vendredi 9 juillet 2010

História e Teologia na pós-modernidade

Paul Tillich é considerado um dos pensadores mais influentes do século XX. Ensinou teologia e filosofia em várias universidades alemãs e foi para os Estados Unidos em 1933. Por muitos anos, foi professor de Teologia e Filosofia no Union Theological Seminary em Nova Iorque e, mais tarde, na Universidade de Harvard. Entre as obras mais conhecidas podemos citar A Coragem para Ser, Dinâmica da Fé, Amor, Poder e Justiça, Teologia da Cultura e sua Teologia Sistemática.

Aqui analisaremos textos de Paul Tillich para reflexão sobre quatro temas: a dimensão religiosa; tempo e universalidade; heteronomia à teonomia; luteranismo e socialismo religioso.

A dimensão religiosa na vida espiritual do homem
Desprovida de um lar, de um lugar onde estabelecer sua morada, a religião descobre que não é necessária tal morada, que não necessita procurar um lar. Seu lar está em todas partes, quer dizer, na profundeza de todas as funções da vida espiritual do ser humano.

A religião é a dimensão da profundidade em todas elas, é o espectro da profundidade na totalidade do espírito humano.

Mas, o que significa a metáfora profundidade? Significa que o aspecto religioso aponta em direção àquilo que, na vida espiritual do ser humano, é último, infinito e incondicional. No sentido mais amplo e fundamental do termo, religião é preocupação última. E a preocupação última se manifesta em absolutamente todas as funções criativas do espírito humano.

Manifesta-se na esfera moral com a seriedade incondicional do imperativo moral; donde, quando alguém rechaça a religião em nome da função moral do espírito humano, rechaça a religião em nome da própria religião.

Manifesta-se no reino do conhecimento como a busca apaixonada de uma realidade última; por isso, quando alguém rechaça a religião em nome da função cognitiva do espírito humano, rechaça a religião em nome da própria religião.

Manifesta-se na função estética do espírito humano como o anelo infinito de expressar um significado último; donde, quando alguém rechaça a religião em nome da função estética do espírito humano, rechaça a religião em nome da própria religião.

A religião constitui a substância, o fundamento e a profundidade da vida espiritual do humano. Eis o aspecto religioso do espírito humano.

[Paul Tillich, Teologia de la cultura y otros ensayos, A dimensão religiosa na vida espiritual do homem, Buenos Aires, Amorrortu Editores, 1974, pp. 16-17. Texto publicado originalmente em Man’s right to knowledge, Columbia University Press, 1954].

A luta entre o tempo e o espaço
O Deus do tempo é o Deus da história. Isso significa em primeiro lugar, que é o Deus que atua na história com destino a uma meta final. A história segue uma direção, algo novo há de criar-se nela e por intermédio dela.

Essa meta designa-se de várias maneiras: bem-aventurança universal, vitória sobre os poderes demoníacos representados pelas nações imperialistas, chegada do Reino de Deus na história e, mais além da história, transformação da forma do mundo, etc.

Os símbolos são muitos – alguns mais imanentes, como no profetismo antigo e no moderno protestantismo, outros mais transcendentes, como nas doutrinas apocalípticas posteriores e no cristianismo tradicional --, mas em todos os casos o tempo dirige, cria algo novo, uma “nova criatura”, como chama Paulo.

O trágico círculo do espaço foi superado. A história tem um princípio e um fim definidos.

No profetismo, a história é história universal. Negam-se as limitações espaciais, as fronteiras entre as nações. Para Abraão todas as nações serão benditas, todas poderão adorar a Deus no monte Sião, o sofrimento da nação escolhida tem o poder de salvar todas as demais. O milagre do Pentecostes supera as diferenças do idioma.

Em Cristo salva-se e une-se o cosmo, o universo. Em sua tentativa de criar uma consciência humana indivisa, as missões têm um caráter universal. O tempo alcança plenitude na história e a história a alcança no reino universal de Deus, o reinado da justiça e da paz.

Isso nos leva ao ponto decisivo da luta entre o tempo e o espaço. O monoteísmo profético é o monoteísmo da justiça. Os deuses do espaço suprimem, necessariamente, a justiça. O direito ilimitado de todo deus espacial choca inevitavelmente com o direito ilimitado de outro deus espacial. A vontade de poder de um dos grupos não pode fazer justiça ao outro. Isso é válido para os grupos poderosos que operam dentro da nação e para as próprias nações.

O politeísmo, a religião do espaço, é forçosamente injusto. O direito ilimitado de todo deus do espaço anula o universalismo implícito na idéia de justiça.

Este é o único significado do monoteísmo profético. Deus é um porque a justiça é uma. A ameaça profética que pende sobre o povo eleito, de ser rechaçado por Deus, por causa da injustiça, é a verdadeira vitória sobre os deuses do espaço.

A interpretação da história que nos dá o dêutero-Isaías, segundo o qual Deus chama os demais povos para castigar o povo por Ele escolhido, devido à sua injustiça, confere a Deus um caráter universal.

A tragédia e a injustiça são próprias dos deuses do espaço; a realização histórica e a justiça o são de Deus que atua no tempo, e por seu intermédio, unindo no amor o vasto espaço de seu universo.

[Paul Tillich, Teologia de la cultura y otros ensayos, A luta entre o tempo e o espaço, Buenos Aires, Amorrortu Editores, 1974, pp. 40-42].

Entre a heteronomia e a autonomia
Todo sistema político requer autoridade, não só no sentido de possuir instrumentos de força, mais também em termos de consentimento mudo ou manifesto das pessoas. Tal consentimento só é possível se o grupo que está no poder representa uma idéia poderosa, que goze de significado para todos. Existe, pois, na esfera política uma relação entre a autoridade e a autonomia.

Relação que Tillich no ensaio "O Estado como promessa e como tarefa" caracteriza como segue:

Toda estrutura política pressupõe poder e, conseqüentemente, um grupo que o assume. Posto que um grupo de poder é também um conglomerado de interesses opostos a outras unidades de interesses, sempre necessita uma correção. A democracia está justificada e é necessária na medida em que é um sistema que incorpora correções contra o uso errôneo da autoridade política. Os sistemas ditatoriais carecem de correções contra o abuso da autoridade por parte do grupo de poder. O resultado é a escravidão da nação inteira e a corrupção da classe dirigente”.

[Paul Tillich, Teologia de la cultura y otros ensayos, Entre a heteronomia e a autonomia, Buenos Aires, Amorrortu Editores, 1974, pp. 239-240].

Entre o luteranismo e o socialismo
É relativamente simples chegar ao socialismo quando se parte do calvinismo, em especial em suas formas mais secularizadas da última época; o caminho está muito mais cheio de obstáculos quando passa pelo luteranismo.

Sou luterano de berço, educação, experiência religiosa e reflexão teológica. Nunca me situei no limite entre o luteranismo e o calvinismo, nem sequer depois de experimentar as desastrosas conseqüências da ética social luterana e de reconhecer o inestimável valor da idéia calvinista do Reino de Deus para a solução dos problemas sociais.

A essência de minha religião continua sendo luterana. Ela abarca uma consciência de corrupção do existir, o repúdio de todo tipo de Utopia social (incluindo a metafísica do progressismo), a compreensão da natureza irracional e demoníaca da existência, o reconhecimento do elemento místico na religião, e o rechaço do legalismo puritano na vida privada e corporal.

Também meu pensamento filosófico expressa esse conteúdo singular. Até agora, só Jacob Bohéme, porta-voz filosófico do misticismo alemão, tentou uma elaboração especificamente filosófica do luteranismo. Através dele o misticismo luterano influenciou Schelling e o idealismo alemão, e através de Schelling, por sua vez, os filósofos irracionalistas e vitalistas que emergiram nos séculos XIX e XX.

Na medida em que grande parte da ideologia anti-socialista se baseou sobre estes últimos, o luteranismo atuou indiretamente através da filosofia e também diretamente como forma de controle sobre o socialismo.

[Paul Tillich, Teologia de la cultura y otros ensayos, Entre o luteranismo e o socialismo, Buenos Aires, Amorrortu Editores, 1974, pp. 259-263.

Além do Socialismo Religioso
Pareceu-nos interessante como forma de apresentar Paul Tillich, deixar que ele próprio nos falasse de sua experiência norte-americana. Para isto, estamos partindo das idéias que apresentou em artigo publicado no Christian Century, em 15 de junho de 1949, e cujos direitos pertencem a Christian Century Foundation. Este artigo, em inglês, pode ser encontrado no site www.christiancentury.org e foi preparado por Ted & Winnie Brock para Religion Online. Aqui não nos interessa transcrever o artigo do Christian Century, mas discutir as idéias expostas pelo teólogo alemão.

Tillich conta que não viveu uma mudança dramática de vida e experiência intelectual nos anos 40, mas uma lenta transformação, praticamente inconsciente, fruto de uma contínua adaptação aos modos e pensamento norte-americanos.

Ele conta que no verão de 1948, quando voltou pela primeira vez à Alemanha, desde 1933, viveu um claro teste da enorme mudança que sofreu. Houve uma mudança em seu modo de se expressar. O idioma inglês trabalhou nele, produzindo algo que seus amigos alemães consideraram um milagre: o fez compreensível. Nenhum anglicismo apareceu nas palestras que fez, mas o espírito do idioma inglês dominou seu coração, dando-lhe clareza, sobriedade e concretude.

Isto aconteceu indo contra suas inclinações naturais. Aprendeu a evitar o acúmulo de adjetivos, coisa freqüente no idioma alemão. Passou a evitar as ambigüidades, que é um vício freqüente do linguajar filosófico alemão. Além disso, o fez baixar à terra, rompendo com suas longas abstrações. “Tudo isso foi muito bem recebido por meus auditórios alemães, sendo visto como uma impressionante mudança de mente”.

Falando na Alemanha sobre a situação da teologia no EUA, Tillich disse aos seus conterrâneos que a América estava adiante da Europa em teologia histórica e sistemática e mais ainda em relação à ética. Podia dizer isso porque tinha se dado conta de que as éticas são um elemento integrante de teologia sistemática, e teve muito tempo para aprender sobre as éticas individuais no pensamento americano.

No que se refere às éticas sociais, Tillich havia partido de sua experiência militante e teórica como socialista religioso na Alemanha. Mas foi nos Estados Unidos que percebeu a importância central que as éticas sociais têm para a teologia norte-americana. Por isso, considerava que ganhou teologicamente com sua experiência estadunidense.

Nos meus primeiros anos nos Estados Unidos fiquei surpreso e preocupado com a tremenda ênfase dada à questão do pacifismo, algo que me parecia de importância secundária e de resultado confuso. Mais tarde, descobri que todos os problemas teológicos giravam ao redor desta questão. Quando nos anos anteriores, durante e depois da Segunda Guerra Mundial, a ideologia pacifista foi quebrada, vi que esta era uma indicação de que surgia uma atitude nova em relação à doutrina do humano e em relação ao Cristianismo. Esta mudança de mentalidade tornou tudo mais fácil para mim e me fez sentir em casa em meu trabalho teológico”.

Quando vim para América, em 1933, fui rotulado de neo-ortodoxo ou neo-supernaturalista. O que era incorreto, mas tenho de admitir que algumas das expressões que utilizava diante das audiências americanas levaram a tal uma impressão. Minha tarefa nos anos trinta era dar a meus alunos e aos outros ouvintes conta de minhas idéias teológicas, filosóficas e políticas, como tinham se desenvolvido durante os anos críticos de 1914 a 1933.

Trouxe comigo da Alemanha a teologia de crise, a filosofia de existência e o socialismo religioso. Tentei traduzir essas expressões para meus alunos e leitores. Em todos os três destes campos -- o teológico, o filosófico e o político -- meu pensamento sofreu mudanças, em parte por causa de experiências pessoais, em parte por causa das transformações sociais e culturais que estes anos testemunhou.

A maior das mudanças a nível mundial foi o político -- das incertezas dos anos trinta ao estabelecimento, nos anos quarenta, de um mundo de intenso dualismo -- assim como o ideológico. Antes da Segunda Guerra Mundial havia espaço para a esperança de que o espírito religioso-socialista penetrasse no Leste e no Ocidente, mesmo que de forma diferente, diminuindo os contraste e prevenindo os conflitos entre eles. Hoje não há base para nenhuma esperança. A expectativa que tínhamos depois da Primeira Guerra Mundial era de um kairós, de plenitude do tempo, mas tal esperança foi duas vezes abalada, primeiro pela vitória do fascismo e depois por sua derrota militar.

