jeudi 30 avril 2009

O perdão em Eva

Jorge Sperandio é meu amigo. É presbiteriano, médico e teólogo. Ele escreveu uma longa carta para Dawkins, o ateu. Vejam essa quarta-parte da carta. Um abraço para todos. Jorge Pinheiro.

27/04/2009
Deus, um delírio – de Darwin à loucura
(4) O perdão em Eva

Misturamos tudo, Dawkins, quando dizemos que Deus criou Adão e Eva. Ora, Deus não criou Eva; Deus criou a mulher. O nome Eva só aparece na Escritura depois que ocorreram fatos bem importantes, como o pecado e a infiltração da morte. Portanto, se Deus terminou a criação antes do pecado, isso quer dizer que Eva não pertence mais à história da criação, e deve ser entendida, necessariamente, como personagem de outra história, que irá ocupar toda a Escritura: a que trata da Salvação.

A redenção se inicia em Eva
A maternidade instituída em Eva, assim, parece inaugurar e dar seqüência à redenção. Como se verá mais adiante, as transformações operadas no corpo da mulher - e iniciadas logo depois do pecado para esse fim, reúne elementos típicos da história da salvação. Não teria condições, é claro de avaliar todas as dimensões desta redenção que, descrita na Escritura, e iniciando-se em Eva, transcende a História e até mesmo a Escritura. Nosso interesse, aqui, é identificar os atos que, pertencendo à redenção - porque ocorrem depois do pecado, devem ser isolados e separados da obra anterior, da criação dos seis dias.

Logo depois de pecar, e ouvir de Deus a respeito das coisas que viriam na morte, Adão dá a sua mulher o nome de Eva – porque ela seria a mãe de todos os viventes. Levando a sério o contexto de morte provocado pelo pecado, e negando ao episódio um toque inesperado de sadomasoquismo, como diria Dawkins, (já que seria mais adequado dizer que Eva seria a mãe de todos os morrentes), essa mudança de nome, de mulher para Eva, soa como reconhecimento e profecia – por parte de Adão, da obra de Redenção: mesmo depois do pecado, no pecado e na morte[1], haveria viventes, ou até mesmo, melhor seria dizer, sobreviventes.

A maternidade da mulher
Paulo diz que Deus, nosso Salvador, (...) quer que todos os homens sejam salvos[2], e também que Deus é o Salvador de todos os homens, sobretudo dos que têm fé[3]. Se existe uma salvação especial para aqueles que têm fé, fica claro que todos, homens e mulheres, independente de qualquer crença, já foram alvos de algum tipo de salvação. E que salvação seria essa – aplicada a todos, diferente daquela que vem pela fé – reservada para alguns? Temos aprendido com o cristianismo que se trata da graça comum, estendida a todos. E em que consistiria tal graça, senão nascer e viver no mundo, e contemplar, como lembra Dawkins, a luz, as estrelas, as plantas, a vida, e os coros do amanhecer? Entretanto, como nascemos e viemos ao mundo? Pela maternidade da mulher, essa mesma que, bem conhecida pela medicina, precisa de água, de placenta, acontece na dor, em meio a riscos de morte, tribulação, envelhecimento, etc.

Um batismo de água na gravidez
A maneira incomum como Pedro descreve o dilúvio, é também significativa nesse trabalho de incluir a maternidade, como a conhecemos hoje, na história da salvação. Ele diz, “estranhamente”, que na arca poucas pessoas, isto é, [apenas] oito, foram salvas por meio da água[4] (é ela mesma Dawkins, a Arca de Noé! [5]). Isto é inicialmente tão esquisito quanto dizer que Ló foi salvo da destruição de Sodoma não pelo anjo que o tirou da cidade, mas pelo fogo que caiu sobre ela[6]. E que relação isto teria com a maternidade? Assim como os tripulantes da arca foram salvos pela água do dilúvio – que foi morte para muitos -e isso para a família de Noé foi um batismo de vida, também a tribulação da gravidez e do parto, na morte, num batismo de água, faculta o nascimento da vida. A mesma idéia é defendida também por Paulo, quando associa o batismo de água com livramento, tribulação e morte: na nuvem e no mar, todos foram batizados em Moisés[7] – ou seja, o batismo de água, que franqueou a redenção de Israel, custou ao Egito tribulação e a morte.

Um batismo de sangue no parto
No processamento da vida, que acontece no pecado e na morte, a salvação demanda, também, como lembrou Dawkins citando a carta aos Hebreus, o derramamento, ou efusão, de sangue. Segundo a Lei, quase todas as coisas se purificam com sangue; e sem efusão de sangue não há remissão. [8] Na carta aos Colossenses se diz que fomos circuncidados, por uma circuncisão não feita por mão de homem [derramamento de sangue], mas [pela] circuncisão de Cristo[9] [derramamento de sangue], que, por sua vez declara: Isto é o meu sangue, o sangue da Aliança, que é derramado por muitos para remissão dos pecados[10]. E Paulo insiste nisso quando pergunta: Ou não sabeis que todos os que fomos batizados em Cristo Jesus, é na sua morte [derramamento de sangue] que fomos batizados?[11]

Pois bem, seja pelo trauma genital – que às vezes acontece, seja pelo desprendimento da placenta – que sempre acontece, nenhum dos filhos de Eva veio ao mundo sem derramar sangue. Ora, se a maternidade tivesse sido, de fato, obra da criação, porque haveria de derramar sangue? Instituída, neste caso, antes do pecado não precisaria perder sangue, já que não necessitaria de perdão. De outra forma, porque haveria de perder “vida” ou a “alma”, no parto, já que, segundo o mesmo livro de Gênesis, o sangue é a “alma” da vida; e em se tratando da humanidade, a vida que foi feita à imagem de Deus [12].

O pecado do parto
Um fato descrito no Evangelho sobre o nascimento de Jesus, parece atestar, com mais clareza, que o parto, que nos trouxe à vida, não deve ser produto da obra da criação: Quando se completaram os dias para a purificação deles, segundo a Lei de Moisés, levaram-no a Jerusalém a fim de apresentá-lo ao Senhor, conforme está escrito na Lei do Senhor (...) e para oferecer em sacrifício, como vem dito na Lei do Senhor, um par de rolas ou dois pombinhos[13]. A Lei referida[14], trata da purificação da mulher depois do parto, quando um dos pombinhos deverá ser sacrificado para o holocausto e o outro em sacrifício pelo pecado fazendo o sacerdote, por ela, o rito de expiação e ela ficará [então] purificada[15]. Ora, Lucas não está falando do nascimento de qualquer um de nós, mas do próprio Jesus! Porque sua mãe deveria ficar purificada do pecado? Qual pecado? De origem sexual não era, já que o texto ressalta que nascera de uma virgem. Uma resposta imediata seria que Lucas enfatiza a observação do cumprimento da Lei pelos seus pais. Isto, provavelmente, deve ser verdadeiro. Mas a pergunta é: porque purificar-se depois do parto? De todos os partos, independentemente se foram frutos de adultério ou não? Porque a expiação pelo pecado do parto (!). Pior: a Lei coloca o parto na mesma lista de impurezas que inclui também a doença da pele, o mofo das casas, ou o corrimento de doenças sexualmente transmissíveis[16]. Se a gestação e o parto (como as outras doenças referidas) forem obras da criação, porque a necessidade da expiação, num sacrifício para o pecado? Será que a loucura de pedra é mais antiga do que imagina Dawkins?

Ou seja, a declaração acerca da maternidade em Gênesis 3, logo após o pecado, implica, necessariamente, na mudança do ordenamento reprodutivo instituído em Gênesis 1. Disse Deus à mulher: Multiplicarei as dores de tuas gravidezes, na dor darás à luz filhos. Se queremos coerência é preciso assumir que aquilo que Deus disse que iria ocorrer, de fato ocorreu; se queremos conseqüência, é preciso entender que o que veio a ser, a partir do que Ele disse, não existia antes que Ele tivesse dito; e se queremos consistência, é preciso admitir que: se o que veio a existir, antes não existia, isto só pôde ocorrer através de mudanças que foram impostas ao ordenamento reprodutivo anterior. Como teria sido a geração de pessoas, antes do pecado, ou como seria a concepção, fora do pecado, provavelmente não se poderá mais que especular. Se temos tido dificuldade em entender o que nos fora dado a conhecer, na Escritura inteira, o que dizer daquilo que não coube expor na história da primeira semana? O fato de a Escritura dizer que não havia morte antes do pecado, também não nos autoriza a imaginar para o cenário que precede o pecado a mesma disposição atual da reprodução, “isentada” das características que, como vimos, se ajuntaram posteriormente a ela.

Dois nascimentos de salvação
Pois é Dawkins, vontade de continuar não falta – mas a carta está ficando muito longa. Teríamos que falar, um pouco mais, também, do pecado e da primeira semana. De qualquer forma, acredito ter cumprido boa parte do objetivo inicial para esta exposição, considerando que, anteriormente, já pudemos tratar da concepção dos dias na criação[17] e do perfil das mudanças nos diversos momentos de sua história[18]. Antes de terminar, entretanto, gostaria de citar outra passagem do Novo Testamento que relaciona a maternidade com a salvação. Disse Jesus: “Em verdade, em verdade, te digo: quem não nascer do alto não pode ver o reino de Deus”. Perguntou-lhe então Nicodemos: “Como pode um homem nascer, sendo já velho?” “Poderá entrar uma segunda vez no seio de sua mãe e nascer?” Jesus, então, respondeu-lhe: “Em verdade, em verdade, te digo: quem não nascer da água e do Espírito não pode entrar no Reino de Deus; o que nasceu da carne é carne, o que nasceu do Espírito é espírito; não te admires de eu te haver dito: deveis nascer do alto” [19]. Um pouco antes[20], o mesmo evangelista diz que da plenitude [do Redentor] todos nós recebemos graça por graça [ou em outra tradução graça sobre graça[21]; assim, o edifício da salvação parece ser composto de dois andares: no primeiro - o da carne, se nasce pela água e pelo sangue a partir da maternidade de Eva; o segundo - o do alto, se “nasce” pelo Espírito, na salvação que se completa pela fé.

Gostaria de agradecê-lo, por esta oportunidade - trazida pelas coisas úteis do seu livro. Finalmente, agradeço a Deus pelo privilégio de poder comentá-lo.

Grande abraço,
Jorge Luiz Sperandio
sperandios@uol.com.br


Notas
[1] Romanos 7,24: (...) Quem me libertará deste corpo de morte? (citações da Bíblia de Jerusalém).
[2] 1Timóteo 2,3.4.
[3] 1Timóteo 4,10.
[4] 1Pedro 3,20.
[5] Deus, um Delírio: pp.425 e 426.
[6] Gênesis 19,16.
[7] 1Coríntios 10,2.
[8] Hebreus 9,22.
[9] Colossenses 2,11.12.
[10] Mateus 26,28.
[11] Romanos 6,3.
[12] Gênesis 9,4.6.
[13] Lucas 2,22-24.
[14] Levítico 12,1-8.
[15] Levítico 12,8.
[16] Levítico 12-15.
[17] No ensaio Tarde e Manhã em Gênesis um, a partir do artigo Does the day begin in the evening or morning? de H. R. Stroes, se avalia que “as dificuldades de interpretação ainda existentes decorrem de um tratamento indistinto dos dias”, propondo, então, que os dias criativo, comum e cúltico sejam reconhecidos de maneiras diferentes. No dia comum, o dia-luz, composto pelas metades manhã e tarde, precede a noite; no dia cúltico, a seqüência se inverte, em relação ao dia comum, e a noite, “emoldurada” pelos crepúsculos da tarde e da manhã, precede o dia-luz; no dia criativo, por sua vez, se a noite deve ser entendida antes do dia-luz (no que lembra alguma semelhança com o dia cúltico), ele, entretanto, se distingue de ambos: difere do dia cúltico por que não tem a “moldura” dos crepúsculos e difere do dia comum por que inverte a seqüência das metades do dia-luz, colocando a tarde antes da manhã.
[18] No comentário do artigo de Jorge Pinheiro, Einstein e os caminhos da criação: a cosmogonia judaica e o conceito espaço-tempo em Gênesis um, se diz que “ao trazer para o estudo da primeira semana a noção física do espaço-tempo, o autor avança, em muito, no trabalho de buscar uma leitura mais justa e coerente do primeiro capítulo de Gênesis”, permitindo, entre outras coisas, “avaliar as mudanças que ocorreram durante a primeira semana, até o sexto dia, e seguiram acontecendo [posteriormente], até que surgisse o espaço-tempo vigente, formador dos dias atuais”; mudanças que, de outra natureza, “introduzem o que ainda não havia, ou mudam para o que ainda não existia”, deixando “reconhecer realidade no texto [ou seja,] a criação como fato e não mito (...)”.
[19] João 3,3-7.
[20] João 1,16.
[21] Bíblia de Jerusalém, nota “p”, p. 1986.

mardi 21 avril 2009

A Carta de Rio Bonito

Rio de Janeiro, segunda-feira, 20 de abril de 2009 (ALC) - Jovens batistas do Estado do Rio de Janeiro comprometeram-se a não silenciar frente às questões sociais, exercer a justiça social e a incentivar as igrejas locais a prestarem serviços através de diálogos com instituições de saúde, educação e de defesa de direitos.

