samedi 9 avril 2011

Antropologia teológica -- Leituras do humano

[Caríssim@s alun@s de Antropologia bíblica e teológica, eis o trabalho escrito do semestre: analisar o texto abaixo e discutir algumas questões presentes nele, como: imagem do Eterno, alienação, consciência e liberdade, hamartia, destino, a relação entre soma, psyché e pneuma, e outras.
O texto deve ter, no mínimo, sessenta linhas: e, no máximo, cento e vinte linhas.
Prazo de entrega: 19 de maio].








Leituras do humano
Prof. Dr. Jorge Pinheiro


Primeira parte


“Nós nos importamos com a boa qualidade dos homens, em primeiro lugar porque ela nos é útil, em seguida porque queremos dar-lhes alegria (os filhos aos pais, os alunos aos professores e em geral as pessoas benévolas a todas as outras pessoas).
É somente quanto a boa opinião dos homens é importante para alguém, abstraindo a vantagem ou seu desejo de agradar, que falamos de vaidade”.
Friedrich Nietzsche in Humano, demasiado humano.


O que é o humano? Se partirmos da teologia, teremos abordagens fundantes, que podem nos direcionar a uma compreensão mais abrangente do que é o humano. A primeira delas tem por base a antiga cosmovisão hebraica e apresenta uma antropologia da unicidade humana.


Dois textos do livro das Origens são paradigmáticos nessa leitura. O primeiro está em Gênesis 1.26 e conta que o Eterno disse: “vamos fazer os humanos, que serão como nós, que se parecerão conosco” E assim o Eterno construiu os humanos; parecidos com Ele. O segundo texto descreve o modo de construção do humano, está em Gênesis 2.7 e diz que “do pó da terra, o Eterno formou o humano. Ele soprou em seu nariz uma respiração de vida e assim esse ser se tornou vivo”.


A partir do segundo texto, podemos entender que a matéria-prima utilizada pelo Eterno na construção do humano é ordinária, ele é uma unidade de carbono, enquanto material pertencente à ordem comum de ló nefesh, que também dá forma aos seres inanimados e animais. Assim, é o sopro do Eterno que faz especial essa matéria ordinária. Teologicamente, podemos nos fazer uma pergunta: será que estamos somente diante de um símbolo ou, de fato, a força criadora do Eterno transmitiu ao humano não somente vida, mas intensidade e profundidade? De certa maneira não é absurdo dizer que seres celestiais são criaturas espirituais. Sua existência procede do exterior da força criadora do Eterno. A exteriorização traduz-se no fato de que a força criadora se dá através da palavra, de uma ordem criadora do Eterno.


A expressão nefesh, presente no segundo texto, leva a uma concepção de exterior versus interior, e tem por base o texto de Deuteronômio 32.9, quando afirma que “uma parte do Eterno faz seu povo”, já que mobiliza diferentes níveis da força criadora.


Nesse sentido, nefesh, fruto do sopro primordial, procede da interioridade do Eterno e por isso é conhecida como ein soph, que vem de seu interior. “Ele soprou” deve ser entendido como continuidade da afirmação “façamos o humano” (Gn 1.26), de maneira que nefesh liga céu e terra, o que está acima e o que está abaixo. Por isso, na tradição antiga dos hebreus, apesar de não tão fortes, os humanos são superiores aos anjos, porque procedem da interioridade do Eterno: traduzem ação mediadora e conjuntiva da força criadora.


Donde, o humano procede de atributos divinos não ostensivos, discretos, que se traduzem em integralidade, pluralidade social, sabedoria, compreensão e abertura à transcendência. Nefesh revela-se enquanto natureza que se torna compreensível e inteligível. É transbordamento e transparência do espírito do Eterno, que indica em transbordamento e transparência no humano, que relaciona imanência com transcendência.


Mas, o texto de Gênesis 2.7 fala de respiração e daquilo que o humano passa a ser: não tem uma nefesh, é uma nefesh. O pensamento literário dos hebreus era sintético. Daí que a chave para chegarmos a uma compreensão analítica dele, exige identificar com que parte do corpo o humano pode ser comparado e onde o agir humano faz interface com nefesh. E para isso utilizaremos textos que apresentam diferentes sentidos da nefesh.


“A mansão dos mortos abre a sua nefesh, escancara as suas fauces desmedidamente”. Isaías 5.14.
“Ele escancara a sua nefesh sem medida, como a mansão dos mortos, e é como a morte, não se saciando nunca”. Habacuque 2.5.


Embora a expressão nefesh apareça 755 vezes nas escrituras hebraicas e seja traduzida seiscentas vezes na Septuaginta, em grego, por psyché, na maioria das citações em hebraico, o significado literal de garganta e estômago transmitem a idéia de necessidade, de algo difícil de ser saciado. Nesse sentido, a palavra alma, tradução do grego psyché, nos dá uma tradução incompleta, pois a idéia é que o Eterno construiu o humano do pó da terra e insuflou em suas narinas o seu hálito e o humano se tornou um vivente que necessita Dele para ser saciado.


Nefesh não traduz algo bom ou mal, mas uma existência colada à realidade das necessidades fundamentais do humano, que ao não serem preenchidas produz alienação, individualismo, descrença, ignorância e idolatria.


Mas como o sopro do Eterno pode ter gerado um humano com tal índole de insaciabilidade? Se entendermos nefesh como figura das necessidades vitais, dos movimentos emocionais da alma, somos levados a entender o pensamento sintético hebreu ao ver a nefesh como síntese da própria vida. Assim, as necessidades humanas criadas pelo próprio Eterno só podem ser saciadas por Ele.


“Quem me encontra, encontrou a vida e alcançou benevolência do Eterno. Quem não me acha, faz violência à sua nefesh. Todos os que me odeiam, amam a morte”. Provérbios 8.39-40.
“Ó Eterno, tiraste a minha nefesh da mansão dos mortos”. Salmos 30.4.


No relato de Gênesis 2.7 o humano é definido como nefesh hayah, um ser vivente, que necessita ser saciado. Por isso, como vimos, quando integrado ao Eterno, nefesh é transbordamento e transparência do espírito do Eterno, o que indica transbordamento e transparência no humano, daquilo que relaciona o que está em baixo com o que está em cima.


Mas essa natureza também se constituirá enquanto expansão dos significados da imagem do Eterno, em graça e amor. “Ele soprou” traduz o fato de que as coisas do intelecto e do coração expressam-se através dos órgãos da fala, em especial garganta e boca, que possibilitam o sopro. Esse padrão simboliza a interioridade da natureza humana. Portanto, para que o humano possa dar intensidade e profundidade a sua inteligência precisa de amor e graça, que nascem da interioridade do Eterno. Em Gênesis 2.7, “ele soprou” significa que Aquele que soprou o fez numa determinada direção e com objetivo definido. Aqui, direção e objetivo traduzem o destino humano.


Esse é o destino humano: ter sua nefesh saciada pelo Eterno e a partir daí relacionar-se com Ele, com o universo, com seus semelhantes e consigo mesmo. Nesse caso, temos uma nefesh em equilíbrio, plena do espírito do Eterno.


“O homem quer dar prazer a si próprio, mas à custa dos outros homens, seja levando-os a ter uma opinião falsa a respeito dele, seja aspirando a um grau de “boa opinião”, em que esta tem de se tornar penosa para todos os outros (provocando inveja).
O indivíduo quer geralmente, por meio da opinião dos outros, certificar e fortalecer diante de seus olhos a opinião que tem de si; mas o poderoso respeito pela autoridade – respeito tão antigo quanto o homem – leva muita gente também a apoiar na autoridade sua própria confiança em si, portanto a só aceitar de mão de outrem: acreditam mais no critério dos outros do que no próprio”.
Friedrich Nietzsche in Humano, demasiado humano.


O pensamento pré-socrático inaugurou o problema que atravessará toda a história do pensamento ocidental, o problema do ser, ao caracterizar a verdade (em grego, alethéia) como o nexo entre linguagem (logos) e natureza (physis). Para Heráclito de Éfeso, por exemplo, o filósofo, que ama a sabedoria, é aquele que busca a unidade originária da totalidade de todas as coisas.




Logos, no grego 'palavra', foi entendido por Heráclito, como o princípio supremo de unificação, portador do ritmo, da justiça e da harmonia que regem o Universo. ["Bem dizia Heráclito: homens são deuses e deuses são homens, porque o logos é um só" (Hipólito, Refutações, IX, 10,6)].




Assim, Heráclito diante da mobilidade de todas as coisas denominou fogo ao elemento primitivo, e viu este comandado por uma lei natural racional, o logos. Considerou o logos dotado de dois princípios internos contrários a operar, concórdia e discórdia. Estas duas forças contrárias transformavam o elemento primitivo, ora na direção da solidificação, ora de retorno ao estado móvel do fogo.




Portanto, o logos, concebido por Heráclito como uma lei natural ordenadora, a tudo comanda em forma dialética. E segundo Platão é o princípio de ordem, mediador entre o mundo sensível e o inteligível. Assim, para a filosofia grega, logos era o princípio da inteligibilidade, a razão.




Mas, exatamente por ser razão e palavra, logos mantém uma relação de complementação com sabedoria, e por isso é pensada por Heráclito como harmonia, o próprio nexo original entre logos e physis. Todavia, para que, diante da ameaça do relativismo trazido pelas argumentações dos sofistas, encontre-se melhor determinado o que se compreende por verdade, Sócrates e Platão vão formular a questão: o que é? Esta questão busca definir isso que subjaz sempre idêntico a si mesmo, a essência, fundamento de toda instabilidade acidental da existência aparente.




O que em Heráclito se delimitava como o encontro da harmonia passa a ser, a partir de Sócrates e Platão, uma procura: nasce, então, a filosofia como um desejo de conhecimento. Aristóteles caracteriza esta transformação quando afirma que "o que desde sempre, agora e para sempre, é constantemente procurado, porque sempre de novo a questão fracassa, é o problema: o que é o ser?". A filosofia constitui-se, a partir das concepções socrática, platônica, aristotélica, como o pensamento que investiga a questão do ser.




O conceito razão relaciona-se a três outros: essência, existência e essencialização. A essência não é apenas aquilo que uma coisa é, mas também aquilo que faz com que uma coisa possa ser. Nesse sentido, essência é potencialidade, o poder de ser e a fonte da existência: origem do ser. Mas também é o reino da cognição, do pensamento, impossível de penetrar. Pari passo à essência, o logos correlaciona mente e realidade, tornando possível o conhecimento. Quando alguém compreende e fala sobre a realidade, faz juízos e define padrões, que são comuns aos outros seres humanos, se comunica. E quem possibilita a comunicação é o logos. Assim, o logos é a origem da razão e também do ser. Mas, origem do ser aqui não significa conhecimento a priori, é estar colocado à parte do reino da finitude e por isso a origem do ser só é conhecida por um ato de revelação.




Dentre as inúmeras transformações que surgiram com a cidade democrática grega, a pólis, a mais importante foi a preeminência da palavra sobre todos os outros instrumentos de poder.




A palavra deixou de ser o termo ritual e passou a ser a fonte para o debate, discussão e reflexão, sendo ela, ou melhor, o seu uso de forma mais persuasiva, que definirá o orador vencedor dos embates dialéticos (dialética era a arte da discussão: as normas para uma discussão correta). Todas as questões de interesse geral passaram a ser submetidas à arte da oratória e as decisões eram as conclusões dos debates. A política se tornou a arte do domínio da linguagem. Com a popularidade dos debates e das discussões, a polis se fundamentou na publicidade das manifestações sociais; se distinguiram os interesses comuns dos privados, consolidaram-se as práticas abertas e o domínio público, a base social da estrutura.




Esse desenvolvimento trouxe uma profunda transformação, já que ao tornar comuns os elementos da cultura, levou os mesmos à crítica e à controvérsia. Todos os elementos ficaram expostos a interpretações e a debates apaixonados. Já não era possível a ninguém se impor apenas por prestígio pessoal ou religioso. Deviria haver o convencimento pela dialética.




A palavra constituiu-se no instrumento da vida política. Sua vertente escrita trouxe a possibilidade da divulgação do conhecimento. A escrita tornou-se pública, não mais estando presente apenas no palácio ou no templo. O saber fez-se público, deixando de estar restrito aos magistrados ou sacerdotes. Depois de divulgadas, as idéias deveriam ser submetidas ao debate político e à aceitação popular.




Assim com a consolidação da importância da palavra, o saber passou a ser um bem público. A sabedoria percorreu as veredas da linguagem, do discurso, da dialética: este caminho tornou-se característico da cultura grega. Por isso, podemos dizer que a filosofia nasceu no momento em que se tentou recuperar algo perdido no passado, a sabedoria.




Na contemporaneidade latino-americana, partindo da dialética, Enrique Dussel propôs a dialética analógica da alteridade, a abertura da totalidade à alteridade, transcendendo o âmbito do logos. O logos permanece no mundo e não pode avançar mais além. O logos que transcende é análogo, mais além do logos, analogia que se articula na dialética da voz ouvida que leva a ouvir: ou seja, a ouvir a voz. Assim, o logos chega ao seu limite, e confia no que ouve do outro pela fé, pois sem a confiança no outro, não se pode escutar sua voz.