Não duvido que as concepções básicas do socialismo religioso sejam válidas, que apontem ao modo político e cultural de vida pela qual a Europa pode ser construída. Mas não estou seguro de que a adoção dos princípios do socialismo religioso seja uma possibilidade num futuro previsível. Em vez de um kairós criativo, vejo um vazio que só pode ser feito criativo se aceitar e suportar, rejeitando todos os tipos de soluções prematuras. Esta visão significa uma diminuição de minha participação naturalmente em atividades políticas. Minha mudança de mente também foi influenciada pelo desarranjo completo de uma tentativa política séria que fiz durante a guerra para atravessar a abertura entre Leste e Oeste com respeito à organização de Alemanha pós-guerra.

Tillich diz que fala-se muito do repúdio das liberdades civis e dos direitos do ser humano nos países comunistas, que significou uma desilusão para os liberais no mundo inteiro. Mas não pode ser negado que este repúdio dos direitos humanos teve também um efeito devastador naqueles que defendiam o socialismo religioso, como ele, que sem ser utópico, acreditava no amanhecer de uma era criativa, mas viu o mundo mergulhar num momento de profunda escuridão.

"Existencialismo" era bem familiar para mim, antes mesmo da palavra entrar em uso geral. A leitura de Kierkegaard em meus anos de estudante, o estudo completo dos trabalhos posteriores de Schelling, a devoção apaixonada por Nietzsche durante a Primeira Guerra Mundial, o encontro com Marx (especialmente com os escritos filosóficos dele), e finalmente minhas próprias tentativas religioso-socialistas me levaram a uma interpretação existencial da história. Assim, eu estava preparado para a filosofia existencial desenvolvida por Heidegger, Jaspers e Sartre.

Apesar do existencialismo virar moda, confirmei minha convicção de que sua verdade básica para a condição presente é a percepção da liberdade finita do homem e, por conseguinte, da situação perigosa, ambígua e trágica que o ser humano enfrenta. Existencialismo ganha significação especial para nosso tempo no imenso aumento da ansiedade, perigo e conflito na vida pessoal e social devido à estrutura destrutiva presente dos negócios humanos.

A filosofia existencial se aliou com a psicologia profunda. Só pela recente guerra e seu resultado se tornou manifesto que a doença psíquica -- a inabilidade para usar criativamente a liberdade finita da pessoa -- é mais difundida neste país que qualquer outra doença. Ao mesmo tempo a psicologia da profundidade removeu sobras do pensamento do século XIX - ao nível do sociológico, ontológico e até mesmo implicações teológicas de fenômenos como ansiedade, culpa e neurose de compulsão. Fora desta nova cooperação da ontologia e da psicologia (inclusive psicologia social) uma doutrina do ser humano exerceu influência considerável em todos os reinos culturais, especialmente na teologia.

Segundo Tillich foi sob esta influência que elaborou seu sistema teológico: da possibilidade de unir o poder religioso da teologia neo-ortodoxa com a necessidade de levar a mente contemporânea à reflexão existencial, o que resultou na concepção do "método de correlação", quer dizer, perguntas existenciais e respostas teológicas. A situação humana, como interpretado pela filosofia existencial, a psicologia e sociologia posicionam a pergunta; a revelação, interpretada a partir dos símbolos da teologia clássica, dá a resposta. A resposta, claro, deve ser reinterpretada à luz da pergunta, como a pergunta deve ser formulada à luz da resposta.

É possível evitar dois erros contraditórios em teologia, o supernaturalista e o naturalista. O primeiro faz da revelação uma pedra que cai em acima da história, aceita obedientemente, eliminando qualquer suficiência da natureza humana. O segundo substitui a revelação por uma estrutura de pensamento racional derivada que julga através da natureza humana. O método da correlação supera o conflito entre supernaturalismo e naturalismo, eliminando a contradição permanente entre fundamentalismo ou neo-ortodoxia por um lado e humanismo teológico ou liberalismo por outro.

No curso desta tentativa ficou claro para mim que a denominada teologia liberal tem que ser defendida com paixão ética e científica. Isto é, permanece o direito e dever da crítica filológico-histórica da literatura bíblica sem qualquer condição, a não ser a integridade de pesquisa e honestidade científica. Qualquer interferência dogmática com este trabalho nos dirigiria a superstições novas ou velhas -- mitos e símbolos -- o que não pode ser feito sem a supressão de conhecimento. O poder deste neobiblicismo é óbvio na Europa continental, mas já pode ser sentido também aqui, e até mesmo entre liberais antiquados.

Olhando para a última década de minha vida eu não vejo nenhuma mudança dramática de mente, mas um desenvolvimento lento de minhas convicções na direção de maior claridade e certeza. Acima de tudo percebi que algumas grandes e duradouras coisas são decisivas para a mente humana, e que agarrá-las é mais importante que procurar mudanças dramáticas.


Bibliografia

Paul Tillich, Die sozialistische Entscheidung. In: Christentum und soziale Gestaltung. Frühe Schriften zum religiösen Sozialismus. Gesammelte Werke II, Stuttgart, Evangelisches Verlagswerk, 1962, 219-265. Trad. fr. in: Écrits contre les nazis (1932-1935). Paris/Genève, Le Cerf/Labor et Fides, 1994. Trad. ing. in: Against the Third Reich, Paul Tillich’s Wartime Radio Broadcasts into Nazi Germany, editado por Ronald H. Stone, Mathew Lon Weaver.

mercredi 2 juin 2010

A globalização e o ensino da teologia na América Latina

Jorge Pinheiro, São Paulo, 1999.

Pra refazer o trabalho/ pra semear minha vida/ já bate a cancela/ bate o tempo do pilão/ já bate o atabaque/ rebatendo a imensidão/ o céu pegando fogo/ uma estrela vai queimar/ eu sou de quem me chama/ eu não sou desse lugar/ Serra do mar noite alta/ vou preparar minha volta
Na volta do caminho/ tem os anjos pra velar/ a gente lá de casa/ bate roupa pra lavar/ Pra renascer todo dia/ pra descobrir o compasso/ já bate a correnteza/ bate asa no sertão/ o boi puxando o carro/ o candeeiro a direção

Cacaso (1)

Um poema de Cacaso pode parecer estranho como abertura de um trabalho que pretende analisar questões referentes à ideologia (2) no ensino teológico. Mas método e conteúdo fazem parte da mesma totalidade. Por isso, assuntos focalizados neste artigo, como globalização, intelectualidade e missão profética, e os desafios da brasilidade não estão separados da emoção, da ação em comunidade e objetivamente do ensino teológico. Ao contrário, nos dão elementos para entendermos por que e quando nossa pedagogia e didática descambam para a falsa consciência e alienação.

Descartamos a possibilidade de uma pedagogia formadora e transformadora no ensino teológico brasileiro e latino-americano, sem a compreensão de que o desafio consiste em pensar globalmente, mas agir localmente. Por isso, a universalidade do trabalho, da volta ao espaço de vida e do renascimento a cada dia, traduzidos no poema de Cacaso, norteiam o caminho que desenvolvemos neste estudo.

As contradições da globalização
O planeta mudou de cara com o fim da Segunda Guerra Mundial. Uma grande parte do mundo tornou-se comunista, incluindo mais da metade da Europa, a maior parte da Ásia e um país latino-americano (3). Durante 40 anos, os países comunistas transformaram-se em um pólo, exercendo o papel de centro político no mundo, cuja expressão espacial e física se encontrava em Moscou. De outro lado, os países do Ocidente dito democrático consolidaram-se em bloco opositor de poder político, expresso através da hegemonia norte-americana. Essa polaridade do poder político e militar desenhou a face mundial durante esses anos.

No mundo comunista, a igreja enfrentou a perseguição. Cristãos foram presos, internados em campos de trabalhos forçados e mortos. No mundo ocidental construiu-se um muro de separação entre o estado e as igrejas nacionais. O pensamento econômico liberal conquistou corações e mentes, ocupou espaços sociais e expressou-se enquanto secularidade.(4)

Mas com a derrota do Ocidente (5), capitaneado pelos Estados Unidos no Vietnã (6) e com o desmoronamento do bloco comunista fez-se um vazio de poder político no conjunto do planeta. Mais rapidamente do que poderíamos imaginar, à cavalo da informatização e da verticalização da informação, a ideologia do livre comércio ocupou o vazio existente. Desaparecia um mundo liderado pela polarização política, dando lugar à livre expressão econômica do capital financeiro. Por isso, no mundo atual as relações de força não mais se realizam de maneira centralizada, como eram antes. Temos um mundo que desorganiza centros, mas que se organiza a si mesmo.

Hoje, as empresas globais, supranacionais, realizam a nova centralidade, atuam a partir de centros frouxos, mas são socialmente cegas, já que abandonaram qualquer objetivo ético ou solidário. A idéia de finalidade inexiste para esses condutores na economia globalizada. Para a ideologia do livre comércio não há nacionalidade. Por isso, quando falamos em benefícios para o Brasil, num mundo globalizado pela não espacialidade do capital financeiro, estamos seqüestrando o conceito de nacionalidade. Haverá benefícios, sem dúvida, mas não para a nação nomeada e sim para os agrupamentos supranacionais. Algumas migalhas poderão chegar à população, mas não enquanto objetivo.

O conceito de nação implica em territorialidade, isto porque é a partir dela que temos a expressão mais ampla de uma comunidade. Território é isso, a área através da qual um estado exerce sua força e poder. Nesse sentido, a globalização choca-se com um adversário, que é a realidade do território. Não há, em termos de globalidade, a possibilidade de se definir o que deve ser feito dentro de cada território, em todos os territórios existentes no mundo. Atualmente, os estados são coadjuvantes da ideologia do livre comércio. Aceito esse papel, os presidentes de repúblicas tornaram-se caixeiros viajantes ou meros executivos das empresas supranacionais. Mas a nacionalidade continua a existir porque a sua base é o território e como conseqüência temos a realidade do estado, ainda hoje um elemento de força expressiva.

A tradução viva do território é a sociedade, enquanto maioria da população, das empresas e instituições. As empresas supranacionais não necessitam de território, mas de centros frouxos que são as alavancas da realização de sua riqueza. Dizer que o estado nacional acabou, que não é possível um projeto nacional é, ao menos até agora, uma afirmação superficial. O estado planetário, no nível atual de previsão, é uma fantasia.

Nossa terceira onda urbanizatória, fruto direto da industrialização dos anos 1950/60, aliada ao movimento migratório, principalmente nordestino, e à expressão democrática de novas correntes de pensamento, mudou a cara das cidades brasileiras e, por extensão, do país. Esse fenômeno, versão particular da secularização global, golpeou a estrutura familiar, fortaleceu o individualismo e aumentou o fosso social entre participantes do mercado e deserdados do capital.

Esse processo, que coincidiu ao nível latino-americano com a revolução cubana, produziu em nosso país um comunismo mulato, que mais tarde foi traduzido em teologia da libertação por brasileiros como Rubem Alves e Leonardo Boff, na trilha do teólogo peruano Gustavo Gutierrez. Influenciada pelo materialismo histórico, a teologia definiu-se pela práxis da ação social. Teve importância inédita na história da teologia brasileira nos anos 1970/80, quando criou e desenvolveu as Comunidades Eclesiais de Base (CEBs), que serviram como elemento dinamizador, ao lado dos sindicatos, para a formação do Partido dos Trabalhadores. Apesar desse fortalecimento no campo político, a igreja católica viveu um refluxo de vocações.

No campo protestante, os evangelicais — numa definição para lá de ideológica, aqueles que crêem na Bíblia como regra da fé e prática, inspirada e inerrante — ganharam peso na sociedade. Divididos em dois grandes grupos, históricos e carismáticos, incluídos aí pentecostais clássicos e neopentecostais, deram as costas à sua origem social plebéia, desenvolveram um discurso dirigido à classe média e lançaram-se a uma experiência denominacional fracional e sectária.

Atualmente, tanto a teologia da libertação, como as pressões favoráveis ao fracionalismo denominacional entraram em declínio. Da mesma maneira, as correntes ditas neo-ortodoxas enfrentam franco esgotamento.

A traição da intelectualidade
O profetismo bíblico traduz a inquietude e o descontentamento da população em relação a acontecimentos sociais e religiosos concretos. Os profetas hebreus, no cumprimento de sua missão, não entram em choque físico, militar, com as barreiras levantadas pelos governos centrais. Utilizaram o discurso crítico como forma de trazer à superfície novas soluções e de influenciar aqueles que exerciam o poder.