Entendemos que a situação de injustiça social, pobreza, fome, desigualdades, corrupção ofendem o caráter do nosso Deus – Justo, Santo, Salvador e Libertador”, e que a mensagem de Jesus Cristo “foi revolucionária nos sentidos espiritual, moral e social”, diz a Carta de Rio Bonito, local onde jovens batistas se reuniram em Congresso, nos dias 9 a 12 de abril.

A desigualdade social no Brasil fere os princípios do reino de Deus e a presença da fome num país de grandes riquezas naturais é um escândalo, afirmam batistas.

Eles repudiam a omissão da Igreja de Cristo frente às necessidades sociais do país e a religiosidade desenvolvida em quatro paredes, que não transforma nada. Também repudiam “o evangelho interpretado e pregado como oferta de prosperidade, que não reflete a justiça do reino de Deus, alienando pessoas”.

Questionam o mau uso dos recursos naturais, a desvalorização da família, o individualismo e as diversas formas de violência praticadas na sociedade. Jovens batistas repudiam as formas de exploração do ser humano, como o trabalho infantil e escravo.

Por tudo isso, eles se comprometem a orar constantemente pela situação social do país, pelas autoridades civis e pela liderança eclesiástica.

Carta de Rio Bonito

Nós, jovens batistas do Estado do Rio de Janeiro, reunidos no Congresso Juventude Ativa, na cidade de Rio Bonito-RJ, no dias 09-12 de Abril de 2009, nos manifestamos sobre a realidade social do nosso país.

Entendemos que a situação de injustiça social, pobreza, fome, desigualdades (raça, gênero, econômica etc.) corrupção, ofendem o caráter de nosso Deus - Justo, Santo, Salvador e Libertador - conforme revelado em sua Palavra (A Bíblia).

Compreendemos que a vida e mensagem de nosso mestre e Senhor Jesus Cristo, que pregou e manifestou o Reino de Deus, foi revolucionária nos sentidos espiritual, moral e social. É em nome dEle e de Seu Reino que falamos.

A) Repudiamos

a. A desigualdade social marcante no Brasil, porque fere os princípios do reino de Deus;
b. A omissão da igreja de Cristo frente às necessidades sociais do país e a religiosidade vã e estéril desenvolvida em quatro paredes, que leva ao não desenvolvimento de projetos que visem mudar a realidade social ao redor da igreja local;
c. Toda espécie de corrupção e falsidade nas relações sociais, sobretudo no campo político.
d. As formas de exploração do ser humano como trabalho infantil e trabalho escravo. Também as condições de trabalho e renda que não garantem ao cidadão o sustento familiar, o direito ao lazer e às condições básicas de saúde;
e. Todas as formas de preconceito e discriminação social, cultural, racial, econômica e de gênero.
f. As diversas manifestações da violência praticadas em nossa sociedade: Física, sexual, psicológica, contra qualquer grupo populacional, sobretudo mulheres, crianças, adolescentes e idosos. Também a utilização de menores no tráfico de drogas;
g. A destruição do nosso planeta e o mau uso dos nossos recursos naturais engendrados por forças produtivas estrangeiras e nacionais, que comprometem a vida da atual e das futuras gerações;
h. A não efetividade dos direitos sociais garantidos na Constituição Federal Brasileira;
i. O escândalo da presença da fome num país de grandes riquezas naturais (Terras produtivas e farta condições de produção e distribuição de alimentos);
j. A banalização da vida e insensibilidade em relação à morte, principalmente as previsíveis e evitáveis;
k. O individualismo que acaba por alienar as pessoas frente às necessidades alheias e coloca em segundo plano o interesse coletivo;
l. O evangelho interpretado e pregado como oferta de prosperidade, que não reflete a Justiça do Reino de Deus, alienando pessoas;
m. A desvalorização da instituição família.

B) Nos comprometemos a

a. Orar constantemente pela situação social de nosso país, pelas autoridades civis assim como pela liderança eclesiástica;
b. Contagiar cada vez mais jovens a exercer a justiça social, utilizando nossas organizações de juventudes (JUBAS) locais e regionais como mobilizadoras de ações sociais nas cidades;
c. Estarmos atentos às questões sociais e não ficarmos em silêncio - “O que me incomoda não é o grito dos maus e sim o silêncio dos cristãos”. (Parafraseando M. Luther King Jr.)
d. Doar nossas vidas em prol do bem-estar social, físico, emocional e espiritual de nossos semelhantes a exemplo de Jesus Cristo, nosso senhor e mestre, cuja vida entregou por todos os seres humanos;
e. Preservar o meio ambiente de todas as formas possíveis;
f. Buscar o bem comum ao invés de nossos próprios interesses em primeiro lugar; amando o próximo de forma prática. “Não amemos de palavra, nem de língua, mas por obra e em verdade” (IJo 3.18)
g. Incentivar nossas igrejas a se aproximarem de suas comunidades locais, prestando serviço através de diálogos com instituições de saúde, educação, defesa de direitos etc.
h. A não sermos omissos, nem negligentes com o cumprimento de nossos direitos e deveres estabelecidos em lei;
i. Sermos promotores da paz e da não violência onde estivermos;
j. Identificar necessidades e demandas das comunidades em que vivemos e criar estratégias visando ao atendimento das mesmas;
k. Buscar conscientizar pessoas, na igreja e comunidade local, sobre os problemas sociais através da realização de fóruns, debates e palestras sobre temáticas sociais;
l. Sermos sempre éticos e verdadeiros nas nossas relações pessoais, familiares e profissionais;
m. Lutar por manter esse compromisso que nasceu no congresso Juventude Ativa 2009.

Somos filhos de Deus! Jovens que amam a Jesus e vamos lutar, onde estivermos, por paz, justiça e vida.

Pois o Reino de Deus não é comida nem bebida, mas justiça, paz e alegria no Espírito Santo!” (Rm 14.17)

[Essa carta foi elaborada conjuntamente pela liderança da Juventude Batista do Rio de Janeiro - JUBERJ e mais 80 líderes de Jovens que atuam em diversas igrejas Batistas do Estado do Rio de Janeiro].

Fonte
Agência Latino-Americana e Caribenha de Comunicação (ALC).

mardi 14 avril 2009

A carta de Judas

A epístola de Judas começa e termina com palavras confortadoras. O assunto central da carta de Judas é o versículo três. Por isso, desejamos torná-lo o assunto de nosso estudo: é dever batalhar pela fé que foi entregue aos santos.
A carta de Judas é um dos textos mais desconhecidos do Novo Testamento. É de certa forma um escrito estranho, porque cita o Primeiro Testamento e não se refere aos evangelhos. Mais ainda, cita livros que, mais tarde, serão declarados apócrifos. É o caso do verso nove, um trecho tirado do livro A ascensão de Moisés e do verso 14 tirado do livro de Enoque, literatura que fazia parte da cultura judaica, mas que não foi considerada inspirada pelos judeus.
É uma carta pequena, de 25 versículos, escrito em grego elegante, surgido no final do primeiro século. O tempo dos apóstolos já passara e estamos na época pós-apostólica. As comunidades às quais Judas se dirige não têm um rosto definido: trata-se de uma carta aberta, mas os problemas são muito concretos: divisões internas por causa de falsos profetas que exploram as pessoas em nome da fé. Nesse sentido, é um texto extremamente atual e importante.

Eu, Judas, servo de Jesus Cristo e irmão de Tiago, escrevo esta carta aos que foram chamados, isto é, aqueles a quem Deus, o Pai, ama e a quem Jesus Cristo protege. Que vocês tenham mais e mais a misericórdia, a paz e o amor de Deus!
Meus queridos amigos, eu estava fazendo todo o possível para escrever a vocês a respeito da salvação que temos em comum. Então senti que era necessário escrever agora para animá-los a combater a favor da fé que, uma vez por todas, Deus deu ao seu povo. Pois alguns homens que não temem a Deus entraram no meio da nossa gente sem serem notados. Eles torcem a mensagem a respeito da graça do nosso Deus a fim de arranjar uma desculpa para a sua vida imoral. E também rejeitam Jesus Cristo, o nosso único Mestre e Senhor. Há muito tempo que as Escrituras Sagradas anunciaram a condenação que eles já receberam. Embora vocês conheçam tudo isso, quero lembrar que o Senhor salvou o povo de Israel, tirando-o da terra do Egito, mas depois destruiu aqueles que não creram. Lembrem dos anjos que não ficaram dentro dos limites da sua própria autoridade, mas abandonaram o lugar onde moravam. Eles estão amarrados com correntes eternas, lá embaixo na escuridão, onde Deus os está guardando para aquele grande dia em que serão condenados. Lembrem dos moradores de Sodoma, de Gomorra e das cidades vizinhas, que agiram como aqueles anjos e cometeram imoralidades e pecados sexuais. Eles sofreram o castigo do fogo eterno, o que é um aviso claro para todos.
Do mesmo modo esses homens têm visões que os fazem pecar contra o próprio corpo deles. Desprezam a autoridade de Deus e insultam os gloriosos seres celestiais. Nem mesmo o arcanjo Miguel fez isso. Na discussão que teve com o Diabo, para decidir quem ia ficar com o corpo de Moisés, Miguel não se atreveu a condenar o Diabo com insultos, mas apenas disse: Que o Senhor repreenda você!. Mas esses homens xingam aquilo que não entendem. E as coisas que eles conhecem por instinto, como os animais selvagens, são estas que os destroem. Ai deles! Seguem o mesmo caminho de Caim. Por causa de dinheiro, eles se entregam ao mesmo erro de Balaão. E, como Corá se revoltou e foi destruído, eles também se revoltam e serão destruídos. Com as suas vergonhosas bebedeiras, eles são como manchas de sujeira nas refeições de amizade que vocês realizam. Eles cuidam somente de si mesmos. São como nuvens levadas pelo vento, que não trazem nenhuma chuva; são como árvores que, mesmo no outono, não produzem nenhuma fruta; são como árvores que foram arrancadas pela raiz e estão completamente mortas. Eles são como as ondas bravas do mar, jogando para cima a espuma das suas ações vergonhosas; são como estrelas sem rumo, para as quais Deus reservou, para sempre, um lugar na mais profunda escuridão. Foi Enoque, da sétima geração a partir de Adão, quem há muito tempo profetizou isto a respeito deles: Olhem! O Senhor virá com muitos milhares dos seus anjos para julgar todos. Ele virá a fim de condenar todos os que não querem saber de Deus, por causa de todas as más ações que praticaram e por causa de todas as palavras terríveis que esses pecadores incrédulos disseram contra Deus!. Esses homens estão sempre resmungando e acusando os outros. Eles seguem os seus próprios maus desejos, vivem se gabando e bajulam os outros porque são interesseiros. Mas vocês, meus amigos, lembrem do que foi profetizado pelos apóstolos do nosso Senhor Jesus Cristo. Eles disseram a vocês: Quando chegarem os últimos tempos, aparecerão pessoas que vão zombar de vocês, pessoas que não querem saber de Deus e seguem os seus próprios desejos. São essas pessoas que causam divisões, pois são dominadas pelos seus desejos naturais e não têm o Espírito de Deus. Porém vocês, meus amigos, continuem a progredir na sua fé, que é a fé mais sagrada que existe. Orem guiados pelo Espírito Santo. E continuem vivendo no amor de Deus, esperando que o nosso Senhor Jesus Cristo, na sua misericórdia, dê a vocês a vida eterna. Tenham misericórdia dos que têm dúvidas; salvem outros, tirando-os do fogo; e para com outros mostrem misericórdia com medo, odiando até as roupas deles, manchadas pelos seus desejos pecaminosos. Deus pode evitar que vocês caiam e pode apresentá-los sem defeito e cheios de alegria na sua gloriosa presença. Por meio de Jesus Cristo, o nosso Senhor, louvemos o único Deus, o nosso Salvador, a quem pertencem a glória, a grandeza, o poder e a autoridade, desde todos os tempos, agora e para sempre! Amém!