Fé aqui significa ir mais além do horizonte da physis, ir mais além do horizonte da ontologia do mesmo, afirmando a ontologia da negatividade, isto é, já que o outro não se origina no idêntico, é diferente. Brota como ouvido, é âmbito ao qual a totalidade pode abrir-se, e ao abrir-se muda de estatuto, tornando-se ontologia negativa.




Em sua reflexão sobre a superação das totalidades ontológicas a partir da abertura à alteridade, Dussel afirma que tal superação se dá com a metafísica, entendida como além do fundamento. E se dá assim porque a metafísica não é somente ontológica, mas opera através da descoberta de um mais-além do mundo. E como aná significa em grego mais além, e logos significa palavra, análogos toma o sentido de palavra que brota no mundo desde um mais além do fundamento. O método ontológico-dialético chega até o fundamento do mundo desde um futuro, porém se detém diante do outro como um rosto de mistério e liberdade, de história distinta, mas não diferente. Mas se o outro é distinto, não há diferença, nem retorno, embora haja história e crise. Por isso, para Dussel, se este logos aparece enquanto interpelante indo mais além da compreensão, ele é análogo.




Essa interpretação de Dussel repousa na compreensão do Logos joanino, que pousa sobre o Cristo acima da tradição filosófica, quer de Heráclito, quer de Platão ou do neoplatonismo, e ainda da filosofia judaica expressa em Filo de Alexandria. Nesse sentido, se antes estávamos diante da personificação do Logos, ainda assim não há na tradição da filosofia grega ou judaica a idéia de encarnação do Logos. Esse Logos joanino, por isso, vai além de toda a tradição filosófica, embora João a utilize como ponte para falar à cultura de sua época.




Há ainda uma ponte com o pensamento judaico, principalmente no que se refere aos textos de Gênesis um e de Provérbios 8.22-31. O primeiro ao utilizar a expressão “en arché” e o segundo ao personalizar a sabedoria. Nesse sentido, o Logos de João se apresenta como análogo. Análogo ao Eterno, porque é pessoa de Deus, e análogo aos seres humanos, porque é pessoa humana.




Análogo significa que o Logos vem de mais-além, isto é, que há um primeiro momento no qual surge uma palavra interpelante, mais além do mundo, que é o ponto de apoio do método dialético porque passa da ordem antiga à ordem nova. Embora, este Logos eterno se reflita através de nossos pensamentos e, por isso, não possa existir um ato do pensamento sem a secreta premissa de sua verdade incondicional [Romanos 12.2 e 1ª. carta aos Coríntios 2.16].




Mas a verdade incondicional não está ao nosso alcance. Em nós humanos há sempre um elemento de aventura e risco em cada enunciado da verdade. Mas, mesmo assim, devemos correr este risco, sabendo que este é o único modo que a verdade pode ser revelada a seres finitos e históricos.




Quando mantemos relação com o Logos eterno e deixamos de temer a ameaça do destino demoníaco, aceitamos então o lugar que cabe ao destino em nosso pensamento. Vamos constatar que desde o princípio estivemos submetidos ao destino e que sempre desejamos livrar-nos dele, mas nunca conseguimos.




Tarefa teológica da maior importância, na análise cristã do destino é saber relacionar Logos e kairós. O Logos deve alcançar o kairós. O Logos deve envolver a plenitude do tempo e o destino da existência. A separação entre Logos e existência chegou ao fim. O Logos alcançou a existência, penetrou no tempo e no destino. E isso aconteceu não como algo extrínseco a ele próprio, mas porque é a expressão de seu próprio caráter intrínseco, sua liberdade.




É necessário, porém, entender que tanto a existência como o conhecimento humano estão submetidos ao destino e que o imutável e eterno reino da verdade só é acessível ao conhecimento liberto do destino: a revelação. Dessa maneira, ao contrário do que pensavam os gregos, o humano possui uma potencialidade própria, enquanto ser, para realizar seu destino. Quanto maior a potencialidade do ser – que cresce à medida que é envolvido e dominado pelo Logos – mais profundamente está implicado seu conhecimento no destino.




Nosso destino, que aqui pode ser entendido como missão, é servir ao Logos num novo kairós, que emerge das crises e desafios de nossos dias. Quanto mais profundamente entendermos nosso destino [no sentido de prokeimai, estar colocado, ser proposto] e o de nossa sociedade, tanto mais livres seremos. Então, nosso trabalho será pleno de força e verdade.


O interesse por si próprio, o desejo de se satisfazer alcançam no vaidoso tal nível que ele induz os outros a uma falsa estima de si falsa, demasiado elevada, e depois se fia, não obstante, na autoridade dos outros: desse modo provoca o erro e, contudo, lhe dá crédito. É preciso, portanto, admitir que os vaidosos não querem agradar tanto a outrem quanto a si próprios e que chegam ao ponto de com isso descurar seu proveito; pois, muitas vezes importa-lhes suscitar em seus semelhantes disposições desfavoráveis, hostis, invejosas, em decorrência desvantajosas para eles, apenas para terem satisfação de seu eu, o contentamento de si.
Friedrich Nietzsche in Humano, demasiado humano.


Paulo dirá numa oração: “Que Eterno, que nos dá a paz, faça com que vocês sejam completamente dedicados a ele. E que ele conserve o pneuma, a psyché e o soma de vocês livres de toda mancha, para o dia em que vier o nosso Senhor Jesus Cristo”. Primeira carta aos Tessalonicenses 5.23.




Se o soma é o espaço do Eros, da vida e da materialidade; e a psyché o espaço do logos, da razão e da sensibilidade; o pneuma é o espaço da espiritualidade, entendido em grego como poiesis, espaço da experiência estética, que responde à necessidade criativa do sentido da vida.



Assim, o sentido da vida não é experiência exclusiva da pessoa religiosa, mas experiência que traduz a criatividade humana. Tal espiritualidade, ou pnêumica, é gratuita. Essa graça está no ato do fazer com imaginação, na inventividade.


Entre os pais da Igreja, partindo de Paulo, Orígenes (185-254) via o humano como triunidade e relacionava a consciência trinitária à sua leitura e interpretação das Escrituras. Para ele, no soma estava o sentido literal da compreensão da revelação; na psyché o seu sentido moral; e ao nível do pneuma o sentido simbólico. Ou seja, a própria compreensão da revelação tinha que passar por estes níveis da consciência humana.



E porque a atividade humana acontece dentro da cultura, que comove, Tomás de Aquino viu a busca da beleza como busca da totalidade, daquilo que é pleno, que possibilita a sacada. Dessa maneira, o conhecimento implica na existência de uma ontologia que, ao dar uma classificação para a percepção sensorial, descreve a experiência como composta de objetos que existem independentemente dos seres humanos. Temos, então, as diferenças que fundamentam a classificação: humano versus não-humano.


Assim, a temporalidade é percebida a partir dessa triunidade da consciência humana: materialidade, razão, espiritualidade. E se apresenta associada aos critérios de confirmação através de experiências intersubjetivas. Essa consciência tripartite é a base do conhecimento nas culturas, a fonte da inteligibilidade entre os humanos, mas também a base para a compreensão da natureza e da revelação.




O objetivo da revelação, antes que ser o de responder às crises que afetam o humano, é recuperar a ordem daquilo que aparece como caos. Por isso, a crítica à complexidade da revelação e à não-regularidade do comportamento proposto por ela está equivocada por não entender o mundo como infinidade de realidades não-observáveis, pois o aparente objeto único do ponto de vista do senso comum é sempre constituído por infinidade de realidades.




Aqui, o que importa é o aspecto qualitativo: a revelação postula realidades pnêumicas para explicar a diversidade das experiências observáveis. Quanto à não-regularidade do comportamento pnêumico, isso é patente apenas na perspectiva daquele que está de fora, pois, para a pessoa que vive o fenômeno espiritual, essas realidades estão sujeitas a leis, sendo a regularidade a própria condição de seu poder explicativo.




A partir dessas leituras, atravessando a correlação entre a nefesh dos hebreus, o soma e o logos do dualismo grego, e o pneuma de Paulo, o apóstolo, podemos dizer que o humano é construção, unicidade e pluralidade da pessoa, na comunidade, ser lançado no cosmo. Imagem do que é eterno, ser aberto à transcendência. Há nele um deslumbramento permanente diante do absoluto e do mistério. E por pensar o que não está aqui e o que não é agora, e refletir sobre o além da realidade imediata, tem prazer em se debruçar sobre o que é eterno e transcendente.






Segunda parte




Uma análise teológica de Gênesis 2.7-23 nos apresenta o humano em equilíbrio com a natureza e em harmonia com a transcendência. Mas, há no texto a metáfora da ruptura, como aquela que vemos na parábola do filho pródigo, contada por Jesus de Nazaré. Esta foi a interpretação de Ireneu de Lyon (ca. 130-202 d.C.) e de Quintus Septimius Florens Tertullianus (ca. 160 - ca. 220 dC).



Tertuliano considerou que o humano no princípio da vida é semelhan­te ao Adão descrito em Gênesis. Ou seja, as pessoas nascem, idealmente, no paraíso do equilíbrio natural e da harmonia com a transcenência, mas com a construção da consciência e da identidade humanas deixam para trás o jardim e entram no mundo da culpa. Por isso, Tertuliano rejeitou o batismo infantil.




Aurélio Agostinho (354-430), dito de Hipona, apresentou uma leitura diferente ao dizer que Adão era perfeito, justo e imorta­l, até perder tal condição com o pecado. Para Agostinho, o batismo tiraria o pecado original e restauraria a imorta­lidade aos descen­dentes de Adão. Atribuiu a Adão não somente o estado de pecado original em que viveriam todos os seus descendentes, mas também a culpa herdada por todos os seres humanos. Apoiou o seu conceito da culpa herdada numa tradição errônea, baseada num texto latino, da carta de Paulo aos Romanos (5.12): “em quem todos pecaram”. Mas, o texto grego diz: “assim como por um só homem entrou o pecado no mundo, e pelo pecado, a morte, assim também a morte passou a todos os homens, porque todos pecaram”.




Segundo Agostinho houve uma queda históri­ca de Adão, o que fez com que a espécie humana herdasse o pecado original. Mas, a história de Adão nos remete à metáfora de uma experiência partilhada por todos na construção da consciência e identidade humanas. Não partimos de um estado de pecado, mas somos culpados por fazer pecados, conforme nos diz o apóstolo Paulo, “assim como, em Adão, todos morrem” (1ª. Coríntios 15.22), “outrora, sem a lei, eu vivia; mas, sobrevindo o preceito, reviveu o pecado, e eu morri” (Romanos 7.9). Assim, uma boa tradução para Gênesis 8.21 é “não tornarei a amaldiçoar a terra por causa do ser humano, porque é mau o desígnio íntimo do ser humano desde a sua adolescência”, situando o movimento para a ruindade do coração a partir da construção da consciência e da identidade.




Adão estava em equilíbrio com a natureza e em harmonia com a transcendência, mas, também, em revolução permanente quanto ao conhecimento e às relações, com possibilidade de não escolher o distanciamento e de, no momento certo, superar a morte física pelo usufruto da árvore da vida.




Mas o humano, apesar de construído na semelhança do Eterno, desfrutar dos benefícios do equilíbrio com a natureza e da harmonia com a transcendência, viu que era diferente da natureza e que sua identidade se construía na separação da transcendência (Gn 3.1-5). Eis aí, a partir da alienação do estado natural e do mundo da transcendência, o surgimento do homo sapiens.




Esse distanciamento, no entanto, não surgiu apenas dentro da mente humana, mas veio também de fora. Veio da relação sujeito/objeto, do olhar a natureza e constatar que era diferente, do olhar a eternidade e ver-se humano. Nesse sentido, o desafio foi colocado pela natureza, que, ao existir, falou ao desejo de entendimento e de vida: “se vos abrirão os olhos e, como Deus, sereis conhecedores do bem e do mal” (Gn 3.5).




A curiosidade e reflexão surgiu a partir do próprio processo de conhecimen­to. Diante da natureza nasceu a consciência da diferença e a possibilidade de escolha que, por sua vez, leva a alternativas, escolher bem ou escolher mal, já que no início do processo nem sempre se sabe se será boa ou ruim a escolha feita. E, assim, o humano distanciou-se da natureza, embora ainda dependente dela, e também da transcendência. E com a consciência da diferença e de sua identidade humana, a morte chegou.




Não houve coerção, e, sim curiosidade, reflexão, escolha. O humano está livre para decidir.




Tais conceitos do humano em relação à alienação ressaltam que diante da hamartia a pessoa é culpada, não por participar do estado de pecado, mas, por praticar atos de pecado. O Eterno disse a Caim: “porventu­ra se procederes bem, não se há de levantar o teu semblante? e se não procederes bem, o pecado jaz à porta, e sobre ti será o seu desejo; mas sobre ele tu deves dominar” (Gn 4.7) e profeta Ezequiel (18.20) afirmou: “a alma que pecar, essa morrerá; o filho não levará a iniqüidade do pai, nem o pai levará a iniqüi­dade do filho”.




