estruturas sociais. Assim, ao desprezar as estruturas, ao negar qualquer redução ao papel de simples engrenagem, reafirma a amizade e a solidariedade como formadoras do coletivo. Para ele, a liberdade, a amizade e a solidariedade acontecem na comunidade. É difícil imaginar o afrobrasileiro solitário. Ao contrário, a imagem cultural e social que temos dele, e que toda a cultura popular reflete é a do homem e mulher cercados de amigos, conhecidos e parentes. A sua práxis religiosa é sempre coletiva. A religião é sempre um acontecimento comunitário, quer falemos da Umbanda ou do pentecostalismo popular. Para o afrobrasileiro, a religião não pode ser vivida individualmente. A idéia de que a religião é questão de foro íntimo é uma abstração branca, calvinista ou tridentina. Ao contrário, na cultura afrobrasileira todos discutem a religião do outro, opinam e querem vê-lo junto na mesma comunidade. E em relação às festas não poderia ser diferente. E festa implica comida, música e dança. Em condições normais, o afrobrasileiro não come, nem bebe sozinho. A comunidade é o espaço onde sua pessoalidade e criatividade atingem os níveis mais altos. 




Um pensamento cristão social que parta da realidade da cultura relacional afrobrasileira não pode desrespeitar a negritude. Deve promover o mundo negro, que é parte integrante da variedade humana. Deve partir da realidade antropológica da criatividade afrobrasileira, que em amplo espectro se traduz numa antropologia da aventura e do risco enquanto fonte da liberdade que busca. 




Razões geográficas, históricas e raciais, nos últimos três séculos, levaram ao mergulho no desconhecido e plasmaram no afrobrasileiro essa atração pela aventura e pelo risco. O afrobrasileiro ama o desafio, não como futuro planejado, mas como espaço para a criatividade. Para ele, desafio é sempre se lançar à aventura da ruptura de regras, é dizer não às convenções e sobreviver pela coragem. 




Quando enfrenta esses desafios, que vai da sobrevivência no trapézio da economia informal ao transformar-se em Mané Garrincha nos gramados do mundo, está de fato modelando sua identidade. Mulato, não teme mergulhar nos desafios da cultura branca e globalizada. Aventura implica a possibilidade do fracasso. E fracasso faz parte do risco. Mas ao viver a dialética desse movimento, o afrobrasileiro constrói sua identidade, ainda que a um preço muito alto. Na verdade, é fazendo assim que ele sente-se livre e dá asas à sua criatividade, sem se preocupar com a construção do futuro. E se não fosse assim não estaríamos diante do afrobrasileiro. 




A dificuldade em globalizar o afrobrasileiro repousa aí: na cosmovisão de que a vida humana deve ser entendida como aventura e prazer. Como algo que não pode ser inteiramente planejado, totalmente organizado e dimensionado, mas vivido. Dessa maneira, viver é estar aberto ao novo, ao desafio, ao que ainda não foi vivido, nem mesmo se planejou viver. A ação antropológica do afrobrasileiro nasce da possibilidade de escolher a vida que sonha viver, que ele tem liberdade para escolher viver. Nesse sentido, quer viver a cada dia um novo sonho. E como para ele ficção e realidade se entrelaçam, sua maior construção é o carnaval. Assim, temperos e sexo, futebol e carnaval surgem como expressões maiores da possibilidade da utopia. 




O pensamento cristão social não pode estar preocupado em adaptar o homo afrobrasiliensis à globalidade daquilo que é banal, mas em entender os elementos da imago Dei que permeiam essa riqueza civilizatória. 




A afrobrasilidade é um modo de ser, uma maneira de existir. O afrobrasileiro não se diferencia simplesmente pela sua cor de pele. A pele negra tem uma história, uma história de negações e de resistências. É preciso, pois, compreender que o afrobrasileiro se compreende, num primeiro momento, em sua história de negação, e por isso se afirma negro. A afrobrasilidade é afirmação deste que é negro e negra: é negação da negação. Este afrobrasileiro, destituído de sua história, vive imerso em si mesmo e numa sociedade que promove a ruptura de seus valores culturais, étnicos e sociais, mas quer iniciar uma outra história, onde não é João ninguém, Maria nenhuma. 




Mas a história dos povos negros não começam com a escravidão. Afirmar a afrobrasilidade é afirmar uma proposta em que a afrodescendente é mais do que uma evidência, é afirmar uma história que foi excluída. Implica compromisso com a causa de povos. Se a cultura relacional afrobrasileira tem um caráter mágico, fortemente empapado no maravilhoso, isso se dá porque o dia-a-dia desse ser humano está ligado à busca da transcendência. Nesse sentido, o elemento que vai além e ultrapassa o concreto do dia-a-dia do afrobrasileiro é o transcendente. Essa presença do maravilhoso caldeia toda a malha relacional, indo do afrobrasileiro simples ao que alcançou o sucesso e a glória. É importante, no entanto, entender que o maravilhoso relacional da cultura afrobrasileira não nasceu de um processo pacífico, mas violento, do choque entre o universo transcendental de brancos e a matriz sacralizadora da natureza da religiosidade negra. A contra-reforma produziu genocídio e escravidão, macerando o universo religioso de povos e nacionalidades. 




A recuperação da história do povo negro como tradição e cultura liga-se à necessidade de conscientização da identidade afrobrasileira. Aquele que esquece nega o esquecido, reprimindo ou suprimindo. A identidade está imbricada à memória. Evocar a memória é provocar e transformar. Dessa maneira, reconhecendo os elementos negativos da cultura relacional afrobrasileira, que se traduziu na tentativa de esconder as injustiças sociais sofridas, podemos resgatar o que ela construiu de positivo. Afirmar a cultura à qual pertencemos é o primeiro passo para construir um pensamento protestante afrobrasileiro, que compreenda a identidade do povo negro em sua busca de felicidade e transcendência. 




A antropologia mostra-nos um afrobrasileiro em busca da felicidade imediata e da transcendência, possibilitando ao pensamento protestante uma compreensão dos elementos da revelação e da imagem de Deus aí embutidos. Não devemos temer o afrobrasileiro, mas conscientemente reconstruir raízes e memória. Esse caminho dará fundamentos a velhos sonhos, traduzirá a boa notícia como resposta imediata e concreta para a utopia que se desfaz na quarta-feira de cinzas. 




Ser negro traduz metanóia e por isso a afrobrasilidade constitui-se num desafio não só para os negros. A afrobrasilidade deve ser uma práxis, uma atitude de resgate diante da história de negação do negro. Desse ponto de vista, colocar para a nova igreja a afrobrasilidade como princípio protestante implica resgate de uma história de sofrimento e dor e redenção diante das possibilidades que estes sofrimento e dor construíram. O lugar fundamental da gestação da afrobrasilidade do ponto de vista do princípio protestante dá-se no locus da comunidade negra, espaço de formação da identidade negra, como vida resgatada. Mas, considerando que o princípio protestante possui dimensões que transcendem o locus, é importante estabelecer paradigmas que o viabilizem. Paradigmas esses que possibilitem a cada comunidade traçar seu caminho de liberdade, de acordo com sua realidade e necessidade, sem perder o vínculo com o conjunto da mensagem de redenção. Nesse sentido, não basta construir um pensamento da negação, mas um pensamento da afirmação da afrobrasilidade. Não somente uma práxis do protesto, mas uma práxis da proposta, uma práxis da libertação que permita levar a riqueza dos sonhos ancestrais à sociedade afrobrasileira de conjunto. 




Num primeiro momento, abertura à transcendência é sofrimento e cruz. Motor da liberdade cristã, quando esta se revela no aspecto da supressão do ser humano imediato. É a exigência de romper com o existente aceito. Essa ruptura, no entanto, exige persistência na determinação e no sofrimento em nível imediato, sem a qual não há liberdade dentro da ordem existente (Ballestero, 1970, p.110-111). Contudo, abertura à transcendência não se resume a esse primeiro momento. Na verdade, é diametralmente oposto a ele, traduz outra realidade, outra natureza. A unidade transcendência/ humilhação/ cruz é superficial como realidade imediata. Por isso, a emergência da transcendência passa pela morte do mundo, porque a realidade entrou em caducidade. Sofrimento e cruz refletem essa impossibilidade de vida e de eternidade. A transcendência é regeneradora porque acontece no mais fundo da própria raiz humana. É no momento da morte de seu consciente, que o mais profundo da intencionalidade humana se revela. 