Há certa semelhança entre a segunda carta de Pedro e a de Judas: ambas tratam da apostasia na igreja. Pedro descreve a apostasia como uma ameaça futuro, Judas como ameaça presente. Pedro expõe os falsos mestres como perigosos, Judas descreve-os como depravados.
O autor desta epístola descreve-se como Judas, servo de Jesus Cristo, e irmão de Tiago. Sabemos que no Novo Testamento há vários homens com este nome. Como identificar o autor desta carta? Seria Judas Iscariotes, o traidor? Mateus 26.4. Não claro que não. Seria Judas Tadeu filho de Tiago? Lucas 6.16. Alguns estudiosos têm atribuído a este Judas a autoria da epístola, e em algumas traduções aparece "irmão de Tiago". Veja o verso 17.
A hipótese mais aceita, no entanto, era de que este Judas era irmão de Jesus. Mateus 13.55. Esta possibilidade tem recebido o apoio da maioria dos especialistas em história do Novo Testamento. Não pode haver dúvida quanto a sua autoria, já que Judas se diz "irmão de Tiago". Fica caracterizado de modo claro, que havia um só Tiago eminente e bem conhecido, o irmão do Senhor.
Conforme vimos acima Judas era irmão do Senhor, fora disto, nada sabemos a seu respeito. Podemos aprender muita coisa de Judas ao escutar o que tem a dizer de si mesmo. Era homem humilde (se identificava como servo de Cristo). Veja Romanos 1.1 e 1Pedro 1.1. Era reconhecido como irmão do Senhor. 1Cor. 9:5.
A carta de Judas Deve ter sido escrita, provavelmente no ano 70, pois faz referência à profecia de 2Pedro que por sua vez, não foi escrita antes do ano 66.

Pelo verso três deduz-se que Judas pretendia escrever sobre salvação, mas acabou por mudar de tema. Então passou a escrever uma defesa do padrão moral da fé cristã. Podemos dividir o estudo em seis partes:

1. Guardados por Deus para o Senhor Jesus. Versos 1 e 2. Foi escrito aos que são chamados, amados, conservados em Cristo e conservados por Cristo.
2. Guardar a fé. Versos 3 e 4. O Espírito constrange Judas a mudar o tema. A salvação é comum: esta ao alcance de todos.
3. Guardados para o juízo. Versos 5-7. Como solene aviso, devem-se guardar os mandamentos.
4. Não guardar a fé. Versos 8-19. Abandonando a fé, segue-se uma terrível deterioração do caráter. Sensualidade, pensamentos corruptos, incontinentes, espírito zombeteiro.
5. Guardados no amor de Deus. Versos 20-23. O amor é tudo. Como devemos proceder. Edificando, orando, conservando, olhando, compaixão, salvando etc.
6. Guardados de tropeçar. Versos 24, 25. Tropeçar precede cair. Ele nos livra dos tropeços.

Assim, a mensagem principal da carta é apologética: refere-se à necessidade dos cristãos estarem alertas contra aqueles que espalham ensinamentos falsos. Com fé em Cristo, sob a liderança do Espírito e no amor do Pai podemos resistir à apostasia.

Notas
Versículo 9. O arcanjo Miguel (Dn 10.13, 21; 12.1; Ap 12.7) discute com o diabo. Essa discussão aparece no livro A Assunção de Moisés. O diabo alegou que deveria ficar com o corpo de Moisés porque Moisés era um assassino (Êx 2.11-16). Miguel disse: Que o Senhor repreenda você! (Zc 3.2, 2Pe 2.11). Foi o próprio Deus quem sepultou Moisés (Dt 34.6).
Versículo 14. Enoque (Gn 5.18, 21-24), da sétima geração a partir de Adão (Gn 5.3-24). A referida profecia se encontra no livro Enoque.

dimanche 5 avril 2009

A doutrina da eleição

Calvinismo, arminianismo e o equilíbrio da doutrina batista

Em primeiro lugar devemos ver a relação entre teologia e doutrina. A teologia é uma construção racional, lógica, que parte de dois princípios: o princípio arquitetônico, que é a revelação, a palavra de Deus; e o princípio hermenêutico, instrumental, que fornece equipamento técnico para a análise do texto escriturístico.
A teologia serve assim, a partir desses dois princípios, um divino e outro humano, para contextualizar a palavra de Deus e responder aos desafios do tempo presente, armando e fortalecendo a igreja. Apesar desse importante serviço, a teologia é sempre passageira e precária. Não é revelação.
Já a doutrina é fundamento bíblico que norteia nossa fé e ordem. Não tem base nos arrazoados de grandes teólogos, mas na revelação. Nesse sentido, teologia e doutrina são diferentes. E nós devemos entender isso.
Em segundo lugar, devemos saber que quando o infinito cruza com o finito surgem questões impossíveis de serem respondidas a contento a partir de nossa perspectiva finita. Entre esses podemos citar a encarnação, a kenosis e a ressurreição de Cristo. Outra questão difícil, por implicar nesse cruzamento da infinitude da soberania de Deus e a liberdade de escolha da imago Dei, é a teologia da eleição.
Nesse sentido, há teologias, como a calvinista, que olham esta questão difícil da eleição a partir do infinito, de cima, exclusivamente. E há outras teologias, como a arminiana, que olham esta questão difícil da eleição a partir do finito, de baixo.
Mas há outra maneira de olhar a questão da eleição, a partir da humildade do reconhecimento que estamos diante de um cruzamento do divino com o humano, do infinito com o finito, daquilo que está em cima com aquilo que está em baixo. E é exatamente esta perspectiva, humilde, bíblica e, por isso, doutrinária que orienta o pensamento batista nesta difícil questão.

A teologia da eleição segundo Lutero
Para entendermos a teologia da eleição no calvinismo e no arminianismo temos que começar a partir da visão de Lutero. A compreensão de Lutero tem por base a sua leitura da Carta de Paulo aos Romanos, e a partir daí de sua teologia da cruz. Segundo Walther von Loewenich, um especialista na vida e obra de do reformador alemão, “a teologia da cruz é o princípio de toda a teologia de Lutero. Ela não pode ser limitada a um período particular de sua teologia”. Nessa teologia, Deus vem até aqui embaixo e a expiação acontece quando Deus chega até o ser humano, que vive sob a ira da lei. Deus é satisfeito, aplacado, quando o movimento divino em direção ao humano resulta em fé. Ocorre, então, uma “alegre troca”: Jesus toma a natureza pecaminosa e entrega ao ser humano sua vida justa e imortal. E nessa teologia da cruz de Lutero está embutida a primeira compreensão que a Reforma fez da eleição de Deus.
Para Lutero, conforme expôs no Prefácio a Carta de Paulo aos Romanos, “você deve seguir o raciocínio desta carta na ordem em que é apresentada. Fixe sua atenção, primeiro que tudo no Evangelho de Cristo, de maneira que você possa reconhecer seu pecado e a Sua graça. Então lute contra o pecado, conforme os capítulos de um a oito tem lhe ensinado a fazer. Finalmente, quando você chegar ao capítulo 8, debaixo da sombra da cruz e do sofrimento, passe para os capítulos de 9 a 11 que lhe ensinarão sobre a providência e o conforto que ela é”.
Assim, para Lutero, a eleição era uma garantia, era esperança. Pois, nos momentos de sofrimento, de cruz e das angústias da morte, é a providência divina, através da eleição, que nos dá garantia da presença da graça em nossas vidas. É por isso que ele disse: “Há uma medida adequada, hora e idade para o entendimento de toda doutrina”.
Dessa maneira, para o reformador, o caminho cristão começa com o ato de ouvir o Evangelho, com o reconhecimento de nosso pecado, mas também da graça de Deus, em Cristo, derramado sobre nós. Continua no correr de nossa vida com a luta contra o pecado e, finalmente, quando debaixo da sombra da cruz e do sofrimento, é a providência de Deus, manifesta na eternidade, através da eleição, que garante a esperança e nos dá conforto.

A teologia da eleição segundo Calvino
Calvino partiu dos mesmos textos de Lutero, principalmente da Carta de Paulo aos Romanos, mas inverteu a maneira de ver de Lutero. Se para Lutero, o ser humano não tem como discutir e mergulhar na compreensão da soberania de Deus e teologizar sobre ela e, por isso, a eleição deve ser vista como garantia de nossa esperança, principalmente nos momentos de dificuldades e sofrimentos, para Calvino a base da vida cristã é a escolha eterna de Deus. Assim, na teologia, não seria fim, mas começo e centralidade.
Tanto em seu Comentário sobre a Carta aos Romanos, como nas Instituições da Igreja Cristã, Calvino constrói uma teologia da eleição que tem por base a soberania de Deus. E olha a eleição sempre do “ponto de vista” de Deus, de cima, descartando uma leitura a partir da imago Dei e a possibilidade de escolha humana.
Segundo o teólogo batista Timothy George, a doutrina da predestinação em Calvino pode ser definida em três palavras: absoluta, particular e dupla. É absoluta já que não está condicionada a nenhuma contingência finita, é particular no sentido que pertence a indivíduos e não a grupos. E, por fim, é dupla: Deus, para o louvor de sua misericórdia, elegeu uns para a vida eterna, e, para o louvor de sua justiça, outros para a perdição eterna.
A posição de Calvino, quando relaciona eleição e salvação, pode ser traduzida no seguinte silogismo: (1) A certeza da salvação depende do decreto eterno de Deus; (2) aqueles que crêem foram escolhidos por Deus desde a eternidade; (3) se eu creio, logo serei salvo, porque fui escolhido.
A historiografia dos séculos 16 e 17 mostra que a doutrina da predestinação absoluta defendida por Calvino enfrentou séria oposição não somente nos meios teológicos, mas de pastores e crentes. Entre esses opositores podemos citar Erasmus, o movimento anabatista e dois fundadores do pensamento batista na Inglaterra: John Smyth e Guilherme Dell. Mas, historicamente, seu opositor mais conhecido foi Jacobus Arminius.
Apesar da oposição que a leitura de Calvino produziu no mundo protestante, sua leitura da eleição, para seus defensores, deve ser entendida como uma garantia nos momentos de provação e uma confissão à graça de Deus.

A teologia da eleição segundo Arminius
Já a doutrina da predestinação defendida por Jacobus Arminius (1560-1609)parte de uma perspectiva diferente: o papel da graça diante da depravação humana, a eleição condicional, a graça resistível, a expiação não limitada -- Cristo morreu por todos -- e a possibilidade de perda da salvação. Assim, para o arminianismo a eleição é condicionada pela fé.
Em sua Declaração de Sentimentos, apresentada à igreja holandesa em 30 de outubro de 1605, ele sintetizou a sua posição em cinco pontos:

1 - Capacidade humana e liberdade de escolha. Todos os homens embora sejam pecadores, ainda são livres para aceitar ou recusar a salvação que Deus oferece;
2 - Eleição condicional. Deus elegeu os homens que ele previu que teriam fé em Cristo;
3 - Expiação ilimitada. Cristo morreu por todos os seres humanos, em todas as épocas e lugares;
4 - Graça resistível. Os homens podem resistir à Graça de Deus para não serem salvos;
5 - Decair da Graça. Homens salvos podem perder a salvação caso não perseverem na fé até o fim.