Sem dúvida, há uma tendência humana para errar o alvo. Ou como disse Oseias (11.7), “porque o meu povo é inclinado a desviar-se de mim”. Mas, tendência não é sinônimo de compulsão ou depravação total. Assim, o distanciamento da transcendência levou à consciência dos desequilíbrios em relação à natureza e aos relacionamentos. Apareceu a culpa, fruto da alienação existencial -- “então foram abertos os olhos de ambos, e conheceram que estavam nus” (Gn 3.7) e “esconderam-se o homem e sua mulher da presença do Eterno, entre as árvores do jardim” (Gn 3.8). Surgiu o medo existencial, fruto da consciência do poder transcendente: “ouvi a tua voz e tive medo” (Gn 3.10). E, também, à alienação nos relacionamentos (Gn 3.11-13 e 16) e à consciência da separação humano/natureza (Gn 3.17-19).




Dessa maneira, a alienação existencial levou ao lehatati e à consciência de morte, enquanto separação do humano daquilo que lhe é natural, seu próprio corpo, e daquilo que é transcendente, a presença da eternidade. Assim, como disse Byron Harbin, “a morte física é um rasga­mento da alma (2Co 5.4) e a morte espiritual é um rasgamento da relação do espírito humano com o Espírito divino”. Mas tal ruptura tem como limite o amor do Eterno, pois “se ele retirasse para si o seu espírito, e recolhesse para si o seu fôlego, toda a carne junta­mente expiraria, e o humano voltaria para o pó” (Jó 34.14,15).




A partir de “todos pecaram” -- Romanos (5.12) e Efésios (2.1 e 5) -- devemos entender que “estando vós mortos pelos vossos delitos e pecados” fala da morte como realidade humana resultante da ruptura com a transcendência. Esta morte frente ao espírito e a eternidade levou à morte física, “até que tornes à terra, porque dela foste tomado; porquanto és pó, e ao pó tornarás” (Gn 3.19), providência do Eterno para que o humano retornasse ao estado anterior à alienação e, assim, partici­passe do Novo Ser, ao invés do rasgamento permanente.





Terceira parte


A existência, enquanto processo, pode ter determinação construtiva no sentido teleológico, por apresentar qualidades adequadas à sua natureza ou função. E o humano, momento da existência, tem possibilidades diante dela. Essas possibilidades podem ser chamadas de liberdade condicionada e relativa à própria existência. Mas tais possibilidades são desafios à compreensão da condição humana e de suas relações reais. Estamos, então, falando de alienação.




A alienação antecede o exercício da liberdade. A idéia, trabalhada por Tillich, a partir de Hegel, é de que pertencemos essencialmente àquilo de que estamos separados. Ou seja, o humano não está separado de seu ser, mas é julgado por ele, e mesmo quando este lhe é hostil não consegue separar-se dele. As possibilidades humanas estão, nesse sentido, mesmo enquanto determinação construtiva e dinâmica, sob funções correlatas, alienação e lei, liberdade e necessidade, que são realidades da existência.




Se a alienação é ruptura essencial, parto que vai produzir a consciência humana, remete tanto ao distanciamento como à aproximação com o Ser. Não seria, então, apenas disfunção, mas apontaria também às funções do humano, enquanto ser com possibilidades de realização somática, psíquica, cultural, ecológica e do sentido pleno da vida.




Na tradição judaico-cristã essa relação entre alienação e liberdade foi um tema teológico de importância. Dos textos judaicos resgatamos idéias como aliança, constância, fidelidade, que remetem à correlação alienação/lei. E no testamento cristão a idéia de destino traduziu o conceito de alienação em seus dois vetores, distanciamento e aproximação.




As tensões ao redor da compreensão das idéias de alienação, que traduz funções e disfunções do humano, e graça, enquanto ação divina para a salvação, apontam para duas outras questões: história e liberdade. Essas duas questões formam a base do pensamento de que o ser humano por ser imagem do Eterno é um ser livre e, por extensão, faz história. Livre significa liberdade de julgamento e ação no âmbito da existência. Então, para que as pessoas sejam livres, o Eterno garante a liberdade delas.




Na carta aos Romanos (5.12), Paulo afirma que hamartia entrou no cosmo através do humano e com hamartia, a morte. Ora, hamartia ou peccatus é um fazer, uma consequência que nasce deste conceito militar dos gregos, ato do arqueiro errar o alvo, quer no treinamento, quer na batalha. Paulo utiliza a expressão no sentido de que a humanidade vive um fazer em que errar o alvo é possibilidade crescente na existência, embora não seja um estado dela.




Errar o alvo, ou, em hebraico moderno, errar o tiro, leva à conseqüências. Paulo privilegia uma delas, a consciência da morte. Para o apóstolo, hamartia ou peccatus produz uma consciência matricial, a consciência da morte. A partir da consciência da morte temos a consciência do divino, a consciência da diversidade, já que não somos bichos e, por extensão, não somos natureza, a consciência de que podemos escolher, e a consciência de que coisas e ações podem ser boas ou não. Dessa maneira, o alvo é o desafio de acertar, e estão diante do humano, de forma permanente, as necessidades diante da lei, daquilo que é ou está frente à existência e possibilidades diante da liberdade, daquilo que não existe, mas pode ser criado.




Alvo implica, então, em necessidades e lei e possibilidades e liberdade, que não se excluem: estão correlacionadas na existência humana, fazem parte do desafio da existência.




Ora, em termos teológicos, a partir dessa primeira reflexão, podemos dizer que todos são chamados à comunhão e cada pessoa pode responder positivamente a esse chamado. Caso o ser humano responda positivamente ao chamado, vive o processo de libertação que leva à comunhão plena. A comunhão consiste, então, em metanóia, que é volta ao estado de liberdade e permanência na escolha. A partir desta resposta, o Eterno opera a salvação do ser humano. Por isso, podemos dizer que a vontade humana abre o caminho da libertação. A partir daí entendemos a graça universal, pois todos os seres humanos poderiam responder positivamente ao chamado à comunhão. Ou seja, a liberdade de julgamento no âmbito da existência leva a pessoa a escolher os caminhos de sua história.




As funções e disfunções existenciais do humano, ou seja, a alienação, fazem com que as ações humanas, a partir dos desejos – emoções e sentimentos – levem o ser humano à possibilidade de errar o alvo, lehatati (להחט'א), em hebraico, hamartia, em grego, e peccatu, em latim. Dentro da tradição das escrituras hebraico-judaicas, lehatati é a violação da lei. Mas lehatati é sempre uma ação do coração e não um estado do ser. Já a alienação, esta sim, é um estado da existência e toda a humanidade se encontra nesse estado de disfunção, ou inclinação para fazer o mal, conforme vemos em Gênesis 8.21. Assim, lehatati traduz não somente falta moral, mas todas as violações da lei, quer conscientes ou não. E, segundo a tradição judaica, todo ser humano nasce sem lehatati, e a culpa de Adão recaiu sobre ele e sua família, mas não se estendeu à espécie humana. Apesar disso, todo ser humano é responsável pelo lehatati porque todos temos vontade livre, mas natureza alienada e, por isso, tendemos também para o mal. Por isso, o texto acima citado de Gênesis diz que o coração humano é mau desde a sua juventude. Mas o Eterno, através de sua misericórdia, possibilita ao ser humano a metanóia e o perdão.




A libertação humana é um processo, por isso, a pessoa não é plenamente livre, porque depende dela permanecer ou não na opção escolhida. Se ela manter a escolha será plenamente livre, se abandonar a escolha retorna à alienação. Caso a pessoa livre se alienar, se não houver metanóia, se não voltar à comunhão, estará alienada.




Dessa maneira, na polaridade alienação/comunhão dá-se a construção da história, ou seja, as pessoas e as comunidades humanas interagem, por opção ou por omissão, na construção de sua história. O Eterno é soberano porque criou e mantém o universo, sustentando-o na universalidade do Espírito, aqui entendido como sentido da vida. A soberania especial está sobre a comunidade que permanece na escolha. As outras comunidades estão fora desta soberania especial, da graça que gera comunhão plena, exatamente porque usaram a liberdade para escolher o lehatati.




E quanto maior a alienação, mais o Eterno retrai sua soberania sobre tais pessoas e comunidades, e, consequentemente, a graça que gera comunhão plena. O que explica o mal enquanto feituras pessoal e social. E para que o processo histórico se dê, o Eterno contrai espaço-temporalmente sua justiça executora.




Por paixão ao ser humano, ele contrai a ação de seu conhecimento. Caso o Eterno, a partir de seu conhecimento, definisse todas as ações livres do ser humano, as pessoas e as sociedades poderiam fazer apenas aquilo que o Eterno por conhecer definisse, sem poderem tomar decisões alienadas, sem poderem se afastar dele.




O Eterno dirige o seu fazer, mas interage com as pessoas e as comunidades humanas na produção da história, enquanto obra que nasce das correlações liberdade e comunhão e liberdade e alienação. A polaridade alienação versus comunhão não apresenta o ser humano como bom ou mal, mas como ser que age a partir dessa polaridade. Isso fica claro no diálogo que o Eterno tem com Caim, quando diz que ele está inclinado para o mal, mas deve dominá-lo. Essa conversa apresenta um padrão humano, a alienação.




Podemos ler Gênesis 6.5, 8.21 e Deuteronômio 31.21 a partir da compressão do conceito de alienação. É interessante que nenhum desses textos fala do ser humano como essencialmente corrupto, mas alienado. A própria palavra yetzer, que vem da raiz yzr, utilizada quando as Escrituras hebraicas falam de inclinação maligna, significa moldar, propor-se. A idéia é que o ser humano é dirigido por suas inclinações, imaginações, sejam elas boas ou más. É yetzer que, combinado ao julgamento livre no âmbito da existência, possibilita a metanóia. Ou, conforme diz Deuteronômio, o Eterno coloca diante do ser humano a possibilidade do bem e a possibilidade do mal. Os seres humanos terão comunhão se obedecerem aos mandamentos do Eterno e errarão o alvo se desobedecerem aos mandamentos do Senhor (11.16-28).




Assim, só o Eterno é capaz de fazer com que exista a liberdade humana e mantê-la. Essa graça, oriunda do Eterno e derramada sobre a humanidade, possibilita a construção da história. Por isso, Paulo diz que o Eterno fica de humor transverso com a alienação que distancia, mas segura as pontas com calma, por saber que a alienação é fruto da sua valência e, diante da alienação que aproxima, também obra sua, Ele expressa alegria. (Romanos 9.22-23).




Essa leitura da liberdade entregue ao ser humano é importante para a teologia, pois ao dizer que as pessoas e as comunidades humanas podem agir à margem daquilo que o Eterno desejaria para a humanidade, apresenta a violência, a guerra e os genocídios como frutos da opção e ação humanas. E o teólogo pode, então, analisar porque os profetas clamam e apontam às sociedades o caminho do Reino, embora estas possam escolher os seus próprios caminhos. O campo de concretação de Auschwitz, sob o nazismo, e os genocídios contemporâneos são, então, passíveis de estudo. Mas a nossa leitura coloca, também, para as comunidades de fé, o clamor profético e o desafio de expandir o Reino.




Em relação à alienação, o ser humano herdou de Adão a inclinação para o mal e, como consequência, a possibilidade crescente de errar o alvo, mas não a culpa. Os seres humanos são alienados porque separaram razão e coração e erram o alvo porque são alienados. E em relação ao processo de libertação, a morte do Cristo abre as portas da comunhão, mas não assegura a libertação plena, pois esta só será definitiva se a pessoa não desistir da corrida.




Paralelo ao pensamento hebraico, a cultura grega apresentou uma rica leitura do conceito de destino, que relaciona alienação e hamartia. O conceito destino nasceu da reflexão de que os deuses são imortais porque o humano está situado entre a finitude existencial e a infinitude potencial. Para os gregos o destino era finitude existencial, e esse é o tema da tragédia grega e da busca da superação filosófica, principalmente de estóicos e epicuristas. Era uma tentativa de colocar o humano acima do destino que o distanciava de seu ser, transformando-se em poder destrutivo que envolveu o mundo helênico em culpa e julgamento.




Um exemplo dessa leitura, que nos interessa para a construção de uma compreensão teológica da alienação, seria o arrazoado que Pedro, o apóstolo, fez em sua segunda epístola, ao dizer que a graça não tem limites, pois o Eterno não retarda a sua promessa, como alguns afirmam, por julgá-la demorada, mas por ser paciente. Ele não escolheria a danação eterna de pessoas, ao contrário, desejaria que todos chegassem à metanóia, ou seja, fizessem o caminho de volta à liberdade e construíssem comunhão.




Dessa maneira, a graça tem eficácia ilimitada, mas há uma chave para que a função graça seja plenamente exercida. E essa chave é: chegar à metanóia. Dessa maneira, o sacrifício de Cristo, que é graça plena e universal, deve ser somado à metanóia, produzindo então a libertação. Ou seja, graça plena mais metanóia é igual à libertação. E o sacrifício do Cristo sem a metanóia, produz justiça. Ou seja, o valor da cruz não é limitado, mas sim sua aplicação. E a preparação da pessoa e das comunidades humanas para a graça tem o julgamento livre no âmbito da existência como movimento e o Eterno como móvel.