A interioridade cristã não é consciência cartesiana. É um tempo de negação de todo objeto possível, tempo de vazio interno que possibilita a abertura ao sagrado. É nesse momento que a transcendência aparece como disponibilidade transparente da consciência. Dessa maneira, a transcendência do afrobrasileiro não pode realizar-se a não ser como articulação viva da subjetividade e como sua obra. A morte do afrobrasileiro imediato é o ato que faz possível ressurgir o verdadeiro afrobrasileiro, a partir daquilo que lhe é inalienável e próprio. Fazendo uma releitura de Lutero podemos dizer que o cristão “é servo em tudo e está submetido a todo mundo”, então... o cristão “é senhor de todas as coisas e não está submetido a ninguém” (Luther, 1955, p. 225). 




Se entendermos a dialética desse processo, teremos elementos para construir uma práxis afrobrasileira do princípio protestante. Uma práxis que parte da negação, mas vai além, transcende, e que fará de todos nós senhores da vida que nos foi entregue. 




Tu és o Poeta, o grande Assinalado, que povoas o mundo despovoado, de belezas eternas, pouco a pouco... Na Natureza prodigiosa e rica toda a audácia dos nervos justifica os teus espasmos imortais de louco! (“O assinalado”, Cruz e Souza, terceira e última estrofes). 















V. Como ler Tillich 













Nossa abordagem procurou inspiração e não tomar as ideias e argumentos de Paul Tillich como cânone. Entendemos que seus escritos foram elaborados sob condições especiais e refletem conjunturas e realidades peculiares à modernidade do século vinte e por isso nos servem de roteiro para reflexão e não como palavra revelada. 




Como dissemos, Paul Tillich é herdeiro do pensamento alemão do século dezenove, e devedor do idealismo alemão, em especial de Hegel e Schelling, mas é a partir de 1919, na Alemanha destruída pela I Guerra Mundial que começa a trabalhar sobre a ideia de uma teologia da cultura. 




Ainda retornando ao que já afirmamos, a cultura para Tillich tem uma leitura diferente daquela que terá para a antropologia da segunda metade do século vinte, que inclui a produção humana em toda a sua riqueza e diversidade. Para ele, cultura é a produção da intelectualidade embebida na história e tradição judaico-cristã europeia. Assim, por baixo das manifestações culturais específicas se faz presente a religião. E a religião expressa aquilo que é espiritual e transcendente, dando margem a manifestações especiais, que se apresentam enquanto cultura. Daí seu interesse no diálogo com artistas, escritores e com o mundo social-democrata da época. Dessa maneira, podemos dizer que Tillich é um filósofo da religião e um teólogo da cultura. 




1. Breve resumo histórico 




Paul Tillich nasceu na Prússia, na aldeia de Starzeddel, província de Brandeburgo, em 1886, filho de pastor luterano. Morreu em 1965 nos Estados Unidos. 




1910 -- Graduou-se doutor em Filosofia, em Breslau. 




1912 – Licenciou-se em Teologia (Halle) e tornou-se capelão militar. Burguês liberal e idealista, nessa época, chegou à conclusão que as classes pobres eram exploradas pela aristocracia fundiária, pelo Exército, pela Igreja e pelo Estado. 




1915 – A grande transformação 




“A transformação ocorreu durante a batalha de Champagne, em 1915. Houve um ataque noturno. Durante toda a noite, não fiz outra coisa senão andar entre feridos e moribundos. Muitos deles eram meus amigos íntimos. Durante toda aquela longa e terrível noite, caminhei entre filas de gente que morria. Naquela noite, grande parte da minha filosofia clássica ruiu em pedaços; a convicção de que o homem fosse capaz de apossar-se da essência do seu ser, a doutrina da identidade entre essência e existência... Lembro-me que sentava entre as árvores das florestas francesas e lia Assim Falou Zaratustra, de Nietzsche, como faziam muitos outros soldados alemães, em contínuo estado de exaltação. Tratava-se da liberação definitiva da heteronomia. O niilismo europeu desfraldava o dito profético de Nietzsche, ‘Deus está morto’. Pois bem, o conceito tradicional de Deus estava mesmo morto”. Revista Time, 6/5/59, p. 47. 




Para Tillich era preciso abandonar aquele Deus concebido pela teologia do século dezenove e fazer o cristianismo responder aos problemas e às exigências contemporâneas. 




1920 – Escreve Cristianismo e Socialismo. 




Funda, então, na Alemanha, após a Primeira Grande Guerra, um movimento chamado Socialismo Religioso, que tinha por base a afirmação de que “sem fundamento religioso nenhuma sociedade pode salvar-se da destruição”. Apesar de seus esforços a classe operária alemã não adere ao movimento, como Tillich pretendia. O movimento fracassa. 




1925 – Começa a escrever sua Teologia Sistemática, cujo primeiro volume só será publicado em 1952. 




1933 – Escreve A Decisão Socialista, que é apreendida pela polícia nazista, levando-o a migrar para os Estados Unidos, nesse mesmo ano. Nos EUA, leciona primeiro no Union Theological Seminary, depois, já aposentado na Universidade de Harvard e no final de sua vida no Divinity School de Chicago, onde morre em 1965. 




Paul Tillich sofreu influência da teologia dialética de Barth (mais tarde se tornarão adversários declarados) e do existencialismo de Heidegger. Mas, na verdade, sua reflexão terá dois direcionamentos: busca redefinir o conceito de religião (Filosofia da Religião, 1925) e mostrar a interdependência entre religião e cultura (Teologia da Cultura, 1959). Sua Teologia Sistemática está umbilicalmente ligada a essa preocupação. 




“Caso perguntasse a uma pessoa que tivesse ficado impressionada com os mosaicos de Ravena ou com as pinturas da cúpula da Capela Sistina ou com os retratos do último Rembrandt, se sua experiência teria sido religiosa ou cultural, ela acharia difícil responder a tal pergunta. Poderia ser correto dizer que essa experiência é cultural na forma e religiosa na substância. É cultural porque não está vinculada a um ato ritual específico, mas é religiosa porque toca o problema do Absoluto e os limites da existência humana”. 




2. Teologia 




É considerado o maior pensador sistemático do século vinte. Sua teologia pode ser situada como um diálogo entre a teologia liberal e a neo-ortodoxia. 




Ele afastou-se de Adolf von Harnack, teólogo liberal, que viu o Evangelho abordando quatro questões: a chegado do Reino de Deus, a paternidade de Deus, a dignidade do ser humano e o mandamento do amor. Mas Tillich se afastou também de Karl Barth, teólogo calvinista, que propôs uma teologia a partir da natureza paradoxal verdade divina. Barth, por rechaçar a teologia liberal, foi visto o pai da neo-ortodoxia. 




Tillich, a partir do princípio da correlação, princípio hermenêutico por excelência, vai trabalhar com a teologia liberal e a neo-ortodoxia. 




Princípio da Correlação 




Os elementos relacionados só podem existir juntos. É impossível que um aniquile a existência do outro. Com o princípio da correlação a reflexão teológica desenvolve-se entre dois pólos: a verdade da mensagem cristã e a interpretação dessa verdade, que deve levar em conta a situação em que se encontra o destinatário da mensagem. E situação não diz respeito ao estado psicológico ou sociológico do destinatário, mas “as formas científicas e artísticas, econômicas, políticas e éticas, nas quais [os indivíduos e grupos] exprimem as suas interpretações da existência”. 




Assim, o eu não pode existir sem o mundo, nem o mundo sem o eu. E a fé não pode existir sem a dúvida, nem a dúvida sem a fé. 




Outros pensadores, como Platão, Aristóteles e Tomás de Aquino utilizaram o princípio da correlação, mas Tillich o transformou em princípio hermenêutico por excelência. 