Arminius defendeu uma posição sublapsariana, alertando para o fato de que Deus não predetermina ninguém para a perdição. Para ele, Deus em seu decreto escolheu seu Filho como Salvador para mediar a favor daqueles pecadores que se arrependem e crêem em Cristo, e para administrar os meios eficientes e eficazes para a fé de cada um deles. Assim, para ele, Deus decreta a salvação e a perdição de pessoas em particular com base na onisciência divina da fé e perseverança de cada indivíduo.
Na verdade, a tensão da discussão entre predestinação absoluta ou predestinação condicional gira ao redor da compreensão de duas doutrinas: graça e eleição. Tomamos por base, a partir de Arminius, o arrazoado que o apóstolo Pedro faz em sua segunda epístola, explicando esta questão. Ele nos mostra que a expiação não tem limites:
Não retarda o Senhor a sua promessa, como alguns a julgam demorada, pelo contrário, ele é longânime para convosco, não querendo que nenhum pereça, senão que todos cheguem ao arrependimento”. 2Pedro 3.19 e também 1João 2.2 e 2Coríntios 5.19.
A graça e a expiação têm eficiência e eficácia ilimitadas, mas há uma chave para que a função graça e função expiação sejam plenamente exercidas. E essa chave está no final do versículo acima citado: “que todos cheguem ao arrependimento”.
O sacrifício pleno, eficiente e eficaz de Cristo (graça não limitada) deve ser somado ao arrependimento, produzindo então a salvação. Ou seja: expiação não limitada mais arrependimento = salvação.
O sacrifício pleno, eficiente e eficaz de Cristo (graça não limitada) sem o arrependimento produz justiça. Ou seja: expiação não limitada menos arrependimento = justiça.
A verdade, para Arminius, é que o valor da cruz não é limitado, mas sua aplicação sim. Para ele, todos estão predestinados à salvação, mas a eleição depende do arrependimento. Por isso, para Arminius, que Deus decreta a salvação e a condenação de pessoas em particular com base no conhecimento divino da fé e perseverança de cada um em particular.
A partir desse pastor holandês, podemos dar uma explicação lógica e plausível para o texto de 2Pedro 2.1: “Assim como no meio do povo surgiram falsos profetas, assim também haverá entre vós falsos mestres, os quais introduzirão dissimuladamente heresias destruidoras, até a ponto de renegarem o Soberano Senhor que os resgatou, trazendo sobre si mesmos repentina destruição”.
A teologia de Jacobus Arminius ressalta a liberdade humana. Acreditava no pecado original, considerava que a vontade do homem natural caído está degenerada, incapacitada para produzir qualquer bem espiritual. Nesse sentido seu conceito de liberdade humana diferia da visão de Pelágio.
Jacobus Arminius influenciou profundamente a teologia de John Wesley, o metodismo e o protestantismo de missões. É interessante notar, também, que o pensamento de Arminius antecede os padrões de pensamento do Iluminismo.
Em resposta às críticas do arminianismo, a Igreja Reformada da Holanda se reuniu em concílio, e assim os presbiterianos produziram um documento que ficou conhecido como:

Os cinco pontos do Calvinismo
O termo Calvinismo é dado ao sistema teológico exposto e defendido por João Calvino (1509-1564). Seu sistema de interpretação bíblica, no entanto, sofreu uma releitura ao ser resumido em cinco pontos, conhecidos como "os cinco pontos do Calvinismo" ou TULIP, em inglês.
De 13 de novembro de 1618 a 9 de maio de 1619 reuniu-se na cidade de Dort, na Holanda, um concílio presbiteriano para discutir a controvérsia entre arminianos e calvinistas. Arminius (1560-1609) já tinha morrido e, logicamente, Calvino também (1509-1564). O concílio analisou cinco questões: predestinação, expiação, fé, graça e perseverança dos santos. Ao final do Concílio de Dort, os presbiterianos aprovaram os “cinco pontos do calvinismo”.
Eis a TULIP:

1 - Total Depravity (Depravação total). Todos os seres humanos nascem totalmente depravados, incapazes de se salvar ou de escolher o bem em questões espirituais;
2 - Unconditional Election (Eleição incondicional). Deus escolheu dentre todos os seres humanos decaídos um grande número de pecadores por graça pura, sem levar em conta qualquer mérito, obra ou fé prevista neles;
3 - Limited Atonement (Expiação limitada). Jesus Cristo morreu na cruz para pagar o preço do resgate somente dos eleitos;
4 - Irresistible Grace - (Graça Irresistível). A Graça de Deus é irresistível para os eleitos, isto é, o Espírito Santo acaba convencendo e infundindo a fé salvadora neles;
5 - Perseverance of Saints (Perseverança dos Santos). Todos os eleitos vão perseverar na fé até o fim e chegar ao céu. Nenhum perderá a salvação.

Essa leitura do calvinismo é chamada por alguns teólogos batistas de hipercalvinismo, e se caracteriza pela negação da idéia de que a chamada do Evangelho se destina àqueles que não são eleitos. É a negação da idéia de que a fé é o dever de cada um que ouve o Evangelho. Ou seja, é a crença de que Deus planejou o mundo de tal forma que causas secundárias, ou seja, nossas ações, não são necessárias de modo algum, pois, se Deus já escolheu quem vai ser salvo, não é necessário pregar o Evangelho. Esta visão não reflete o calvinismo histórico.

O equilíbrio da doutrina batista
Podemos dizer que existem três tendências no pensamento teológico em relação à doutrina da eleição, em especial à tensão existente entre a soberania de Deus e a liberdade de consciência e ação e ao uso pleno da razão por parte do ser humano:
A tendência chamada minimalista, que olha a questão de cima, a partir da soberania de Deus, e nega toda a possibilidade da liberdade humana, de consciência livre e escolha. A tendência chamada maximalista, que olha a questão de baixo, a partir de nossa humanidade, e não vê limitação à possibilidade do ser humano responder de forma livre ao chamado de seu Criador.
Mas há uma superação dialética dessa contradição, que defende que o ser humano pode e deve apoiar sua resposta à eleição e ao chamado de Deus em sua liberdade de ação e consciência, assim como no uso da razão, embora tal processo deva ter como ponto de partida a revelação. Vamos analisar, então, o pensamento doutrinário batista:
Eleição é a escolha feita por Deus, em Cristo, desde a eternidade, de pessoas para a vida eterna, não por qualquer mérito, mas segundo a riqueza da sua graça. Antes da criação do mundo, Deus, no exercício de sua soberania divina e à luz de sua presciência de todas as coisas, elegeu, chamou, predestinou, justificou e glorificou aqueles que, no correr dos tempos, aceitariam livremente o dom da salvação. Ainda que baseada na soberania de Deus, essa eleição está em perfeita consonância com o livre-arbítrio de cada um e de todos os seres humanos. A salvação do crente é eterna. Os salvos perseveram em Cristo e estão guardados pelo poder de Deus. Nenhuma força ou circunstância tem poder para separar o crente do amor de Deus em Cristo Jesus. O novo nascimento, o perdão, a justificação, a adoção como filhos de Deus, a eleição e o dom do Espírito Santo asseguram aos salvos a permanência na graça da salvação”.
Reconhecemos que existe uma tensão entre infinito e finito, entre o que está em cima e o que está embaixo. Mas, para nós batistas, a doutrina da eleição é uma síntese, que equilibra a tensão. Dessa maneira, segundo Sua graça imerecida, Deus opera a salvação em e através de Cristo, de pessoas eleitas desde a eternidade, chamadas, predestinadas, justificadas e glorificadas à luz de Sua presciência e de acordo com o livre arbítrio de cada um e de todos. [Veja os seguintes textos: 1Pedro 1.2; Romanos 9.22-24; 1Tessalonicenses 1.4; Romanos 8.28-30; Efésios 1.3-14].
E assim a doutrina batista apresenta seus quatro pontos:

1. Todos são eleitos.
2. Deus opera a salvação em e através de Cristo pelo favor imerecido de sua graça.
3. Deus é pré-ciente.
4. De acordo com o livre-arbítrio, desde a eternidade, Deus elege, chama, predestina, justifica e glorifica.

Nós batistas entendemos que salvação implica em regeneração, que é ato inicial em que Deus faz nascer de novo o pecador perdido. É obra do Espírito Santo, quando o pecador recebe o perdão, a justificação, a adoção de filho de Deus, a vida eterna e o dom do Espírito Santo. Neste ato de regeneração, o novo crente é batizado com o Espírito Santo e é por ele selado para o dia da redenção final, liberto do castigo eterno de seus pecados.
Há duas condições para o pecador ser regenerado: arrependimento e fé. O arrependimento implica em mudança radical do homem interior, que significa afastar-se do pecado e voltar-se para Deus. A fé é a confiança e aceitação de Jesus Cristo como Salvador e a total entrega da personalidade do pecador a Ele. Nessa experiência de conversão o ser humano perdido é reconciliado com Deus, que lhe concede perdão, justiça e paz.
Assim, a partir da consistência ontológica do humano, somos levados à necessidade de uma análise antropológica para a teologia. Quando descartamos a reflexão sobre o ser humano a quem Deus fala, temos um discurso meramente ideológico, distanciado do homem e da mulher verdadeiros e da realidade em que vivem e transformam. Temos, então, um ser humano-mito, onde os fatos natural e histórico transformam-se em alegoria.
O pressuposto fundamental dessa reflexão antropológica para a teologia é a imago Dei, que traduz a verdade de que a compreensão de Deus, através de seu Cristo, leva à compreensão do ser humano e de sua razão de existir. Não se trata de conhecer o ser humano para conhecer a Deus, porque o homem não é Deus, mas o contrário. Nesse sentido, a antropologia correta parte da revelação. Não utilizamos o conceito do teólogo Tomás de Aquino de analogia em seus dois sentidos, como se fosse possível ao homem conhecer a Deus a partir de si próprio, mas acreditamos que as necessidades e anseios do espírito humano apontam para aquilo que ele perdeu.
Se a revelação é uma conversa entre Deus e o ser humano, em Cristo, é a partir desse diálogo que temos os elementos fundamentais para conhecer aquilo que Deus deseja que sejamos. Nesse sentido, por mais decaído que esteja o ser humano, ainda lhe resta a liberdade de consciência necessária para aceitar ou não esse diálogo proposto pelo Criador.
Por isso, nós batistas consideramos que a missão do povo de Deus é a evangelização do mundo, visando a reconciliação do ser humano com Deus. É dever de todo discípulo de Jesus Cristo e das igrejas proclamarem, pelo exemplo e pelas palavras, a realidade do evangelho, fazendo novos discípulos de Jesus Cristo em todas as nações. Cabe às igrejas batizá-los, ensinando-os a observar o que Jesus ordenou. A responsabilidade da evangelização estende-se até os confins da terra e, por isso, as igrejas devem promover a obra de missões, pedindo a Deus que envie obreiros para a sua seara.