Há uma semelhança metodológica entre o profetismo bíblico e o conceito de intelectual, desenvolvido por Antonio Gramsci.(7) Para esse pensador italiano, o intelectual representa organicamente uma determinada comunidade, tem função superestrutural e, apesar de sua organicidade, precisa exercer autonomia em relação às pressões sociais que sofre. É dessa postura que nasce sua força crítica e sua compreensão de que diante da realidade há alternativas diferentes daquelas expressas pelo poder.

Quando ao profeta bíblico, sem negar sua característica enquanto homem de Deus, (8) expressão humana e verbal da vontade divina, (9) é importante analisar também o fato de que possuía uma concepção unitária do fato e que constantemente procurava a síntese entre política e ética.

Para Jacob, (10) eram ao mesmo tempo revolucionários voltados para o passado e conservadores impulsionados pela paixão do porvir. Igual julgamento vemos em L. Ramlot (11): os profetas nada fazem sem invocar a tradição, no entanto, sua grande mensagem são os novos tempos. Outros exegetas julgam que os profetas sabiam servir-se do passado para as necessidades do presente. Todos parecem ter algo em comum: uma atitude realista. Abominam o palavreado inútil, a eloquência abstrata. Ao contrário dos falsos profetas, interessam-se pelo concreto e procuram não viver envoltos em véu de ilusões. A pregação do futuro não constitui o essencial de suas prédicas; é antes, o fruto e o resultado final de conhecimento aprofundado no mundo adjacente, da atualidade e do passado” (12).

É desesperante ver que a intelectualidade brasileira tenha sido cooptada pelo establishment, perdendo a força crítica e capacidade de elaborar e apresentar alternativas diferentes daquelas colocados pelo status quo. Nossa intelectualidade é formada, tradicionalmente, por filhos da oligarquia, o que faz dela uma expressão ideológica ligada ao poder. Em parte isso explica a realidade desse tropismo em direção ao poder. E quando os intelectuais optam por ser poder, abandonam sua vontade crítica, sua missão.

É próprio do profeta e do intelectual criar o desconforto. Ambos têm que ser fortes para trabalhar se necessário na solitude e continuar exercendo seu papel. O que outros pensam, no imediatismo do presente, deve ser indiferente para eles. É um equívoco pensar que vantagens imediatas sejam uma vantagem política. O fruto da política é sempre abrangente, realiza-se enquanto totalidade. Quanto maiores os frutos ou vantagens que determinada política produz, maior a sua abrangência social.

O trabalho do intelectual é plantar idéias políticas e lutar para que elas floresçam. Trocar essa missão por benesses e imediatismos é um trágico equívoco. A defesa de idéias corretas de transformação social tem um custo, que pode ser a perda momentânea de privilégios pessoais, imediatos, quando a preocupação é participar do establishment. Mas se o intelectual tem consciência de seu papel na sociedade, não há de fato uma perda.

Na sociedade brasileira, a traição de um número crescente de intelectuais, em relação à missão que receberam das comunidades excluídas de capital, tem como pano de fundo a globalização. Há uma forte tendência, subjetiva, para a cooptação. É essa realidade que faz o profeta superar, transcender e substituir objetivamente o intelectual de corte gramsciano na sociedade globalizada. (13)

É claro que nem sempre foi assim. No fim dos anos 1950 e começo dos anos 1960, a comunidade intelectual brasileira buscou contribuir para um projeto de desenvolvimento nacional. A diferença básica entre aquele momento e os posteriores vividos pelo Brasil é, em essência, o projeto. Naquela época havia a busca de um projeto nacional, sem uma preocupação unívoca, ou seja, ninguém desejava uniformizar uma solução. Em torno do poder aconteceram discussões e floresceram divergências que permitiram à sociedade como um todo analisar alternativas. E havia os partidos que tinham credibilidade social e participavam de todo o processo de discussão. Tínhamos uma gama ampla de opiniões, indo de uma União Democrática Nacional/UDN até movimentos como as Ligas Camponesas, todos com projetos explícitos.

Hoje não temos projeto explícito, nem por parte do poder, nem dos agrupamentos políticos existentes. Sem projetos políticos ou com projetos guardados em gavetas não pode haver discussão política. Num país onde o aparelho de estado não tem um projeto, os partidos ficam capengas. Não há o que discutir. Sempre foi, dentro da democracia burguesa, função do estado a produção de um projeto próprio de governo. A política é exatamente isso, a discussão dos vários projetos existentes e o exercício da escolha e apresentação desses projetos para a sociedade.

Há uma diferença entre profeta e professor. Nossas faculdades teológicas formam ambos. Mas o número de profetas, enquanto elemento crítico, produtor de desconforto, dentro e fora das faculdades será sempre bem menor que o de professores. Mas isso não quer dizer que sua produção seja menos importante. A faculdade não é unívoca. Abriga quadros diferentes, teólogos, professores, pastores, missionários, ministros de música e de educação cristã, com perspectivas e compreensões diferentes da realidade. É necessário entender que o ensino teológico brasileiro é relativamente novo e seu desenvolvimento traduz uma produção carente de caminhos próprios.

Outro problema é o isolamento do ensino e da produção teológica brasileira. Nossas faculdades e seminários acabam existindo enquanto entidades fechadas, que de forma consciente ou não deixam de lançar suas idéias ao debate acadêmico e nacional. Correm o risco de transformarem-se em grupos sectários, fechados em si mesmos que, por isso, deixam de pensar criticamente a sociedade, apresentar alternativas e pressionar positivamente governo e establishment.

Diante da crise estrutural da intelectualidade, nossas faculdades de teologia estão desafiadas a produzir profetas. Homens conscientes de seu papel histórico, que façam a crítica cristã das políticas reducionistas e antipopulares. Tal postura deve nascer de um ensino teológico que responda aos desafios da globalização e da alta-modernidade (14): necessidade e urgência para a reconstrução da intelectualidade e desenvolvimento do conjunto da sociedade brasileira. (15)

Os desafios da brasilidade
A difusão do saber produzido não é tarefa exclusiva das universidades. A mídia, por exemplo, deveria ser um dos agentes principais nessa tarefa. Acontece que a mídia transformou-se em traidora de sua missão. E todos sabemos que essa omissão é fruto de sua dependência intrínseca e, cada vez maior, das empresas globais, que direcionam a democracia do livre comércio.

Tal fato gerou um desequilíbrio, que pode ser equacionado da seguinte forma: quanto maior o peso da estrutura global menor é a responsabilidade ética da mídia na difusão do saber produzido. Há uma redução da qualidade de pudor e de indignação. Assim, ao invés da palavra profética temos um cronista do establishment.

A questão da justiça social parte de três realidades que estão imbricadas, nesse começo de século, com a globalização. São elas, a materialidade do corpo, a individualidade e a cidadania. A corporeidade é a primeira expressão da pessoa, a forma que possibilita a comunicação com os outros, com a espacialidade e com o meio (16). Essa possibilidade de comunicação é limitada ou facilitada pela individualidade, que socialmente, traduz-se enquanto cidadania. Ou seja, pela maneira como participo, pela sociabilidade.

O problema é que no Brasil a cidadania não se completou. De tal maneira que o corpo aparece como diferença central em relação a outros corpos. Não importa que a individualidade cresça, enquanto consciência da realidade e possibilidades, inclusive através da ampliação de conhecimentos, se a cidadania escapa por falta de espacialidade. Quando alguém tem o poder de tirar a minha espacialidade, de me colocar para fora de minha casa e de meu espaço de produção, dentro da realidade urbana, ou de minha casa e da terra onde produzo, dentro da realidade rural, minha corporeidade torna-se inferior às demais, porque deixo de ser cidadão.

A grande possibilidade do futuro está na comunicação, mas não na comunicação à distância, e sim na comunicação na proximidade. O que não falta hoje é informação, divulgação de dados e fatos verticalizados, numa rapidez e quantidade assombrosos. Isso produz alienação, já que não há discussão de metas, prioridades ou contexto em que esses dados e fatos devam ser inseridos. Nesse sentido, a globalização permite falar na construção antecipada de violência deliberada (17). É assim que atuam os grandes conglomerados da indústria editorial no mundo. Decidem a priori quais serão os best sellers. Criaram um fosso entre o mercado das idéias e a produção teórica do saber. (18)

Por isso, a comunicação está na comunidade (19) nos conglomerados, entre os povos do mundo. São eles que criam, já que a comunicação é a expressão da solidariedade de preocupações, do fato de viver juntos, de depender para continuar vivendo (20) E aí está, sem dúvida, o caminho para outra globalização, que não precisa necessariamente de toda essa sofisticação da alta-modernidade.

Até agora, o mundo da globalização é verticalizado, tem preocupações pragmáticas, localiza-se em centros frouxos, de onde comanda a violência da informação e a violência do dinheiro. Mas isso é uma transição. As comunidades, os grandes centros urbanos, as grandes massas estão criando outra coisa. Respondem à informação e ao pragmatismo com comunicação e emoção. Abandonaram, sem terem consciência disso, a epistemologia do iluminismo.

A emoção permite a liberação de quadros estabelecidos, por isso tem um papel motor na produção do conhecimento. Quando falamos de emoção estamos realçando tendências motivadoras, quer sejam imitação, defensiva, agressiva, gregária, de propriedade, de domínio, de submissão. Isto porque a iniciativa da vontade ou da atividade pode ser insuficiente ou deficiente na descoberta e criação do conhecimento.

O Antigo Testamento é rico nesse tipo de experiência vivencial que faz cruzar emoção e comunicação. O povo israelita se movimentava, lutava, vencia, num processo contínuo de novas emoções e conhecimentos para obter uma conquista final. A fé se constrói dentro do mesmo princípio, dando forças para suportar, em Jó; no agir, em José; e na obediência como fruto da confiança, em Abraão. A própria assinatura da aliança no Antigo Testamento acontece no contexto de uma crise emocional sem precedentes na vida do herói da fé. E como ponto alto dessa dialética emoção/conhecimento na cultura judaica-cristã temos o sermão do monte, onde todo o discurso é carregado de beleza motivadora: dos pobres de espírito é o reino dos céus; os mansos herdarão a terra; os que choram serão consolados, os que têm fome e sede de justiça serão saciados, etc. Assim, as escrituras bíblicas têm transmitido confiança e esperança ao comunicar emoção. E isso não acontece por acaso. Deus leva à emoção. Construiu o humano com possibilidades que não se restringem à razão e à lógica. O mundo é um incentivo à vida. O cosmos é um desafio às nossas emoções.

Os setores médios da sociedade estão alicerçados no consumo, que é um redutor do pensamento, por isso tendem a ver o mundo como uma realidade estática, onde nada muda. A mídia, através do massacre da informação, aprofunda essa falsa consciência e fortalece o enquadramento dos setores médios. É desse enquadramento que nasce sua prosperidade e, como conseqüência, sua dificuldade para pensar a realidade. E a universidade, como centro pensante dos setores médios, perde sua capacidade de gerar reflexão crítica e indignação.

O que vemos, no que se refere às grandes massas, é a racionalidade ceder lugar à emoção (21), enquanto geradora de atividades sociais produtivas. Temos, então, uma produção que nasce das entranhas das massas, a partir de baixo, num nível e intensidade até agora desconhecidas na história humana.

Numa sociedade aparentemente rica (22), a sabedoria passa a ser privilégio daquele que conhece a experiência da escassez. É o caminho da descoberta, do que valho realmente enquanto ser. Nesse sentido, tanto o Brasil, como o continente latino-americano passam a ser historicamente afortunados, por serem potencialmente produtores de sabedoria.

Nesse sentido, estamos deixando a era tecnológica e entrando na era da democracia das grandes massas. O que é uma mudança de qualidade nas relações humanas. As grandes massas, que estão em movimento desde os anos 1950, começam agora a fazer uso da comunicação, enquanto linguagem transformadora da situação dos deserdados da terra. Esse fenômeno que se expande, mas ao mesmo tempo se aprofunda, aponta para algo inteiramente novo no cenário latino-americano.