Para Tillich o fazer teologia deve partir de uma correlação epistemológica, que ele divide em três momentos: razão/ revelação, razão/ fé, e filosofia/ teologia. 




Na sua Teologia Sistemática, Tillich aborda questões fundamentais para a construção de uma teologia contemporânea: razão e revelação — “A razão não resiste à revelação. Ela pergunta pela revelação. Pois revelação significa a reintegração da razão”. 




A correlação do ser e Deus, pois "é a finitude do ser que conduz à questão de Deus”. E a existência e o Cristo. Para Tillich, o conceito Novo Ser, quando aplicado a Jesus como o Cristo, indica o poder que nele vence a alienação existencial. Expressa em forma negativa traduz o poder de resistir às forças da alienação. Experimentar o Novo Ser em Jesus como o Cristo significa experimentar o poder que nele venceu a alienação existencial em si mesmo e em todos aqueles que têm parte com ele. 




E apresenta o Novo Ser como o Cristo. A imagem do Cristo expressa o que Deus quer que sejamos: o que os seres humanos são essencialmente e deveriam ser. Aquilo que todo ser humano é potencialmente foi expresso em Jesus, enquanto Cristo. Assim, a doutrina de salvação é regeneração, a participação no Novo Ser, justificação, a aceitação do Novo Ser, e santificação e a transformação pelo Novo Ser. 




Essas questões nos levam a pensar a correlação entre a existência e a vida. Com seu conceito de essencialização, Tillich subverte a compreensão da existência e de seus conflitos, ao mostrar que servem para enriquecer o ser essencial. Ao voltar-se para o que é eterno, a existência é derrotada em sua reivindicação de ser positiva, ou seja, o eterno nega à finitude sua reivindicação de infinitude. Assim, Jesus, finito, tornou-se Cristo no seu auto-sacrifício e morte. Recusou a tentação demoníaca inerente à existência finita de reivindicar infinitude. 




E chega à Ontologia, que através da análise da trilogia essência, existência e da essencialização conduz a uma releitura da compreensão de Deus na fé cristã. Por isso, afirma que o eterno não tem existência, já que ele é além da essência e da existência. Falar de Deus enquanto existência é negá-lo, porque a existência é alienação e finitude. Mas, como vimos no correr desta exposição, para Tillich há uma finititude essencial e uma alienação existencial. Conceitos fundamentais para se pensar o cristianismo hoje no caminhar que vai além dos dogmas e das exclusões. 












Para pensarmos juntos 










Hoje, no Ocidente, muitos intelectuais e teólogos protestantes procuram se organizar ao redor de projetos político-sociais. Mas, logicamente, a preocupação primeira das comunidades protestantes é com a vida espiritual das pessoas e sua renovação. Não poucos evangélicos atuam inspirados na fé cristã em movimentos populares, sindicatos, partidos políticos e ministérios de ação social de suas comunidades. E, em relação ao nosso país, atuar politicamente deve fazer parte da vida dos protestantes brasileiros. 




Em termos de organização, podemos dizer que embora novos, ação e pensar justiça, paz e alegria têm fermentado o solo militante protestante. Esta paridade – pensar e fazer justiça, paz e alegria, tem envolvido igrejas que optam pelo compromisso social. E eu faço parte dela, ao lado de outros teóricos, que entendem que a proclamação do evangelho tem consequências sociais quando se olha o ser humano como totalidade. Assim, a teologia busca a justiça social porque entende a fé como intervenção política, material e espiritual, e acredita que a transformação das pessoas e as mudanças estruturais estão correlacionadas. 







Aqui é bom lembrar que existe uma coragem que nos permite assumir, com dignidade, a angústia da existência. Esta coragem supera a angústia do absurdo e do desespero, Esta coragem é ontológica e nós a chamamos alegria. Alegria é uma autoafirmação — é coragem de ser em aceitar ser aceito, mesmo sabendo que somos inaceitáveis, numa definição de Tillich. Mas se é autoafirmação, é também paradoxal, pois aceitar para ser aceito apesar do fato de nos sentirmos inaceitáveis ​​significa que vivemos o fato de que o amor com que o eterno nos ama é mais profundo e maior do que nossa recusa de nós mesmos. Assim, coragem de ser é fé que nos leva à alegria. À alegria de ser e de estar. 




E porque acreditamos que os humanos são imagens da eternidade, fazemos uma teologia da vida, para aqueles que carecem de bens e possibilidades, mas que, como os demais, são imagens também. Os despossuídos de bens e possibilidades têm conhecimento, habilidades e recursos. Tratá-los com respeito significa propiciar condições para que sejam arquitetos de mudança em suas comunidades, ao invés de impor soluções. Trabalhar com os despossuídos e expropriados envolve a construção de relações que conduzem a uma mudança mútua. 




E, quem pode e deve atuar assim são as igrejas protestantes. O futuro se define, pois, em termos de capacitar as igrejas para que transformem as comunidades das quais fazem parte. As comunidades de cuidado e inclusão estão no coração do que significa fazer missão para a vida. As pessoas são, em particular, atraídas à comunidade cristã antes de serem atraídas pela mensagem cristã. Esse jeito de produzir inclusão social nasce de baixo, nasce nas igrejas, traduz uma teologia do Reino eterno, comunitária, a experiência de caminhar com as comunidades. Olhando assim, a igreja não é meramente uma instituição, mas comunidade na qual se concretizam os valores do Reino eterno. 




A participação dos despossuídos e expropriados na vida da igreja leva a encontrar novas maneiras de ser igreja no contexto da cultura brasileira. Dessa maneira, a teologia da vida que hoje envolve igrejas protestantes, é uma teologia social. Tal atividade se amplia para incluir avanços até a transformação de valores, a valorização das comunidades e a cooperação em questões de justiça. Em sua presença entre os despossuídos e expropriados, a igreja está numa posição singular para restaurar a dignidade das pessoas, apresentando valores que produzem recursos e criam redes de solidariedade. 




Mas os problemas continuam presentes, por isso toda ação de transformação é permanente. Temos problemas políticos e sociais, como pobreza, violência, corrupção. Má qualidade dos serviços públicos nas áreas de educação e saúde, agressões contra o meio ambiente. Por isso, num momento em que a visibilidade e o reconhecimento da presença protestante reclamam expressões políticas de responsabilidade e serviço, nós, ou seja, protestantes de igrejas diferentes e de diferentes partes do Brasil, estamos atuando para a construção de um movimento de raiz que pensa expandir justiça, paz e alegria no chão deste país. 



Tal agir e pensar nos leva a programas e propostas para atuar nos lugares onde estamos plantados. E aqui, então, o agente é a igreja local: agente de transformação social. 




Este movimento de raiz, porque parte do chão onde vivem expropriados e despossuídos de bens e direitos, apresenta num primeiro momento uma atuação e consciência, que visa entre outras coisas chegar aos formadores de opinião do mundo protestante. Ao mesmo tempo, temos uma preocupação definitivamente política, pois queremos uma alter sociedade, que supere o capitalismo e suas orientações ideológicas, o neoliberalismo e as chamadas terceiras vias. Trata-se de meta histórica e estratégica, que necessita de um programa de transição, e que envolverá contribuições de dentro e de fora do campo protestante. Mas, acima de tudo, não é um projeto que envolva a criação de um poder religioso. 




Por isso, rejeitamos os modelos de fusão entre instituições religiosas e poder político. Não porque consideramos a política indigna ou contrária à mensagem do Reino eterno, mas porque acreditamos que as instituições políticas de uma sociedade democrática devam ser construções históricas, pactuadas entre pessoas de qualquer fé ou de nenhuma fé. E que o papel dos cristãos é testemunhar de sua fé também nas questões sociais e políticas. 




Assim, a luta contra a globalização excludente e suas formas de legitimação ideológicas, seculares e religiosas, conservadoras ou progressistas, é um projeto que exige estratégia histórica, que vai além das confissões religiosas, remetendo à aspiração de uma humanidade livre e democrática. Mas é um projeto legítimo para quem vê a fé cristã como chamado ao compromisso com a libertação de todas as formas de escravidão, opressão e discriminação, que negam nos humanos a imagem da eternidade e nos impedem de um encontro com o construtor. 




