jeudi 20 juin 2024

Caminho, verdade e vida

Um mashiah muito especial – caminho, verdade e vida

Jorge Pinheiro

 

 

A ação do Cristo/ do Mashiah na vida humana é a vitória sobre a idéia da força trágica da matéria eterna, traduz a idéia de que o mundo é uma criação divina. É a vitória da crença na perfeição do ser em todos seus aspectos sobre o medo trágico e a matéria que resiste hostil ao divino. É a negação radical do caráter demoníaco da existência em si. Dá à existência um valor essencialmente positivo e valoriza os acontecimentos da ordem temporal. Com a ação do Mashiah, ao contrário do que pensava Anaximandro, a ordem do tempo não leva apenas ao transitório e perecível, mas também à possibilidade de algo totalmente novo, um propósito e um fim que dá pleno significado à vida humana.

 

No Mashiah o tempo triunfa sobre o espaço. O caráter irreversível do kairós substitui o tempo cíclico, transitório e perecível do pensamento helênico. A partir desse momento, destino outorga graça, que traz salvação no tempo e na história. O mundo helênico e sua interpretação da vida foram superados e com eles, a religião, os mitos e os cultos de mistério.

 

Antes, a filosofia buscava desesperadamente a revelação, agora a revelação apodera-se da filosofia dando origem à teologia. Assim, a teologia jogou fora o destino demoníaco e por extensão a metafísica helenística e se apropriou de suas formas lógicas e de seus conteúdos empíricos. O transitório e perecível da filosofia helenística não teve importância na formação do pensamento ocidental, mas sim a idéia da criação divina do mundo e a fé numa providência divina, através da salvação que se constrói historicamente e acontece no kairós. E isso já não é helenismo, mas teológica cristã.    

 

Hoje a globalização excludente é mitologia que consome o mundo. E diante dela devemos fazer o mesmo que fizeram seguidores do Mashiah dos primeiros séculos. Assumir o comissionamento que nos foi entregue. É necessário proferir um não ao tempo presente. E nessa crítica, o fundamental é envolver-se na situação histórica concreta, ter a coragem de decidir e colocar-se sob julgamento, ao nível do particular.

 

O amigo do Mashiah deve olhar o mundo com atenção. E a luta dos povos em diáspora deve sensibilizar os intelectuais que fazem parte das assembleias cristãs, pois estamos vivendo uma era de kairós, e as utopias dos povos em diáspora são partes do clamor contra a opressão que caracteriza este início de século. Não é correto classificar as utopias dos povos em diáspora como simples conflito racial e religioso, ou como problema localizado em regiões distantes do globo. Ao contrário, hoje estamos vendo um clamor global do desterrado e excluído. As utopias de liberdade dos povos em diáspora não serão revoltas raciais e religiosas se estivermos interessados em praticar a fraternidade do Mashiah. Porém, pregou-se, por muito tempo, um messianismo vazio de fraternidade, que não significava mais que o desejo de que os povos aceitassem passivamente o seu destino colonial. As nações industriais do Ocidente subjugaram culturas, nações e povos por razões econômicas. Essas ações de saques internacionais golpearam os continentes e são os responsáveis pelo baixo padrão de vida que prevalece em todo o mundo chamado subdesenvolvido.

 

Nosso comissionamento deve traduzir o pensamento palestino de destino, ou seja, de estar proposto para algo sublime, no sentido de que os limites estão dados de antemão, da lei transcendente na qual está imbricada o conceito de liberdade. Assim, estar predestinado implica uma trindade conceitual: o estar predestinado está sujeito à liberdade; estar predestinado significa que a liberdade também está sujeita à lei; estar predestinado significa que liberdade e lei são interdependentes e complementares.

 

Vamos pensar essa questão a partir de uma chocante história da Torá. O príncipe dos pregadores do século dezenove, Charles Haddon Spurgeon, pregou um sermão que ficou conhecido como Apressando a Ló, com base no texto de Gênesis 19.15. O centro da mensagem de Spurgeon é que diante de uma cidade que vai arder, justos e errantes devem ser apressados.

 

O justo deve ser apressado em relação ao que é melhor para sua família, a sair da loucura do século presente e buscar a solidariedade do Eterno. E o errante deve ouvir do perigo iminente e da necessidade de tomar uma decisão imediata.

 

O pano de fundo do sermão é a cidade que vai arder.