Essa preparação pode ser pensada como movimento que parte, enquanto universalidade, da liberdade humana em direção à especificidade que tem o Eterno como móvel e implica em graça determinada pelo Eterno, embora não seja proveniente da coação, mas do seu pleno conhecimento, porquanto a intenção do Eterno não pode deixar de ter efeito.




Por isso, podemos falar da universalidade da graça, presente na comunidade humana, e na especificidade da graça, que infalível segue a boa vontade humana. Mas esse movimento é dialético, pois, quando olhamos da perspectiva do humano, ele parte da universalidade, mas se olharmos da perspectiva divina parte da especificidade. Ou seja, universalidade e especificidade são termos relativos, que se complementam na plenitude da graça. Por isso, liberdade, eleição e graça fazem parte de uma dança permanente, onde cada conceito implica na existência do outro e nenhum tem existência independente, mas criam uma unidade/diversidade correlacional plena e necessária.




Todas as pessoas e comunidades humanas realizam suas existências dentro desse processo, fazem parte dele, o que significa dizer que existência, liberdade e graça fazem parte da história humana. O Eterno mobiliza o processo em direção à especificidade, com base no seu conhecimento da fé e da perseverança de cada pessoa e das comunidades humanas, mas conhece e aceita o sentido da universalidade humana. Esta seria a leitura do texto de Pedro, quando disse que no meio do povo surgiram falsos profetas que introduziram doutrinas destruidoras, a ponto de renegarem o Eterno que os resgatou.




Na teologia paulina, enquanto diálogo das concepções do apóstolo com o mundo helênico, principalmente em sua carta aos Romanos, alienação/destino é o tempo favorável que triunfa sobre o espaço. O caráter do tempo propício à liberdade substituiu o tempo cíclico, transitório e perecível do pensamento helênico. A partir dessa compreensão, destino traduz aproximação, e apresenta novas possibilidades de construção da liberdade no tempo e na história.




Antes, a filosofia confrontava-se com a inspiração dos poetas, mas, a partir de Paulo, a revelação apodera-se da filosofia. Assim, o destino que distanciava foi questionado pelo pensamento paulino: “aquele que não era meu povo será chamado de meu povo, e aquela que não era amada passou a ser amada”. (Romanos 9.25). O transitório e perecível perdeu importância e a idéia da construção da existência enquanto tempo favorável foi tomando forma.




Mas voltemos um pouco atrás, para entendermos esse processo. Dentro da visão paulina, que traduz o pensamento cristão palestino, alienação/destino, no sentido de que os limites são potencialmente ilimitados, é a lei na qual surge o conceito de liberdade. Assim, alienação/destino correlaciona conceitos, porque a alienação está sujeita à liberdade; porque alienação significa que a liberdade também está sujeita à lei; e porque alienação significa que liberdade e lei são complementares e interdependentes.




Analisando o conceito cristão palestino de alienação/destino -- exposto por Paulo em sua carta aos Romanos -- podemos dizer que a liberdade humana está ligada às leis universais, de tal forma que liberdade e leis se encontram entrelaçadas. Para Paulo, assim como para a tradição judaica, lei é imposição de limites. Por isso, a alienação é um estado que surge da correlação entre lei e vida, porque se o julgamento é inerente a tudo na existência, também o é a liberdade.




Assim, a certeza de que a alienação/destino é propícia e tem significado realizador e não destruidor, é a peça chave do pensamento de Paulo, que coloca o sentido da vida acima do destino. Ao fazer isso, Paulo está dizendo que a compreensão do destino não está ao alcance da razão humana, mas o sentido da vida traduz a imortalidade potencial do humano.




Quando o humano faz a defesa do sentido incondicional da vida deixa de temer a ameaça da alienação/destino que distancia, e aceita o lugar que cabe à alienação enquanto estado da existência. Reconhecemos, então, que desde o princípio vivemos num estado de alienação e que sempre desejamos nos livrar dela, mas nunca conseguimos. Mas nessa análise da alienação cabe relacionar sentido de vida e tempo. O sentido de vida deve envolver as leis universais, a plenitude do tempo e a própria existência. E quando o sentido de vida alcança a existência, penetra no tempo e faz da alienação, aproximação.




É necessário, porém, entender que a consciência parte da alienação e que o reino da existência só é acessível ao conhecimento liberto da alienação que distancia. Dessa maneira, ao contrário do que pensavam os gregos, o humano possui potencialidade própria, enquanto ser, para realizar seu destino. Quanto maior a potencialidade humana – que cresce na medida da expansão do sentido da vida – maior será sua consciência de destino.




O destino humano, que nasce da alienação, aponta para o sentido da vida que emerge das crises e desafios. Quanto mais profundamente entendermos nosso destino, no sentido paulino de prokeimai, estar colocado, ser proposto, e o de nossas comunidades, tanto mais livres seremos.




Assim, a liberdade humana se dá na existência, enquanto realidade condicionada pela materialidade. A liberdade entende-se como correlação entre lei e sentido de vida. Quando Hegel afirmava que a liberdade é a consciência da necessidade, como fez questão de mostrar Marx, cometia um erro porque descartava a realização da liberdade. É por isso que Marx dirá que liberdade é práxis. Ora, para Marx, práxis é consciência da necessidade somada à ação transformadora. Ou seja, consciência da lei diante do estado de alienação que distancia é mudança radical, é ação transformadora da vida.




Lehatati, hamartia, peccatu é um fazer. Em relação ao imediato transforma-se em estado e no que se refere à espécie humana é um domínio. Lehatati, hamartia, peccatu acontece quando minha liberdade é desafiada, quando ela é chamada a surgir como feitura humana. Nesse sentido, lehatati, hamartia, peccatu não se apresenta sem agente moral, sem liberdade. Toda vez que realizo minha liberdade a lei está presente, pois lehatati, hamartia, peccatu é um contra-tipo da liberdade.




Por isso, só podemos responder à alienação que distancia reconhecendo que lehatati, hamartia, peccatu é feitura minha e de minha espécie, e que devo promover a ruptura desse fazer através da ação de expansão do sentido pleno da vida. Ao nível do pensamento, do sentimento, da vontade e da ação -- pois a alienação que distancia é o que não devia estar -- devemos exercer uma ética radical de defesa da vida e de seu sentido, de combate ao estado de alienação na vida de pessoas e comunidades.




Em 1970, Manuel Ballestero publicou em Madri, pela Siglo XXI, La Revolución del Espíritu (Tres pensamientos de libertad), analisando o caráter radical da liberdade no pensamento de três gênios da modernidade: Nicolas de Cusa, Lutero e Marx. Ballestero diz que sua preocupação residiu em analisar o projeto de liberdade desses três pensadores, sabendo que a autonomia e o ato livre são concebidos de maneiras diferentes e mesmo antagônicos, embora existam, no contexto da obra dos três, analogias de fundo. E essas se referem ao fato de que liberdade poderia significar a abolição da lei, o colapso da determinação exterior, e não o comportamento que se adequou aos limites da ordem. Assim, segundo Ballestero, Cusa, Lutero e Marx olham a liberdade como a destruição da ordenação exterior e anterior ao próprio ato livre.




Os ensaios mostram que a revolução teórica empreendida por Cusa e Lutero não foi gratuita, nem produto de um simples ato ideal, mas se enraizou no tecido histórico do movimento de decomposição global da formação social pré-capitalista. Cusa e Lutero clamaram por essa destruição. Sem entrar nos detalhes das mutações vividas no século dezesseis, com a ruptura do equilíbrio cidade/campo, o surgimento das manufaturas e a consolidação do sistema de trabalho assalariado, vemos que a alienação que distancia da condição humana na incipiente sociedade capitalista foi percebida por Cusa e Lutero: a liberdade do sujeito se dá como dor.




Mas ambos consideraram essa subjetividade liberada pelo início da arrancada capitalista como desequilíbrio. Assim, tanto Cusa quanto Lutero partiram do distanciamento nessa subjetividade alienada do nascente capitalismo, considerando que deveria ser superada para que o sentido da vida florescesse. Aí, então, teríamos o fim da não-essencialidade do sujeito alienado e a inserção deste na totalidade objetiva. Mas isso não poderia acontecer sem a transformação dessa realidade objetiva em realidade plena de vida, que sustenta o humano. Dessa maneira, para os dois pensadores, o sentido da vida constrói num nível superior o universo anteriormente negado.




O jovem Marx, seguindo os passos de Hegel, partiu dessa discussão. Para ele, a religião era a realização imaginária da essência do humano, mas essa essência não tem realidade alguma. De todas as maneiras, há um ponto de interligação nessa perspectiva: a liberdade como abolição da legalidade, como coincidência do momento subjetivo com o momento objetivo e como responsabilidade maior do ser humano.




Para Lutero, o humano existe como estrutura ontológica dual. Sua conceituação partiu da ansiedade teórica do século dezesseis, mas traduziu-se em superação da subjetividade alienada. O humano pleno do sentido de vida é senhor de todas as coisas, não está submetido a ninguém e esse senhorio radical é produto da vida em plenitude. Sua liberdade transforma a subjetividade alienada em realidade objetiva. Nesse sentido, o caráter da liberdade do humano pleno do sentido de vida se dá como processo: morre o imediato, o alienado, e tem início a construção de uma segunda natureza.




A liberdade surge como deslocamento do humano alienado, como distanciamento crítico daquilo que foi naturalmente dado. O primeiro momento da liberdade parte de uma concepção trágica, porque o senhorio num primeiro momento implica em servidão, criando tensão e luta. “É necessário desesperar-se por você mesmo, fazer com que você saia de dentro de você e escape de sua prisão” (Lutero, Les grands écrits, p. 259). Mas superada a tensão, temos a liberdade enquanto sentido pleno de vida, uma dimensão de combate.




Os humanos são chamados a superar a alienação, ter a liberdade que vai além, a liberdade que é construída na expansão do sentido pleno da vida. E, assim como Paulo, devemos saber que morte ou vida, anjos ou governos, coisas presentes ou futuras, poderes, altura ou profundidade, ou qualquer criatura não poderá nos distanciar do amor do Eterno, que está no Novo Ser, o Senhor.












jeudi 7 avril 2011

A ESPIRITUALIDADE E O ATO DE ADORAR


No entanto, está chegando a hora, e de fato já chegou, em que os verdadeiros adoradores adorarão o Pai em espírito e em verdade. São estes os adoradores que o Pai procura. Deus é espírito e é necessário que os seus adoradores o adorem em espírito e em verdade. João 4. 23-24.

É interessante que nenhuma das análises do já antigo filme de Mel Gibson, “Paixão de Cristo”, tratou de um dos temas centrais do cristianismo, que está presente no filme, mas que para milhões de espectadores passa desapercebido: a questão da espiritualidade cristã. E é esse tema que pretendo abordar, a partir de um texto clássico, o diálogo entre Jesus e a samaritana.

A discussão central de todo o texto onde Jesus conversa com a samaritana trata da espiritualidade cristã. Mas, agora, vamos nos ater aos versículos 23 e 24. De forma abrangente podemos dizer que espiritualidade é aquela relação do ser com a transcendência, que dá sentido à vida. E exatamente por isso intercalo no artigo o belo poema de Ada Negri, Atto d´amore, no idioma em que foi escrito.

Non seppi dirti quant'io t'amo, Dio
nel quale credo, Dio che sei la vita
vivente, e quella già vissuta e quella
ch'è da viver più oltre: oltre i confini
dei mondi, e dove non esiste il tempo.

O ser humano, unidade multiforme, tem em seu espírito não uma dimensão parcial da vida, mas irredutível, conforme afirma Vladimir Lossky [A l’image et la ressemblance de Dieu, Paris, 1967, p. 118]. Nesse sentido, o espírito é a totalidade da vida. Nas situações de perda, falta de sentido e de ameaça à vida há sempre experiência com a transcendência, pois mesmo na negação dela há um sentido transcendente.

Na reconstrução da Europa, depois da Segunda Guerra mundial, o teólogo teuto-americano Paul Tillich disse que a desintegração espiritual da sociedade ocidental já tinha sido prevista por teólogos e estudiosos, no século XIX, mas a necessidade de compreender este fenômeno exigia que nos aprofundássemos em seu estudo. E afirmou Paul Tillich: “Se não houver espírito, as construções humanas não poderão produzi-lo. Ele, o espírito age ou não age nos indivíduos e nos grupos. E quando age cria seu próprio meio de comunicação. Assim, o espírito se manifesta por meio das palavras, das formas de vida, das instituições sociais e dos símbolos religiosos”. [A Era Protestante, São Paulo, Ciências da Religião, 1992, p. 275-276].

A idéia espírito, de que nos fala Jesus, nos leva a uma compreensão abrangente de espiritualidade, que não pode ser entendida apenas como sinônimo de piedade ou como conhecimento dos princípios de que se compõe a piedade.