Ensinar teologia é emocionante
Exatamente porque a função da faculdade de teologia é desenvolver a capacidade crítica e criadora, informar e formar hábitos e habilidades, desenvolver atitudes e ideais, deve procurar romper com a tradição racionalista da modernidade. O futuro pastor, missionário, ministro e teólogo vivem num mundo real e querem transformá-lo (23). A faculdade de teologia que funciona enquanto realidade isolada não entendeu uma das exigências da alta-modernidade: o ensino que não se integra na vida real, em sentido horizontal e também vertical, não é motivador, abandonou o fator experiência. Por isso, enumeramos sete recursos pedagógicos que favorecem a mediação da emoção na produção do conhecimento teológico:

1. Fracasso e sucesso estão carregados de conteúdos emocionais. Na discussão de questões do Antigo Testamento, seja a aliança abraâmica, o êxodo ou a reforma de Esdras e Neemias não importa se o aluno se embaraça em entender os sentidos mais profundos de cada teologia, por desconhecer os pontos de partida: ele sente-se desafiado em descobri-los se as aulas forem emotivamente dirigidas. É necessário, porém, equilibrar sempre fácil e difícil, levando em conta que os mais inseguros são estimulados pelo sucesso e os mais seguros com a possibilidade do fracasso.

2. A segurança depende do conhecimento de possibilidades e realizações, não do conhecimento das teologias da aliança, do êxodo ou das reformas de Esdras e Neemias. Para manter o aluno motivado, para explorar ao máximo suas possibilidades criadoras, o professor deve visualizar uma espécie de conta corrente: o ativo são os resultados dos esforços do aluno ao competir consigo mesmo e o passivo sua preparação em direção à autodeterminação.

3. Competir faz parte da vida, mas nem sempre há justiça na premiação. A faculdade de teologia deve preparar os futuros pastores, missionários, ministros e teólogos para a competição da vida, que é inevitável. Eles vão competir consigo mesmos, vão competir enquanto indivíduo no grupo, vão competir com outros grupos. Como eles têm um ministério cristão é importante ter claro que vão concorrer com outros grupos do ponto de vista teológico, mas não apenas, também vão fazê-lo ao nível cultural, político e social. Sabemos porém que é quase impossível prever como vão participar dessa concorrência e até onde vão conseguir realizar seus interesses particulares, e como tal competição se transformará em mola propulsora de desenvolvimentos posteriores.

4. Prêmio e castigo sempre fizeram parte da educação judaico-cristã. Nos últimos anos, andaram em desuso, mas a realidade tem mostrado que os prêmios satisfazem a tendência natural de auto-afirmação e de obtenção de prestígio, enquanto os castigos contrariam essas necessidades. Quando um estudante erra e não recebe a reprimenda esperada estamos enevoando seu sistema de valores. Estamos confundindo e não educando. Por isso, numa faculdade de teologia é melhor repreender ou elogiar do que ausentar-se de qualquer manifestação diante dos trabalhos realizados. É bom lembrar que o castigo reforça o desprazer de um mau resultado e o prêmio faz a transição da ansiedade à liberação. (24)

5. O aproveitamento da experiência prévia do aluno é um fator espetacular de motivação, mas deve ser reinterpretado, retificado e ratificado. Sua experiência de vida religiosa, cultural, política e social, soluções encontradas para problemas reais vividos na família, na igreja e na comunidade em geral não somente favorecem a integração do aluno no grupo, mas produzem um sentido de correlação entre o meio social e a faculdade. É necessário aproveitar a tendência gregária dos alunos no planejamento e discussão dos cursos, na sua execução e controle, completando-se com o trabalho socializado. Os grupos estruturam-se visando atender a soluções intelectuais e afetivas. E as atividades extra-classe, desde que levem em conta essas motivações, podem ter um importante papel didático.

6. As diferenças individuais devem ser levadas em conta e compensadas através de dois recursos: as entrevistas e a graduação de tarefas. Na primeira, os estímulos tornam-se diretos, mas o sucesso depende em muito da simpatia e da habilidade psico-pedagógica do professor. Na graduação de tarefas oferecemos uma oportunidade de autodeterminação, um incentivo a aprendizagem afetiva.

7. A crítica, enquanto construção aluno-professor, é imprescindível à segurança afetiva. O amor é motivação. O amor permite ao professor encontrar os recursos necessários para educar os futuros pastores, missionários, ministros e teólogos em hábitos, atitudes e ideais, e orientá-los no caminho da verdade e da justiça.

Para Karl Barth, a função da teologia era formular uma pergunta concernente à verdade, donde a tarefa do teólogo seria questionar se a comunidade de fé está a compreender e comunicar o evangelho. No entanto, é preciso evitar que a laicidade se torne senhora absoluta e enquadre a revelação enquanto conhecimento. A resposta a esse desafio é a justiça social proposta pelo evangelho.

A justiça social deve ser a diretriz social da teologia cristã. Mas, toda crítica à falsa consciência e à alienação no âmbito do ensino teológico deve ter como base a verdade (25), enquanto inquirição da compreensão e proclamação do evangelho. Mas se a tarefa é formar e transformar através da verdade e da justiça, a pedagogia é o amor.