Notas
1. Walther von Loewenich, A Teologia da Cruz de Lutero, São Leopoldo, Sinodal, 1988, pp. 11 e 12.
2. Timothy George, Teologia dos Reformadores, São Paulo, Edições Vida Nova, 1994, p.232.
3. Desidério Erasmus (1486-1536) teólogo e erudito, em 1524 escreveu, em polêmica com Lutero, Diatribe sobre o Livre Arbítrio. Carl Bangs, Arminius, A Study in the Dutch Reformation, NY, Abingdon Press, 1971, pp. 90 e 102.
4. John Smyth (1610-1612), primeiro pastor batista na Inglaterra, levantou a bandeira da “liberdade de consciência absoluta” in Zaqueu Moreira de Oliveira, Liberdade e Exclusivismo: Ensaios sobre os Batistas Ingleses. Rio de Janeiro: Horizonal; Recife: STBNB Edições, 1997, p. 83.
5. Pensador batista inglês, “Dell usou cada oportunidade que teve para defender a liberdade de consciência. Ele considerou o uso de coação uma invenção humana, algo deletério que não tinha lugar no reino de Cristo”. Zaqueu Moreira de Oliveira, op. cit., p. 104-106. Dell escreveu Uniformidade Examinada e apoiou a revolução inglesa (1642-1649), dirigida por Oliver Cromwell.
6. Obras de Jacobus Arminius: Exame do Panfleto de Perkins, Declaração de Sentimentos, Controvérsias Públicas, Setenta e Nove Controvérsias Particulares in Carl Bangs, Arminius, A Study in the Dutch Reformation, NY, Abingdon Press, 1971, pp.206-221; 307-316; e Arminianismo e Jacobus Arminius, in Enciclopédia Histórico-Teológica, São Paulo, Edições Vida Nova, 1993, pp. 112-114.
7. Júlio Andrade Ferreira (org.), Antologia Teológica, São Paulo, Novo Século, 2003, p. 698.
8. Declaração Doutrinária da Convenção Batista Brasileira, “Eleição”, in Rumo e Prumo, terceira edição, Ordem dos Pastores Batistas do Brasil, secção do Estado de São Paulo, dezembro de 2004, p. 26.
9. “Salvação”, in Rumo e Prumo, terceira edição, Ordem dos Pastores Batistas do Brasil, secção do Estado de São Paulo, dezembro de 2004, p. 25.
10. “Evangelização e Missões”, in Rumo e Prumo, op. cit., p. 28.

mardi 31 mars 2009

Introdução ao estudo do Apocalipse

A apocalíptica, diferente da profecia clássica, tem três objetivos: falar de eventos futuros (cf. Ap 1.3; 22.7 e 10); revelar fatos ocultos ao momento presente (Lc 1.67-79; At 13.6-12); ministrar consolo e exortação, geralmente em linguagem de alto impacto (At 15.32; I Co 14.3, 4 e 31).
Nossa primeira pergunta é se os princípios hermenêuticos utilizados na apocalíptica devem ser os mesmos que se aplicam aos outros gêneros literários encontrados no texto sagrado, ou se necessitamos de um método hermenêutico especial. Os procedimentos tradicionais para a profecia clássica são as análises contextual, histórico-cultural, léxico-gramatical e teológica. Mas o grande problema é saber quando devemos interpretar o texto literalmente e quando deve ser analisado simbolicamente ou analogicamente. É o caso a expressão “et vidi de mare bestiam ascendentem habentem” (Ap 13.1). Esta expressão, besta que sai do mar, não pode ser encarada como uma expressão literal. É uma pessoa, é uma cidade, é um poder? Assim, o problema não está em antepormos um método literalista a outro estritamente simbólico. Um recurso pode ser o método analógico, que toma as declarações literalmente, mas depois as contextualizam.
Outro problema é se a linguagem apocalíptica tem universalidade ou se uma mesma palavra pode ter significados diferentes. Como é o caso dos números, das cores e de conceitos. Mas o maior problema da hermenêutica apocalíptica, no meu entender, é definir se o texto reflete uma contração profética, tem cumprimento evolutivo ou cada passagem tem uma única realização intencional.
Devido a essas dificuldades, opto pela seguinte hermenêutica em relação à literatura apocalíptica:

(1) análise histórica e cultural para definir em que condições o texto foi produzido, e checar se a profecia foi cumprida ou não;
(2) análise léxica e sintática, a fim de determinar que palavras foram utilizadas em sentido simbólico ou analógico;
(3) análise teológica para determinar se há passagens paralelas ou ciclos que se repetem dentro da mesma profecia.

Logicamente, não podemos perder de vista de que estamos diante de um texto figurativo e, por isso, com forte conteúdo simbólico e analógico.
Em relação ao livro do Apocalipse minha posição aproxima-se ao paralelismo progressivo de Hendriksen (1), defendido por Hoekema (2), que considera a existência de sete seções paralelas, que descrevem num crescendo a relação entre a igreja e o mundo, desde o primeiro século até o retorno de Cristo.

Teríamos assim
• Primeiro bloco nos capítulos 1 a 3 -- é a visão do Cristo glorificado, formando uma unidade com as cartas e as igrejas.
• Segundo bloco nos capítulos 4 a 7 -- é o da igreja sofrendo perseguições, tendo ao fundo o Cordeiro vitorioso.
• Terceiro bloco, que vai dos capítulos 8 a 11 -- mostra a igreja vingada, protegida e vitoriosa.
• Quarto bloco, dos capítulos 12 a 14 -- temos a visão de dois auxiliares de Satanás, que fazem oposição à igreja.
• Quinto bloco, nos capítulos 15 e 16 -- mostra a visitação final da ira de Deus sobre os impenitentes.
• Sexto bloco, nos capítulos 17 a 19 -- temos a queda das forças do secularismo e da impiedade que se opõem ao reino de Deus.
• Último bloco do livro -- temos a derrota de Satanás, o juízo e o triunfo final de Cristo e de sua igreja, e o universo restaurado.

Sem dúvida, nessas sete seções há uma progressão escatológica, que nos fornece a cada passo maiores informações sobre a luta de Cristo e de sua igreja com Satanás e as forças da impiedade.
Em Apocalipse 20.2-3 temos o trecho que fala de um período de mil anos. É uma passagem que se divide em duas partes. A primeira que fala do acorrentamento de Satanás (1 a 3) e a segunda de um período de mil anos com Cristo.
Como expus, os capítulos 20 a 22 não descrevem o que se segue à volta de Cristo, mas o versículo 20.1 nos leva, de novo, ao princípio da era cristã. A derrota de Satanás começou com a primeira vinda de Cristo (cf. 12.7-9), e o reinado de mil anos de Ap 20.4-6 acontece antes da volta de Cristo, porque depois (Mt 16.27; 25.31-32; Jd 14-15, 2 Ts 1.7-10) temos o juízo final. E como este juízo está ligado à volta do Rei Jesus, Senhor dos senhores, parece-me claro que o reinado deve acontecer antes e não depois do retorno de Cristo.
Particularmente, dentro da tradição judaica, mil é todo o número que não se conseguia contar. É um período completo, mas de extensão indeterminada. Estamos vivendo a era do Evangelho. Satanás está acorrentado pela verdade da proclamação do Evangelho (Mt 28.19), por isso, e graças a Deus por isso, podemos pregar o Evangelho e fazer discípulos de todas as nações.
É claro que ele pode operar ainda, fazer o mal, mas não pode enganar as nações a ponto de impedi-las de ouvir e aprender a verdade de Deus (Jo 12.31-32). Podemos explicar esta situação com duas constatações: (a) O acorrentamento de Satanás na era do Evangelho significa que ele não pode impedir o crescimento do Evangelho (Mt 13.24-30; 47-50); (b) e que ele não pode reunir todos os inimigos de Cristo para atacar a igreja.
A segunda parte do texto mantém o mesmo período de tempo, mas muda de perspectiva. Se nos versículos 1-3 a ação acontecia na terra, agora João vê o que está acontecendo nos céus. Vê os mártires e todos aqueles que resistiram aos poderes da impiedade e já morreram.
Só há uma ressurreição física (Jo 5.28-29; At 24.15). “Viveram e reinaram com Cristo durante mil anos” fala daqueles que estão com Cristo (Fp 1.23; 2 Co 5.8; Ap 3.21), hoje, sentados em tronos, na glória, participando do reinado de Cristo.
Não temos indicações de que João esteja falando de um reino de mil anos literais aqui na terra. Também não temos nenhuma indicação de que o centro desse reino será a Palestina ou a Jerusalém histórica.

Notas
(1) Hendriksen, William, More Than Conquerors, Grand Rapids, Michigan: Baker Books House, 1939.
(2) Hoekema, Anthony A., "A Interpretação do Livro de Apocalipse", in Milênio, Significado e Interpretações, editor Robert G. Clouse, Campinas, Luz para o Caminho, 1990, pp. 141-170.

mardi 24 mars 2009

Teologia da ortodoxia radical

A teologia da ortodoxia radical é um movimento teológico cristão que surgiu com John Milbank, Catherine Pickstock e Graham Ward, quando editaram uma série de ensaios, publicados pela Routledge em 1999, e que recebeu o título de Radical Orthodoxy, A New Theology.

A ortodoxia radical reúne teólogos de diferentes origens cristãs, mas desde seu começo teve como seus principais pensadores John Milbank, Catherine Pickstock e Graham Ward. John Milbank escreveu Theology and Social Theory, em 1990.

A teologia da ortodoxia radical no campo social faz a crítica do seculaismo e no campo filosófico a crítica da metafísica kantiana. O nome do movimento traduz a proposta de retorno a uma leitura ortodoxa da teologia. Nesse sentido, ortodoxia radical deve ser entendida como fé correta, ou aquele ensino que não deve ser distorcido.

O movimento da teologia ortodoxa radical coloca a arte, ciência, ética, filosofia, política, enfim a cultura da alta modernidade, em diálogo com as fontes da teologia cristã. Sua ontologia resgata as leituras platônicas e neoplatônicas de filósofos e teólogos cristãos.

Entre estes estão Henri de Lubac que, com seu trabalho teológico sobre a distinção entre natureza e graça, influenciou a construção da ontologia do movimento. Assim, como a teologia estética e a crítica literária de Hans Urs von Balthasar também foram determinantes. E os trabalhos de Karl Barth balizam a crítica da ortodoxia radical ao liberalismo na alta modernidade.

O movimento platonista das universidades de Oxford e Cambridge também influenciaram positivamente o movimento.

Dessa maneira, desempenha um papel significativo no desenvolvimento do movimento da ortodoxia radical a releitura de Platão, mas também Agostinho, Tomás de Aquino, Nicolau de Cusa, Meister Eckhart e Duns Scotus, considerado precursor da modernidade.

Bibliografia
Catherine Pickstock, After Writing, Oxford: Blackwell, 1997 (ISBN 0-631-20672-8).
James KA Smith, Introducing Radical Orthodoxy: Mapping a Post-secular Theology, Grand Rapids: Baker Academic/Bletchley: Paternoster Press, 2004 (ISBN 0-8010-2735-7 ou ISBN 1-84227-350-7).
John Milbank, The Word Made Strange, Oxford: Blackwell, 1997 (ISBN 0-631-20336-2).
_____________, Being Reconciled, London: Routledge, 2003 (ISBN 0-415-30525-X).
John Milbank, Theology and Social Theory (2nd ed.), Oxford: Blackwell, 2006 (ISBN 1-4051-3684-7).
John Milbank, Catherine Pickstock, Graham Ward (eds), Radical Orthodoxy: A New Theology, London: Routledge, 1999 (ISBN 0-415-19699-X).
John Milbank and Catherine Pickstock, Truth in Aquinas, London: Routledge, 2000 (ISBN 0-415-23335-6).
Phillip Blond, Post-Secular Philosophy, London: Routledge 1997 - (ISBN 978-0415097789).
Steven Shakespeare, Radical Orthodoxy: A Critical Introduction, London: SPCK, 2007 (ISBN 978-0-281-05837-2).

mercredi 18 mars 2009

Os caminhos da teologia

Inter pares
Uma breve reflexão sobre os caminhos da teologia

Nessa rápida exposição abordaremos a vol d’oiseaux movimentos fundamentais para entendermos os caminhos da teologia no século vinte e os desafios que procura responder no século que se abre.

O primeiro deles foi a teologia dialética, que teve como expoente principal a Karl Barth e como tema a palavra de Deus.

O segundo movimento foi produto da revolução antropológica que se exprimiu com a teologia existencial de Bultmann, a teologia hermenêutica de Fuchs e Eberling, a teologia da cultura de Tillich e a teologia transcendental de Karl Rahner. De modo geral, esse movimento e seus desdobramentos estiveram preocupados com a historicidade do sujeito, as perguntas existenciais, os contextos culturais e a estrutura apriorística do espírito-no-mundo. Em última instância, estiveram preocupados com aquele que ouve a palavra.

A partir dos anos 1960 o mundo viveu uma revolução não somente antropológica, mas social e política. Os debates se deram a partir da teologia da história, da modernização e da secularização, retomando Bonhoeffer, passando por Gogarten e Moltmann. A teologia continuou preocupada com categorias existenciais ligadas ao ser humano enquanto pessoalidade, mas procurou a dimensão política dessa pessoalidade, sua práxis na história e na sociedade. A teologia se fez política e tivemos como desdobramentos a teologia da libertação na América Latina, a teologia negra e a teologia feminista nos Estados Unidos e desdobramentos que foram surgindo a partir dessas teologias.