Partindo do senso comum da igreja brasileira, a espiritualidade pode ser vista como uma interpretação particular do ideal evangélico, mas se partimos do que Jesus nos transmite e da contextualização realizada por Tillich podemos dizer que há uma espiritualidade comum à espécie humana, que ela se expressa existencialmente por sermos todos imago Dei.

Quando multidões assistem a um filme como A Paixão de Cristo e são despertadas, cada qual a sua maneira, acerca da miserabilidade humana, constatamos que o ser humano tem atributos potenciais para a espiritualidade. Esses atributos, presentes na imagem de Deus que somos, e que chamo de tropismo à transcendência, nos leva à questão do sagrado.

Non seppi; - ma a Te nulla occulto resta
di ciò che tace nel profondo. Ogni atto
di vita, in me, fu amore. Ed io credetti
fosse per l'uomo, o l'opera, o la patria
terrena, o i nati dal mio saldo ceppo,
o i fior, le piante, i frutti che dal sole
hanno sostanza, nutrimento e luce;
ma fu amore di Te, che in ogni cosa
e creatura sei presente. Ed ora
che ad uno ad uno caddero al mio fianco
i compagni di strada, e più sommesse
si fan le voci della terra, il tuo
Volto rifulge di splendor più forte
e la tua voce è cantico di gloria.

 

A espiritualidade e o sagrado

 

Rudolf Otto, um dos teóricos que se debruçou sobre esta questão, diz que a experiência humana diante do sagrado tem sempre algo intenso e profundo, que ele chama de mysterium tremendum, que traduz o numinoso, o que é transcendente para a realidade do crente, que diante daquilo que o esmaga desenvolve senso de temor [O Sagrado, Lisboa, Edições 70, 1992, pp. 21-22]. Esse temor é um medo qualitativo, motivo para reflexão e energia que transformado em poder faz dele um adorador.

Tais experiências com o sagrado encorajam e incorporam no adorador aquilo que lhe é distinto. Apesar dessa relação de aparente intimidade de relacionamento, permanece o abismo entre adorador e sagrado. Dessa maneira, este desejo de saltar sobre o abismo que separa humano e sagrado é em última instância o móvel que dará origem à espiritualidade.

Se por um lado a crise ocidental pode ser traduzida como uma crise espiritual, por outro essa busca frenética de bens materiais e de consumo aumenta o vazio humano e favorece a busca da espiritualidade como experiência de vida coerente e recomendável. Assim, vivemos numa sociedade em crise espiritual, que procura encontrar a espiritualidade perdida.

 

A espiritualidade cristã


A espiritualidade cristã foi construída ao redor da cruz. A paixão de Cristo sempre foi entendida por teólogos e crentes como o derramar do dom da vida de Deus sobre os seres humanos. E porque a morte de Jesus Cristo não é derrota, mas sacrifício livremente aceito, a espiritualidade cristã tem sempre dois movimentos:

1. Um movimento em relação ao outro, ao próximo, ao desvalido, àquele que sofre, que é um chamado ao compromisso. Este movimento da espiritualidade em relação ao próximo nós chamamos de serviço.

A partir desse momento em que a espiritualidade torna-se caminho para Deus através do serviço ao próximo, a espiritualidade tem algo a dizer a todos os nossos relacionamentos, tanto pessoais, como sociais e políticos.

Pode parecer desconcertante relacionar espiritualidade e relacionamentos pessoais, sociais e políticos, mas ao falar de espiritualidade estamos falando do exercício do amor e por relacionamentos pessoais, sociais e políticos entendemos a transformação da sociedade na direção do reino de Deus, para que se faça justiça aos excluídos de tal forma que encontrem vida e salvação. Nesse sentido, a espiritualidade dá sentido à vida pessoal, social e política e torna-se além de profética, transformadora.

2. Mas a espiritualidade tem um outro movimento, que se por um lado está ligado ao rigor da fé, como vemos na oração e nos momentos de contrição, ela se realiza existencialmente, enquanto encontro com Deus. Esse encontro, conforme no diz Jesus, é a adoração e está na raiz da conversão e de todo processo de santificação. É um processo místico, no sentido que mostra nossa miserabilidade diante do insondável mistério de Deus.

Por isso, a espiritualidade é profética e transformadora no encontro com o outro, com o humano, e um ato místico de adoração diante da majestade de Deus.

Or - Dio che sempre amai - t'amo sapendo
d'amarti; e l'ineffabile certezza
che tutto fu giustizia, anche il dolore,
tutto fu bene, anche il mio male, tutto
per me Tu fosti e sei, mi fa tremante
d'una gioia più grande della morte.
Resta con me, poiché la sera scende
sulla mia casa, con misericordia
d'ombre e di stelle.
Ch'io ti porga, al desco
umile, il poco pane e l'acqua pura
della mia povertà. Resta Tu solo
accanto a me tua serva; e nel silenzio
degli esseri, il mio cuore oda Te solo.

E concluindo, conforme nos diz Segundo Galilea, a contemplação de Jesus Cristo no irmão que sofre e a contemplação de Deus no Cristo ressurreto são sempre frutos da ação do Espírito em nossas vidas [Espiritualidade da Libertação, Petrópolis, Vozes, 1975, pp. 15-16]. Esses dois encontros são a base da espiritualidade cristã e fundamentam todo ato de adoração daquele que crê.

mercredi 6 avril 2011

O imagológico no cotidiano pentecostal

Breve leitura da hermenêutica
do pentecostalismo midiático

Rudolf Bultmann trabalhou para desimagologizar os textos neotestamentários. Entendeu os relatos de maravilhas e milagres como metáforas apresentadas de forma simbólica. Dessa maneira, não traduziriam um fazer fantástico, mas teriam como objetivo falar de quem é o Cristo. Para ele, o Cristo não deveria ser seguido pelo maravilhoso que pode fazer na vida das pessoas, mas porque dá sentido à vida.

A hora está chegando! Acho que querem ocultar. O inimigo é sujo. Num hospital público de Itaguaí (RJ) nesse fim de semana que passou, nasceu uma criança com as mãos coladas, como se estivesse orando. Os médicos disseram para os pais que iriam operar as mãos daquela menina, iria dar uma anestesia. A operação foi muito fácil porque parece que as mãos estavam coladas apenas por uma pele. Quando abriram a mão daquela criança... Vocês nem imaginem o que estava escrito... Jesus está voltando! Os médicos começaram a chorar e todos que estavam no hospital. O bairro de Itaguaí está num movimento só. As pessoas que estavam afastadas da igreja estão voltando e outras aceitando Jesus como único Salvador. Deus trouxe aquela criança ao mundo somente para transmitir aquela mensagem, depois de algumas horas ela morreu”. Relato transcrito no site Pavablog.

É comum ao pentecostalismo midiático preferir a leitura simbólica à coisa significada, o que leva, muitas vezes, a sacralização do imaginário. A sacralidade é, então, reforçada na proporção em que o original diminui e a cópia aumenta, e quanto maior a aparência, maior o grau de sacralidade. Para pensar este paradoxo, a relação entre a imagologia e a construção do cotidiano pentecostal, utilizaremos como leitura na contramão não somente o texto transcrito do site Pavalog, mas também alguns comentários de leitores.

Nas comunidades pentecostais, a vida se apresenta como representação de um projeto escatológico. As imagens, desligadas dos aspectos imediatos da vida, fundem-se em correntes que não podem ser restabelecidas pela vida. A realidade desdobra-se, então, em mundos imaginados, em objetos de contemplação. E a especialização midiática torna as imagens autônomas. O cotidiano do pentecostal midiatizado transforma-se, então, na inversão concreta da vida, em movimento autônomo.

Eu tinha ouvido essa história há alguns meses atrás. Tinha dado crédito, pois me foi contado por uma crente séria, digna de confiança. Mas, se a data estiver certa, e o fato ocorreu no último final de semana, só posso concluir que se trata de um ‘boato gospel. Jesus é sensacional, mas alguns cristãos, sensacionalistas. Examinai tudo, retenha o que é bom”. Comentário sobre o relato da criança que nasceu com as mãos grudadas.

O cotidiano pentecostal é parte de uma comunidade pentecostal e esta última é instrumento de unidade, concentra os olhares e constrói consciência. Mas, o fato do cotidiano por si mesmo ser midiatizado faz dele terreno propício ao olhar que sonha e aprofunda a separação entre pessoa e comunidade. O cotidiano pentecostal, porém, não é apenas um conjunto de imagens, mas relação social mediada por imagens. Não deve, por isso, ser entendido como produto externo à vida. O cotidiano pentecostal é uma cosmovisão que se tornou real e foi materializada pela mídia.

Quando apreendemos o cotidiano pentecostal em sua totalidade, ele é ao mesmo tempo projeto e resultado. Não é um subproduto do mundo real, é o coração do não-real na comunidade real. Nas suas formas, o cotidiano pentecostal é modelo da vida socialmente presente, afirmação da escolha feita. O conteúdo e a forma do cotidiano pentecostal justificam as condições e metas da escolha maior, a comunidade sonhada. O cotidiano pentecostal é a presença dessa justificação, e ocupa o centro e o tempo no consumo da cultura midiática.

Eu acredito sim nesse fato, mas, porque uns dos médicos, que operou as mãos da criança, não deixa o seu comentário concernente esse grande acontecimento? Por que a gente ouve muitos testemunhos mentirosos por aí? Que esse seja verdade, porque estamos esperando o nosso Rei voltar, Jesus Cristo”. Segundo comentário sobre o relato da criança que nasceu com as mãos grudadas.

Ora, a diversidade que encontramos nas imagens do pentecostalismo faz parte da unidade pentecostal. Assim, a diversidade em condições normais de autonomia se faz presente na vida e na teologia pentecostal, que se divide em realidades e imagens. A prática social diante do cotidiano contém a totalidade do real. Mas a diversidade presente na totalidade leva a novas leituras da materialidade e reforça o cotidiano simbólico como meta. E, assim, a linguagem do cotidiano pentecostal passa a ser construída por símbolos que se transformam na meta de consumo e manutenção da cultura pentecostal.

Mas não se pode dizer que o cotidiano pentecostal e a atividade social real sejam a mesma coisa. O cotidiano inverte o real e o verdadeiro. A realidade vivida é invadida e absorve a ordem do cotidiano. E nesse movimento, a ordem do cotidiano imagológico se faz presente na realidade vivida. Essa realidade vivida, que surge do cotidiano pentecostal, faz dele, real. E as imagens viram fundamento da comunidade, e fazem do verdadeiro um momento da imagem.

Precisamos apenas atentar para o que Jesus nos disse quando foi aos céus... Ele nos disse que voltaria e não importa quanto tempo passou, a palavra dele é a mesma. Infelizmente, há crentes que são como Tomé... Querem confirmação do que o próprio Deus já disse: Uma geração má e adúltera procura um sinal. Acorda tu que dormes! E Cristo te esclarecerá”. Terceiro comentário sobre o relato da criança que nasceu com as mãos grudadas.

O conceito de cotidiano unifica a diversidade das experiências da vida pentecostal. As diversidades tornam-se aparências nas comunidades, que autocentradas, afirmam o cotidiano como a totalidade da vida humana. Mas, o verdadeiro no cotidiano pentecostal mostra que, de fato, um mundo imagológico foi construído.

A partir do cotidiano, o que alguém viu é garantia e a garantia é que alguém viu. É o discurso da aceitação de que o verdadeiro é verdadeiro porque alguém viu e disse. Estamos, assim, diante do monopólio do símbolo, que se reconstrói a cada dia porque os meios são fins. E as comunidades pentecostais, vecchi e nuovi, só têm pela frente o cotidiano, porque imagens são tudo, e o cotidiano passou a ser o principal objeto-imagem de produção e consumo. O cotidiano pentecostal subverte e submete a comunidade porque é a objetivação da imagem.

Qual seria o propósito que Deus teria em enviar essa mensagem marcada nas mãos daquela criança de vida tão breve? Será que não há profeta que anuncie a volta do Senhor Jesus? Quarto comentário sobre o relato da criança que nasceu com as mãos grudadas.

Se o símbolo definiu que a atividade pentecostal deveria ser a superação de mundo para a obtenção do céu, com a midiatização predomina a degradação do céu para o parecer no mundo, ou seja, parecer no mundo implica prestígio imediato. A realidade das pessoas, então, graças ao cotidiano, tornou-se realidade onde aqueles que são expostos e prestigiados o são porque, de fato, não são. E aí o mundo real se transforma em imagologia, e cada imagem vira ser real. Mas, o cotidiano pentecostal, que leva o céu a ser vivido através de mediações especialmente construídas, não pode ser apreendido diretamente, porque a visão, como os demais sentidos, em grau maior ou menor, distorce. Por isso, o cotidiano não é identificável ao olhar, nem mesmo quando acompanhado pela audição e fala. Ele escapa às atividades humanas, está no lado oposto ao diálogo, e gera representações independentes.

Mas Bultmann nos diz que o sentido da imagem não é proporcionar uma concepção objetiva do universo. Ao contrário, nele se expressa como o ser humano se compreende em seu mundo. A imagem não pode ser interpretada cosmologicamente, mas antes antropologicamente, de modo existencial. A imagem fala dos poderes que o ser humano experimenta como limite de seu mundo, bem como de seu próprio agir e sofrer. (Bultmann, p. 20).