Notas

1 Cacaso, "Um Canto de Trabalho", in Mar de Mineiro, Rio de Janeiro, 1982.
2 O termo ideologia foi criado por Destutt de Tracy (1754-1836), a quem Marx chama de “frio zelador da doutrina burguesa” em O Capital. v. I, Paris, Gallimard, 1965, p. 1166. Nesse trabalho, o conceito ideologia será usado sempre no sentido de falsa consciência geradora de alienação histórica, conforme desenvolvido por Marx/Engels em L’Idéologie Allemande, Paris, Gallimard, 1982. Levamos em conta, ainda, dois outros trabalhos: o primeiro de Claude Lefort, Les Formes de l’histoire, Essai d’anthropologie politique, Paris, Gallimard, 1978, e o segundo de L. Althusser, Pour Marx, Paris, Maspero, 1965.
3 A transformação de diversos estados da Europa central e oriental em repúblicas, a partir de 1945, alterou o equilíbrio de poder entre os estados burocráticos e capitalistas, condicionando a política do mundo inteiro e gerando um estado de tensão permanente que ficou conhecido como Guerra Fria. Os laços entre a União Soviética e os países satélites foram estabelecidos através de acordos militares como o Pacto de Varsóvia e econômicos como o Comecom. De forma geral, a política estratégica de Moscou caracterizou-se pela tentativa de conter, na ONU, a política externa das grandes potências capitalistas; estímulo aos movimentos de oposição ocidentais contrários à expansão armamentista; confronto ideológico com o bloco ocidental dentro de suas esferas de influência; e reforço de seus próprios interesses dentro do bloco burocrático.
4 “Essa cisão dramática entre ética e civilização manifesta-se de modo particularmente agudo quando se tem em vista o problema da comunidade ética no contexto da modernidade, ou quando é colocada a questão sobre o destino da comunidade ética numa civilização regida pelo pressuposto da práxis. A experiência milenar das sociedades humanas logrou constituir no curso da história formas de comunidades éticas como a família, os grupos religiosos, as tradições culturais e outras, onde os indivíduos se acolhiam para buscar uma razoável satisfação de suas necessidades simbólicas. O enfraquecimento ou a dissolução dessas comunidades é, talvez, o efeito mais visívil do processo de integração das sociedades mais diversas no âmbito e no espírito (ou na ideologia) da civilização universal moderna. Tornou-se banal a afirmação de que a ideologia verdadeiramente representativa da modernidade é o individualismo”. Henrique C. de Lima Vaz, Ética e Comunidade, in Síntese/Revista Trimestral da Faculdade de Filosofia do Centro de Estudos Superiores da Companhia de Jesus, Belo Horizonte, no 52, jan./mar. 1991, p.7.
5 “O cristianismo e o judaísmo floresceram ou pelo menos sobreviveram em toda espécie de sistema social conhecido da humanidade. Se o capitalismo democrático perecesse durante os próximos cinqüenta anos, como bem poderia acontecer, o cristianismo e o judaísmo ainda sobreviveriam; segundo a promessa de Deus, sobreviverão até o fim dos tempos. É essencial, portanto, não confundir a transcendência do cristianismo e do judaísmo com a sobrevivência do capitalismo democrático. Se o capitalismo democrático desaparecesse da terra, a humanidade mergulharia em trevas relativas e judeus e cristãos sofreriam em regimes bem mais hostis às suas liberdades e capacidades. No entanto, judaísmo e cristianismo não requerem capitalismo democrático. Ocorre somente que, sem ele, ambos seriam mais pobres e menos livres. Entre as economias políticas pode haver alguma coisa melhor que o capitalismo democrático auto-regulador. Se existe, ainda não está à vista”. Michael Novak, O Espírito do Capitalismo Democrático, Rio de Janeiro, Nórdica, 1982, p. 392.
6 A retirada americana deu início à fase final da guerra do Vietnã e ao enfraquecimento do governo de Nguyen Van Thieu, que não resistiu ao avanço das tropas vietcongues. O Acordo de Paris, negociado por Henry Kissinger e Le Duc Tho, foi assinado a 21/01/1973. O documento estabelecia o cessar fogo, a retirada das tropas americanas, a convocação de eleições para o Vietnã do Sul e a libertação dos presos de guerra. Os EUA perderam quase 46 mil soldados e tiveram cerca de 300 mil feridos. No dia 21/4/95 deu-se a arrancada final dos comunistas. Van Thieu fugiu para os EUA e o general Duong Van Minh rendeu-se incondicionalmente ao vietcongue a 30/04/75.
7 "Se a relação entre intelectuais e povo-nação, entre dirigentes e dirigidos - entre governantes e governados -, é dada por uma adesão orgânica, na qual o sentimento paixão torna-se compreensão e portanto saber (não mecanicamente, mas de forma viva), é somente então que a relação é de representação e que se produz o intercâmbio de elementos individuais entre governados e governantes, entre dirigidos e dirigentes, isto é: que se realiza a vida conjunta que, só ela, é a vida social, cria-se um bloco histórico”. Antonio Gramsci, Il Materialismo Storico e la Filosofia di Benedetto Croce, Turim, Einaudi, 1966, p. 115.
8 “A seleção de pessoas que devem se candidatar para aproveitar a educação teológica merece muita atenção. Ninguém pensaria em mandar um time de futebol para representar seu país se não tivesse as qualificações que o destacam da maioria dos jogadores. Paulo salienta fidelidade e idoneidade (2Tm 2:2). Jesus aponta para humildade ou pobreza de espírito. Refere-se à pessoa que é vulnerável, totalmente dependente, no sentido de que não tem nada de si que acha poder oferecer a Deus em troca de qualquer favor dele”. Russell P. Shedd, O Fundamento e Finalidade Última da Educação Teológica, in Vox Scripturae, dez/1966, p. 291.
9 M. Buber, The Prophetic Faith, Nova York, 1949, in por León Epsztein, A Justiça Social no Antigo Oriente Médio e o Povo da Bíblia, São Paulo, Edições Paulinas, 1990, p. 113.
10 E. Jacob, Les Prophètes bibliques sont-ils des révolutionnaires ou des conservateurs, in Csoc, 71, 1963, p. 194.
11 L. Ramlot, Histoire et mentalité symbolique, Exégese et theéologie, Mélanges Coppens, t. III, 1968, p. 188.
12 León Epsztein, A Justiça Social no Antigo Oriente Médio e o Povo da Bíblia, São Paulo, Edições Paulinas, 1990, p. 115.
13 ”Cada instituição teológica, consciente ou inconscientemente, também tem suas pressuposições e tendências ideológicas, mas duvido que a maioria desses centros educacionais tenham refletido com muita claridade e seriedade sobre essa realidade. Essa orientação ideológica estaria vinculada à história da instituição, à formulação da missão da igreja e o papel da educação teológica no cumprimento dessa missão. Donde, cada instituição educará seus estudantes para certa classe de leitura popular de acordo com suas obrigações. Tenho a impressão de que as instituições ecumênicas articulam com maior claridade seus compromissos ideológicos e que se esforçam para que esses se reflitam em seu propósito, curriculum e estruturas. Quanto às leituras de uma orientação ideológica, existem dois perigos possíveis. Uma instituição pode enfocar tanto a convicção de sua responsabilidade sociopolítica que perde sua relação com a igreja nacional e suas congregações. É importante que a instituição teológica vá adiante da igreja e que a oriente, mas que não se adiante a tal ponto que a igreja a perca de vista. Por outro lado, uma instituição teológica de convicções mais conservadoras pode cair na armadilha de preparar ministros de molde histórico de acordo com modelos eclesiásticos que funcionaram nas igrejas por longos anos. Declarações do propósito da instituição e de sua filosofia educacional podem limitar-se a critérios denominacionais e à esfera da igreja local. Essas áreas são importantes e fundamentais, mas pode ocorrer que se preste pouca atenção ao contexto maior na qual se encontra a instituição, e seus graduados não estejam adequadamente preparados para ajudar aos membros das igrejas locais ou a igreja nacional a confrontar a realidade nacional”. M. Daniel Carroll R., Leituras Populares da Bíblia: Seu Significado e Alerta Para a Educação Teológica, in Vox Scripturae, set/1995, pp.139-140.
14 ”O espírito pós-moderno resiste às explicações unificadas, abrangentes e universalmente válidas. Ele as substitui por um respeito pela diferença e pela celebração do local e do particular à custa do universal. A compreensão moderna associava a verdade à racionalidade e fazia da razão e da argumentação lógica os únicos árbitros da crença correta. Os pós-modernos questionam o conceito de verdade universal descoberta e provada graças aos esforços racionais. Eles não estão dispostos a conceber que o intelecto humano seja o único determinante daquilo em que devemos crer. Os pós-modernos olham para além da razão e dão guarida a meios não-racionais de conhecimento, dando às emoções e às intuições um status privilegiado. A busca de um modelo cooperativo e de uma maior valorização das dimensões não-racionais da verdade emprestam uma dimensão holística à consciência pós-moderna. O holismo pós-moderno implica a rejeição do ideal iluminista do indivíduo fleumático, autônomo e racional. Os pós-modernos não procuram ser indivíduos totalmente dedicados a si mesmos, desejam, isto sim, ser pessoas ‘completas’. Os pós-modernos estão bem cientes da importância da comunidade e da dimensão social da existência. A concepção pós-moderna da totalidade estende-se também ao aspecto religioso ou espiritual da vida. Na verdade, os pós-modernos asseveram que a existência pessoal pode se dar no âmbito da realidade divina”. Stanley J. Grenz, Pós-Modernismo, Um Guia para Entender a Filosofia de Nosso Tempo, São Paulo, Edições Vida Nova, 1997, pp. 30, 32, 33.
15 ”Poucas instituições (teológicas) na AL procuraram e conseguiram o reconhecimento das autoridades ou dos sistemas educacionais de seus países. Inclusive, algumas das mais prestigiadas não têm esse reconhecimento. Isto significa que temos certa liberdade para repensar a estrutura e as formas de nossa educação teológica, de maneira que corresponda melhor às necessidades de nossas igrejas. Tanto o crescimento numérico dos evangélicos, como a crescente profissionalização do ministério cristão, empurrarão nossas instituições a buscar o reconhecimento dentro dos sistemas educacionais de seus países. Isso tem vantagens e desvantagens. Uma desvantagem é que, como nos EUA e Europa, limitará a liberdade e funcionalidade da educação teológica em relação à missão das igrejas. No entanto, temos tempo para repensar de maneira funcional, as condições dentro das quais nossas instituições vão se inscrever dentro do sistema educacional de cada país”. Samuel Escobar, Fundamento e Finalidade da Educação Teológica na América Latina, in Vox Scripturae, mar/1966, pp. 72-73.
16 ”São de enorme valor as contribuições de Emmanuel Mounier e Paul Tournier à plena compreensão da ‘pessoa’ como um todo integral. Esses pensadores cristãos nos convidam a superar os reducionismos, como por exemplo aqueles que em nome da espiritualidade negavam a materialidade ao ponto de negar a liberdade e a realidade do espiritual. Uma formação autenticamente cristã tem que regressar à riqueza da antropologia bíblica. Aqui temos que reconhecer que nossa pastoral evangélica foi muitas vezes muito espiritualizante”. Samuel Escobar, idem art. cit., p. 64.
17 ”Só recentemente começou a emergir com clareza a dimensão comunicação/publicidade/cultura como parte integrante do instrumental transnacional. É cada vez mais evidente que o sistema transnacional de comunicação se desenvolveu com o apoio e a serviço dessa estrutura transnacional de poder. É parte integrante do sistema, e por meio do qual é controlado o instrumento fundamental que é a informação na sociedade contemporânea. É o veículo para transmitir valores e estilos de vida aos países do Terceiro Mundo, que estimula o tipo de consumo e o tipo de sociedade requeridos pelo sistema transnacional, em seu conjunto. Politicamente, defende o status quo quando este apoia seus próprios interesses; economicamente, cria condições para a expansão transnacional do capital. Se o sistema transnacional perdesse seu controle sobre a estrutura de comunicações, perderia uma de suas armas mais poderosas; daí, a dificuldade de mudanças”. Juan Somavía, A Estrutura Transnacional de Poder e a Informação Internacional, in Meios de Comunicação: Realidade e Mito, org. Jorge Werthein, São Paulo, Companhia Editora Nacional, 1979, p. 131.
18 ”Com o desenvolvimento dos meios eletrônicos, a indústria da consciência converteu-se em marca-passos do desenvolvimento sócio-econômico na sociedade pós-industrial. Infiltra-se em todos os demais setores da produção, assume cada vez mais funções de comando e de controle, e determina a norma da tecnologia dominante. (...) Além do mais, os meios de comunicação também suprimem a velha categoria da obra que só se pode conceber como objeto isolado, não independente de seu substrato material. Os meios não produzem tais objetos. Criam programas. (...) Os programas da indústria da consciência têm que absorver seus próprios efeitos, as reações e as correções que provocam. Do contrário, tornam-se antiquados de imediato. Por conseguinte, não se podem considerar como meios de consumo, e sim, meios para sua própria produção”. Hans Magnus Enzensberger, Elementos para uma teoria dos meios de comunicação, Rio de Janeiro, Tempo Brasileiro, 1978, pp. 43, 139-140.
19 ”Um elemento valioso dos grandes movimentos de renovação espiritual foi criar meios que permitem que a ação pedagógica e pastoral se personalizem. Os pequenos grupos dentro da igreja, onde se vive o ‘cara a cara’ da vida em comunidade não são uma invenção de algum especialista em psicologia social ou das comunidades de base no Brasil. Foram a prática dos anabatistas do século XVI, os pietistas e dos metodistas primitivos. Sua intenção era precisamente buscar o avivamento da fé e a piedade através do estímulo mútuo que personaliza a vivência da fé na comunidade. Em especial, no modelo wesleyano, através dos pequenos grupos como células, ligas e classes, a ação pastoral se ampliava e possibilitava um pastoreio mútuo dentro das grandes linhas teológicas desenvolvidas pela pregação de John Wesley e a hinologia de Charles Wesley”. Samuel Escobar, Fundamento e finalidade da Educação Teológica na América Latina, in Vox Scripturae, mar/1966, p. 63.
20 ”A fim de criar riqueza, os indivíduos devem ser livres para serem outros. Não devem ser compreendidos como fragmentos de uma entidade, membros de um grupo consangüíneo ou enclave étnico, mas como indivíduos - fontes originadoras de discernimento e opção. Tais pessoas não estão isoladas nem são estranhas entre si. Simpatia, cooperação e associação são para elas tão naturais e tão necessárias, como o ar que se respira. No entanto, quando formam comunidades, elas as escolhem, elegem-nas, contratam em seu nome. O estado natural da comunidade política de pessoas chegou a se constituir não através de posse primordial, mas por compactação constitucional. Antes que a raça humana escolhesse suas comunidades, havia somente uma forma de pietas, um tipo de amor, o amor ao país. Ainda não fora vislumbrada a possibilidade de dilectio. O amor primordial ao país é bom. Mas a escolha, a compactação, a eleição são melhores”. Michael Novak, O Espírito do Capitalismo Democrático, Rio de Janeiro, Nórdica, 1982, p. 415, 416.
21 ”Ambos os autores, Heller e Wallon, apontam para a estreita relação entre emoção, linguagem e pensamento, o que torna impossível seu estudo isolado, pois, desde muito cedo na vida do indivíduo, a sociedade, por meio da linguagem, integra-se no todo que constitui. Por intermédio destes autores reforçamos a nossa constatação da natureza mediacional das emoções na constituição do psiquismo humano. Elas estão presentes nas ações, na consciência e da identidade (personalidade) do indivíduo, diferenciando-se social e historicamente por meio da linguagem. Emoção, linguagem e pensamento são mediações que levam à ação, portanto somos as atividades que desenvolvemos, somos a consciência que reflete o mundo e somos a afetividade que ama e odeia este mundo, e com esta bagagem nos identificamos e somos identificados por aqueles que nos cercam”. Sílvia T. Maurer Lane, A Mediação Emocional na Constituição do Psiquismo Humano, in Novas Veredas da Psicologia Social, Sílvia T. Maurer Lane e Bader Burihan Sawaia (orgs.), São Paulo, Educ/Brasiliense, 1995, pp. 58, 59, 62.
22 ”Outros vícios sociais produto desse ‘cultivo da riqueza’ não podem ser ignorados. Alimentam-se exponencialmente do ‘amor ao dinheiro’ (1 Tm 6:10); generaliza o equívoco que privilegia o ter sobre o ser; desdenha a posição cristã de ter muito e viver com menos do que se tem; promove a cultura do ócio que gasta em prazeres sensuais (Lc 12:16-21). Tudo isso termina destruindo os valores e princípios que fazem possível o próprio crescimento econômico. Qual a melhor medicina contra esses vícios da alma? A Igreja que possui uma mensagem vibrante e realista no social, político e econômico.” Guillermo W. Méndez L., Propostas Para Um Fundamento Teológico da Economia, Vox Scriputurae, mar/1966, p. 95.
23 ”Farei algumas citações do matemático, filósofo e professor, Alfred North Whitehead, extraídos de sua obra The aims of education - ‘Os objetivos da educação’: ‘a compreensão que desejamos é a compreensão do presente insistente. A única utilidade do conhecimento do passado é a de equipar-nos para o presente. Nenhum mal é mais mortal às mentes jovens do que a depreciação do presente. Qualquer mudança fundamental na visão intelectual da sociedade humana deve ser necessariamente acompanhada de uma revolução educacional. Não é possível a existência de um eficaz sistema educacional no vácuo, vale dizer, de um sistema divorciado do contato imediato com a atmosfera intelectual existente. A educação moral é impossível sem uma visão constante de grandeza. Se não somos grandes, pouco importa o que fazemos ou debatemos e o sentido da grandeza é uma intuição imediata e não a conclusão de uma argumentação lógica’. Nós precisamos criar um Brasil - e não ensiná-lo”. Décio Pignatari, Contracomunicação, São Paulo, Editora Perspectiva, 1971, p. 61.
24 ”Do respeito às delimitações advém a verdadeira coragem ante a vida. Inclusive advém a elaboração daquilo que talvez nos seja mais difícil: os limites da própria vida individual, a morte. Os poucos indivíduos que conseguem realizar esta elaboração atingem uma admirável e generosa coragem de viver, a possibilidade de plenamente exercer a vida. Advém-lhes daí a sua dignidade. Os limites não são áreas proibitivas, são áreas indicativas. São meios e modos de identificar um fenômeno. Ao encontrar os limites, podemos configurar o fenômeno e, mais importante, ao esclarcer os limites, qualificamos o fenômeno”. Fayga Ostrower, Criatividade e Processos de Criação, Petrópolis, Vozes, 1986, p.160.
25 Paul Ricoeur, Histoire e Vérite , (Éditions de Seuil, 1967, pp. 28-50.

lundi 31 mai 2010

A Igreja na resistência ao Império

Junto com os teólogos Jung Mo Sung, coordenador do curso de Pós Graduação em Ciências da Religião da Universidade Metodista do São Paulo, e Joerg Rieger, professor da Perkins School of Theology, dos Estados Unidos, Nestor Miguez acaba de lançar o livro Beyond the
Spirit of Empire
(“Para além do Espírito do Império”, ainda sem tradução em português).

Nesta obra, os autores analisam o império global não apenas em suas dimensões políticas e econômicas, mas também a partir das suas construções simbólicas, que invocam atributos divinos como onipresença e onipotência.

O professor argentino ministrou, no dia 24 de fevereiro, a aula de abertura do ano letivo de 2010 do Programa de Ciências da Religião da Universidade Metodista de São Paulo.

Pergunta: Você tem escrito sobre a crítica bíblica ao Império, entendendo-se a palavra Império como realidade política. Como explicaria a alunos de uma Escola Dominical o que é esse Império?

Néstor Miguez: O conceito de Império não é só político. É quandodistintos grupos poderosos detêm o poder econômico, político e cultural, com apoio das forças militares. É uma conjunção de forças que, em lugar de se controlarem e equilibrarem mutuamente, unem-se num processo de dominação.

Pergunta: Seriam, então, os governos autoritários?