O último movimento, fruto já da globalização e do movimento teológico anterior, surgiu a partir das reflexões do mundo não-ocidental, pós-comunista, em sua relação com o Evangelho ocidental. Inculturação versus globalidade é o tema central dessas teologias em construção, que procuram entender e analisar, segundo Johann Baptist Metz o que seria um cristianismo enraizado em muitas culturas “e nesse sentido policêntrico, no qual a herança européia ocidental não está destinada a ser reprimida e sim a ser novamente estimulada e desafiada”.

A Deus toda a glória!

samedi 7 mars 2009

Deus, unicidade e pluralidade

Uma análise dos nomes de Deus: Ieouá e Eloim

Moisés disse a Eloim: Quando eu for aos filhos de Israel e disser: O Eloim de vossos pais me enviou a vós e me perguntarem: Qual é o seu nome?, que direi? Disse Eloim a Moisés: Eu sou aquele que é. Disse mais: Assim dirás aos filhos de Israel: Eu Sou me enviou até vós. Disse Eloim ainda a Moisés: Assim direis aos filhos de Israel: Ieouá, o Eloim de vossos pais, o Eloim de Abraão, o Eloim de Isaque e o Eloim de Jacó me enviou até vós. Este é o meu nome para sempre, e esta será a minha lembrança de geração em geração. Êxodo 3.13-15.

Dentro da Teologia Sistemática um dos temas mais difíceis, sem dúvida, é o estudo da unicidade e pluralidade de Deus. O Antigo Testamento nos dá muitas provas da singularidade de Deus, assim como também o Novo Testamento. Mas, o Senhor Jesus Cristo, e também os apóstolos fizeram questão de anunciar, talvez não tão claramente como desejássemos, que Deus é também pluralidade. E, a partir do século quarto, definimos uma formulação ortodoxa: Uma essência em três pessoas.

Muitos teólogos descartam qualquer possibilidade que o Antigo Testamento tenha deixado pistas sobre a pluralidade de Deus. Acreditam que essa revelação só nos é data no Novo Testamento. Sabemos que qualquer abordagem do tema implica em enfrentar dificuldades as mais variadas, mas nos parece que uma análise lingüística aliada a um estudo epistemológico da doutrina de Deus entre os antigos hebreus podem nos levar a uma compreensão mais plástica da discussão.

Nas traduções brasileiras o nome Eloim aparece como Deus. Simplesmente. Ora, sabemos que no Antigo Testamento aparecem diversos nomes para Deus: Eloim, Ieouá, El/Eloá, entre outros. Neste estudo analisaremos apenas dois desses nomes de Deus, Eloim e Ieouá, que acreditamos nos dão elementos para pesquisarmos dois aspectos teológicos da divindade, sua unicidade e sua pluralidade intrínseca. E tomamos como ponto de partida o texto de Êxodo 3.13-15.

A essência em Ieouá

O nome Ieouá ocorre no Antigo Testamento 6.823 vezes. Na verbalização do tetragrama optamos pela sonorização que remete à uma musicalidade ritualística apta para o culto coletivo, para a invocação e para o estado contemplativo. Assim, Ieouá parece pela primeira vez em Gênesis 2.4, junto a outro nome de Deus, Eloim como Eloim-Ieouá. No correr dos segundo e terceiro capítulos continua aparecendo, com exceção da história da tentação, quando aparece apenas Eloim. Na sequência, vamos ver que o nome Ieouá aparece sozinho ou combinado a Eloim, além de termos também apenas Eloim.

Essa situação acaba sendo um problema para os críticos. Afinal, porque Deus haveria de se revelar aos homens, em textos diferentes ou às vezes na mesma frase, ora como Ieouá, ora Eloim-Ieouá, ou apenas como Eloim? Por exemplo, em Gênesis 28.13, quando Jacó sonha, encontramos: Eu sou Ieouá, o Eloim de Abraão, teu pai, e o Eloim de Isaque.

A aparente dificuldade pode nos encaminhar a uma questão fundamental: a da personalidade ou atributos de Deus. Sem, dúvida, a personalidade de Deus está ligada à sua transcendência, mas também à sua imanência e é, em parte, traduzida nesses dois nomes de Deus.

O nome Ieouá deriva do substantivo hebraico hai, vida, que em português também pode ser traduzido por ser e estar. Assim quando balbuciamos, cantamos ou ouvimos o nome Ieouá, devemos pensar nos termos vida, ser, existência, entendendo que Ieouá é o único que possui vida em essência e existência eterna.

É importante observar, também, a conexão e semelhança existente entre o pronome ele em hebraico e hai. Em passagens como Isaías 43.10-11, o pronome é equivalente ao nome do Eterno Deus. No citado trecho de Isaías lemos: Eu sou a vida; antes de mim nenhum Eloim se formou, e depois de mim não haverá nenhum. Eu, eu mesmo sou Ieouá, e fora de mim não há nenhum salvador. E no salmo 102.27 encontramos: mas tu és a vida, e os teus anos jamais findarão.

Em hebraico, a palavra hai aparece muitas vezes como ser, equivalente ao “o mesmo”, aquele que não tem começo, nem fim.

Segundo Moshe Maimonides, erudito judeu da Idade Média, os nomes de Deus que encontramos nas Escrituras estão relacionados com suas ações, com apenas uma exceção, que é Ieouá. E este é considerado o nome por excelência, porque ele mostra em toda a sua extensão a substância de Deus. E na sequência acrescenta que no nome Ieouá, a personalidade do Eterno é expressada claramente. É sempre um nome próprio que traduz a pessoa de Deus.

A origem e o uso do nome Ieouá está ligado a Israel. Quando Moisés pergunta a Deus: Quando eu for aos filhos de Israel e disser: o Eloim de vossos pais me enviou a vós; e me perguntarem: Qual é o seu nome? que direi? E Eloim disse a Moisés: ego sum qui sum [conforme a Vulgata] Eu sou aquele que sou. O que poderia ser traduzido “eu sou aquele que é” ou “eu serei contigo”.

O ponto central dessa expressão, que sonorizamos Ieouá, é que Deus quer revelar-se a Moisés. Por isso, usa Ieouá. Como Ieouá, ele é o Deus que se torna música aos ouvidos humanos, para que possam conhecer aquele que é Eterno, o único. Por isso, ele diz a Moisés: Assim dirás aos filhos de Israel: Eu Sou me enviou a vós. Ieouá, o Eloim de vossos pais, o Eloim de Abraão, o Eloim de Isaque e o Eloim de Jacó me enviou até vós: Este é o meu nome para sempre, e esta será a minha lembrança de geração em geração. E em Êxodo 6.2-3 encontramos: Eu sou Ieouá. Apareci a Abraão, a Isaque e a Jacó como Deus todo-poderoso, mas pelo meu nome Ieouá não fui conhecido por eles.

Bem, aqui surge uma pergunta: Por que Deus diz que não foi conhecido por eles como Ieouá, se em Gênesis encontramos o nome Ieouá, assim como em vários outros trechos, inclusive na própria promessa da aliança?

É importante notar que até Moisés nenhum povo tinha conhecimento da revelação pessoalmente dirigida de Deus. Os povos tinham acesso à revelação católica, aquela que o apóstolo Paulo descreve em Romanos 1.19-21. Essa revelação universal é geral e plena, mas silenciosa: está dentro de todos/as, começou na origem, continua a vigir hoje e torna os humanos conhecedores da existência do Criador.

Mas a partir de Moisés, Deus dá aos filhos de Israel um som especial. Através dessa revelação, o povo de Israel toma conhecimento dos atributos pessoais, morais de Deus, como veracidade, benevolência, fidelidade, graça, justiça, misericórdia e santidade. Este Deus que se revela de forma particular, enquanto pessoa é Ieouá.

Vemos isso em Êxodo 34.6 quando a aliança é renovada e o próprio Deus diz de si mesmo: quo transeunte coram eo ait Dominator Domine Deus misericors et clemens patiens et multae miserationis ac verus [ainda segundo a Vulgata]. Assim, Deus apresenta-se como ser inteligente, com autodeterminação plena e consciência moral.

Ieouá nos apresenta outra característica de Deus: a sua unicidade. Encontramos em Êxodo 20.2-3: Eu sou Ieouá, teu Eloim que te fez sair da terra do Egito, da casa da escravidão. Não terás outros Eloim diante de mim. E em Deuteronômio 6.4 esta declaração é incisiva: audi Israhel Dominus Deus noster Dominus unus est. Esta declaração de Ieouá como o único Eloim será confessada por Davi em 2Samuel 7.22 e por Isaías (41.4; 43.10,11 e 44.6). De fato, é uma confissão que implica em compreensão daquilo que Deus é enquanto único: fundamento da realidade, imutável em suas promessas, aquilo que será. Toda escolha é realizada de conformidade com Sua vontade e prazer.

Pluralidade em Eloim

Só no primeiro capítulo de Gênesis, o nome Eloim aparece 32 vezes. No Antigo Testamento, Eloim ocorre 2.570 vezes. A palavra Eloim é uma derivação de El/Eloá, que transmite a idéia de poder, força, proeminência. Já o nome Eloim traduz uma idéia ampla e precisa, que é a de um criador que tem poder para governar, onipotência e soberania. Isto é indicado em Gênesis 1.1 e 2.4, já que Eloim aparece como o poderoso Deus criador do universo. Ele ordena e do caos o cosmos surge.

Mas há uma peculiaridade no nome Eloim. Ele é plural, na forma usual do masculino plural em hebraico. E em Gênesis 1.1 Eloim está no plural, mas o verbo está no singular. Mais interessante, ainda, é notar que em Gênesis 1.26 encontramos o verbo no plural: Façamos o homem a nossa imagem. Sem dúvida há uma conversa, mas com quem? Na sequência da frase encontramos demut tselem, imagem e semelhança, no singular, concordando com o pronome nossa, que também está no singular. Isto nos leva a deduzir que aquele que fala está se dirigindo a iguais, em imagem e substância. Ora, se quem fala é Deus Supremo, seus interlocutores não são anjos ou seres celestiais, mas Deus. E temos outros textos que nos levam em direção ao mesmo raciocínio: Gênesis 3.22, quando a pessoa desobedece; no castigo aos habitantes de Babel (Gn 11.7); o Salmo 149.2; Salomão em Eclesiastes 12.1; entre outros.

Existe a interpretação de que estamos diante de um plural majestático. Sabemos que a utilização dessa forma plural para reis era um costume comum no mundo semítico, mas devemos levar em conta as várias passagens e o contexto de cada uma delas. Sem dúvida, há textos em que a proposta de plural majestático encaixa-se perfeitamente, como é o caso de Juízes 11.24. Mas a generalização do conceito, sem dúvida, leva ao erro. Tal situação levou um estudioso judeu, Parkhurst, há duzentos anos, a afirmar que os cristãos têm razão em ver no nome Eloim uma expressão da trindade, pois o termo não implica apenas na definição daquele que cria, mas em Godhead.

Essa pluralidade da personalidade de Deus, que nós cristãos chamamos trindade, aparece de forma chocante em Josué 22.21-29, quando os filhos de Rubem, os filhos de Gade e da meia tribo de Manassés, em confissão diante de Deus e dos chefes das famílias de Israel, utilizam na mesma frase, juntos, três nomes de Deus: El/Eloá, Eloim, Ieouá. Expressão que, com variáveis, encontramos em Deuteronômio 10.17 e em Gênesis 33.20, 46:3 e Números 16.22, sendo que nas três citações só aparecem El/Eloá e Eloim. Nossos tradutores, usualmente, recorrem ao superlativo, como em Dt 10.17, Pois Ieouá vosso Deus é o Deus dos deuses e o Senhor dos senhores, o Deus grande, o valente, o terrível, que não faz acepção de pessoas e não aceita suborno. Mas sem dúvida, aqui se fala da personalidade de Deus, e não nos parece que essa utilização seja acidental, principalmente porque não era costumeira entre os hebreus.