Dessa maneira, podemos dizer que, cada vez menos, o cotidiano pentecostal realiza a teologia protestante, mas acorrenta a vida concreta das pessoas num universo imaginado. Ora, a teologia protestante pensa o separado e o poder separado, por isso ela está distante da experiência imagológica pentecostal. Esse cotidiano pentecostal faz a reconstrução material do cristianismo anterior ao protestantismo e das vidas, imagens. Não projeta o céu, abriga um paraíso de construção imediata. Tal cotidiano, então, torna-se exílio da espiritualidade, que repousa na alienação, a espera do momento mágico que num piscar de olhos fará da realidade, sonho.

Bibligrafia recomendada
Bultmann, Rudolf Karl, Crer e Compreender, São Leopoldo, Editora Sinodal, 1987.
DEBORD, Guy, A Sociedade do Espetáculo. Site: Biblioteca Virtual Revolucionária. WEB:
http://www.reocities.com/autonomiabvr/i.html
Pereira Jr., Isaías Lobão, A Teologia de Rudolf Bultmann. Site: Monergismo. WEB:
http://www.monergismo.com/textos/teologia/teologia_rudolf.htm

lundi 14 mars 2011

A alienação como desafio

Reflexões a partir de uma cama de hospital
 
“Sou malandro velho
Não tenho nada com isso” (Loki, Arnaldo Baptista, 1974).
 
Depois de quatorze dias internado no Hospital AC Camargo, em 2010, em São Paulo, e duas cirurgias, resolvi escrever sobre uma afirmação de Paul Tillich – “o estado da existência é o estado da alienação” – presente na Teologia Sistemática (São Leopoldo, Est/Sinodal, 2005, p. 339), e dizer um olá para Arnaldo Baptista, roqueiro-mor da minha geração militante.

A existência, enquanto processo, pode ter determinação construtiva no sentido teleológico, por apresentar qualidades adequadas à sua natureza ou função. E o humano, momento da existência, tem possibilidades diante dela. Essas possibilidades podem ser chamadas de liberdade condicionada e relativa à própria existência. Mas tais possibilidades são desafios à compreensão da condição humana e de suas relações reais. Estamos, então, falando de alienação.

A alienação antecede o exercício da liberdade. A idéia, trabalhada por Tillich, a partir de Hegel, é de que pertencemos essencialmente àquilo de que estamos separados. Ou seja, o humano não está separado de seu ser, mas é julgado por ele, e mesmo quando este lhe é hostil não consegue separar-se dele. As possibilidades humanas estão, nesse sentido, mesmo enquanto determinação construtiva e dinâmica, sob funções correlatas, alienação e lei, liberdade e necessidade, que são realidades da existência.  

Se a alienação é ruptura essencial, parto que vai produzir a consciência humana, remete tanto ao distanciamento como à aproximação com o ser. Não seria, então, apenas disfunção, mas apontaria também às funções do humano, enquanto ser com possibilidades de realização somática, psíquica, cultural, ecológica e do sentido pleno da vida.

Na tradição judaico-cristã essa relação entre alienação e liberdade foi um tema teológico de importância. Dos textos judaicos resgatamos idéias como aliança, constância, fidelidade, que remetem à correlação alienação/lei. E no testamento cristão a idéia de destino traduziu o conceito de alienação em seus dois vetores, distanciamento e aproximação.

As tensões ao redor da compreensão das idéias de alienação, que traduz funções e disfunções do humano, e graça, enquanto ação divina para a salvação, apontam para duas outras questões: história e liberdade. Essas duas questões formam a base do pensamento de que o ser humano por ser imagem do Eterno é um ser livre e, por extensão, faz história. Livre significa liberdade de julgamento e ação no âmbito da existência. Então, para que as pessoas sejam livres, o Eterno garante a liberdade delas.

Na carta aos  Romanos (5.12), Paulo afirma que hamartia entrou no cosmo através do humano e com hamartia, a morte. Ora, hamartia ou peccatus é um fazer, uma consequência que nasce deste conceito militar dos gregos, ato do arqueiro errar o alvo, quer no treinamento, quer na batalha. Paulo utiliza a expressão no sentido de que a humanidade vive um fazer em que errar o alvo é possibilidade crescente na existência, embora não seja um estado dela. 

Errar o alvo, ou, em hebraico moderno, errar o tiro, leva à conseqüências. Paulo privilegia uma delas, a consciência da morte. Para o apóstolo, hamartia ou peccatus produz uma consciência matricial, a consciência da morte. A partir da consciência da morte temos a consciência do divino, a consciência da diversidade, já que não somos bichos e, por extensão, não somos natureza, a consciência de que podemos escolher, e a consciência de que coisas e ações podem ser boas ou não. Dessa maneira, o alvo é o desafio de acertar, e estão diante do humano, de forma permanente, as necessidades diante da lei, daquilo que é ou está frente à existência e possibilidades diante da liberdade, daquilo que não existe, mas pode ser criado.

Alvo implica, então, em necessidades e lei e possibilidades e liberdade, que não se excluem: estão correlacionadas na existência humana, fazem parte do desafio da existência.

Ora, el termos teológicos, a partir dessa primeira reflexão, podemos dizer que todos são chamados à comunhão e cada pessoa pode responder positivamente a esse chamado. Caso o ser humano responda positivamente ao chamado, vive o processo de libertação que leva à comunhão plena. A comunhão consiste, então, em metanóia, que é volta ao estado de liberdade, e permanência na escolha. A partir desta resposta, o Eterno opera a salvação do ser humano. Por isso, podemos dizer que a vontade humana abre o caminho da libertação. A partir daí entendemos a graça universal, pois todos os seres humanos poderiam responder positivamente ao chamado à comunhão. Ou seja, a liberdade de julgamento no âmbito da existência leva a pessoa a escolher os caminhos de sua história.

As funções e disfunções existenciais do humano, ou seja, a alienação, fazem com que as ações humanas, a partir dos desejos – emoções e sentimentos – levem o ser humano à possibilidade de errar o alvo, lehatati (להחט'א), em hebraico, hamartia, em grego, e peccatu, em latim. Dentro da tradição das escrituras hebraico-judaicas, lehatati é a violação da lei. Mas lehatati é sempre uma ação do coração e não um estado do ser. Já a alienação, esta sim, é um estado da existência e toda a humanidade se encontra nesse estado de disfunção, ou inclinação para fazer o mal, conforme vemos em Gênesis 8.21. Assim, lehatati traduz não somente falta moral, mas todas as violações da lei, quer conscientes ou não. E, segundo a tradição judaica, todo ser humano nasce sem lehatati, e a culpa de Adão recaiu sobre ele e sua família, mas não se estendeu à espécie humana. Apesar disso, todo ser humano é responsável pelo lehatati porque todos temos vontade livre, mas natureza alienada e, por isso, tendemos também para o mal. Por isso, o texto acima citado de Gênesis diz que o coração humano é mau desde a sua juventude. Mas o Eterno, através de sua misericórdia, possibilita ao ser humano a metanóia e o perdão.

A libertação humana é um processo, por isso, a pessoa não é plenamente livre, porque depende dela permanecer ou não na opção escolhida. Se ela manter a escolha será plenamente livre, se abandonar a escolha retorna à alienação. Caso a pessoa livre se alienar, se não houver metanóia, se não voltar à comunhão, estará alienada.

Dessa maneira, na polaridade alienação/comunhão dá-se a construção da história, ou seja, as pessoas e as comunidades humanas interagem, por opção ou por omissão, na construção de sua história. O Eterno é soberano porque criou e mantém o universo, sustentando-o na universalidade do Espírito, aqui entendido como sentido da vida. A soberania especial está sobre a comunidade que permanece na escolha. As outras comunidades estão fora desta soberania especial, da graça que gera comunhão plena, exatamente porque usaram a liberdade para escolher o lehatati.

E quanto maior a alienação, mais o Eterno retrai sua soberania sobre tais pessoas e comunidades, e, consequentemente, a graça que gera comunhão plena. O que explica o mal enquanto feituras pessoal e social. E para que o processo histórico se dê, o Eterno contrai espaço-temporalmente sua justiça executora.

Por paixão ao ser humano, ele contrai a ação de seu conhecimento. Caso o Eterno, a partir de seu conhecimento, definisse todas as ações livres do ser humano, as pessoas e as sociedades poderiam fazer apenas aquilo que o Eterno por conhecer definisse, sem poderem tomar decisões alienadas, sem poderem se afastar dele.

O Eterno dirige o seu fazer, mas interage com as pessoas e as comunidades humanas na produção da história, enquanto obra que nasce das correlações liberdade e comunhão e liberdade e alienação. A polaridade alienação versus comunhão não apresenta o ser humano como bom ou mal, mas como ser que age a partir dessa polaridade. Isso fica claro no diálogo que o Eterno tem com Caim, quando diz que ele está inclinado para o mal, mas deve dominá-lo. Essa conversa apresenta um padrão humano, a alienação.

Podemos ler Gênesis 6.5, 8.21 e Deuteronômio 31.21 a partir da compressão do conceito de alienação. É interessante que nenhum desses textos fala do ser humano como essencialmente corrupto, mas alienado. A própria palavra yetzer, que vem da raiz yzr, utilizada quando as Escrituras hebraicas falam de inclinação maligna, significa moldar, propor-se. A idéia é que o ser humano é dirigido por suas inclinações, imaginações, sejam elas boas ou más. É yetzer que, combinado ao julgamento livre no âmbito da existência, possibilita a metanóia. Ou, conforme diz Deuteronômio, o Eterno coloca diante do ser humano a possibilidade do bem e a possibilidade do mal. Os seres humanos terão comunhão se obedecerem aos mandamentos do Eterno e errarão o alvo se desobedecerem aos mandamentos do Senhor (11.16-28).

Assim, só o Eterno é capaz de fazer com que exista a liberdade humana e mantê-la.  Essa graça, oriunda do Eterno e derramada sobre a humanidade, possibilita a construção da história. Por isso, Paulo diz que o Eterno fica de humor transverso com a alienação que distancia, mas segura as pontas com calma, por saber que a alienação é fruto da sua valência e, diante da alienação que aproxima, também obra sua, Ele expressa alegria. (Romanos 9.22-23).

Essa leitura da liberdade entregue ao ser humano é importante para a teologia, pois ao dizer que as pessoas e as comunidades humanas podem agir à margem daquilo que o Eterno desejaria para a humanidade, apresenta a violência, a guerra e os genocídios como frutos da opção e ação humanas. E o teólogo pode, então, analisar porque os profetas clamam e apontam às sociedades o caminho do Reino, embora estas possam escolher os seus próprios caminhos. O campo de concretação de Auschwitz, sob o nazismo, e os genocídios contemporâneos são, então, passíveis de estudo. Mas a nossa leitura coloca, também, para as comunidades de fé, o clamor profético e o desafio de expandir o Reino.

Em relação à alienação, o ser humano herdou de Adão a inclinação para o mal e, como consequência, a possibilidade crescente de errar o alvo, mas não a culpa. Os seres humanos são alienados porque separaram razão e coração e erram o alvo porque são alienados. E em relação ao processo de libertação, a morte do Cristo abre as portas da comunhão, mas não assegura a libertação plena, pois esta só será definitiva se a pessoa não desistir da corrida.

Paralelo ao pensamento hebraico, a cultura grega apresentou uma rica leitura do conceito de destino, que relaciona alienação e hamartia. O conceito destino nasceu da reflexão de que os deuses são imortais porque o humano está situado entre a finitude existencial e a infinitude potencial. Para os gregos o destino era finitude existencial, e esse é o tema da tragédia grega e da busca da superação filosófica, principalmente de estóicos e epicuristas. Era uma tentativa de colocar o humano acima do destino que o distanciava de seu ser, transformando-se em poder destrutivo que envolveu o mundo helênico em culpa e julgamento.

Um exemplo dessa leitura, que nos interessa para a construção de uma compreensão teológica da alienação, seria o arrazoado que Pedro, o apóstolo, fez em sua segunda epístola, ao dizer que a graça não tem limites, pois o Eterno não retarda a sua promessa, como alguns afirmam, por julgá-la demorada, mas por ser paciente. Ele não escolheria a danação eterna de pessoas, ao contrário, desejaria que todos chegassem à metanóia, ou seja, fizessem o caminho de volta à liberdade e construíssem comunhão.

Dessa maneira, a graça tem eficácia ilimitada, mas há uma chave para que a função graça seja plenamente exercida. E essa chave é: chegar à metanóia. Dessa maneira, o sacrifício de Cristo, que é graça plena e universal, deve ser somado à metanóia, produzindo então a libertação. Ou seja, graça plena mais metanóia é igual à libertação. E o sacrifício do Cristo sem a metanóia produz justiça. Ou seja, o valor da cruz não é limitado, mas sim sua aplicação. E a preparação da pessoa e das comunidades humanas para a graça tem o julgamento livre no âmbito da existência como movimento e o Eterno como móvel.