Néstor Miguez: Governo autoritário é diferente de Império, nem todo governo consegue estabelecer a condição de Império e juntar outras forças em seu projeto. Governos autoritários que encontram oposição em forças econômicas ou sociais não se estabelecem como Império. A democracia é um sistema de controle. O Império se dá quando a vocação autoritária acompanha-se sem controle.

Pergunta: É o caso da economia de mercado nos dias atuais?

Néstor Miguez: A economia de mercado é uma forma de economia tão boa e tão pecadora quanto qualquer outra. O problema é quando ela se impõe como única forma de gestão econômica e começa a regular todas as relações sociais, aliando-se ao poder militar, político, à indústria cultural... É o império pós-moderno que estamos vivendo. Quando a economia de mercado é limitada pela economia solidária e formas de benefício estatal, ela não tem poder de controlar as decisões políticas e as forças militares e, então, ainda não há situação de
império.

A América Latina é um dos lugares onde se consegue limitar com mais eficiência algumas dessas imposições imperiais. Um ponto crucial foi a reunião de Mar del Plata, em 2005, na qual presidentes latino-americanos se negaram a entrar na ALCA, a Área de Livre Comércio das Américas (acordo proposto pelos Estados Unidos, pelo qual se criaria uma zona sem barreiras alfandegárias, facilitando a entrada de produtos norte-americanos nas Américas Central e Sul). Como o Império não conseguiu reunir no seu projeto forças políticas da
América Latina, rompeu-se essa hegemonia do conceito de livre mercado total.

Pergunta: Você afirma que o Império cria comportamentos e formas de pensar. A colonização da mente é, portanto, mais do que resignação, é a reprodução do comportamento imperial. Você pode dar exemplos de como a Igreja hoje reproduz a mentalidade do Império?

Néstor Miguez: Os exemplos abundam na história. Podemos citar o acompanhamento missionário a projetos imperiais ingleses e europeus do século 19. Ou o catolicismo como empresa de conquista e invasão nos séculos 16 e 17. A configuração imperial exige uma construção cultural, a necessidade de criar sujeitos que aceitem ser súditos. Sujeitos sujeitos ao Império... No mundo de hoje (moderno e pós-moderno) a indústria cultural atua na construção da subjetividade imperial. E igrejas também criam teologias afins ao conceito imperial, como a teologia da prosperidade.

Muito mais sutis são as teologias da paz, ou seja, todos os conceitos que tentam incutir a idéia de que o conflito em si é pecado, que qualquer manifestação do conflito contraria o sentido cristão de amor ao próximo. A contribuição da teologia da paz no esquema imperial é difícil de detectar, mas efetiva. Todo Império se constrói sobre a anulação do outro. Quando se elimina o conflito elimina-se a possibilidade da reclamação, da negação, elimina-se a voz do oprimido.

Jesus diz: “Buscai, pois, em primeiro lugar, o seu reino e a sua justiça, e todas estas coisas vos serão acrescentadas” (Mateus 6.33), inclusive a paz, pois a paz resulta da justiça, como também nos lembra a Bíblia: “O efeito da justiça será paz, e o fruto da justiça, repouso e segurança, para sempre” (Isaías 32.17).

Pergunta: Imagino que, quando você fala do Império e de suas formas de opressão, ouça comentários do tipo “isto é teologia da libertação; é uma ideologia ultrapassada”. Esse é mais um mecanismo de colonização mental ou, de fato, a teologia da libertação não é mais uma boa ferramenta para se pensar os dias de hoje?

Néstor Miguez: A teologia da libertação foi um momento teológico que surgiu em virtude de um contexto. Aquela teologia está vinculada com um momento do passado; o que não significa que o momento atual não exija uma teologia da libertação vinculada com o presente.

É necessário manter o conceito liberador da busca da plenitude da vida humana, da necessidade de justiça (incluindo-se questões de gênero e étnicas) diante do atual contexto econômico do capitalismo financeiro. A teologia da libertação encontrará, portanto, novos desafios para seguir sendo teologia da libertação. Em fidelidade ao passado, mas não como uma reprodução do passado.

Pergunta: Em um de seus artigos você diz que é impossível resistir ao Império que está ao redor e dentro de nós. Mas você fala também da confiança na ressurreição como possibilidade para uma nova realidade, a “esperança escatológica”: “Nossa esperança não está o passado, mas no futuro”. Você não está falando apenas da vida eterna. Que esperança temos para os que estão sofrendo hoje? Que caminhos existem para que a Igreja seja significativa para a sociedade de hoje?

Néstor Miguez: Vida eterna é afirmação de fé cristã que não vou negar. Nego que seja apenas depois da morte. Começa no corpo que hoje habitamos. Portanto, é esperança presente já, ainda que seja de uma forma parcial. Temos o desafio de descolonizar a mente, de nos desfazermos das lógicas imperiais e buscarmos relações humanas não mediadas pelo poder imperial do dinheiro e dos meios de comunicação. Somos desafiados a sermos donos do nosso próprio desejo.

Neste processo, as igrejas podem ser parcialmente (com mais dificuldade em sua face institucional) um espaço para pensar e viver modos alternativos de relação social, não regidos pela dinâmica da concepção imperial.

Isto é Paulo! Vários filósofos políticos seculares (alguns não cristãos e até ateus) estão estudando hoje a teologia de Paulo. Eles estudam como o apóstolo Paulo foi capaz de construir comunidades contra-imperiais em meio ao Império; com que símbolos e dinâmicas ele consegue ir contra o poder dos deuses imperiais.

Hoje precisamos fazer o que Paulo fez, apoiados no poder de um Deus crucificado que ressuscita. O filósofo neomarxista Alan Badiou diz que não há grito mais revolucionário que “viva a vida eterna”, diante do grito de morte eterna do Império. O Império não controla a vida mediante a morte porque a ressurreição estabelece outra dinâmica de vida. “Onde está, ó morte, a sua vitória?”, diz Paulo (1 Coríntios 15.55).

Pergunta: Mas os textos do apóstolo Paulo também já foram usados para justificar situações de opressão e escravidão...

Néstor Miguez: Paulo visava proteger a vida cotidiana. Se ele aconselhasse os escravos a se rebelarem, ele os estaria mandando à morte. No entanto, nas comunidades cristãs, “não há escravo, nem livre”. É o que se vê, por exemplo, na carta a Filemon. Paulo defende outra forma de relação humana não marcada pela lógica do império nas comunidades.

Pergunta: O número de igrejas evangélicas nas periferias brasileiras está crescendo. Também estão crescendo, nestes lugares, os índices de violência, especialmente entre os jovens, e os casos de gravidez na adolescência, reproduzindo o ciclo de miséria. Onde a Igreja está falhando?

Néstor Miguez: As igrejas criaram um espaço do religioso separado da vida cotidiana. É uma espécie de esquizofrenia que permite aplacar certas angústias da vida cotidiana. Era o que o teólogo alemão Dietrich Bonhoeffer chamava de “graça barata”, a graça que elimina a responsabilidade pelo pecado, permitindo que os(as) cristãos(ãs) sigam vivendo a vida normal de todas as pessoas.

“A graça barata é o inimigo mortal de nossa igreja”, dizia ele. A verdadeira graça não apenas perdoa os pecados, mas restitui o pecador e o transforma. É esse o tipo de evangelização que precisamos recuperar, o anúncio de boas novas capazes de criar novas formas de relações humanas.

Há algumas comunidades que conseguem, em nível pessoal, resgatar algumas situações de vida, como a recuperação do alcoolismo ou da violência familiar; mas não têm peso suficiente para transformar o entorno. A ação individual não alcança a comunidade, se não se transforma em ação política. Mas a maioria das igrejas diz: “Não nos metemos em política”.

Pergunta: Você está integrando um dos grupos de estudo da Conferência de Edimburgo 2010 (de 2 a 6 de junho), em comemoração ao centenário da conferência que se considera o início do movimento ecumênico mundial. Você está justamente no grupo que estuda “missão”. No Brasil, existe grande resistência ao ecumenismo porque se diz que ele é contrário à missão, compreendendo-se a palavra missão como evangelização ou, mais especificamente, a busca de novos adeptos para a Igreja. Qual é sua compreensão de missão? E em que medida ela está relacionada ao ecumenismo?

Néstor Miguez: De fato, grupos ecumênicos têm sido vistos como contrários à concepção de missão, e a missão como contrária ao diálogo ecumênico. É preciso, portanto, revisar tanto o conceito de missão quanto o conceito de ecumenismo. A evangelização não visa a ganhar adeptos que mantenham a mesma mentalidade de antes. Missão é processo de anúncio do Evangelho que põe a Igreja em busca de transformação do mundo e de si mesma. É como o apóstolo Paulo a estabelece. Neste sentido, a missão é uma empresa ecumênica.

Contudo, se o ecumenismo significa uma política de bom entendimento pelo qual eu renego minhas convicções e espírito crítico, não é ecumenismo. Sou totalmente ecumênico em minha história e prática de vida. Parte da missão da Igreja é justamente proclamar a absoluta
igualdade dos seres humanos. Mas o diálogo ecumênico não é ocultamento das diferenças. Conflito é parte da missão. Se suspendo minhas convicções, não sou sincero no diálogo. Se entro refratário, também não sou sincero, porque não quero dialogar.

Este é o resultado dos absolutismos da verdade. Jesus foi mais sutildo que isso. Em João, ele promete que o Espírito Santo nos “guiará a toda verdade”. (João 16.13). Então, eu não tenho a verdade, essa é uma busca guiada pelo Espírito Santo. Nessa busca compartilho, dialogo. E o Espírito Santo acompanha estes encontros. “Porque onde estiverem dois ou três reunidos em meu nome, ali estou no meio deles” (Mateus 18.20). Jesus está presente no encontro com o outro.

Fonte
http://alcnoticias.com/interior.php?codigo=16448&format=entrevista&lang=689

mercredi 26 mai 2010

O mal enquanto construção cultural

Pelágio e Paul Tillich, elementos para uma leitura libertária da natureza humana
Professor Dr. Jorge Pinheiro dos Santos
SUMÁRIO

A pesquisa parte da Carta à Demétria (Pelagius, “Letter to Demetrias” in B.R. Rees, The Letters of Pelagius and His Followers, pp.35-70), escrita por Pelágio a uma adolescente. As reflexões de Pelágio sobre a pessoa consideravam existir uma bondade inata na natureza humana, fruto da imago Dei. Dirá que podemos avaliar a bondade humana pela referência ao Criador (2.2), já que Deus transmitira ao ser humano o atributo da vontade livre, que possibilita a escolha livre e o domínio próprio. E Paul Tillich, em sua Teologia Sistemática, afirmou que a alienação é um estado da existência. Nesse sentido, quando o ser humano exerce sua liberdade, sob o estado de alienação presente na existência, sempre tem diante de si a possibilidade do mal. Para ambos teólogos, cada um a sua maneira e em contextos diferentes, o mal não tem existência em si, mas será fruto cultural. Essa leitura liga a feitura do mal à ausência de educação e retira dos ombros humanos a maldição herdada dos primeiros pais. E, como conseqüência, exorta à construção de políticas educacionais formadoras de sociedades solidárias.

INTRODUÇÃO
O debate teológico a respeito da origem do mal e suas conseqüências faz parte da própria história da Teologia. Mas em nossa pesquisa vamos partir de Justino Mártir quando afirmou que o ser humano, por ser racional e livre, é responsável por seus próprios atos. Tal afirmação levou a discussão para a relação existente entre Adão e a alienação existencial. Dentro da tradição teológica da Igreja oriental, no primeiro ser humano estavam tipificadas as separações humanas e o distanciamento humano do Criador. Já para a Igreja ocidental, que a partir do debate com os donatistas, precisava formular a questão dos sacramentos e o papel sacerdotal, Adão passou a ser visto como fonte do mal humano e não protótipo. Assim, essa discussão foi polarizada no debate de dois teólogos: o monge Pelágio e Agostinho de Hipona. Séculos mais tarde, a crítica da Reforma ao racionalismo tomista trará o debate à tona. Só que tal discussão foi feita sob novas abordagens, tais como: qual é o destino que Deus reservou ao ser humano? Assim, a discussão a origem do bem e do mal levarão ao tema do destino humano.