Para responder à altura das ameaças do nacional-socialismo e suas variantes, devemos deixar de lado o romantismo político e o liberalismo burguês. É necessário definir o socialismo a partir de uma reflexão teológica, e abrir o horizonte para a ação política. 




Não há nesta atitude de reler criticamente a história, já que sua repetição é farsa ou tragédia, ou seja gagueja, a intenção de esconder a verdade. O desafio é promover a autonomia real das pessoas e comunidades, tanto contra aqueles que defendem a onipotência pessoal, como aqueles que defendem o caos como caminho para uma ordem divina. 




A autonomia reconhece o direito humano à realização da espiritualidade. Por isso, o socialismo deve repensar os contornos de um projeto político que ao ter, também, origem na espiritualidade se torna de fato transformador e revolucionário. 




Podemos dizer que os humanos são fruto de um processo que tem origem na eternidade. Há um desenvolvimento que diferencia a diversidade dos humanos, que não é um, mas múltiplo, do resto da natureza. Esses humanos não são um momento, ser que coroa a natureza, mas desenvolveu poder de decisão e responsabilidade. 




Nesses tempos de loucuras fascistas somos chamados a questionar o passado e o presente e olhar o futuro como propôs o mestre de Nazaré. Seremos assim imagem e semelhança da eternidade invisível. E o mestre de Nazaré, conosco, juntos, fará, ao nível escatológico, aquilo que aos humanos, sapiens, mas solitários, sozinhos, tornou-se impossível. Sobre esta expressão da eternidade entre nós repousa o poder, a honra e a glória. 




Agora, então, desejo multiplicar com meus queridos e queridas leitores e leitoras um pouco da teologia da alegria, que encontramos no Novo Testamento: Jesus, alegria da humanidade. No evangelho de João (2.1-11) lemos que Jesus transformou água em vinho. 




"No terceiro dia houve um casamento em Caná da Galiléia. A mãe de Jesus estava ali. Jesus e seus discípulos também haviam sido convidados para o casamento. Tendo acabado o vinho, a mãe de Jesus lhe disse: Eles não têm mais vinho. Respondeu Jesus: Que temos nós em comum, mulher? A minha hora ainda não chegou. Sua mãe disse aos empregados: Façam tudo o que ele lhes mandar. Ali perto havia seis potes de pedra, do tipo usado pelos judeus para as purificações cerimoniais; em cada pote cabiam entre oitenta e cento e vinte litros. Jesus disse aos empregados: Encham os potes com água. E os encheram até a borda. Então lhes disse: Agora, levem um pouco ao encarregado da festa. Eles assim fizeram, e o encarregado da festa provou a água que fora transformada em vinho, sem saber de onde este viera, embora os empregados soubessem que haviam tirado a água. Então o noivo chamou o encarregado e disse: Todos servem primeiro o melhor vinho e, depois que os convidados já beberam bastante, o vinho inferior é servido, mas você guardou o melhor até agora ». 




Este sinal miraculoso, em Caná da Galiléia, foi o primeiro que Jesus realizou. Revelou assim a sua glória, e os seus discípulos creram nele. 



A história da presença de Jesus no casamento da Caná para muitos historiadores abre o ministério de Jesus e a transformação da água em vinho é o primeiro milagre de Jesus. Era um momento de alegria, o maior na cultura judaica, que de repente ficara ameaçado pela falta de um dos principais componentes da festa: o vinho. É interessante que a transformação da água em vinho não é acompanhada de nenhum discurso, nenhuma palavra especial. Apenas uma constatação: de que aquele vinho era o melhor. 



Mas o evangelista deixa claro que aquele sinal, aquele milagre, o da alegria, significa o começo de uma nova era para o mundo: estamos diante daquele que é a alegria da humanidade, que promete justiça e paz. E ainda no evangelho de João (3.27-29), um outro João, aquele que batizava na água, fala: 



"Uma pessoa só pode receber o que lhe é dado dos céus. Vocês mesmos são testemunhas de que eu disse: Eu não sou o Cristo, mas sou aquele que foi enviado adiante dele. A noiva pertence ao noivo. O amigo que presta serviço ao noivo e que o atende e o ouve, enche-se de alegria quando ouve a voz do noivo. Esta é a minha alegria, que agora se completa ». 



João, então, conta a sua relação com Jesus, tirando uma ilustração do profeta Isaías (54.2-10), que fala da relação de Deus com sua noiva. João diz que é apenas o amigo do noivo, a quem compete procurar a noiva para o noivo, e preparar todas as coisas necessárias para o casamento. 



A responsabilidade inclui a preparação do contrato de casamento e, interessante, obriga-o a permanecer diante do quarto nupcial para atender qualquer pedido do noivo. Este João batista estava alegre porque o povo seguia Jesus, e isso mostrava que o seu próprio ministério tinha frutificado, pois a alegria do precursor é abrir caminho para a alegria do casamento. 



E assim o evangelista João (16.16-24) conta que Jesus afirmou que a tristeza será transformada em alegria. 




Mais um pouco e já não me verão; um pouco mais, e me verão de novo. Alguns dos seus discípulos disseram uns aos outros: O que ele quer dizer com isso: Mais um pouco e não me verão; e um pouco mais e me verão de novo, e porque vou para o Pai? E perguntavam: Que quer dizer 'um pouco mais'? Não entendemos o que ele está dizendo. Jesus percebeu que desejavam conversar com ele a respeito disso, e lhes disse: Vocês estão perguntando uns aos outros o que eu quis dizer quando falei: Mais um pouco e não me verão; um pouco mais e me verão de novo? Digo-lhes que certamente vocês chorarão e se lamentarão, mas o mundo se alegrará. Vocês se entristecerão, mas a tristeza de vocês se transformará em alegria. A mulher que está dando à luz sente dores, porque chegou a sua hora; mas, quando o bebê nasce, ela esquece a angústia, por causa da alegria de ter vindo ao mundo. Assim acontece com vocês: agora é hora de tristeza para vocês, mas eu os verei outra vez, e vocês se alegrarão, e ninguém lhes tirará essa alegria. Naquele dia vocês não me perguntarão mais nada. Eu lhes asseguro que meu Pai lhes dará tudo o que pedirem em meu nome. Até agora vocês não pediram nada em meu nome. Peçam e receberão, para que a alegria de vocês seja completa. 



Jesus faz referência à tristeza dos discípulos, que lamentam a perspectiva da sua partida. Será retirada sua presença física, porém sua presença espiritual seria realizada nas obras do Espírito, começando com o Pentecostes e continuando durante toda a vida da Igreja. 



Os discípulos pensam que a referência a um pouco contradiz sua declaração concernente sua ida para o Pai. Jesus percebe esta confusão, sem procurar corrigi-la. Responde em termos positivos que elucidam seu próprio pensamento. A tristeza dos onze se converterá em alegria. Compara essa tristeza às dores de parto que são passageiras. Depois de nascida a criança o temor é esquecido sendo substituído pela alegria. A alegria dos discípulos nasceria do seu sofrimento espiritual: Jesus voltará após a sua morte e ninguém jamais poderia roubar-lhes aquela alegria. 