Sabemos que os antigos não entendiam a trindade de Deus. Mas nos parece que através dos nomes de Deus, que traduzem atributos, alguns conhecimentos sobre esta pluralidade de Deus foram transmitidos aos hebreus, já que a própria promessa do Messias foi sendo construída nos corações e mentes dos profetas no correr da história de Israel. O rabino David H. Stern, por exemplo, analisando Romanos 3.29-30, afirma que não há contradição entre a declaração da Shemá e a compreensão de que Deus é Pai, Filho e Espírito Santo, pois em nenhum momento a doutrina da trindade afirma que estamos diante de três deuses .

Claro está que para nós cristãos é mais fácil entender a Trindade, pois contamos com textos do Novo Testamento, como 1Co 8.4-6, 1Tm 1.17; 2.5-6, que falam a respeito do Pai; Rm 8.9, At 5.3-4, Jo 3.8 sobre o Espírito Santo; e Jo 10.30, Tito 2.13, Fp 2.6 sobre o Filho. Além das formas trinitarianas em Mateus 28.19-20, 2Co.1.21-22 e 13.13.

Mas não podemos dizer que esses dois nomes de Deus, Ieouá e Eloim para os antigos hebreus fossem a mesma coisa, simples sinônimos.

A exegese tem exatamente essa finalidade, decifrar, traduzir aquilo que o autor original do texto queria dizer. A distância histórica entre a nossa cultura e aquela dos antigos hebreus é uma realidade draconiana. Além do mais, tecnicamente, podemos dizer que cada palavra carrega mais conteúdo do que é perceptível numa rápida leitura. Isto porque Deus ao revelar-se aos povos utilizou um instrumento humano, a linguagem. Dessa inadequação entre significado e significante nasceu a necessidade da hermenêutica. A tarefa do hermeneuta consiste pois -- a partir da utilização de análises histórico-cultural e léxico-sintática -- na explicitação da mensagem, através de uma metodologia bem dirigida. As conclusões a que chega nada devem acrescentar ao significado do texto, pois já estavam contidas nele. Mas, para o estudioso, essas conclusões são novas, pois estavam gravadas no subsolo do texto interpretado.

Se, de fato, os nomes de Deus revelam a sua personalidade, e isso uma análise léxico-sintática parece confirmar, assim como alguns textos -- um exemplo é Josué 22.21-29 --, então podemos dizer, tecnicamente, que cada novo corte nas expressões estudadas aprofundará o sentido primeiro. Ou seja, ao voltarmos à leitura do chamado de Moisés, depois do estudo que realizamos em Êxodo 3.13-15, temos o horizonte ampliando em relação à unicidade e pluralidade de Deus.

mardi 3 mars 2009

O ser humano. Antropologia bíblica

Antropologia bíblica [Teologia Sistemática II]. Questões para serem discutidas em sala de aula.

O SER HUMANO
Façamos o ser humano segundo a nossa imagem, semelhante a nós”. Gn 1.26

Toda a criação de Deus é o mundo do ser humano. Assim afirmam os dois relatos da criação e o Salmo 8. Mas em que sentido o ser humano é a imagem de Deus? Como Deus confere ao ser humano essa correspondência? A partir da antropologia bíblica podemos ver que:
[1] Em primeiro lugar o ser humano é fruto de uma intervenção de Deus. Há uma concessão de encargo que diferencia o ser humano do resto da criação. Ele é apresentado como um momento especial que coroa a ação criadora de Deus (Sl 8.6). Ele recebe responsabilidade (Gn 2.15-17) e poder de decisão (2.18-23).
[2] Em segundo lugar, Deus deixa claro a finalidade da decisão de criar um ser pessoal, segundo sua imagem. Tal ser deverá ter uma relação especial com o restante da criação (1.26). Deus cria e entrega ao ser humano sua criação. Este ser pessoal deverá estar sobre ela, numa relação de administração, cuidado e produção (2.15,16,19). O ser humano relaciona-se com a criação e através do uso dela e de suas descobertas em relação a ela, mantém uma permanente relação com Deus.
[3] Em terceiro lugar, a imagem de Deus é traduzida na relação que mantém com as criaturas, já que é uma relação de domínio. Ele reina sobre o universo produzido pelo poder criador de Deus. Mas aqui há um detalhe importante: este direito de domínio não lhe é próprio, ele reina enquanto imagem de Deus. Ele não é proprietário, nem tem autonomia irrestrita sobre a criação.
[4] Mas imagem de Deus traduz abertura à transcendência. Aqui estão dados os elementos que nos permitem entender porque faz parte da humanidade o abrir-se à transcendência e viver com ela. Há um deslumbramento permanente diante do absoluto, do sobrenatural e do mistério. Estamos diante de um ser que pode pensar o que não está aqui e agora, e que pode refletir sobre o que vai além da realidade factual.
E é por poder pensar tais realidades que não podem ser vistas, que o ser humano enquanto imagem de Deus pode refletir sobre a eternidade e relacionar-se com o transcendente. Assim, ao ser feito imagem de Deus, o próprio Deus transfere à humanidade a capacidade de relacionar-se com Ele.

UM SER PLURAL
[5] Esse ser humano de que fala Gn 1.26, que deve ser uma imagem de Deus, não é uma pessoa em particular, pois a continuação do texto fala que eles dominem. Estamos diante da criação da humanidade e o domínio do universo não é dado a uma pessoa, mas a comunidade dos seres humanos. Assim, ninguém pode ser excluído da autoridade de domínio dada por Deus à humanidade.
Da mesma maneira, em Gn 1.27 temos uma outra característica fundamental dessa mesma humanidade: ela é formada por conjuntos pares. Para alguns teólogos, como Karl Barth, tal explicação de Gn 1.27b, de uma humanidade formada por pares, é apresentada por Deus “quase à maneira de definição”.
Logicamente, há uma intenção para que o texto bíblico aprofunde-se em tais minúcias. É a de apresentar como o universo criado deveria ser administrado: através da convivência de seres que se completam e se amam. Ou seja, esse ser plural só poderia exercer o domínio através da comunidade, completando-se como homem e mulher.

Para onde aponta o domínio?
Se toda a criação de Deus é o mundo do ser humano, há a total desmitização da natureza. Não há astros divinos, terra divina, animais divinos. Todo o universo pode tornar-se o ambiente do ser humano, seu espaço, que ele pode adaptar às suas necessidades e administrar.
E como ele consegue isso? Através da cultura, enquanto processo social e objetivo de sujeição da natureza, e através dessa necessidade de expansão e domínio, pessoal e subjetivo, que é peculiar a todo homem e mulher livres.
O afastamento de Deus fez com que a humanidade perdesse sua capacidade de ser imagem de Deus viva e eficaz. Seu caráter inicial está distorcido e o mal perpassa todas suas ações. Assim, o ser humano lançou-se ao domínio de seus iguais, inclusive através do derramamento de sangue; suprimiu o equilíbrio e a mútua ajuda entre homem e mulher; mitificou a ciência e técnica; e lançou-se à destruição da própria natureza.
Cristo é “a verdadeira imagem do Deus invisível” (Cl 1.15 cf. 2Co 4.4) e a Ele cabe fazer, a nível escatológico, aquilo que à humanidade tornou-se impossível. “Foi-me dado todo o poder no céu e na terra, por isso, indo, fazei discípulos em todas as nações” (Mt 28.18).

vendredi 6 février 2009

Do Logos de Heráclito ao Logos joanino

Leitura para meus/minhas alun@s de Filosofia II. Favor ler também o artigo anterior postado no blog: A amizade como pretexto.

Logos, no grego 'palavra', foi entendido pelo filósofo grego Heráclito de Éfeso, como o princípio supremo de unificação, portador do ritmo, da justiça e da harmonia que regem o Universo. ["Bem dizia Heráclito: homens são deuses e deuses são homens, porque o Logos é um só" (Hipólito, Refutações, IX, 10,6)]. Assim, Heráclito diante da mobilidade de todas as coisas denominou fogo ao elemento primitivo, e viu este comandado por uma lei natural inteligente ou racional, o Logos. Considerou o Logos dotado de dois princípios internos contrários a operar, ditos por ele, antropomorficamente, guerra e paz (ou discórdia e concórdia). Estas duas forças contrárias transformavam o elemento primitivo, ora na direção da solidificação, ora de retorno ao estado móvel do fogo. Portanto, o Logos, concebido por Heráclito como uma lei natural ordenadora, a tudo comanda em forma dialética. E segundo Platão é o princípio de ordem, mediador entre o mundo sensível e o inteligível. Assim, para a filosofia grega, Logos era o princípio da inteligibilidade, a razão.

Mas, exatamente por ser razão e palavra, Logos mantém uma relação de complementação com sabedoria, e por isso é pensada por Heráclito como harmonia, o próprio nexo original entre Logos e physis. Todavia, para que, diante da ameaça do relativismo trazido pelas argumentações sofísticas, encontre-se melhor determinado o que se compreende por verdade, o pensamento de Sócrates e Platão vai formular explicitamente a questão: o que é? Esta questão busca definir isso que subjaz sempre idêntico a si mesmo, a substância ou essência, fundamento de +toda instabilidade acidental da existência aparente. O que em Heráclito se delimitava como o encontro da harmonia passa a ser, a partir do pensamento de Sócrates e Platão, uma procura: nasce, assim, a filosofia como um desejo de conhecimento. Aristóteles caracteriza expressamente esta transformação quando afirma em sua obra que "O que desde sempre, agora e para sempre, é constantemente procurado, porque sempre de novo a questão fracassa, é o problema: o que é o ser?". A filosofia constitui-se, a partir das concepções socrática, platônica, aristotélica, como o pensamento que investiga a questão do ser.

O conceito razão relaciona-se a três outros: essência, existência e essencialização. A essência não é apenas aquilo que uma coisa é, mas também aquilo que faz com que uma coisa possa ser. Nesse sentido, essência é potencialidade, o poder de ser e a fonte de existência: origem do ser. Mas também é o reino da cognição, do pensamento, impossível de penetrar. Pari passo à essência, o Logos correlaciona mente e realidade, tornando possível o conhecimento. Quando alguém compreende e fala sobre a realidade, faz juízos e define padrões, que são comuns aos outros seres humanos, se comunica. E quem possibilita a comunicação é o Logos. Assim, o Logos é a origem da razão e também do ser. Mas, origem do ser aqui não significa conhecimento a priori, é estar colocado à parte do reino da finitude e por isso a origem do ser só é conhecida por um ato de revelação.

A importância do logos

Dentre as inúmeras transformações que surgem com a pólis, a mais importante é a extraordinária preeminência da palavra sobre todos os outros instrumentos de poder.

A palavra deixa de ser o termo ritual e passa a ser a fonte para o debate, discussão e reflexão, sendo ela, ou melhor, o seu uso de forma mais persuasiva, que irá definir o orador vencedor dos embates dialéticos (dialética é compreendida como a arte real da discussão: as normas para uma discussão correta). Todas as questões de interesse geral passam a ser submetidas à arte da oratória e as decisões são as conclusões dos debates. A política se torna a arte do domínio da linguagem. Com a popularidade dos debates e das discussões, a polis se fundamenta na publicidade das manifestações sociais; se distinguem os interesses comuns dos privados, consolidam-se as práticas abertas e o domínio público, a base social da estrutura.

Porém, esse desenvolvimento traz uma profunda transformação, já que ao tornar comuns os elementos de uma cultura, levamos os mesmos à crítica e à controvérsia. Todos os elementos estão expostos a interpretações diversas e a debates apaixonados. Já não era possível se impor só por prestígio pessoal ou religioso... Devia haver o convencimento pela dialética.

A palavra constituiu-se no instrumento da vida política. Sua vertente escrita trouxe em si a possibilidade de uma completa divulgação do conhecimento. Neste momento, a escrita tornara-se pública, não mais estando presente apenas no palácio – como no período micênico. Neste contexto, o saber pode tornar-se igualmente público, deixando de estar restrito aos magistrados ou sacerdotes. Depois de divulgadas, as idéias deverão ser submetidas ao debate político e à aceitação popular.