 

Décadas mais tarde, um poeta norte-americano, de ascendência inglesa, escreveu sobre um mundo que já ardeu. Seus poemas traduzem a angústia profética diante da guerra e do drama humano. Terra Desolada é um dos mais impressionantes poemas de Thomas Stearns Eliot. É um gemido diante de um mundo árido, onde sobreviventes se arrastam e agonizam. Escrito entre 1921 e 1922, é considerado o mais terrível poema da literatura ocidental no século vinte.

 

Mas, em meio ao desespero, podemos ver o sentido de transcendência que brota na Terra Desolada desse cristão agoniado diante do destino humano. No final da terceira parte do poema, chamado O Sermão do Fogo, terror e êxtase se complementam:

 

“A Cartago então eu vim, ardendo, ardendo ardendo ardendo, Ó Senhor tu que me arrebatas, Ó Senhor tu que me arrebatas, ardendo ...”

 

Eliot em suas notas conta que o primeiro verso acima foi tirado das Confissões de santo Agostinho, quando o teólogo diz: “A Cartago então eu vim, onde todos os amores ímpios, como num caldeirão, cantavam em meus ouvidos”. E o verso seguinte faz parte do Sermão do Fogo, de Buda, que segundo Eliot é tão importante para o mundo oriental quanto o Sermão da Montanha para nós cristãos. E volta às Confissões de Agostinho, com o verso: “Ó Senhor Tu que me arrebatas”. Eliot afirma que “a inserção destes dois representantes do ascetismo oriental e ocidental no ponto culminante desta parte do poema não é fortuita”, já que através de uma leitura cheia de ecumenicidade transmite ao leitor toda a angústia diante de um mundo que arde.

 

Três anos mais tarde, Eliot lançou Os Homens Ocos onde, ainda em meio ao mundo desolado, fala de homens vazios, empalhados. E é aqui, neste poema, que a transcendência transborda, apontando para o sentido profundo da mudança de rumo.

 

“Entre o desejo, e o espanto, entre a potência e a existência, entre a essência e a descendência, tomba a sombra, porque teu é o reino, porque Teu é a vida é porque teu é o ... “

 

E numa estrofe sublime, genial, completa: “Assim expira o mundo, assim expira o mundo, assim expira o mundo, não com uma explosão, mas com um suspiro”.  

 

Diante de uma cidade que vai arder, de um mundo que já ardeu, ficam a urgência e a esperança... “e como ele estava demorando, os anjos pegaram pela mão Ló, a sua mulher e as suas filhas e os levaram para fora da cidade...”

 

Analisando o conceito cristão palestino de destino ou estar predestinado, exposto por Shaul/ Paulo em sua carta aos romanos (8.31-39; e 9), podemos dizer que a liberdade humana está ligada às leis universais, de tal forma que liberdade e leis se encontram intrinsecamente entrelaçadas. Aqui Shaul trabalha com um conceito judaico, de que lei é imposição de limites, que faz parte da revelação, que se expressa pela primeira vez como criação de haShem. Mas para Shaul, se o mal é uma probabilidade que surge da correlação lei/graça, o julgamento era inerente a tudo na criação, mas também a liberdade.

 

Assim, a certeza de que o estar predestinado é divino e não demoníaco e tem um significado realizador e não destruidor é peça-chave do pensamento daquele cristão-novo que chamamos Shaul, que coloca o logos acima do destino. Ao fazer isso, Shaul está dizendo que a compreensão do estar predestinado não está ao alcance do ser humano, nem pode ser submetido aos processos do pensamento humano. Mas esse logos eterno se reflete através de nossos pensamentos, embora não exista um ato do pensamento sem a secreta premissa de sua verdade incondicional. Mas a verdade incondicional não está ao nosso alcance. Em nós humanos há sempre um elemento de aventura e risco em cada enunciado da verdade. Mas, mesmo assim, devemos correr este risco, sabendo que este é o único modo que a verdade pode ser revelada a seres finitos e históricos.