PELÁGIO E A LIBERDADE

Aqui vamos voltar no tempo e procurar reconstruir o pensamento do monge Pelágio (354-418). Sabemos que saiu da Grã-Bretanha, onde tinha jogado um papel importante na formação do cristianismo celta. Era monge e muito respeitado na Grã-Bretanha tanto entre o clero como entre os líderes celtas não religiosos. Nunca foi visto como herege ou alguém que não merecesse a confiança de seus companheiros. Foi um precursor do humanismo, pois acreditava nas possibilidades da pessoa e via o mal como um produto social. O que para a época era simplesmente um pensamento revolucionário. Estas idéias de Pelágio não combinavam com o momento teológico vivido pela Igreja ocidental. Nessa época, a Igreja enfrentava o pensamento donatista na África do Norte. Para os donatistas a eficácia dos sacramentos dependia do estado espiritual dos sacerdotes que os ministravam. Essa idéia trouxe um problema para a Igreja cristã ocidental. Se ela concordasse com tal visão, quem garantiria o estado de santidade do clero que ministrava os sacramentos? E se não concordasse, por que então os sacramentos não poderiam ser ministrados também pelos leigos? Mas, se a declaração dos donatistas fosse falsa, então os sacramentos poderiam ser ministrados pelo clero, sem que se cogitasse seu estado espiritual diante de Deus. A acusação de heresia conservaria, desta forma, a estrutura da Igreja. Naquela época, muitos homens da Igreja, inclusive Agostinho, defendiam que ela era uma instituição cuja santidade vinha dos sacramentos e não da fé das pessoas. Assim os sacramentos produziam santificação e não eram frutos da vida piedosa de homens santos. A igreja celta, porém, não viu a discussão dessa maneira. Para Pelágio e seu discípulo Caelestius, a questão girava ao redor do livre arbítrio. Não concordavam com a idéia defendida por Agostinho, que até aquele momento não era majoritária, de um pecado original que contaminou a humanidade.

Como os trabalhos de Pelágio foram proibidos de circulação e posteriormente queimados, chegou até nós pouquíssimo de sua produção. Mas, ainda temos condições de examinar a Carta à Demétria , escrita a uma adolescente e que nos possibilita estudar sua visão sobre a natureza humana.

"Sempre que eu tenho que falar no assunto da instrução moral e na conduta de uma vida santa -- disse o monge --, costumo demonstrar o poder e a qualidade da natureza humana e primeiramente o que ela é capaz de realização" (2.1).

Uma vida de pureza moral, para Pelágio, só podia ser conseguida a partir de dois componentes, aquilo que é bom na natureza humana e o dom da graça (9.1). Esse é o tema central dessa sua epístola.

“[Em vez de considerar os mandamentos de Deus como privilégio] ... lamuriamos a Deus e dizemos: Isso é muito duro! Isso é difícil demais! Não podemos fazê-lo! Somos apenas humanos e, portanto, somos impedidos pela fraqueza da carne! Que loucura! Que ostensiva presunção! Ao agir assim, acusamos o Deus da sabedoria de dupla ignorância – ignorância de sua própria criação e de seus próprios mandamentos. Seria como se Deus, esquecendo-se da fragilidade da humanidade – a qual, afinal de contas, foi criada por ele mesmo! -- nos tivesse ordenado algo que não pudéssemos fazer. E, ao mesmo tempo (que Deus nos perdoe!), imputamos ao justo injustiça e crueldade Aquele que é santo, primeiro, ao reclamar que Deus nos ordenou o impossível e, segundo, por imaginar que alguns serão condenados por Deus pelo que não poderiam evitar; de outra forma, que – e essa é a blasfêmia suprema! -- concebe-se que Deus esteja buscando nossa punição, em vez de nossa salvação”.

As reflexões de Pelágio sobre o ser humano não estão distante daquelas apresentadas pelos pais da Igreja oriental, que também consideravam existir bondade na natureza humana, fruto da imago Dei. Por isso, dirá que podemos inferir a bondade do ser humano a partir do amor do Criador (2.2). Assim, a divindade transmitiu à humanidade os atributos da liberdade, que possibilitam a livre escolha e o domínio próprio. Isto porque Deus desejava para o ser humano a liberdade de ação e não a ação sob coerção. Por esta razão, deixou-o livre para fazer suas próprias decisões e para escolher entre vida e morte, entre bem e mal, e viver conforme lhe parecesse melhor (2.2). Pelágio, no entanto, sabia que boa parte dos cristãos acreditava que se o ser humano tinha sido criado com a possibilidade de realizar o mal, então não tinha sido criado perfeito. Ao contrário, o monge celta acreditava que o ser humano tinha sido criado para realizar o bem, mas não compulsoriamente. E a partir dessa compreensão afirmava que se não fosse assim não haveria humanidade real e nem virtude verdadeira (3.1). Aqui está o centro da espiritualidade pelagiana: a crença de que se negarmos a liberdade finita do ser humano negamos a possibilidade da vida moral.

Esta bondade da pessoa, para Pelágio, não foi destruída com a alienação existencial. O ser humano continua a carregar dentro de sua natureza a bondade da criação, uma graça, uma santidade natural (4.2). E isso pode ser visto na vida de pessoas que não são cristãs. Muitas delas são tolerantes, generosas e rejeitam os prazeres do mundo. São amantes da justiça e buscam o conhecimento (3.3). O que o levou a considerar que é impossível trilhar o caminho da virtude se não houver nos corações a esperança de alcançá-la. Não haveria virtude se em seu esforço as pessoas achassem que nunca haveriam de encontrá-la (2.1). Por isso, Pelágio abominava a covardia diante dos desafios da vida. Ao contrário, exatamente porque a carne é frágil, todos são exortados a vencê-la e isso é possível (16.2). A bondade e a capacidade de viver uma vida santa estava e está nos planos de Deus porque ele não criou o ser humano para a punição ou para a danação, mas para a liberdade. Negar a possibilidade da bondade humana e a capacidade de viver uma vida santa não é somente pessimismo moral, é uma blasfêmia: significa que Deus não sabe o que fez, ou que não levou em conta a fragilidade humana, ou que ordenou algo impossível e deseja não a salvação humana, mas a punição (16.2).

O monge celta não responsabilizava a natureza por aquilo que é a escolha de pessoas livres. Considerava que não se pode culpar a natureza, pois em ambos testamentos tanto o bem como o mal são apresentadas como ações voluntárias (7). Isto é demonstrado na vida de Caim e Abel, e Esaú e Jacó, irmãos de sangue que fazem escolhas diferentes. O monge dizia que quando os méritos diferem na mesma natureza, a escolha é a causa da ação (8.1). Logo, a alienação existencial não poderia ter corrompido a natureza humana ao ponto de incapacitá-la de escolher entre fazer o bem ou fazer o mal. O efeito da alienação existencial deve ser entendido mais em seus efeitos ambientais do que éticos.

Pelágio não acreditava que a natureza humana estivesse degenerada pela alienação existencial dos primeiros seres humanos. Defendia que eram os atos e não a natureza que levavam o ser humano a herdar o mal. Por isso, discordou de Agostinho quando este afirmou que o ser humano só poderia ganhar a salvação através da Igreja. Considerou a idéia de pecado original sem base neotestamentária e afirmou que todos são concebidos sem pecado e, diante de seus delitos, são salvos pela graça de Deus, que não merecemos, que nos é entregue através de Jesus Cristo e sua Igreja. Até aquele momento, a visão de Pelágio e seus seguidores traduziam a idéia da liberdade de escolha, e da natureza humana que tinha sido alienada, mas não degradada.

A compreensão da proposta pelagiana nos remete à importância da educação na construção da ética cristã. A partir daí, a ênfase não estará no conhecimento de Deus, mas na imitação dele. Nesse sentido, a teologia de Pelágio é uma teologia do caminho, onde está presente a afirmação da vida, e como consequência, do amor, da justiça e da verdade. E se o ser humano é colocado entre as alternativas da vida e da morte, do bem e do mal, é porque pode escolher a vida e o bem. E o princípio da vida aponta para o amor, porque se o ser humano deve ser imitador de Cristo, a ênfase recairá sobre a justiça e a misericórdia. Ora, a justiça é inseparável da liberdade e, por isso, o caminho se faz ao andar: deve ser trilhado, porque aí estão os desafios da existência humana. E é esse sentido de realidade e sua prática no cotidiano que leva a teologia cristã à política. Aqui, o discurso contra-autoritário de Pelágio cobra força, pois o cristianismo deixa de ser religiosidade privada e de padrões de pensamentos para se articular com as demandas das comunidades.

TILLICH E A LIBERDADE

Para o teólogo teuto-americano Paul Tillich, o estado da existência é o estado da alienação. Ou seja, o ser humano se encontra alienado do fundamento do seu ser, dos outros seres humanos e de si mesmo. E essa alienação é fruto de sua ruptura com o mundo ideal da criação, da natureza perfeita, o que dá origem à consciência. Mas, para Tillich, é importante entender a relação entre alienação e a sociedade. Para ele, uma comunidade é uma estrutura de poder, onde existe conflito potencial ou real, mesmo que exista ação solidária da comunidade como um todo. Na comunidade não existe culpa coletiva, embora exista destino universal e, por isso, as pessoas participam deste destino. E, para Tillich, o destino se acha inseparavelmente unido à liberdade , que para ele é experimentada como deliberação, decisão e responsabilidade.

Numa abordagem teológica, a questão da origem é fundamental para o estudo do mal, pois posiciona o mal em condições e momentos diferentes, conforme a leitura que se faça de Gênesis. De todas as maneiras, a relação origem versus mal sublinha o surgimento do ser humano como imago Dei, o que permite a leitura de que aquele ser era pessoa e que, por isso, poderia usar sua liberdade como melhor lhe aprouvesse. Mas no uso da liberdade estava contida a possibilidade de se opor ao que estava definido e nomeado. A alienação consiste nisso, na decisão autônoma do ser humano de distanciar-se da ordem e do estabelecido. Esse deslocamento, de ruptura com a natureza, permitiu ao ser humano colocar-se como centro de sua vontade e de seu fazer, produzindo distanciamento da natureza, mas consciência de sua existência. Nesse sentido, essa ruptura, esse distanciamento é um encontro, e aí está colocado o mal. Ou, como diz La Boétie, “que mau encontro foi esse que pode desnaturar tanto o ser humano, o único nascido de verdade para viver francamente, e fazê-lo perder a lembrança de seu primeiro ser e o desejo de retomá-lo?”. E Clastres, analisando o texto desse libertário do século 16, que influenciou o pensamento huguenote francês, nos apresenta uma definição do mal existencial:

“Mau encontro: acidente trágico, azar inaugural cujos efeitos não cessam de ampliar-se, a tal ponto que é abolida a memória do antes, a tal ponto que o amor da servidão substituiu-se ao desejo de liberdade. O que diz La Boétie? Mais do que qualquer outro clarividente, afirma inicialmente que essa passagem da liberdade à servidão deu-se sem necessidade, afirma acidental – e, desde então, que trabalho pensar o impensável mau encontro!”.

Assim para Clastres, antropologicamente, o mal é corrupção da liberdade do ser humano por ele próprio que, por essa corrupção, se coloca em estado de servidão voluntária. Teologicamente, podemos dizer que é deixar-se dominar por suas próprias paixões. Assim, o entendimento do mau encontro enquanto alienação e abertura à perda de liberdade forma o pilar de uma teologia libertária, já que o problema do mau encontro passa a estar ligado à liberdade do ser humano.

A alienação humana tem como conseqüência descrença, hybris e concupiscência, expressões de um estado que se opõe ao ser essencial do humano, sua potencialidade para o bem. Essa compreensão está presente na tradição judaico-cristã. Assim, no Antigo Testamento temos uma tríade conceitual nas idéias de aliança, fidelidade e constância, cujo centro epistemológico é a liberdade. E no Novo Testamento o vértice dessa discussão é o conceito de destino.

Paralelamente ao pensamento hebraico, a cultura grega apresentou uma leitura especial e trágica do conceito de destino, que traduzia a maneira de pensar e viver do helenismo. Na sua época, por razões apologéticas, o apóstolo Paulo apresentou um conceito de destino que resgata, mas vai além do conceito veterotestamentário de aliança. Entre os gregos, a religião e os cultos de mistérios traduziam uma luta contra o destino, era uma tentativa de colocar-se acima dele. Para o ser humano helênico a luta com o destino era inevitável, porque se apresentava como poder sagrado, mas destrutivo. Envolvia o ser humano numa culpa objetiva. Os cultos de mistério, dessa forma, ofereciam uma purificação das mãos de deuses que manipulando o destino, excluíam do seres humanos qualquer possibilidade de liberdade.

