jeudi 20 juin 2024

Pede-se ser levantado

A existência a partir da leitura
Ou, pede-se ser levantado!

"Há que ler o desejo: sem terra, sem pátria e sem objeto, ele vaga por um deserto, cujas trilhas conduzem o leitor à experiência limite mais-além do que aparece na imagem”.

Betty Fuks no seu livro Freud e a Judeidade, a vocação do exílio [Jorge Zahar Editor, 2000, pp. 127-133, conta que Freud, um dia depois do sepultamento do pai, sonhou com um cartaz onde estava escrito: “Pede-se fechar os olhos”. Mais tarde, em carta a Fliess, o pai da psicanálise falou dos sentidos subjetivos da frase: “era parte da minha autoanálise, minha reação diante da morte de meu pai, vale dizer, diante da perda mais terrível na vida de um homem”.

O fazer da existência tem a sua magia. Se alguém estivesse além do tempo, além do espaço, haveria de debruçar-se sobre esse fazer humano, que tem seu próprio tempo e seu próprio espaço. E que integra a existência de cada ser na história dos fazeres humanos. É por isso que Bereshit, o primeiro texto da bíblia hebraica começa por um ponto zero. O tempo zero vai de um mítico entardecer à meia-noite do novo espaço-tempo. Seria aquela decrescência quando o luminar deixasse de brilhar no espaço de forma gradual.

Por isso, dizemos que o tempo do não-ser não é uma fratura do tempo, mas é tempo da história. Qohelet, o sábio judeu, não contemplou a passagem do tempo, mas a vinda do tempo. O tempo nada ou pouco significa para aquele que está além do tempo, além do espaço: mas existe um sentido de tempo para o humano. A conclusão de Qohelet é que temos de ser no tempo para dar valor à eternidade que brota do nada do não-ser.

Não vou entrar nos detalhes das leituras que o próprio Freud fez da frase que apareceu em seu sonho. Diria ao leitor, apenas, que vale a pena ler "Freud e a Judeidade”.

Pretendo aqui levantar o desafio de Fuks: “há que ler o desejo: sem terra, sem pátria e sem objeto, ele vaga por um deserto, cujas trilhas conduzem o leitor à experiência limite mais-além do que aparece na imagem”. É a partir dessa hermenêutica, que vamos ler trechos do final da primeira carta de Paulo aos Coríntios, em tradução minha.

“... Foi sepultado e foi despertado do sono no terceiro dia, de acordo com o escrito”.

A frase acima e a continuação do texto é uma das mais importantes sobre a egeiró e anástasis, duas expressões gregas não substancialmente diferentes, que sintetizam a teologia da anástase dos cristãos do primeiro século. Mas tarde nós criamos a partir delas o conceito de ressurreição, peça fundante da teologia cristã. Tal conceito, ressurreição, criou um padrão de imagem que dificulta a experiência do ir além. Por isso, somos obrigados a fazer a desconstrução histórico-filosófica das expressões gregas.

As leituras da anástasis e egeiró remontam a Homero e ao grego antigo e com seus sentidos correlatos axanástasis, anhistémi e anazaó, que podem ser traduzidas por “ficar de pé”, “ser levantado” e “voltar à vida”, foram fundamentais para a construção do conceito cristão.

Mas foi com Platão, na literatura filosófica, que vamos encontrar um debate fundamental para a teologia da anástase, quando apresenta a alma enquanto semelhança do divino e o corpo enquanto semelhança do que é físico e temporário.

Platão, em Fédon, num diálogo entre Sócrates e seus amigos defendeu a ideia da imortalidade da alma. Sócrates foi condenado à morte por envenenamento, mas não teve medo, por crer ser a alma imortal. Para Platão, as almas possuem semelhanças com as formas, que são realidades eternas por trás do mundo físico, natural. Nesse sentido, para Platão, o corpo morre, mas a alma não. Ele parte do padrão cíclico da natureza, frio, quente, frio; noite, dia, noite. Assim, os mortos despertam numa nova vida depois da morte.

E dirá através de Sócrates em Fédon: “perguntemos a nós mesmos se acreditamos que a morte seja alguma coisa? (...) Que não será senão a separação entre a alma e o corpo? Morrer, então, consistirá em apartar-se da alma o corpo, ficando este reduzido a si mesmo e, por outro lado, em libertar-se do corpo a alma e isolar-se em si mesma? Ou será a morte outra coisa?”