A sabedoria e o logos

Com a consolidação da importância da palavra, o saber passa a ser um bem público. E a sabedoria, tão exaltada por filósofos como Platão, para o qual a sabedoria pertencia ao passado, ofereceu aos seus contemporâneos o amor à sabedoria, à filosofia. Assim, a sabedoria percorreu as veredas da linguagem, da palavra, do discurso, do logos, da dialética: este caminho tornou-se característico da cultura grega. Pode-se, em última instância, argumentar que a filosofia nasceu no momento em que se tentou recuperar algo perdido, a sabedoria, mesclada à dialética.

Não foi sem resistência que esse percurso foi seguido. A popularização do saber, antes inacessível, foi questionada. Havia uma articulação para que os mitos que chegassem à praça publica e fossem objeto de exame, mas não deixassem de ser um mistério. A sua reformulação produziu um salto no desenvolvimento humano, mantendo seus reflexos até hoje.

Na contemporaneidade latino-americana, partindo da dialética, Enrique Dussel propõe a dialética analógica da alteridade, a abertura da totalidade à alteridade, transcendendo o âmbito do logos. O logos permanece no mundo e não pode avançar mais além. O logos que transcende é análogos, mais além do logos, analogia que se articula na dialética da voz ouvida que leva a ouvir: ou seja, a ouvir a voz. Assim, o logos chega ao seu limite, e confia no que ouve do outro pela fé, pois sem a confiança no outro, não se pode escutar sua voz. Fé aqui significa ir mais além do horizonte da physis, ir mais além do horizonte da ontologia do mesmo, afirmando a ontologia da negatividade, isto é, já que o outro não se origina no idêntico, é diferente. Brota como ouvido, é âmbito ao qual a totalidade pode abrir-se, e ao abrir-se muda de estatuto, tornando-se ontologia negativa.

Em sua reflexão sobre a superação das totalidades ontológicas a partir da abertura à alteridade, Dussel afirma que tal superação se dá com a metafísica, entendida como além do fundamento. E se dá assim porque a metafísica não é somente ontológica, mas opera através da descoberta de um mais-além do mundo. E como em grego aná significa mais além, e logos significa palavra, análogos toma o sentido de palavra que irrompe no mundo desde um mais além do fundamento. O método ontológico-dialético chega até o fundamento do mundo desde um futuro, porém se detém diante do outro como um rosto de mistério e liberdade, de história distinta, mas não diferente. 1 Mas se o outro é distinto, não há diferença, nem retorno, embora haja história e crise. Por isso, para Dussel, se este logos irrompe enquanto interpelante indo mais além da compreensão, ele é análogo.

Essa interpretação de Dussel repousa na compreensão do Logos joanino, que repousa em Jesus, o Cristo, acima da tradição filosófica, quer de Heráclito, quer de Platão ou do neoplatonismo, e ainda da filosofia judaica expressa em Filón de Alexandria. Nesse sentido, se antes estávamos diante da personificação do Logos, ainda assim não há na tradição da filosofia grega ou judaica a idéia de encarnação do Logos. Esse Logos joanino, por isso, vai além de toda a tradição filosófica, embora João a utilize como ponte para falar à cultura de sua época.

Há ainda uma ponte com o pensamento judaico, principalmente no que se refere aos textos de Gênesis um e de Provérbios 8.22-31. O primeiro ao utilizar a expressão “en arqué” e o segundo ao personalizar a sabedoria. Nesse sentido, o Logos de João se apresenta como análogo. Análogo a Deus, porque é pessoa divina, e análogo aos seres humanos, porque é pessoa humana.

Análogo significa que o Logos vem de mais-além, isto é, que há um primeiro momento no qual surge uma palavra interpelante, mais além do mundo, que é o ponto de apoio do método dialético porque passa da ordem antiga à ordem nova. Embora, este Logos eterno se reflita através de nossos pensamentos e por isso não possa existir um ato do pensamento sem a secreta premissa de sua verdade incondicional [Romanos 12.2 e 1Coríntios 2.16].

Mas a verdade incondicional não está ao nosso alcance. Em nós humanos há sempre um elemento de aventura e risco em cada enunciado da verdade. Mas mesmo assim, podemos e devemos correr este risco, sabendo que este é o único modo que a verdade pode ser revelada a seres finitos e históricos.

Quando mantemos relação com o Logos eterno e deixamos de temer a ameaça do destino demoníaco, aceitamos então o lugar que cabe ao destino em nosso pensamento. Podemos reconhecer que desde o princípio esteve submetido ao destino e que sempre desejou livrar-se dele, mas nunca conseguiu.

Tarefa teológica da maior importância, na análise cristã do destino é saber relacionar Logos e kairós. O Logos deve alcançar o kairós. O Logos deve envolver e dominar os valores universais, a plenitude do tempo, a verdade e o destino da existência. A separação entre Logos e existência chegou ao fim. O Logos alcançou a existência, penetrou no tempo e no destino. E isso aconteceu não como algo extrínseco a ele próprio, mas porque é a expressão de seu próprio caráter intrínseco, sua liberdade.

É necessário, porém, entender que tanto a existência como o conhecimento humano estão submetidos ao destino e que o imutável e eterno reino da verdade só é acessível ao conhecimento liberto do destino: a revelação. Dessa maneira, ao contrário do que pensavam os gregos, todo o ser humano possui uma potencialidade própria, enquanto ser, para realizar seu destino. Quanto maior a potencialidade do ser – que cresce à medida que é envolvido e dominado pelo Logos – mais profundamente está implicado seu conhecimento no destino.

Nosso destino, que aqui pode ser entendido como missão, é servir ao Logos num novo kairós, que emerge das crises e desafios de nossos dias. Quanto mais profundamente entendermos nosso destino [no sentido de prokeimai, estar colocado, ser proposto] e o de nossa sociedade, tanto mais livres seremos. Então, nosso trabalho será pleno de força e verdade.

Nota

1. Enrique Dussel, “El Método de Pensar Latinoamericano: la Analéctica como Ruptura Teórica”, conferência proferida em novembro de 1972, in Introduccion a Una Filosofia de la Liberación latinoamericana, México D.F., Ed. Extemporâneos, 1977, pp. 117 a 138.

A amizade como pretexto

Leitura para meus/ minhas alun@s de Filosofia II
O QUE É FILOSOFIA?
Dizem-me: esse gênero de amor não é viável. Mas como avaliar a viabilidade? Por que o que é viável é um Bem? Por que durar é melhor que inflamar?1

Mais curioso que a pergunta -- o que é a filosofia? -- é a relação que os filósofos fazem da juventude com a ingenuidade. Afirmam que na juventude filosofavam sem saber o que faziam, que não possuíam a fúria da velhice que tenta nominar os conceitos. Agora velhos, quando se perguntam o que é a filosofia, apenas colocam de forma clara, simbólica, o que sempre fizeram. E, assim, a resposta é: filosofia é a arte de formar, de inventar, de fabricar conceitos.

A origem grega da palavra filosofia pode ser traduzida como amigo da sabedoria. Mas seria mesmo uma amizade?

O filósofo espanhol Francisco Ortega é um dos pensadores contemporâneos que ressalta a importância da amizade como objeto de reflexão filosófica.2 Incluindo-se nas correntes de pensamento que reivindicam para a filosofia a descentralização do sujeito e a tarefa de criar uma nova política da imaginação. Ortega projeta a amizade no contexto de uma nova ordem subjetiva, além da metáfora familiar aonde estes temas são reconhecidos e despolitizados. Politizar a amizade, para Ortega, é uma tarefa a ser assumida pela filosofia, no sentido proposto por Foucault, com "o deslocamento e a transformação das molduras do pensamento, a modificação dos valores estabelecidos e todo o trabalho que se faz para pensar de uma maneira diferente, para fazer outra coisa, para tornar-se outro do que se é".

Analisando o conceito de amigo, percebemos que a amizade possibilita uma relação íntima do ser humano com os conceitos, e que a condição para o exercício do pensamento é que tanto humano quanto conceito sejam vitais um para o outro.

Quando uma relação se torna condição para a existência de duas pessoas chamamos estas não de amigas mas de amantes. Eis a questão: amigos ou amantes?

Ora, o amor é esta tendência de um se unir com o outro, possuí-lo de modo contínuo, ou formar um todo com ele ("amor a Deus"). Em Platão é aspiração ao belo e ao bom, ao absoluto. Platão, em O Banquete, afirma que o amor é a principal motivação da filosofia, descobrindo assim o lugar central deste conceito. Mas convém distinguir o amor egoísta, possessivo, que persegue o outro como um objeto a ser devorado ("o amante ama o amado como o lobo ama o cordeiro", escreve Platão) e o amor que liberta do sofrimento e do desejo e conduz a alma ao banquete divino. O amor verdadeiro só pode ser satisfeito pela contemplação, para além do belo, do verdadeiro e do bem.

Uma amizade pode ser o final de um grande amor, mas nunca o início. As amizades transformadas em amor, sempre foram amor. E partindo dessa premissa poderíamos dizer o que é a filosofia.

Da reunião dessas duas idéias, amigo e amante, podemos inferir uma multiplicidade de conceitos. Podemos dizer que o filósofo é ele próprio conceito em potência e, a partir daí, que a filosofia deixa de ser apenas arte de fabricar conceitos, passando a ser a disciplina que consiste em criar conceitos. Mas quando falamos em criar conceitos estamos falando em definir idéias. Assim, definir um conceito é manifestar a sua compreensão. Deste modo, definir é delimitar as fronteiras. Geralmente a definição faz-se pelo gênero próximo e pela diferença específica.

Os conceitos não nos esperam feitos, como corpos celestes. Não há céu para os conceitos. Eles devem ser criados, e não seriam nada sem a assinatura daqueles que os criam. Nietzsche determinou a tarefa da filosofia quando escreveu: “os filósofos não devem mais se contentar em aceitar os conceitos que lhes são dados, para somente limpá-los e fazê-los reluzir, mas é necessário que eles comecem por fabricá-los, criá-los, afirmá-los, persuadindo os homens a utilizá-los”.

Agora, já podemos tentar abordar, partindo do outro extremo, o que a filosofia não é. Não é contemplação, “pois as contemplações são as coisas elas mesmas enquanto vistas na criação de seus próprios conceitos”. Não é reflexão, “posto que ninguém precisa de filosofia para refletir sobre o que quer que seja, isto é, artistas, por exemplo podem pensar sua arte sem que sejam filósofos, já que a reflexão pertence à própria criação individual, respectiva”. Não trabalha opiniões, pois nunca visa o “consenso”, mas sim o “conceito”. O primeiro princípio da filosofia deve ser que os universais não explicam nada, eles próprios devem ser explicados.

Conhecer-se a si mesmo, fazer como se nada fosse evidente, espantar-se: estas determinações e outras compõem a filosofia.

Mas não há garantias na manutenção dos conceitos criados, que podem ser revistos, fazendo com que a “exclusividade da criação de conceitos assegure à filosofia uma função, mas não lhe dê nenhuma proeminência, nenhum privilégio, pois há outras maneiras de pensar e criar, outros modos de ideação”.

Utilizando estes argumentos e retomando às denominações propostas do amigo, amante, pretendente e rival, a filosofia segue seu caminho de provação. Nesta via caminha despojando-se dos limites impostos pela obrigação dos benefícios sociais, que não são sua finalidade, mas um de seus usos finais.

A filosofia, encarnada na pele do filósofo, faz com que ele se delineie como um pretendente ao conhecimento, que no jogo da sedução se fantasie de amigo para obter sua conquista e assim tornar-se amante. Em sua fase apaixonada, intensa, criativa, o filósofo acaba por tornar-se um rival de seus próprios conceitos através da insaciabilidade por recriá-los. Por fim, vem a maturidade e as criações da velhice, frutos de uma profunda amizade.3

Notas
1. Roland Barthes, Fragmentos de um discurso amoroso, Rio de Janeiro, Francisco Alves, 1981, p. 17.
2. Francisco Ortega, Para uma política da amizade, Arendt, Derrida, Foucault, Rio de Janeiro, Relume-Dumará, 2000.
3. Gilles Deleuze, F. Guattari, O que é a filosofia?, Rio de Janeiro, Ed. 34, 1992. pp.9-21.