Da mesma maneira, a filosofia helênica, através do conhecimento, procurava elevar o ser humano à transcendência, despojando-o dos objetivos e formas da vida imediata, para lançá-lo através da abstração em direção ao ser puro. Mas, nunca conseguiu tal objetivo, e o mundo helênico permaneceu um mundo de culpa objetiva, castigo trágico e profundo pessimismo, que atravessou a produção teológica de gênios como Anaximandro, Pitágoras, Demócrito, Sócrates, Platão e Aristóteles. Nas discussões do helenismo pós-platônico, possibilidade e necessidade foram conceitos chaves. Mas o medo de demônios continuou a obscurecer o espírito helênico. O epicurismo tentou, em vão, libertar seus seguidores do medo, mas ao definir o conceito de possibilidade absoluta [ou azar], abriu o espaço para o medo em sua argumentação filosófica.

Apesar dessa visão trágica, os gregos eram apaixonados pela vida e é esse paradoxo que dará riqueza a esta que será uma das mais expressivas culturas da humanidade. Mas, em última instância, a luta do filósofo -- superar o destino -- permaneceu inalterada em todo o helenismo.

Dessa maneira, a filosofia grega caminhou para ceticismo, já que a presença do mal na existência humana se mostrava avassaladora. Ao mesmo tempo, enquanto força sobre-humana do destino e personificação do mal, as nações eram submetidas ao poderio romano. Diante desse destino trágico, o mundo helênico ansiava por um destino libertador.

E foi assim que o cristianismo se apresentou como vitória do humano sobre o medo trágico e sobre a matéria que resiste. Colocou-se como negação radical do caráter demoníaco da existência em si, dando a esta um valor essencialmente positivo e valorizando os acontecimentos da ordem temporal. Assim, para o cristianismo, ao contrário do que pensava Anaximandro, a ordem do tempo não levava apenas ao transitório e perecível, mas também à possibilidade de algo totalmente novo, um propósito e um fim que dá pleno significado à vida humana.

Para esse jovem cristianismo, o tempo triunfa sobre o espaço. O caráter irreversível do tempo bom, do kairós, substitui o tempo cíclico, transitório e perecível do pensamento helênico. A partir desse momento, destino traz libertação no tempo e na história. Antes, a filosofia buscava desesperadamente a libertação, agora a libertação apodera-se da filosofia dando origem à teologia. Assim, a teologia jogou fora o destino demoníaco e se apropriou de suas formas lógicas e de seus conteúdos empíricos. O transitório e perecível da filosofia helenística perdeu importância na construção do pensamento cristão oriental, que se desenvolveu a partir da idéia da liberdade se constrói historicamente e acontece num tempo bom.

Mas voltemos um pouco atrás, para entendermos esse processo. Dentro da visão do apóstolo Paulo, que fez a correlação entre o pensamento cristão palestino e o helenismo, destino traduz a idéia de que os limites estão dados de antemão, ou seja, da lei transcendente na qual está imbricado o conceito de liberdade. Assim, destino implica numa tríade conceitual: (1) o destino está sujeito à liberdade; (2) destino significa que a liberdade também está sujeita à lei, e aqui vamos entender lei como natureza; (3) destino significa que liberdade e lei ou natureza são interdependentes e complementares.

Analisando o conceito cristão exposto por são Paulo , podemos dizer que a liberdade humana está ligada às leis universais, de tal forma que liberdade e natureza se encontram intrinsecamente entrelaçadas. Aqui Paulo trabalha com um conceito judaico, de que lei é imposição de limites, que faz parte da revelação, e que se expressa pela primeira vez como criação de Deus. Mas para Paulo, se o mal é uma probabilidade que surge da dialética lei/natureza versus graça/liberdade, o julgamento, a decisão, é inerente ao ato humano. Ou, nas palavras de Tillich: “destino é aquilo do qual surgem nossas decisões. É a base indefinidamente ampla de nosso eu centrado; é a concretude de nosso ser que torna todas nossas decisões nossas decisões”.

Assim, a certeza de que o destino é a liberdade e não o mal e tem um significado realizador e não destruidor é a peça chave do pensamento paulino, que coloca o Cristo, aquele que possibilita a escolha certa, acima do destino. Mas, devido à alienação, em nós humanos há sempre um elemento de aventura e risco diante da realização da liberdade. Ainda assim, devemos correr este risco, sabedores de que este é o único meio através do qual a construção daquilo que é bom pode ser viabilizado. Por isso, o Novo Ser, aquele que pode ser buscado fora da história e pode ser entendido como alvo da história, que apresenta a universalidade da expectativa humana por uma nova realidade, deve se refletir no pensamento humano, embora não exista um ato do pensamento sem a premissa de sua verdade incondicional.

Quando mantemos relação com o Novo Ser, que leva o finito à plenitude, deixamos de temer a ameaça do destino demoníaco, aceitamos o lugar que cabe ao destino em nosso pensamento. Podemos reconhecer que desde o princípio estivemos submetidos ao destino e que o nosso pensamento sempre desejou livrar-se dele. Tarefa teológica da maior importância, na análise cristã do destino é saber relacionar Novo Ser, a busca de um novo estado de realidade, e kairós, a plenitude do tempo. O Novo Ser deve alcançar o kairós, o tempo oportuno, tempo de agir. O Novo Ser deve envolver e dominar as leis universais, a plenitude do tempo, a verdade e o destino da existência. Para o cristianismo paulino, a separação entre Novo Ser e existência chegou ao fim. O Novo Ser alcançou a existência, penetrou no tempo e no destino. E isso aconteceu não como algo extrínseco a ele próprio, mas porque é a expressão de seu próprio caráter intrínseco, sua liberdade.

É necessário, porém, entender que tanto a existência como o conhecimento humano estão submetidos ao destino e que o imutável e eterno reino da verdade só é acessível ao conhecimento liberto do destino. Dessa maneira, para o ovem cristianismo, ao contrário do que pensavam os gregos, todo ser humano possui uma potencialidade própria, enquanto ser, para realizar seu destino. E quanto maior a potencialidade do ser, que cresce à medida que é envolvido pelo Novo Ser, mais profundamente está implicado seu conhecimento no destino.

Assim, destino passa a ser compreendido como serviço àquilo que liberta, ao Novo Ser, num novo kairós, que emerge das crises e desafios de nossos dias. Quanto mais profundamente entendermos nosso destino, no sentido grego de prokeimai, estar colocado, ser proposto, e o de nossa comunidade, tanto mais livres seremos. Então, a ação humana será plena de força e verdade.

Mas, a vontade humana não é neutra e a liberdade humana sempre se dá dentro de uma realidade condicionada. Assim, a liberdade entende-se como relação dialética entre lei/natureza e graça/liberdade. Quando Hegel afirmava que a liberdade é a consciência da necessidade cometia um erro porque descartava a realização da liberdade. É por isso que para Marx liberdade é práxis. Ora, para Marx, práxis é consciência da necessidade mais ação transformadora. Ou seja, em termos teológicos, consciência da lei/natureza diante da alienação existencial se traduz no conceito grego metanóia, ação transformadora.

Por isso, para a jovem Igreja cristã, o mal, ao contrário do que pensavam os gnósticos, não é um ser, mas um fazer. Em relação ao imediato é um estado e no que se refere à espécie humana é um domínio. Numa definição teológica, o mal acontece perante aquilo que minha liberdade é desafiada, quando meu julgamento tem a possibilidade de escolha entre aquilo que é bem e aquilo que é mal. Ou seja, o mal surge como feitura humana. Nesse sentido, o mal não se apresenta sem agente moral e nem pode acontecer fora da cultura. Toda vez que o ser humano realiza sua escolha, a lei/natureza está presente: assim o mal é um antítipo da liberdade.

Por isso só podemos responder ao mal reconhecendo que o mal é feitura minha e de minha espécie. A partir daí, não podemos perguntar porque o mal existe, como se fosse um ser. Mas devemos nos perguntar, como fez Agostinho, o que me leva a fazer mal? O que nos exorta à ação libertária, já que o mal é o que não devia estar. É a partir daí que nasce um ética libertária, de combate a este estado e domínio na vida de meu próximo e da comunidade.

CONCLUSÃO

Em 1970, Ballestero ao analisar o caráter radical da liberdade no pensamento de três gênios da modernidade, Nicolas de Cusa, Lutero e Marx, disse que “neles, em um e outro plano, liberdade significa abolição da lei, colapso da determinação exterior, e não – à maneira conservadora – comportamento que se adequou aos limites da ordem. Liberdade para os pensadores que aqui analisamos significa a destruição de toda ordenação que seja exterior e anterior ao próprio ato livre.”

Os ensaios de Ballestero mostram que a revolução teórica empreendida por Cusa e Lutero não era gratuita, nem produto de um simples ato ideal, mas se enraizou no tecido histórico do movimento de decomposição global da formação social pré-capitalista. Cusa e Lutero clamam por essa destruição. Sem entrar nos detalhes das mutações vividas no século 16, com a ruptura do equilíbrio cidade/campo, o surgimento das manufaturas e consolidação do sistema de trabalho assalariado, vemos que a dimensão negativa da condição humana na incipiente sociedade capitalista será percebida por Cusa e Lutero: a autonomia do sujeito se dá como dor. Mas ambos consideram essa subjetividade liberada pelo início da arrancada capitalista como desequilíbrio. Assim, tanto Cusa quanto Lutero partem da negação dessa subjetividade alienada do nascente capitalismo, considerando que deve ser superada para que o Espírito floresça. Aí, então, teríamos o fim da inessencialidade do sujeito alienado e a inserção deste na totalidade objetiva. Mas isso não pode acontecer sem a transformação dessa realidade objetiva em realidade espiritual, que sustém o ser humano. Dessa maneira, para os dois pensadores, o Espírito constrói num nível superior o universo anteriormente negado.

O jovem Marx, seguindo os passos de Hegel, partirá dessa discussão. Para ele, a religião é a realização imaginária da essência do ser humano, já que essa essência do ser humano não tem realidade alguma. Mas há um ponto de interligação nessa perspectiva, quando vê, assim como Cusa e Lutero, a liberdade como abolição da legalidade, como coincidência do momento subjetivo com o momento objetivo, e como responsabilidade suprema do ser humano. Esse ponto de vista marxiano está expresso na Introdução à Crítica da Economia Política , texto que só foi descoberto em 1902 e publicado por Kautsky em 1903.

Já para Lutero, “o cristão é senhor de todas as coisas e não está submetido a ninguém. O cristão é servo em tudo e está submetido a todo mundo” . Livre e não submisso, mas servo e escravo do ideal da liberdade. Para Lutero, o ser humano existe como estrutura ontológica dual. Sua conceituação traduz a ansiedade teórica do século 16, mas traduz-se em superação da subjetividade alienada. O cristão é senhor de todas as coisas, não está submetido a ninguém e esse senhorio radical é produto da graça/liberdade. A apropriação da liberdade é fruto da certeza que transforma a subjetividade alienada em realidade objetiva. Nesse sentido, o caráter espiritual da autonomia do cristão se dá como processo. Morre o imediato, o alienado, e tem início a construção de uma segunda natureza. A liberdade surge como deslocamento do ser humano natural, como distanciamento crítico daquilo que foi naturalmente dado. O primeiro momento da liberdade parte de uma concepção trágica, porque o senhorio num primeiro momento implica em servidão, criando tensão e luta... “É necessário desesperar-se por você mesmo, fazer com que você saia de dentro de você e escape de sua prisão” . Superada a tensão, temos a liberdade enquanto destino, uma dimensão de combate. Mas, se não existe vida pessoal sem o encontro com outras pessoas dentro de uma comunidade, e não existe comunidade sem a dimensão histórica de passado e futuro, é aí, na comunidade, que o ser humano constrói a liberdade que vai além, a liberdade que é fonte de realidade e ação.

BIBLIOGRAFIA
AZKOUL, Fr Michael, The Teachings of the Holy Orthodox Church. Vol. I. Dormition Skete Publications: Buena Vista, Colorado, 1986.
BALLESTERO, Manuel, La Revolución del Espíritu (Tres pensamientos de libertad), Madri, Siglo XXI, 1970.
FERGUSON, John, "In Defense of Pelagius," in Theology, Vol. 83, March 1980.
______________, Pelagius: A Historical and Theological Study. W. Heffer and Sons: Cambridge, 1956.
PELAGIUS, "Letter to Demetrias" in B.R. Rees, The Letters of Pelagius and His Followers, pp. 35-70.
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