Paulo conhecia a discussão filosófica grega acerca da anástase, já que isso se evidencia em seus escritos, principalmente no capítulo 15 de sua primeira carta aos coríntios, que estamos analisando. Mas, sem dúvida, construiu seu conceito também levando em conta a tradição judaica, acrescentando novidades ao debate. Existem referências ao ser trazido de volta à vida nas escrituras hebraico-judaicas. Mas a preocupação judaica era existencial. Mais do que remeter a um futuro distante, embora tais leituras estejam presentes na fala de alguns profetas, as histórias de anástase relacionadas aos profetas Elias e Eliseu falam do aqui e agora. Aliás, este último, mesmo de depois de morto, trouxe à vida um defunto que foi jogado sobre sua ossada. Ao tocar os ossos de Eliseu, o morto ficou vivo de novo e se levantou. Esse caminho será a novidade da compreensão cristã-helênica da anástase.

“Somos arautos de que o ungido foi levantado do meio dos mortos: como alguns podem dizer que não há o ser erguido dos mortos? E, se não há o despertar do sono da morte, também o ungido não foi levantado. E se o ungido não foi levantado, é inútil o que falamos e também inútil a nossa crença”.

Outras fontes de Paulo foram o profeta Daniel e literaturas helênicas do judaísmo, que trabalharam com a ideia de “despertar subitamente do sono”. Durante o período helênico ideias novas afloraram em meio à vida judaica, entre elas a esperança da recompensa escatológica apresentada nas profecias apocalípticas, como em 2Macabeus 7; Daniel 12:2-3 e o Escrito de Damasco 4:4, que remetem concretamente à anástase.

Assim, os elementos novos da compreensão paulina da anástase já aparecem delineados no profeta Daniel:

“Muitos dos que dormem no pó da terra despertarão, uns para a vida eterna, e outros para vergonha e horror eterno. Os que forem sábios, pois, resplandecerão como o fulgor do firmamento; e os que a muitos conduzirem à justiça, como as estrelas, sempre e eternamente”.

Paulo, porém, somará um componente existencial à compreensão de Daniel, dirá que a morte, o maior de todos os odiados pela espécie humana, será privada de força.

“Caso o ungido só sirva para esta vida, somos as pessoas mais dignas de lástima. Mas o ungido foi levantado dentre os mortos e foi o primeiro fruto dos que foram colocados para dormir. Porque se a morte chegou pela humanidade, também o ungido dará à luz nova vida. Como morre a espécie, no ungido ela recebe vida. E isso acontece numa ordem: o ungido é o primeiro fruto, depois os que pertencem ao ungido, quando ele aparecer. E veremos o limite, quando o ungido entregar o reino a Deus e Pai, e tornar inoperante o império, os poderes e os exércitos. Convém que seja rei até derrubar os odiados por terra. O último odiado a ser privado de força é a morte, porque o resto já foi colocado debaixo de seus pés”.

É interessante que Paulo em seu texto cita o dramaturgo, filósofo e poeta grego Menandro (342-291 a. C.), no texto O Misantropo, que num verso disse: “as más companhias corrompem os bons costumes”.

“Que farão os que se batizam pelos mortos, se os mortos não são chamados de volta à vida? Por que se batizam então pelos mortos? Por que estamos a cada hora em perigo? Protesto contra a morte de cada dia. Eu me glorio por vocês, no ungido Iesous a quem pertencemos. Combati em Éfeso contra animais ferozes, mas o que significa isso, se os mortos não podem ressurgir? Comamos e bebamos, porque amanhã morreremos. Mas não vamos nos enganar: as más companhias corrompem os bons costumes”.

Há uma correlação entre Platão e a tradição hebraico-judaica, que podemos ver nesta carta de Paulo. Mas olhar a existência através da leitura significa, como afirma Fuks, que você leitor desconstrói, pois ler não é repetir o texto: é um modo de criação e de transformação. Por isso, digo que ler é um ato de anástase ou, se você preferir, de ressurreição. E Paulo trabalhou de forma brilhante tal idéia, tanto nas suas leituras e estudos, como na reconstrução do próprio conceito.