 

Quando mantemos relação com o logos eterno e deixamos de temer a ameaça do destino demoníaco, aceitamos o lugar que cabe ao estar predestinado em nosso pensamento. Podemos reconhecer que desde o princípio esteve submetido ao estar predestinado e que o nosso pensamento sempre desejou livrar-se dele, mas nunca conseguiu. Tarefa teológica da maior importância, na análise cristã do estar predestinado é saber relacionar logos e kairós. O logos deve envolver e dominar as leis universais, a plenitude do tempo, a verdade e o estar predestinado da existência. A separação entre logos e existência chegou ao fim. O logos alcançou a existência, penetrou no tempo e no destino. E isso aconteceu não como algo extrínseco a ele próprio, mas porque é a expressão de seu próprio caráter intrínseco, sua liberdade.

 

É necessário, porém, entender que tanto a existência como o conhecimento humano estão submetidos ao destino e que o imutável e eterno reino da verdade só é acessível ao conhecimento liberto do destino: a revelação. Dessa maneira, ao contrário do que pensavam os gregos, todo ser humano possui uma potencialidade própria, enquanto ser, para realizar seu estar predestinado. Quanto maior a potencialidade do ser – que cresce à medida que é envolvido e dominado pelo logos – mais profundamente está implicado seu conhecimento no estar predestinado.

 

Nosso destino, que aqui deve ser entendido como missão, é servir ao logos, num novo kairós, que emerge das crises e desafios de nossos dias. Quanto mais profundamente entendermos nosso destino, no sentido de prokeimai, em grego estar colocado, ser proposto, e o de nossa sociedade, tanto mais livres seremos. Então, nosso trabalho será pleno de força e verdade.

 

Diante da mitologia das ideologias excludentes, nosso comissionamento permanece o mesmo dos primeiros cristãos: levar a graça de Cristo a um mundo em crise, imerso em culpa e destino trágico.

 

Assim, não podemos falar em mitologia quando falamos do Mashiah, e sim de simbologia, principalmente em relação às parábolas de Yeshua. A mitologia é fenômeno social e cultural, não é um erro ou uma farsa. Quem é que conhece ou define sua vida pelo Santo Graal? Esse assunto deve ser situado no campo da ficção.

 

O pensamento do Mashiah leva a um posicionamento do coração e da mente, que brota das promessas de haShem. É uma confiança que nasce da reflexão e leva à constatação de que haShem é digno de crédito. Mas, de maneira nenhuma, lança fora a afetividade, a vontade, a personalidade, as ações, as experiências e as obras enquanto componentes do posicionamento. 


Se não houver mudança não há fé. Yochanan/ João, o batista, pregava o batismo do arrependimento, isto porque sem regeneração também não há fé. Assim, o pensamento do Mashiah parte do processo de conhecimento da revelação, que está ligado à obediência, e que em última instância é disposição positiva do coração, enquanto totalidade da personalidade humana, arrependimento e regeneração de vida. Ora, mas se falamos de revelação, nos colocamos diante da aletheia, verdade, no sentido de desvelamento, de a-lethe, que é a negação do esquecimento. Para os pensadores pré-socráticos physis, logos e aletheia formavam a base primeira do pensar filosófico, e para nós seguidores do pensamento do Mashiah, fundamenta a nova vida.

 

Aletheia transcende o humano, por ser uma ideia que se coloca fora do tempo, antes do tempo, como fundamento do tempo. É a palavra da justiça, que envolve a memória, confiança, poder de persuasão e adesão última. Os pensadores pré-socráticos não trabalhavam uma oposição rígida entre verdade e falsidade, por isso outros pares de opostos como memória e esquecimento, certo e errado, confiança e engano também deviam seguir este padrão.

 

Ora, é necessário compreender que aletheia é um ideia que expressa a força da physis enquanto natureza, cosmo, que traduz a verdade dos justos e dos sábios, mas é frágil, sujeita a erro e à fraude -- uma palavra para o léthé. Assim, aletheia significava colocar-se fora do lethe, fora do esquecimento, e nos fala da experiência de colocar-se fora de uma situação que a princípio deveria ser esquecida ou deixada de lado. É uma experiência ontológica. Não é apenas uma recurso de linguagem. É um conceito governado pelo lethe. Baseia-se no fato de que é necessário desvelar, trazer à revelação aquilo que estava fora ou colocado no esquecimento.