Essa preparação pode ser pensada como movimento que parte, enquanto universalidade, da liberdade humana em direção à especificidade que tem o Eterno como móvel e implica em graça determinada pelo Eterno, embora não seja proveniente da coação, mas do seu pleno conhecimento, porquanto a intenção do Eterno não pode deixar de ter efeito.

Por isso, podemos falar da universalidade da graça, presente na comunidade humana, e na especificidade da graça, que infalível segue a boa vontade humana. Mas esse movimento é dialético, pois, quando olhamos da perspectiva do humano, ele parte da universalidade, mas se olharmos da perspectiva divina parte da especificidade. Ou seja, universalidade e especificidade são termos relativos, que se complementam na plenitude da graça. Por isso, liberdade, eleição e graça fazem parte de uma dança permanente, onde cada conceito implica na existência do outro e nenhum tem existência independente, mas criam uma unidade/diversidade correlacional plena e necessária.

Todas as pessoas e comunidades humanas realizam suas existências dentro desse processo, fazem parte dele, o que significa dizer que existência, liberdade e graça fazem parte da história humana. O Eterno mobiliza o processo em direção à especificidade, com base no seu conhecimento da fé e da perseverança de cada pessoa e das comunidades humanas, mas conhece e aceita o sentido da universalidade humana. Esta seria a leitura do texto de Pedro, quando disse que no meio do povo surgiram falsos profetas que introduziram doutrinas destruidoras, a ponto de renegarem o Eterno que os resgatou.

Na teologia paulina, enquanto diálogo das concepções do apóstolo com o mundo helênico, principalmente em sua carta aos Romanos, alienação/destino é o tempo favorável que triunfa sobre o espaço. O caráter do tempo propício à liberdade substituiu o tempo cíclico, transitório e perecível do pensamento helênico. A partir dessa compreensão, destino traduz aproximação, e apresenta novas possibilidades de construção da liberdade no tempo e na história.

“Ficamos até mesmo todos juntos
Reunidos numa pessoa só”

Antes, a filosofia confrontava-se com a inspiração dos poetas, mas, a partir de Paulo, a revelação apodera-se da filosofia. Assim, o destino que distanciava foi questionado pelo pensamento paulino: “aquele que não era meu povo será chamado de meu povo, e aquela que não era amada passou a ser amada”. (Romanos 9.25). O transitório e perecível perdeu importância e a idéia da construção da existência enquanto tempo favorável foi tomando forma.

Mas voltemos um pouco atrás, para entendermos esse processo. Dentro da visão paulina, que traduz o pensamento cristão palestino, alienação/destino, no sentido de que os limites são potencialmente ilimitados, é a lei na qual surge o conceito de liberdade. Assim, alienação/destino correlaciona conceitos, porque a alienação está sujeita à liberdade; porque alienação significa que a liberdade também está sujeita à lei; e porque alienação significa que liberdade e lei são complementares e interdependentes.

Analisando o conceito cristão palestino de alienação/destino -- exposto por Paulo em sua carta aos Romanos -- podemos dizer que a liberdade humana está ligada às leis universais, de tal forma que liberdade e leis se encontram entrelaçadas. Para Paulo, assim como para a tradição judaica, lei é imposição de limites. Por isso, a alienação é um estado que surge da correlação entre lei e vida, porque se o julgamento é inerente a tudo na existência, também o é a liberdade.

Assim, a certeza de que a alienação/destino é propícia e tem significado realizador e não destruidor, é a peça chave do pensamento de Paulo, que coloca o sentido da vida acima do destino. Ao fazer isso, Paulo está dizendo que a compreensão do destino não está ao alcance da razão humana, mas o sentido da vida traduz a imortalidade potencial do humano.

Quando o humano faz a defesa do sentido incondicional da vida deixa de temer a ameaça da alienação/destino que distancia, e aceita o lugar que cabe à alienação enquanto estado da existência. Reconhecemos, então, que desde o princípio vivemos num estado de alienação e que sempre desejamos nos livrar dela, mas nunca conseguimos. Mas nessa análise da alienação cabe relacionar sentido de vida e tempo. O sentido de vida deve envolver as leis universais, a plenitude do tempo e a própria existência. E quando o sentido de vida alcança a existência, penetra no tempo e faz da alienação, aproximação.

É necessário, porém, entender que a consciência parte da alienação e que o reino da existência só é acessível ao conhecimento liberto da alienação que distancia. Dessa maneira, ao contrário do que pensavam os gregos, o humano possui potencialidade própria, enquanto ser, para realizar seu destino. Quanto maior a potencialidade humana – que cresce na medida da expansão do sentido da vida – maior será sua consciência de destino.

O destino humano, que nasce da alienação, aponta para o sentido da vida que emerge das crises e desafios. Quanto mais profundamente entendermos nosso destino, no sentido paulino de prokeimai, estar colocado, ser proposto, e o de nossas comunidades, tanto mais livres seremos.

Assim, a liberdade humana se dá na existência, enquanto realidade condicionada pela materialidade. A liberdade entende-se como correlação entre lei e sentido de vida. Quando Hegel afirmava que a liberdade é a consciência da necessidade, como fez questão de mostrar Marx, cometia um erro porque descartava a realização da liberdade. É por isso que Marx dirá que liberdade é práxis. Ora, para Marx, práxis é consciência da necessidade somada à ação transformadora. Ou seja, consciência da lei diante do estado de alienação que distancia é mudança radical, é ação transformadora da vida.

Lehatati, hamartia, peccatu é um fazer. Em relação ao imediato transforma-se em estado e no que se refere à espécie humana é um domínio. Lehatati, hamartia, peccatu acontece quando minha liberdade é desafiada, quando ela é chamada a surgir como feitura humana. Nesse sentido, lehatati, hamartia, peccatu não se apresenta sem agente moral, sem liberdade. Toda vez que realizo minha liberdade a lei está presente, pois lehatati, hamartia, peccatu é um contra-tipo da liberdade.

Por isso, só podemos responder à alienação que distancia reconhecendo que lehatati, hamartia, peccatu é feitura minha e de minha espécie, e que devo promover a ruptura desse fazer através da ação de expansão do sentido pleno da vida. Ao nível do pensamento, do sentimento, da vontade e da ação -- pois a alienação que distancia é o que não devia estar -- devemos exercer uma ética radical de defesa da vida e de seu sentido, de combate ao estado de alienação na vida de pessoas e comunidades.

“Eu sou velho mas gosto de viajar por aí”

Em 1970, Manuel Ballestero publicou em Madri, pela Siglo XXI, La Revolución del Espíritu (Tres pensamientos de libertad), analisando o caráter radical da liberdade no pensamento de três gênios da modernidade: Nicolas de Cusa, Lutero e Marx. Ballestero diz que sua preocupação residiu em analisar o projeto de liberdade desses três pensadores, sabendo que a autonomia e o ato livre são concebidos de maneiras diferentes e mesmo antagônicos, embora existam, no contexto da obra dos três, analogias de fundo. E essas se referem ao fato de que liberdade poderia significar a abolição da lei, o colapso da determinação exterior, e não o comportamento que se adequou aos limites da ordem. Assim, segundo Ballestero, Cusa, Lutero e Marx olham a liberdade como a destruição da ordenação exterior e anterior ao próprio ato livre.

Os ensaios mostram que a revolução teórica empreendida por Cusa e Lutero não foi gratuita, nem produto de um simples ato ideal, mas se enraizou no tecido histórico do movimento de decomposição global da formação social pré-capitalista. Cusa e Lutero clamaram por essa destruição. Sem entrar nos detalhes das mutações vividas no século dezesseis, com a ruptura do equilíbrio cidade/campo, o surgimento das manufaturas e a consolidação do sistema de trabalho assalariado, vemos que a alienação que distancia da condição humana na incipiente sociedade capitalista foi percebida por Cusa e Lutero: a liberdade do sujeito se dá como dor.

Mas ambos consideraram essa subjetividade liberada pelo início da arrancada capitalista como desequilíbrio. Assim, tanto Cusa quanto Lutero partiram do distanciamento nessa subjetividade alienada do nascente capitalismo, considerando que deveria ser superada para que o sentido da vida florescesse. Aí, então, teríamos o fim da não-essencialidade do sujeito alienado e a inserção deste na totalidade objetiva. Mas isso não poderia acontecer sem a transformação dessa realidade objetiva em realidade plena de vida, que sustenta o humano. Dessa maneira, para os dois pensadores, o sentido da vida constrói num nível superior o universo anteriormente negado.

O jovem Marx, seguindo os passos de Hegel, partiu dessa discussão. Para ele, a religião era a realização imaginária da essência do humano, mas essa essência não tem realidade alguma. De todas as maneiras, há um ponto de interligação nessa perspectiva: a liberdade como abolição da legalidade, como coincidência do momento subjetivo com o momento objetivo e como responsabilidade maior do ser humano.

Para Lutero, o humano existe como estrutura ontológica dual. Sua conceituação partiu da ansiedade teórica do século dezesseis, mas traduziu-se em superação da subjetividade alienada. O humano pleno do sentido de vida é senhor de todas as coisas, não está submetido a ninguém e esse senhorio radical é produto da vida em plenitude. Sua liberdade transforma a subjetividade alienada em realidade objetiva. Nesse sentido, o caráter da liberdade do humano pleno do sentido de vida se dá como processo: morre o imediato, o alienado, e tem início a construção de uma segunda natureza.

A liberdade surge como deslocamento do humano alienado, como distanciamento crítico daquilo que foi naturalmente dado. O primeiro momento da liberdade parte de uma concepção trágica, porque o senhorio num primeiro momento implica em servidão, criando tensão e luta. “É necessário desesperar-se por você mesmo, fazer com que você saia de dentro de você e escape de sua prisão” (Lutero, Les grands écrits, p. 259). Mas superada a tensão, temos a liberdade enquanto vida no Espírito, uma dimensão de combate.

“So malandro velho
Não se mete no enguiço”

Os humanos são chamados a superar a alienação, ter a liberdade que vai além, a liberdade que é construída na expansão do sentido pleno da vida. E, assim como Paulo, estou convencido de que morte ou vida, anjos ou governos, coisas presentes ou futuras, poderes, altura ou profundidade, ou qualquer criatura não poderá me distanciar do amor do Eterno, que está no Novo Ser, o Senhor.

vendredi 11 mars 2011

A antropologia da imagem de Deus

O shemá era a oração que duas vezes por dia os judeus elevavam ao Eterno. Essa prece reconhece Deus como único e diz que deviam amá-lo com todo leb, com toda nefesh e com toda meod, conforme Deuteronômio 6.5.
 
Leb e lebab, que os gregos traduziram por cardia e nós por coração, nos falam dos movimentos do corpo humano. Leb e sua variante lebab ocorrem oitocentos e cinquenta e oito vezes nas Escrituras hebraicas, das quais oitocentos e quaorze se referem ao coração humano. Expressam a noção antropológica de que somos movidos por sentimentos e emoções que movimentam e dirigem nossos membros e corpo. Têm a realidade anatômica e as funções fisiológicas do coração enquanto expressões das atividades do ser humano, que levam às disposições de ânimo como alegria e aflição, coragem e temor, desejo e aspiração, e também às funções intelectuais como inteligência e decisão da vontade, que na cultura ocidental atribuímos ao cérebro. Nas passagens do livro de Gênesis que nos falam do leb constatamos que a antropologia se apresenta como uma psicologia teológica. Assim, leb tem um significado antropológico que fala daqueles aspectos que nos levam aos movimentos do sentir, do querer e do agir, que compõem a personalidade humana.

Meod, que os gregos traduziram por dynamis, e nós por força, aparece trezentas vezes nas Escrituras hebraicas, e traduz a idéia de intensidade e abundância. Em alguns textos, como no caso do crescimento do povo hebreu no Egito, meod aparece ligado à idéia de reprodução, de muitos filhos, o que nos leva a uma compreensão diferente do termo dynamis em grego, que nos fala de uma força física externa ao ser humano. Em hebraico podemos entender meod como potência, aquela força, aquela energia que faz de nós seres criadores, tanto no sentido biológico como intelectual. Seria potência que identifica o ser humano, capacidade de gerar que faz o humano crescer e multiplicar-se.

Nefesh, que os gregos traduziram por psyché, significa garganta, respiração, fôlego, pessoa, vida e alma,[1] e nos fala da plenitude daquilo que é humano, conforme encontramos em Gênesis 2.7. Dessa maneira, nefesh possibilita um rico diálogo com o texto de Gênesis e nos permite uma reconstrução dos significados da natureza humana.