Naquele dia não se fará mais perguntas como as que agora tanto perturbam os discípulos. Nada me perguntareis... Se pedirdes alguma coisa, pedirão em conformidade com a vontade de Deus. Jesus os inspira a pedir naquele sentido e garante-lhes a alegria de serem atendidos. E o evangelista Lucas (24) nos conta: 



"Naquele mesmo dia, dois dos seguidores de Jesus estavam indo para um povoado chamado Emaús, que fica a mais ou menos dez quilômetros de Jerusalém. Eles estavam conversando a respeito de tudo o que havia acontecido. Enquanto conversavam e discutiam, o próprio Jesus chegou perto e começou a caminhar com eles, mas alguma coisa não deixou que eles o reconhecessem. Então Jesus perguntou: - O que é que vocês estão conversando pelo caminho? Eles pararam, com um jeito triste, e um deles, chamado Cleopas, disse: Será que você é o único morador de Jerusalém que não sabe o que aconteceu lá, nestes últimos dias? O que foi? - perguntou ele. Eles responderam: - O que aconteceu com Jesus de Nazaré. Esse homem era profeta e, para Deus e para todo o povo, ele era poderoso em atos e palavras. Os chefes dos sacerdotes e os nossos líderes o entregaram para ser condenado à morte e o crucificaram. E a nossa esperança era que fosse ele quem iria libertar o povo de Israel. Porém já faz três dias que tudo isso aconteceu. Algumas mulheres do nosso grupo nos deixaram espantados, pois foram de madrugada ao túmulo e não encontraram o corpo dele. Voltaram dizendo que viram anjos e que estes afirmaram que ele está vivo. Alguns do nosso grupo foram ao túmulo e viram que realmente aconteceu o que as mulheres disseram, mas não viram Jesus. Então Jesus lhes disse: - Como vocês demoram a entender e a crer em tudo o que os profetas disseram! Pois era preciso que o Messias sofresse e assim recebesse de Deus toda a glória. E começou a explicar todas as passagens das Escrituras Sagradas que falavam dele, iniciando com os livros de Moisés e os escritos de todos os Profetas. Quando chegaram perto do povoado para onde iam, Jesus fez como quem ia para mais longe. Mas eles insistiram com ele para que ficasse, dizendo: - Fique conosco porque já é tarde, e a noite vem chegando. Então Jesus entrou para ficar com os dois. Sentou-se à mesa com eles, pegou o pão e deu graças a Deus. Depois partiu o pão e deu a eles. Aí os olhos deles foram abertos, e eles reconheceram Jesus. Mas ele desapareceu. Então eles disseram um para o outro: - Não parecia que o nosso coração queimava dentro do peito quando ele nos falava na estrada e nos explicava as Escrituras Sagradas? Eles se levantaram logo e voltaram para Jerusalém, onde encontraram os onze apóstolos reunidos com outros seguidores de Jesus ». 



A ressurreição, leitura cristã da justiça, paz e alegria 



Quando pensamos na ressurreição pensamos em duas coisas: lá atrás na história, Deus ressuscitou Jesus. E lá na frente, um dia, Deus vai nos ressuscitar. Assim a ressurreição tem passado e futuro. São duas colunas: passado e futuro. Mas e hoje? Será que a ressurreição tem alguma coisa a ver com o meu presente? 



Os limites da existência 



E Lucas (24.21) nos diz: E a nossa esperança era que fosse ele quem iria libertar o povo de Israel. Porém já faz três dias que tudo isso aconteceu. 



A morte personifica os limites intransponíveis da existência. A morte personifica o medo existencial, o fim da esperança e a perda do sentido da vida. Com a morte de Jesus morreu algo na vida dos discípulos... Assim como a morte do esposa mata algo na esposa, e a morte do amigo mata algo no amigo, a morte de Jesus matou nos discípulos a vida que dava sentido à vida de cada um deles. 



E foi isso que aconteceu com aqueles discípulos de Emaús: vagavam à noite pela estrada da vida, cabisbaixos, derrotados. A vida não tinha mais sentido para eles. E é assim que acontece conosco muitas vezes andamos desesperançados, derrotados pela realidade que esmaga a vida e destrói o futuro. 



O novo nasce na ressurreição 



E Lucas (24.25) continua nos contando: "Então Jesus lhes disse: - Como vocês demoram a entender e a crer em tudo o que os profetas disseram! Pois era preciso que o Messias sofresse e assim recebesse de Deus toda a glória". 



Jesus transpôs a barreira dos limites impostos a existência. O novo nasce quando nos reunimos com o irmão e a irmã ao redor da mesa, conversamos e repartimos o pão. 



Ainda Lucas (24.29): "Mas eles insistiram com ele para que ficasse, dizendo: Fique conosco porque já é tarde, e a noite vem chegando. Então Jesus entrou para ficar com os dois. Sentou-se à mesa com eles, pegou o pão e deu graças a Deus. Depois partiu o pão e deu a eles. Aí os olhos deles foram abertos, e eles reconheceram Jesus ». 



Vencemos as crises quando redescobrimos o sentido da fé na ressurreição. Isso acontece quando nos reunimos com o irmão e a irmã, ouvimos as boas novas e repartimos o pão. 



Por isso, a ressurreição não é um dado do passado e um futuro de esperança. É um fato presente, uma bênção da integridade de Deus para nossa vida presente. Foi o kairós de Deus no passado, quando trouxe Jesus à vida. E hoje é o kairós de Deus, quando a cada dia nos enche do espírito, nos dá força e possibilita que no gesto solidário semeemos justiça, paz e alegria. 



Mas lembre-se, tal coragem de ser não é ato solitário. É um ato solidário, que implica sentar-se para ouvir e repartir o pão. A ressurreição de Jesus é a expressão permanente do compromisso irrevogável de Deus conosco, é o chamado a viver a coragem de ser. 









Textos de Paul Tillich 










Christianisme et Socialisme, Écrits socialistes allemands, 1919-1931, Paris, Genebra, Québec : Les Éditions du Cerf, Éditions Labor et Fides, Les Presses de l’Université Laval, 1992. 




Écrits contre les nazis, 1932-1935, Paris, Genève, Québec : Les Éditions du Cerf, Éditions Labor et Fides, Les Presses de l’Université Laval, 1994. 




La dimension religieuse de la culture, 1919-1926, Paris, Genebra, Québec, Les Éditions du Cerf, Éditions Labor et Fides, Les Presses de l’Université Laval, 1990. 




“Le Socialisme: Une question pour l’Église” in Christianisme et Socialisme, Écrits socialistes allemands (1919-1931), Paris, Genebra, Québec, Les Éditions du Cerf, Éditions Labor et Fides, Les Presses de l’Université Laval, 1992. 




“Christianisme e socialisme I”, in Christianisme et Socialisme, Écrits socialistes allemands (1919-1931), Paris, Genebra, Québec, Les Éditions du Cerf, Éditions Labor et Fides, Les Presses de l’Université Laval, 1992, pp. 23-30. 




“Rapport au Consistoire de la Marche de Brandenbourg, 1919” in Christianisme et Socialisme, Écrits socialistes allemands (1919-1931), Paris, Genebra, Québec, Les Éditions du Cerf, Éditions Labor et Fides, Les Presses de l’Université Laval, 1992, pp. 154-160. 




“Révolution et Église. À propos d’un ouvrage colletif”, in Christianisme et Socialisme, Écrits socialistes allemands (1919-1931), Paris, Genebra, Québec, Les Éditions du Cerf, Éditions Labor et Fides, Les Presses de l’Université Laval, 1992. 




“Christianisme e socialisme II” in Christianisme et Socialisme, Écrits socialistes allemands (1919-1931), Paris, Genebra, Québec, Les Éditions du Cerf, Éditions Labor et Fides, Les Presses de l’Université Laval, 1992. 




“Masse et Esprit. Études de philosofie de la masse” in Christianisme et Socialisme, Écrits socialistes allemands (1919-1931), Paris, Genebra, Québec, Les Éditions du Cerf, Éditions Labor et Fides, Les Presses de l’Université Laval, 1992. 




“Kairos I” in Christianisme et Socialisme, Écrits socialistes allemands (1919-1931), Paris, Genebra, Québec : Les Éditions du Cerf, Éditions Labor et Fides, Les Presses de l’Université Laval, 1992. 




“Philosophie du droit. À propos d’un manuel de Rudolf Stammler” in Christianisme et Socialisme, Écrits socialistes allemands (1919-1931), Paris, Genebra, Québec, Les Éditions du Cerf, Éditions Labor et Fides, Les Presses de l’Université Laval, 1992. 




“Les principes fondamentaux du socialisme religieux. Une esquisse systématique” in Christianisme et Socialisme, Écrits socialistes allemands (1919-1931), Paris, Genebra, Québec, Les Éditions du Cerf, Éditions Labor et Fides, Les Presses de l’Université Laval, 1992. 