 

Esta compreensão fez parte do mundo grego, e  é o âmago da expressão entre os pensadores pré-socráticos e poetas como Homero e Hesíodo. E desde Platão, em sua Alegoria da caverna, aletheia aparece como o brilho da idéia.  Mas, há um pressuposto presente no pensamento de Aristóteles, que vai influenciar todo o pensamento moderno, quando aletheia é entendida enquanto dimensão lógica: uma coisa não pode ser e não ser ao mesmo tempo. Ou seja, a verdade aparece, então, ligada ao princípio da não-contradição, passa a traduzir a idéia de que algo realmente não pode ser e não-ser. E no pensamento moderno, a verdade ressurge no pensar matemático, em Descartes, e no fenômeno, em Kant. E será entendida como o "intellectus adaequatio". Assim, passa a ser compreendida na modernidade como uma correspondência entre a idéia e a coisa. Ou seja, quando esta construção do conhecimento é estabelecida a verdade é atingida.

 

Mas será Martin Heidegger quem confrontará a posição aristotélica, ao entender que a lógica fica em suspensão em relação à verdade do ser, quando se aplica o princípio da contradição em um círculo.

 

Heidegger voltou ao significado original da ideia de verdade, partindo dos pré-socráticos, Parmênides, Heráclito, Anaximandro e também de Homero, o poeta. Para os primeiros pensadores pré-socráticos, três temas -- physis, logos e aletheia -- estão em contato, porque são conceitos fundamentais para se pensar a filosofia. E essa  relação deve ser mantida. Heidegger põe em xeque o postulado aristotélico, e volta às origens gregas para desconstruir a dimensão lógica do conceito verdade. Ou seja, retorna à compreensão ontológica de verdade, que exige deixar de fora do conceito a idéia exclusiva de acordo e retidão de julgamento. E assim, em Heidegger, a verdade volta a ser um conceito aberto, como fora para os pensadores pré-socráticos, em especial para Parmênides.

 

Para Platão, a aletheia é um evento, e não levar em conta que o evento ocorreu produz perda de sentido, porque esse esquecimento é perda metafísica de sentido, o que para Heidegger é catástrofe e colapso. Em Platão não é um acontecimento em processo, mas o resultado de um processo. O acontecimento é fato dado. Ou seja, estamos diante da mutação da essência e por extensão do ser.

 

Para Heidegger, a verdade caminha pari passo com o bem. E isso está posto a partir de Platão, que na República, apresenta o bem supremo como regulador, é aletheia/bem. Ou seja, Platão vai além dos pré-socráticos Parmênides e Heráclito nas suas construções primeiras de aletheia. E Heidegger seguiu a trilha aberta por Platão.

 

Martin Heidegger trabalha a verdade como inauguração do estar e não como um acordo de início. Assim o conceito verdade remete, a partir de Heidegger, a duas compreensões fundamentais: (1) eficácia: o logos não está separado de sua realização, porque traduz as forças da natureza; (2) intemporalidade: o logos é pronunciado em um tempo que escapa a sucessão de passado, presente e futuro. A partir de Heidegger, não podemos afirmar que hoje a verdade deixou de existir, mas que, como entendeu Emmanuel Levinas, deu-se em relação a ela uma perda de precisão, ou seja, de sentido.

 

Mas o Mashiah disse que ele é o caminho, a verdade e a vida. E que ninguém vai ao Pai senão por ele. E um amigo do Mashiah, Toma, expressou dúvidas para crer, para entender. E por isso o Mashiah disse: "Eu sou o caminho, e a verdade, e a vida".

 

Uma das linhas-força dessa correlação de idéias teológicas -- caminho, verdade e vida -- presente nas escrituras hebraico-judaicas e na filosofia grega é a ideia de halakha, que se transformou em ramo da literatura rabínica. Ela trata das obrigações religiosas às quais devem se submeter os judeus em suas relações com o próximo e com haShem. Ela engloba todos os aspectos da existência. Mas halakha tem em sentido mais amplo, o de caminho.

 

Assim, a partir da halakha, mais do que propor uma adoração estática a haShem, as escrituras nos falam de andar com ele. Daí a idéia de caminho. O ser humano é colocado a cada momento e a cada dia diante da exigência de exercer sua liberdade e escolher entre o bem e o mal, ou, como diz Deuteronômio 30.15: “Vejam que hoje ponho diante de vocês vida e prosperidade, ou morte e destruição”.

 

A linha-força do caminho da lei ou halakha é extensa e profunda nas escrituras. E se antes repousava na lei, agora é o próprio Mashiah. E é a partir desse conceito teológico que estrutura o pensamento hebraico-judaico, que podemos entender a afirmação de Yeshua.