Na sequência da tradição hebraico-judaica, ou como diz Fuks, “os antigos hebreus não estavam trabalhados, como nós, pela necessidade de abstração, de síntese e de precisão na análise conceitual do real, herança dos gregos”. Assim, Paulo está preocupado com a existência, com a vida, com o corpo.

“Mas alguém pode perguntar: como os mortos são trazidos à vida? E com que corpo? Estúpido! O que se semeia não tem vida, está morto. E, quando se semeia, não é semeado o corpo que há de nascer, mas o grão, como de trigo ou qualquer outra semente. Deus dá o corpo como quiser, e a cada semente o corpo que deve ter. Nem toda a carne é uma mesma carne, há carne humana, de animais terrestres, de peixes, de aves. E há corpos celestes e corpos terrestres, uma é a dignidade dos celestes e outra a dos terrestres. Diferente é o esplendor do sol do esplendor da lua e das estrelas. Porque uma estrela difere em brilho de outra estrela. Assim também o ser levantado dentre os mortos. Semeia-se o corpo perecível; levantará sem corrupção. Semeia-se na desgraça, será levantado em excelência. Semeia-se em debilidade, será erguido vigoroso. Semeia-se corpo controlado pela psiquê, ressuscitará corpo espiritual. Se há corpo controlado pela psiquê, também há corpo espiritual”.

Para Paulo, a anástase leva à uma teologia da vida que nasce do corpo. Mas, não é simplesmente ter de volta a vida do corpo material, tanto que em certo momento ele nos diz que “deveremos ser a imagem do homem do céu”.

“Assim também está escrito: o primeiro ser humano, terrestre, foi feito ser-que-deseja, o futuro humano será um espírito-cheio-de-vida. Mas o que não é espiritual vem primeiro, é o natural, depois vem o espiritual. O primeiro ser humano, da terra, é terreno; o segundo humano, a quem pertencemos, é celestial. Como é o da terra, assim são os terrestres. E como é o celeste, assim são os celestiais. E, como somos a imagem do terreno, assim seremos também a imagem do celestial”.

O pensamento grego, platônico, está presente na anástase paulina, já que a eternidade não é construída em cima da carne e do sangue. Vemos aqui a dualidade entre a realidade física e o mundo das formas. O dualismo metafísico de Paulo admite aqui duas substâncias que regem o ser humano, no mundo natural, a psiquê, e no mundo pós-anástase, o pneuma. E dois princípios, nesse sentido bem próximos a Platão, são o bem e o mal.

“E agora digo que a carne e o sangue não podem herdar o reino de Deus, nem a corrupção herdar a eternidade. Digo um mistério: nem todos vamos adormecer, mas seremos transformados. Num momento, num abrir e fechar de olhos, ante a última trombeta, porque a trombeta soará, os mortos serão levantados incorruptíveis, e seremos transformados. Convém que o corrompido seja tornado eterno, e o que é mortal seja tornado imortal. E, quando o que é corruptível se vestir de eternidade, e o que é mortal for transformado em imortal, então será cumprida a palavra que está escrita: a morte foi conquistada definitivamente. Onde está, ó morte, a tua picada? Onde está, ó inferno, a tua vitória? Ora, a picada da morte é o desviar-se do caminho da honra e da justiça, e a força do erro é a lei. Mas a alegria que Deus dá é a vitória por Iesous, o ungido, a quem pertencemos. Sejam firmes e persistentes, abundantes no serviço daquele a quem pertencemos, conscientes de que o trabalho árduo e duro não é desprezado por aquele a quem pertencemos”.

Voltemos à análise do conceito anástase no capítulo 15 da primeira carta de Paulo aos Coríntios, tomando como ponto de partida o desafio de Fuks: “há que ler o desejo: sem terra, sem pátria e sem objeto, ele vaga por um deserto, cujas trilhas conduzem o leitor à experiência limite mais-além do que aparece na imagem”.

Paulo traduziu para as novas gerações o desejo judaico-helênico, existencial, da anástase: “Pede-se ser levantado”! Esta é uma das ideias-força do cristianismo, todos sonhamos ressurgir!

Jorge Pinheiro
Montpellier, 28.07.2023






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