“L’élaboration religieuse et philosophique du socialisme” in Christianisme et Socialisme, Écrits socialistes allemands (1919-1931), Paris, Genebra, Québec, Les Éditions du Cerf, Éditions Labor et Fides, Les Presses de l’Université Laval, 1992. 




“Ernst Troeltsch. Son importance pour l’histoire de l’esprit” in Christianisme et Socialisme, Écrits socialistes allemands (1919-1931), Paris, Genebra, Québec, Les Éditions du Cerf, Éditions Labor et Fides, Les Presses de l’Université Laval, 1992. 




“Christianisme, socialisme et nacionalisme. Une discussion de la Déclaration marbourgeoise du Cercle Wingolf” in Christianisme et Socialisme, Écrits socialistes allemands (1919-1931), Paris, Genève, Québec, Les Éditions du Cerf, Éditions Labor et Fides, Les Presses de l’Université Laval, 1992. 




“La doctrine augustinienne de l’État d’aprés le De Civitate Dei” in Christianisme et Socialisme, Écrits socialistes allemands (1919-1931), Paris, Genebra, Québec, Les Éditions du Cerf, Éditions Labor et Fides, Les Presses de l’Université Laval, 1992. 




“Kairos II. Idées à propos de la situation spirituelle du temps présent”, in Christianisme et Socialisme, Écrits socialistes allemands (1919-1931), Paris, Genebra, Québec, Les Éditions du Cerf, Éditions Labor et Fides, Les Presses de l’Université Laval, 1992, pp. 253-267. 




“Le problème de l’éthique sociale évangélique. A propos d’un article de Wilhelm Loew” in Christianisme et Socialisme, Écrits socialistes allemands (1919-1931), Paris, Genebra, Québec, Les Éditions du Cerf, Éditions Labor et Fides, Les Presses de l’Université Laval, 1992. 




“La psychologie du socialisme. À propos d’un ouvrage de Hendrik de Man” in Christianisme et Socialisme, Écrits socialistes allemands (1919-1931), Paris, Genebra, Québec, Les Éditions du Cerf, Éditions Labor et Fides, Les Presses de l’Université Laval, 1992, pp. 283-284. 




“Le pasteur social” in Christianisme et Socialisme, Écrits socialistes allemands (1919-1931), Paris, Genebra, Québec, Les Éditions du Cerf, Éditions Labor et Fides, Les Presses de l’Université Laval, 1992. 




“La signification de la condition sociale pour la vie de l’esprit” in Christianisme et Socialisme, Écrits socialistes allemands (1919-1931), Paris, Genebra, Québec, Les Éditions du Cerf, Éditions Labor et Fides, Les Presses de l’Université Laval, 1992. 




“Le christianisme et la société moderne” in Christianisme et Socialisme, Écrits socialistes allemands (1919-1931), Paris, Genebra, Québec, Les Éditions du Cerf, Éditions Labor et Fides, Les Presses de l’Université Laval, 1992. 




“Idéologie et utopie. À propos d’un ouvrage de Karl Mannheim” in Christianisme et Socialisme, Écrits socialistes allemands (1919-1931), Paris, Genebra, Québec, Les Éditions du Cerf, Éditions Labor et Fides, Les Presses de l’Université Laval, 1992, pp. 320-322. 




“La situation spirituelle du temps présent. Rétrospective et perspective” in Christianisme et Socialisme, Écrits socialistes allemands (1919-1931), Paris, Genebra, Québec, Les Éditions du Cerf, Éditions Labor et Fides, Les Presses de 121 l’Université Laval, 1992. 




“Le socialisme” in Christianisme et Socialisme, Écrits socialistes allemands (1919- 1931), Paris, Genebra, Québec, Les Éditions du Cerf, Éditions Labor et Fides, Les Presses de l’Université Laval, 1992. 




“Le socialisme religieux I” in Christianisme et Socialisme, Écrits socialistes allemands (1919-1931), Paris, Genebra, Québec, Les Éditions du Cerf, Éditions Labor et Fides, Les Presses de l’Université Laval, 1992. 




“Le socialisme religieux II” in Christianisme et Socialisme, Écrits socialistes allemands (1919-1931), Paris, Genebra, Québec, Les Éditions du Cerf, Éditions Labor et Fides, Les Presses de l’Université Laval, 1992. 




“La lutte des classes et le socialisme religieux” in Christianisme et Socialisme, Écrits socialistes allemands (1919-1931), Paris, Genebra, Québec, Les Éditions du Cerf, Éditions Labor et Fides, Les Presses de l’Université Laval, 1992, pp. 382-385. 




“L’État comme attente et comme exigence” in Christianisme et Socialisme, Écrits socialistes allemands (1919-1931), Paris, Genebra, Québec, Les Éditions du Cerf, Éditions Labor et Fides, Les Presses de l’Université Laval, 1992, pp. 391-392. 




“Principe protestant et situation prolétarienne” in Christianisme et Socialisme, Écrits socialistes allemands (1919-1931), Paris, Genebra, Québec, Les Éditions du Cerf, Éditions Labor et Fides, Les Presses de l’Université Laval, 1992, pp. 411-448. 




“L’homme et l’État” in Christianisme et Socialisme, Écrits socialistes allemands (1919-1931), Paris, Genebra, Québec, Les Éditions du Cerf, Éditions Labor et Fides, Les Presses de l’Université Laval, 1992, pp. 478-479. 




“Le problème du pouvoir. Essai de fondation philosophique” in Christianisme et Socialisme, Écrits socialistes allemands (1919-1931), Paris, Genebra, Québec, Les Éditions du Cerf, Éditions Labor et Fides, Les Presses de l’Université Laval, 1992, pp. 486-488. 




“Le cas Eckert. Une prise de position” in Christianisme et Socialisme, Écrits socialistes allemands (1919-1931), Paris, Genebra, Québec, Les Éditions du Cerf, Éditions Labor et Fides, Les Presses de l’Université Laval, 1992. 




“La Décision Socialiste“, Écrits contre les nazis (1932-1935), Paris, Genève, Québec : Les Éditions du Cerf, Éditions Labor et Fides, Les Presses de l’Université Laval, 1994, pp.17-170. 




Aux frontières: esquisse autobiographiques (1936) in Documents biographiques, Paris, Genebra, Quebec, Les Editions du Cerf, Editions Labor et Fides, Les Presses de l’Université Laval, 2002, p. 13. 




Documents biographiques, Paul Tillich, Traduction et introduction de Roland Galibois, com a colaboração de Marc Dumas, Paris, Genève, Québec; Cerf, Labor et Fides, Presses de l'Université Laval, 2002. 




A Era Protestante, São Bernardo do Campo, Ciências da Religião, 1992. Texto original: The Protestant Era, Chicago, Illinois, University of Chicago, 1948. 




História do Pensamento Cristão, São Paulo, ASTE, 2000. Texto original: A history of Christian thought, New York, Harper and Row Publishers, Inc., 1968. 




Teologia de la cultura y otros ensayos, A dimensão religiosa na vida espiritual do homem, Buenos Aires, Amorrortu Editores, 1974. Man’s right to knowledge, Columbia University Press, 1954. 




Perspectivas da Teologia Protestante nos séculos XIX e XX, São Paulo, ASTE, 1999. Texto original: Perspectives on 19th and 20th century protestant theology, New York, Harper and Row Publishers, Inc., 1967. 




A coragem de ser, Rio de Janeiro, Editora Paz e Terra, 1992. Texto original: The Courage To Be, New Haven, Yale University Press, 1952. 




Teologia Sistemática, São Paulo, Sinodal/Paulinas, 1984. Texto original: Systematic Theology – Three volumes in one [Volume I, 1951; volume II, 1957; volume III, 1963], Chicago, Illinois, The University of Chicago. 




Dinâmica da fé, São Leopoldo, Sinodal, 1996. Texto americano: Dynamics of Faith, New York, Harper and Row Publishers, Inc. Political Expectation, Nova York, Mercer University Press/Rose, 1981. 




Amor, poder e justiça, São Paulo, Novo Século, 2004. Amour, pouvoir et justice, Analyses ontologiques et applications éthiques, Revue d’Histoire et de Philosophie Religieuses, Paris, Presses Universitaires de France, 1963 et 1964, números 4 e 5. 