 

Os hebreus falaram sobre o caminho que as pessoas deviam tomar. HaShem disse a Moshe: “Cuidareis em fazerdes como vos mandou o Senhor, vosso Deus; não vos desviareis, nem para a direita, nem para a esquerda. Andareis em todo o caminho que vos manda o seu Senhor, vosso Deus” (Deuteronômio 5:32-33). Moshe disse ao povo: “Sei que, depois da minha morte, por certo, procedereis corruptamente e vos desviareis do caminho que vos tenho ordenado” (Deuteronômio 31:29). Isaías havia dito: “Os teus ouvidos ouvirão atrás de ti uma palavra, dizendo: Este é o caminho, andai por ele.” (Isaías 30:21). No mundo novo haveria uma estrada chamada o Caminho de santidade. Nela, os caminhantes, por simples que fossem suas almas, não se extraviariam (Isaías 35:8). O salmista orou: “Ensina-me, haShem, o teu caminho” (Salmos 27:11). Os judeus sabiam muito sobre o caminho de haShem que deviam seguir. E o Mashiah disse: "Eu sou o caminho".

 

Em grego, halakha se transforma em hodós, o caminho mais curto. E uma outra ideia se agrega, meta, 'depois' ou 'que segue' se junta a hodós, 'caminho', e passa a significar 'seguir um caminho' para chegar a um fim. Assim, em filosofia, especialmente em epistemologia, o método delimita o modus de obtenção do conhecimento.

 

Mas voltemos ao Mashiah que afirmou: eu sou o caminho, eu sou a verdade, eu sou a vida. O autor dos Provérbios disse que o mandamento é lâmpada, e a instrução, luz; e as repreensões da disciplina são o caminho da vida” (Provérbios 6:23). “O caminho para a vida é de quem guarda o ensino” (Provérbios 10:17). “Tu me farás ver os caminhos da vida”, disse o salmista (Salmos 16:11). O ser humano busca o caminho, busca a verdade, busca a vida. E o Mashiah responde este anseio ao dizer, “ninguém vem ao Pai, senão por mim”. Ou seja, viver no caminho nos leva a pensar a verdade ... e para entender a policromia deste conceito devemos continuar o percurso, fazer a trilha da aletheia.

 

A aletheia tem, num primeiro momento, o sentido de desvelamento: de negar lethe, negar o esquecimento. Para os gregos, designava a essência, aquilo que é, e por isso tinha correlação com a arché, com a origem, quer em relação à auto-manifestação da realidade, quer em relação à manifestação dos seres humanos. Em latim temos veritas, que corresponde a maneira de narrar os fatos acontecidos, e a maneira de narrar determinará a verdade dos fatos.

 

Então, lhe disse Pilatos: Logo tu és rei? Respondeu-lhe o Mashiah: Tu dizes que sou rei. Eu para isso nasci e para isso vim ao mundo, a fim de dar testemunho da verdade. Todo aquele que é da verdade ouve minha voz. Perguntou-lhe Pilatos: Que é a verdade? Tendo dito voltou aos judeus e lhe disse: Eu não acho crime algum nele (João 18:37-38)

 

Sobre o diálogo entre o Yeshua e Pilatos podemos observar que o Mashiah não tem dúvida sobre o quem é a verdade e Pilatos não sabe o que é a verdade. É importante compreender que filosoficamente construímos o conceito verdade a partir de três concepções diferentes, vindas da filosofia grega e do latim, do judaísmo e de sua correlação com o pensamento do Mashiah.

 

Na concepção grega, aletheia é o que não mais está oculto, e como tal é verdadeiro, pois  se manifesta aos olhos e ao espírito. O falso é pseudos, o encoberto, o que parece ser mas não é. De acordo com essa concepção aletheia está na essência, sendo idêntica a realidade e acessível apenas ao pensamento, é verdade aos sentidos. Assim um elemento necessário é a visão inteligível, em outras palavras o ato de revelar, o próprio desvelamento.

 

Na concepção pragmática latina veritas significa exatidão, rigor do que se refere à linguagem como expressão de fatos acontecidos. A concepção latina afirma a capacidade das pessoas em descrever com precisão um acontecimento. Essa concepção depende da forma que os fatos são narrados. Nesse ponto a veritas trata de descrever com detalhes o ocorrido no passado.