ANEXOS 







Além do Socialismo Religioso 







Pareceu-nos interessante como forma de apresentar Paul Tillich, deixar que ele próprio nos fale de sua experiência norte-americana. Para isto, estamos partindo das idéias que apresenta em artigo publicado no Christian Century, em 15 de junho de 1949, e cujos direitos pertencem a Christian Century Foundation. Este artigo, em inglês, pode ser encontrado no site www.christiancentury.org e foi preparado por Ted & Winnie Brock para Religion Online. Aqui não nos interessa transcrever o artigo do Christian Century, mas discutir as idéias expostas pelo teólogo alemão. 




Tillich conta que não viveu uma mudança dramática de vida e experiência intelectual nos anos 1940, mas uma lenta transformação, praticamente inconsciente, fruto de uma contínua adaptação aos modos e pensamento norte-americanos. 




Ele conta que no verão de 1948, quando voltou pela primeira vez à Alemanha, desde 1933, viveu um claro teste da enorme mudança que sofreu. Houve uma mudança em seu modo de se expressar. O idioma inglês trabalhou nele, produzindo algo que seus amigos alemães consideraram um milagre: o fez compreensível. Nenhum anglicismo apareceu nas palestras que fez, mas o espírito do idioma inglês dominou seu coração, dando-lhe clareza, sobriedade e concretude. 




Isto aconteceu indo contra suas inclinações naturais. Aprendeu a evitar o acúmulo de adjetivos, coisa freqüente no idioma alemão. Passou a evitar as ambigüidades, que é um vício freqüente do linguajar filosófico alemão. Além disso, o fez baixar à terra, rompendo com suas longas abstrações. “Tudo isso foi muito bem recebido por meus auditórios alemães, sendo visto como uma impressionante mudança de mente”. 




Falando na Alemanha sobre a situação da teologia no EUA, Tillich disse aos seus conterrâneos que a América estava adiante da Europa em teologia histórica e sistemática e mais ainda em relação à ética. Podia dizer isso porque tinha se dado conta de que as éticas são um elemento integrante de teologia sistemática, e teve muito tempo para aprender sobre as éticas individuais no pensamento americano. 




No que se refere às éticas sociais, Tillich havia partido de sua experiência militante e teórica como socialista religioso na Alemanha. Mas foi nos Estados Unidos que ele percebeu a importância central que as éticas sociais têm para a teologia norte-americana. Por isso, considerava que ganhou teologicamente com sua experiência estadunidense. 




"Nos meus primeiros anos nos Estados Unidos fiquei surpreso e preocupado com a tremenda ênfase dada à questão do pacifismo, algo que me parecia de importância secundária e de resultado confuso. Mais tarde, descobri que todos os problemas teológicos giravam ao redor desta questão. Quando nos anos anteriores, durante e depois da Segunda Guerra Mundial, a ideologia pacifista foi quebrada, vi que esta era uma indicação de que surgia uma atitude nova em relação à doutrina do homem e em relação ao Cristianismo. Esta mudança de mentalidade tornou tudo mais fácil para mim e me fez sentir em casa em meu trabalho teológico. 




Quando vim para América, em 1933, fui rotulado de neo-ortodoxo ou neo-super/naturalista. O que era incorreto, mas tenho de admitir que algumas das expressões que utilizava diante das audiências americanas levaram a tal uma impressão. Minha tarefa nos anos trinta era dar a meus alunos e aos outros ouvintes conta de minhas idéias teológicas, filosóficas e políticas, como tinham se desenvolvido durante os anos críticos de 1914 a 1933. 




Trouxe comigo da Alemanha a teologia de crise, a filosofia de existência e o socialismo religioso. Tentei traduzir essas expressões para meus alunos e leitores. Em todos os três destes campos -- o teológico, o filosófico e o político -- meu pensamento sofreu mudanças, em parte por causa de experiências pessoais, em parte por causa das transformações sociais e culturais que estes anos testemunhou. 




A maior das mudanças ao nível mundial foi o político -- das incertezas dos anos trinta ao estabelecimento, nos anos quarenta, de um mundo de intenso dualismo -- assim como o ideológico. Antes da Segunda Guerra Mundial havia espaço para a esperança de que o espírito religioso-socialista penetrasse no Leste e no Ocidente, mesmo que de forma diferente, diminuindo os contraste e prevenindo os conflitos entre eles. Hoje não há base para nenhuma esperança. A expectativa que tínhamos depois da Primeira Guerra Mundial era de um kairós, de plenitude do tempo, mas tal esperança foi duas vezes abalada, primeiro pela vitória do fascismo e depois por sua derrota militar. 




Não duvido que as concepções básicas do socialismo religioso sejam válidas, que apontem ao modo político e cultural de vida pela qual a Europa pode ser construída. Mas não estou seguro de que a adoção dos princípios do socialismo religioso seja uma possibilidade num futuro previsível. Em vez de um kairós criativo, vejo um vazio que só pode ser feito criativo se aceitar e suportar, rejeitando todos os tipos de soluções prematuras. Esta visão significa uma diminuição de minha participação naturalmente em atividades políticas. Minha mudança de mente também foi influenciada pelo desarranjo completo de uma tentativa política séria que fiz durante a guerra para atravessar a abertura entre Leste e Oeste com respeito à organização de Alemanha pós-guerra”. 




Tillich diz que fala-se muito do repúdio das liberdades civis e os direitos do homem nos países comunistas, que significou uma desilusão para os liberais no mundo inteiro. Mas não pode ser negado que este repúdio dos direitos humanos teve também um efeito devastador naqueles que defendiam o socialismo religioso, como ele, que sem ser utópico, acreditava no amanhecer de uma era criativa, mas viu o mundo mergulhar num momento de profunda escuridão. 




“Existencialismo era bem familiar para mim, antes mesmo da palavra entrar em uso geral. A leitura de Kierkegaard em meus anos de estudante, o estudo completo dos trabalhos posteriores de Schelling, a devoção apaixonada por Nietzsche durante a Primeira Guerra Mundial, o encontro com Marx (especialmente com os escritos filosóficos dele), e finalmente minhas próprias tentativas religioso-socialistas me levaram a uma interpretação existencial da história. Assim, eu estava preparado para a filosofia existencial desenvolvida por Heidegger, Jaspers e Sartre. 




Apesar de o existencialismo virar moda, confirmei minha convicção de que sua verdade básica para a condição presente. A verdade básica desta filosofia, como vejo, é sua percepção da liberdade finita do homem, e, por conseguinte, da situação dele como perigoso, ambíguo e trágico. Existencialismo ganha sua significação especial para nosso tempo no imenso aumento em ansiedade, perigo e conflito na vida pessoal e social devido à estrutura destrutiva presente dos negócios humanos. 




A filosofia existencial se aliou com a psicologia profunda. Só pela recente guerra e seu resultado se tornou manifesto que doença psíquica -- a inabilidade para usar criativamente a liberdade finita da pessoa -- é mais difundida neste país que qualquer outra doença. Ao mesmo tempo psicologia de profundidade removeu sobras do pensamento do século 19 - ao nível do sociológico, ontológico e até mesmo implicações teológicas de fenômenos como ansiedade, culpa e neurose de compulsão. Fora desta nova cooperação da ontologia e da psicologia (inclusive psicologia social) uma doutrina do ser humano exerceu influência considerável em todos os reinos culturais, especialmente em teologia”. 




Segundo Tillich foi sob esta influência que elaborou seu sistema teológico: da possibilidade de unir o poder religioso de teologia neo-ortodoxa com a necessidade de levar a mente contemporânea à reflexão existencial, o que resultou na concepção do "método de correlação", quer dizer, perguntas existenciais e respostas teológicas. A situação humana, como interpretado pela filosofia existencial, a psicologia e sociologia posiciona a pergunta; a revelação, interpretado a partir dos símbolos de teologia clássica, dá a resposta. A resposta, claro, deve ser re-interpretada à luz da pergunta, como a pergunta deve ser formulada à luz da resposta. 




“Parece mim, é possível evitar dois erros contraditórios em teologia, o super/naturalista e o naturalista. O primeiro faz da revelação uma pedra que cai em acima da história, aceita obedientemente, eliminando qualquer suficiência da natureza humana. O segundo substitui revelação por uma estrutura de pensamento racional derivada que julga através de natureza humana. O método de correlação supera o conflito entre super/naturalismo e naturalismo, eliminando a contradição permanente entre fundamentalismo ou neo-ortodoxia por um lado e humanismo teológico ou liberalismo por outro. 




No curso desta tentativa ficou claro para mim que a denominada teologia liberal tem que ser defendida com paixão ética e científica. Isto é, permanece o direito e dever da crítica filológico-histórica da literatura bíblica sem qualquer condição, a não ser a integridade de pesquisa e honestidade científica. Qualquer interferência dogmática com este trabalho nos dirigiria a superstições novas ou velhas -- mitos e símbolos -- o que não pode ser feito sem a supressão de conhecimento. O poder deste neo/biblicismo é óbvio na Europa continental, mas já pode ser sentido também aqui, e até mesmo entre liberais antiquados. 




Olhando para a última década de minha vida eu não vejo nenhuma mudança dramática de mente, mas um desenvolvimento lento de minhas convicções na direção de maior claridade e certeza. Acima de tudo eu vim perceber que algumas grandes e duradouras coisas são decisivas para a mente humana, e que agarrá-las é mais importante que procurar mudanças dramáticas”. 




A dimensão religiosa na vida espiritual 




"Em tais circunstâncias, desprovida de um lar, de um lugar onde estabelecer sua morada, a religião descobre logo que não é necessária tal morada, que não necessita procurar um lar. Seu lar está em todas partes, quer dizer, na profundeza de todas as funções da vida espiritual do homem. 




A religião é a dimensão da profundidade em todas elas, é o espectro da profundidade na totalidade do espírito humano. 




O que significa a metáfora profundidade? Significa que o aspecto religioso aponta em direção àquilo que, na vida espiritual do homem, é último, infinito e incondicional. No sentido mais amplo e fundamental do termo, religião é preocupação última. E a preocupação última se manifesta em absolutamente todas as funções criativas do espírito humano. 




Manifesta-se na esfera moral com a seriedade incondicional do imperativo moral; donde, quando alguém rechaça a religião em nome da função moral do espírito humano, rechaça a religião em nome da própria religião. 




Manifesta-se no reino do conhecimento como a busca apaixonada de uma realidade última; por isso, quando alguém rechaça a religião em nome da função cognitiva do espírito humano, rechaça a religião em nome da própria religião. 




Manifesta-se na função estética do espírito humano como o anelo infinito de expressar um significado último; donde, quando alguém rechaça a religião em nome da função estética do espírito humano, rechaça a religião em nome da própria religião. 




A religião constitui a substância, o fundamento e a profundidade da vida espiritual do homem. Eis o aspecto religioso do espírito humano". 




O tempo e o espaço 




"O Deus do tempo é o Deus da história. Isso significa em primeiro lugar, que é o Deus que atua na história com destino a uma meta final. A história segue uma direção, algo novo há de criar-se nela e por intermédio dela. 




Essa meta designa-se de várias maneiras: bem-aventurança universal, vitória sobre os poderes demoníacos representados pelas nações imperialistas, chegada do Reino de Deus na história e, mais além da história, transformação da forma do mundo, etc. 




Os símbolos são muitos – alguns mais imanentes, como no profetismo antigo e no moderno protestantismo, outros mais transcendentes, como nas doutrinas apocalípticas posteriores e no cristianismo tradicional --, mas em todos os casos o tempo dirige, cria algo novo, uma “nova criatura”, como chama Paulo. 




O trágico círculo do espaço foi superado. A história tem um princípio e um fim definidos. 




No profetismo, a história é história universal. Negam-se as limitações espaciais, as fronteiras entre as nações. Para Abraão todas as nações serão benditas, todas poderão adorar a Deus no monte Sião, o sofrimento da nação escolhida tem o poder de salvar todas as demais. O milagre do Pentecostes supera as diferenças do idioma. 




Em Cristo salva-se e une-se o cosmo, o universo. Em sua tentativa de criar uma consciência humana indivisa, as missões têm um caráter universal. O tempo alcança plenitude na história e a história a alcança no reino universal de Deus, o reinado da justiça e da paz. 




Isso nos leva ao ponto decisivo da luta entre o tempo e o espaço. O monoteísmo profético é o monoteísmo da justiça. Os deuses do espaço suprimem, necessariamente, a justiça. O direito ilimitado de todo deus espacial choca inevitavelmente com o direito ilimitado de outro deus espacial. A vontade poder de um dos grupos não pode fazer justiça ao outro. Isso é válido para os grupos poderosos que operam dentro da nação e para as próprias nações. 




O politeísmo, a religião do espaço, é forçosamente injusto. O direito ilimitado de todo deus do espaço anula o universalismo implícito na idéia de justiça. 




Este é o único significado do monoteísmo profético. Deus é um porque a justiça é uma. A ameaça profética que pende sobre o povo eleito, de ser rechaçado por Deus, por causa da injustiça, é a verdadeira vitória sobre os deuses do espaço. 




A interpretação da história que nos dá o dêutero-Isaías, segundo o qual Deus chama os demais povos para castigar o povo por Ele escolhido, devido à sua injustiça, confere a Deus um caráter universal. 




A tragédia e a injustiça são próprias dos deuses do espaço; a realização histórica e a justiça o são de Deus que atua no tempo, e por seu intermédio, unindo no amor o vasto espaço de seu universo". 




Heteronomia e a autonomia 




"Todo sistema político requer autoridade, não só no sentido de possuir instrumentos de força, mais também em termos de consentimento mudo ou manifesto das pessoas. Tal consentimento só é possível se o grupo que está no poder representa uma idéia poderosa, que goze de significado para todos. 




Existe, pois, na esfera política uma relação entre a autoridade e a autonomia, relação que em meu ensaio Der Start als erwartung und aufgabe (O Estado como promessa e como tarefa) caracterizei como segue: 




“Toda estrutura política pressupõe poder e, conseqüentemente, um grupo que o assume. Posto que um grupo de poder é também um conglomerado de interesses opostos a outras unidades de interesses, sempre necessita uma correção. A democracia está justificada e é necessária na medida em que é um sistema que incorpora correções contra o uso errôneo da autoridade política. (...) Os sistemas ditatoriais carecem de correções contra o abuso da autoridade por parte do grupo de poder. O resultado é a escravidão da nação inteira e a corrupção da classe dirigente”. 




Luteranismo e o socialismo 




"É relativamente simples chegar ao socialismo quando se parte do calvinismo, em especial em suas formas mais secularizadas da última época; o caminho está muito mais cheio de obstáculos quando passa pelo luteranismo. 




Sou luterano de berço, educação, experiência religiosa e reflexão teológica. Nunca me situei no limite entre o luteranismo e o calvinismo, nem sequer depois de experimentar as desastrosas conseqüências da ética social luterana e de reconhecer o inestimável valor da idéia calvinista do Reino de Deus para a solução dos problemas sociais. 




A essência de minha religião continua sendo luterana. Ela abarca uma consciência de corrupção do existir, o repúdio de todo tipo de Utopia social (incluindo a metafísica do progressismo), a compreensão da natureza irracional e demoníaca da existência, o reconhecimento do elemento místico na religião, e o rechaço do legalismo puritano na vida privada e corporal. 




Também meu pensamento filosófico expressa esse conteúdo singular. Até agora, só Jacob Bohéme, porta-voz filosófico do misticismo alemão, tentou uma elaboração especificamente filosófica do luteranismo. Através dele o misticismo luterano influenciou Schelling e o idealismo alemão, e através de Schelling, por sua vez, os filósofos irracionalistas e vitalistas que emergiram nos séculos XIX e XX. 




Na medida em que grande parte da ideologia anti-socialista se baseou sobre estes últimos, o luteranismo atuou indiretamente através da filosofia e também diretamente como forma de controle sobre o socialismo".


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