 

Observam-se diferenças nas concepções grega e latina. Para a filosofia grega, a verdade faz parte da essência que foi desvelada. Na latina é a precisão dos fatos que são contados que vão determinar se esse fato e verdadeiro ou falso. E na leitura hebraica, parte do conceito de emunah, que significa posicionamento, mas também confiança. Nessa concepção há um comprometimento, mas quando correlacionado com a pistis essa confiança se transforma numa verdade que chamamos fé. Ora, na mitologia grega, pistis era a personificação da boa-fé, da confiança e da confiabilidade. Ela aparece sempre ao lado de outras virtudes como a esperança, a prudência e as graças, todas associadas à honestidade e à harmonia entre as pessoas. Mas, equivalente, sobretudo à fides latina. Assim, nota-se que a confiança/fé é a base desta concepção. A verdade passa então a ser a expressão deste posicionamento e desta confiança/fé, embora pareça absurdo para quem se coloca fora de tal confiança.

 

Assim, aletheia se refere ao que as coisas são ao serem desveladas, veritas se refere aos fatos que foram relatados, e emunah/pistis se refere àquilo que virá a ser, porque assim foi prometido. Ou seja, aletheia é, tal como se manifesta agora ao nosso espírito, veritas mostra os fatos conforme foram relatados, e emunah/pistis aponta para aquilo que será e que foram prometidas.

 

Mas, a aletheia não está fora da vida. E no hebraico temos a palavra hayah, que traduz a ideia de respirar. O substantivo hayah, no entanto, significa viver, ter vida, sustentar a vida. Se estiver na forma gramatical hifil tem o sentido de reanimar, reviver, restaurar à vida, o que aponta para o conceito de levantar da morte, ressuscitar.

 

E zoé é o conceito de vida comum a todos os seres vivos. Traduz a vida animal, o momento mais simples da vida bios. A vida animal está lá embaixo, quando comparada a bios. Afinal, o ser humano é escravo de suas necessidades básicas de sobrevivência. Sua servidão remete a um moto sem fim para atender suas necessidades básicas. Esta vida zoé retrata a simplicidade de uma vida não qualificada, que por não ser superior têm como destino ficar oculta. Ficar oculta significava ter hábitos moderados no comer, beber, na sexualidade e na não-violência. Não havia punições para quem fosse moderado, mas a moderação na vida zoé mostrava que a pessoa poderia exercer o bios político.

 

Na zoé dos gregos há uma desqualificação do corpo (soma) na definição da vida, sem representação política, como no caso dos escravos. A vida bios é a vida racional, própria de pessoas ou comunidades. A vida política é a bios política como uma vida qualificada. Um tipo de vida de pessoa que é admirada por suas ações e condutas. Por sua práxis, pelo que ele faz, e por sua léxis, pelo que ele diz. Práxis e léxis nas pessoas e comunidades possibilitam a existência da polis democrática, e por extensão da liberdade.

 

Mas quando compreendida a partir do hayah, da vida que ressurge, os discípulos do Mashiah vão além da compreensão grega. Veem zoé, que tem nela o hayah bíblico, como a vida eterna, dom do haShem entregue àqueles que aceitam o Mashiah, como senhor. E a vida bios passa de fato a ser a vida terrena, que renasce no permanente ciclo de nascimento e morte.

 

Por isso, o Mashiah respondeu a Toma/ Tomé: “Eu sou o caminho, a verdade e a vida. Ninguém vem ao Pai senão através de mim.”

 

E voltemos à festa da Candelária. Que haShem abençoe você, que ele faça resplandecer o seu rosto sobre você nesta festa em que se comemora a luz de Yeshua, que veio ao mundo, inclusive com os crepes oferecidos aos peregrinos, não apenas por lembrarem o sol em seu formato e cor, mas também como forma de dizer: ainda possuímos provisão para o inverno. Que haShem lhe dê a luz e provisão em abundância, é a oração que faço de todo o coração por você, pedra preciosa e resplandecente aos olhos de haShem. E que assim seja!

 

Referência bibliografia

ELIOT, T. S., Poesia, 3a. edição, Rio de Janeiro, Editora Nova Fronteira, 1981.

SPURGEON, Charles Haddon, Esboços Bíblicos de Gênesis a Apocalipse, aprendendo com o príncipe dos pregadores, São Paulo, Shedd Publicações, 2002.




 

 

 

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