A expressão nefesh leva a uma concepção de exterior versus interior,[2] que tem por base Deuteronômio 32.9, quando afirma que “uma parte de Iaveh faz seu povo”. Mobiliza assim em diferentes níveis essa força criacional, que constitui uma parte de Deus. A matéria-prima utilizada por Deus na modelagem humana é ordinária, enquanto material pertencente a ordem comum de “ló nefesh”: inanimados e animais. É o sopro de Deus que faz especial essa matéria ordinária. Mas será que estamos somente diante de um símbolo ou, de fato, a força criacional de Deus transmite à matéria ordinária não somente vida, mas transfere intensidade e profundidade? De certa maneira, não é absurdo dizer que os seres celestiais são criaturas integralmente espirituais. Sua existência procede do exterior da força criacional de Deus. A exteriorização traduz-se no fato de que a força criacional se dá através da palavra, da palavra criadora de Deus. Nesse sentido, nefesh procede da interioridade de Deus e por isso é conhecida como “ein sof”, que vem de seu interior. “Ele soprou” deve ser entendido como continuidade da afirmação anterior “façamos o ser humano” (Gênesis 1.26), de maneira que nefesh liga céu e terra, o que está acima e o que está abaixo. Por isso, dizemos que a natureza humana é superior à natureza angélica, porque procede da interioridade de Iaveh. Traduz ação mediadora e conjuntiva da força criacional. Donde, a natureza humana procede de atributos divinos não ostensivos, discretos, que se traduzem em integridade holística, pluralidade social, sabedoria, compreensão e abertura à transcendência. Nefesh entende-se e revela-se enquanto natureza que se torna compreensível e inteligível. É transbordamento e transparência do Espírito de Deus, que indica transbordamento e transparência no humano, daquilo que relaciona o que está em cima com o que está em baixo. Da leitura de Gênesis 2.7 podemos constatar que o texto fala de respiração e daquilo que o humano passa a ser: ele não tem uma nefesh, ele passa a ser uma nefesh.

O texto e o pensamento literário dos hebreus são sintéticos. Daí que a chave para chegarmos a uma compreensão analítica dele exige identificar com que parte do corpo o ser humano pode ser comparado e onde o agir humano faz interface com nefesh, utilizando para isso textos que apresentam diferentes sentidos de nefesh. Embora a expressão nefesh apareça 755 vezes nas Escrituras hebraicas e seja traduzida seiscentas vezes na Septuaginta por “psyché”, garganta e estômago podem ser tomados por paradigma e transmitem a idéia de necessidade, de algo difícil de ser saciado. Nesse sentido, a palavra alma nos dá uma tradução incompleta, pois a idéia é que “Iaveh Deus formou o ser humano do pó da terra e insuflou em suas narinas o seu hálito e o ser humano se tornou um ser vivente que necessita Dele para ser saciado”.

Nefesh não traduz algo bom ou mal, mas a realidade das necessidades fundamentais e imprescindíveis da alma humana, que ao não serem ou não estarem preenchidas por Deus produzem alienação, individualismo, descrença, ignorância e idolatria. Mas como o sopro de Deus pode ter gerado um ser humano com tal índole de insaciabilidade? Se entendermos a nefesh como o órgão das necessidades vitais, dos movimentos emocionais da alma, somos levados a entender o pensamento sintético hebreu ao ver a nefesh como síntese da própria vida. Assim, as necessidades humanas criadas pelo próprio Deus só podem ser saciadas por Ele.

“Quem me encontra, encontrou a vida e alcançou benevolência de Iaveh. Quem não me acha, faz violência à sua nefesh. Todos os que me odeiam, amam a morte”. Provérbios 8.39 e seguintes.

No relato de Gênesis 2.7 o ser humano é definido como nefesh hayah, um ser vivente, que necessita ser saciado. Quando integrado ao seu Criador, nefesh é transbordamento e transparência do Espírito de Deus, que indica transbordamento e transparência no humano, daquilo que relaciona o que está em cima com o que está em baixo. Mas essa natureza também se vai constituir enquanto expansão dos significados da imagem de Deus, em graça e amor. “Ele soprou” traduz o fato de que as coisas do intelecto e do coração expressam-se através dos órgãos da fala, em especial, garganta e boca, que possibilitam o sopro. Nefesh como substantivo ganhou vários sentidos, sendo garganta um deles, e assim é usado em Provérbios 23.2, quando diz “põe uma faca à tua garganta, se fores uma pessoa de grande apetite”. A garganta ou goela é por onde entra e sai a respiração, o ar. O ser vivente, então, ganhou a designação nefesh, ser respirador. No caso do humano refere-se basicamente à forma que o espírito e a inteligência, sem forma em si, assumiu ao animar o corpo.[3] Esse padrão simboliza a interioridade da natureza humana. Portanto, para que o humano possa dar intensidade e profundidade a sua inteligência precisa de amor e graça, que nascem da interioridade de Iaveh. Em Gênesis 2.7, “ele soprou” significa que Aquele que soprou o fez numa determinada direção e com objetivo definido. Aqui, direção e objetivo traduzem destinação.

Esse é o destino do humano: ter sua nefesh integralmente saciada por seu Criador e a partir daí relacionar-se com Ele, com o universo, com seus semelhantes e consigo mesmo. Nesse caso, temos uma nefesh em equilíbrio, plena do Espírito de Deus, o que se traduz em integridade holística, pluralidade social, sabedoria, conhecimento e abertura à transcendência. A ruptura dessa integridade produz alienação, individualismo, descrença, ignorância e idolatria. A antropologia da nefesh em Gênesis nos fala sobre a imagem de Deus e nos dirige a uma pesquisa teológica do humano, da humanidade, da pessoa e da comunidade, da pessoa e da ordem social, da pessoa enquanto excluído, da pessoa enquanto eleito, da humanidade e seu destino, ou seja, da vida para o mundo, do amor para o próximo e da criação para todos.

Diante disso, devemos nos perguntar que princípios podem nortear tal pesquisa teológica? Sem dúvida, o princípio arquitetônico, enquanto revelação, fé objetiva, base e eixo da teologia. E logicamente o princípio hermenêutico, ou seja, a interpretação dos aspectos históricos e lingüísticos dessa revelação. Devemos partir, logicamente, da razão filosófica, que produz ordenação, mas não devemos esquecer a razão científica, enquanto leitura fenomenológica da natureza da antropologia e nem da razão ordinária, enquanto universalidade do senso comum. É bom lembrar, que toda análise metodológica, consciente ou inconscientemente, no correr da história da teologia, tem levado inexoravelmente a diferentes compreensões do fato teológico. Isto porque o princípio arquitetônico depende do que colocamos como base da estruturação geral da revelação e porque o princípio hermenêutico parte sempre de uma ou de múltiplas visões filosóficas que podem ser utilizadas como instrumentos de interpretação da história da revelação. Ou seja, quer queiramos ou não, a ideologia define a hermenêutica, pois o saber sempre está sob o risco de ser arrebatado pela ideologia, já que a ideologia permanece à espreita enquanto código de interpretação. Enquanto intelectuais temos amarras, pontos de apoio, somos transportados pela substância ética.[4]


Aqui reside a dificuldade, toda teologia é transitória. Reflete um momento de compreensão da revelação e de sua história. Mas, em nosso trabalho, utilizaremos a antropologia que as Escrituras nos oferecem como um instrumental hermenêutico para compreender o homo brasiliensis. Isto porque embora não seja antropologia, a teologia nos oferece um roteiro antropológico legítimo. No centro da fé cristã se encontra Jesus Cristo, Deus e ser humano, revelador do divino e do humano. E se a teologia fala da divindade, ela fala a homens e mulheres, fala sobre um Deus que encarnou e que ama os homens e mulheres. Está a serviço do humano.[5] Não podemos fugir a essa realidade, por isso, teologicamente, nosso objetivo é fazer a partir da própria compreensão do humano uma leitura da imagem de Deus que responda aos questionamentos e necessidades teológicas das brasilidades.

No livro das origens lemos: “agora vamos fazer os seres humanos, que serão como nós, que se parecerão conosco. Eles terão poder sobre os peixes, sobre as aves, sobre os animais domésticos e selvagens e sobre os animais que se arrastam pelo chão”. (Gênesis 1.26). Ora, se todo o universo é o mundo do ser humano, conforme afirmam os dois relatos da criação e o salmo oito, em que sentido o ser humano é a imagem de Deus? Como Deus conferiu ao humano essa correspondência?

A partir da antropologia bíblica podemos ver que em primeiro lugar o homo sapiens é fruto de uma intervenção de Deus. Há uma concessão de encargo que diferencia o ser humano do resto da criação. Ele é apresentado como um momento sublime, especial, como um ser que coroa toda a ação criadora de Deus. Ele recebe responsabilidade e poder de decisão. Em relação a esta discussão, considero elucidativa a exposição que apresenta a imagem de Deus através de três concepções: substantiva, ou seja, física e psicológica; relacional, ou seja, com um tropismo à transcendência e possibilidade de relacionamento com Deus; e funcional, que se dá através da ação cultural do ser humano.

Acredito, porém, que privilegiar uma dessas concepções em detrimento das outras duas é perder a riqueza do ser humano enquanto imagem de Deus. Por isso, aqui correlacionamos as três concepções, já que formam uma totalidade. Em segundo lugar, Deus deixa claro a finalidade da decisão de criar um ser pessoal, segundo sua imagem. Tal ser deverá ter uma relação especial com o restante da criação. Deus cria e entrega ao ser humano sua criação. Este ser pessoal deverá estar sobre ela, numa relação de trabalho, produção e administração. O ser humano relaciona-se com a criação e através do uso e de suas descobertas em relação a ela, mantém uma permanente relação com Deus. Em terceiro lugar, a imagem de Deus é traduzida na relação que mantém com as criaturas, já que é uma relação de domínio. Ele reina sobre o universo produzido pelo poder criador de Deus. Mas aqui há um detalhe sutil: este direito de domínio não lhe é próprio, ele reina enquanto imagem de Deus. Ele não é proprietário, nem tem autonomia irrestrita sobre a criação. Imagem de Deus traduz também abertura à transcendência. Aqui estão dados os elementos que nos permitem entender porque faz parte da humanidade o abrir-se à transcendência e viver com ela. Há um deslumbramento permanente diante do absoluto, do sobrenatural e do mistério. Estamos diante de um ser que pode pensar o que não está aqui e agora, e que pode refletir sobre o que vai além da realidade factual. E é por poder pensar tais realidades que não podem ser vistas, que o ser humano enquanto imagem de Deus pode refletir sobre a eternidade e relacionar-se com o transcendente. Assim, ao ser feito imagem de Deus, o próprio Deus transfere à humanidade a capacidade de relacionar-se com Ele.

Adão é um ser plural. Esse ser humano de que fala Gênesis 1.26, que deve ser uma imagem de Deus, não é uma pessoa em particular, pois a continuação do texto fala que eles dominem. Assim, estamos diante da criação da humanidade e o domínio do universo não é dado a uma pessoa, mas a comunidade dos homens. Ninguém pode ser excluído da autoridade de domínio dada por Deus à humanidade. Da mesma maneira, em Gênesis 1.27 temos uma outra característica fundamental dessa mesma humanidade: ela é formada por homens e mulheres. Para alguns teólogos, como Karl Barth,[6] tal explicação de Gênesis 1.27b, de uma humanidade formada por dois sexos, é apresentada por Deus “quase à maneira de definição”. Logicamente, há uma intenção para que o texto bíblico se aprofunde em tais minúcias. É a de apresentar como o universo criado deveria ser administrado: através da convivência de seres que se completam e se amam. Ou seja, esse ser plural só poderia exercer o domínio através da comunidade, completando-se como homem e mulher.

E para onde aponta o domínio? Todo o universo é o mundo do ser humano, por isso há a total desmitização da natureza. Não há astros divinos, terra divina, nem animais divinos. Todo o universo pode tornar-se o ambiente do ser humano, seu espaço, que ele pode adaptar às suas necessidades e administrar. E como ele consegue isso? Através da cultura, enquanto processo social e objetivo de sujeição da natureza, e através da necessidade de expansão e domínio, pessoal e subjetivo, que é peculiar a todo homem e mulher livres. Mas, o afastamento de Deus fez com que a humanidade perdesse sua capacidade de ser imagem de Deus viva e eficaz. Seu caráter inicial está distorcido e o mal perpassa todas suas ações. Assim, o ser humano lançou-se ao domínio de seus iguais, inclusive através do derramamento de sangue; suprimiu o equilíbrio e a mútua ajuda entre homem e mulher; mitificou a ciência e técnica; e lançou-se à destruição da própria natureza. Cristo é “a verdadeira imagem do Deus invisível” (Colossenses 1.15, cf. 2 Coríntios 4.4) e a Ele cabe fazer, a nível escatológico, aquilo que à humanidade tornou-se impossível. “Foi-me dado todo o poder no céu e na terra, por isso, indo, fazei discípulos em todas as nações...” (Mt 28.18).


[1] Nelson Kirst, Nelson Kilpp, Milton Schwantes, Acir Raymann, Rudi Zimmer, Dicionário Hebraico Português & Aramaico Português, São Leopoldo/Petrópolis, Sinodal/Vozes, 1988. Verbete: vpn, p. 159.
[2] Raphaël Draï, La Pensée Juive et L’Interrogation Divine, Exégèse et Épistémologie, Paris, Presses Universitaires de France, 1996, p. 414.
[3] L. Byron Harbin, Teologia do Antigo Testamento (apostila), São Paulo, Faculdade Teológica Batista de São Paulo, 1997, p. 32.
[4] Paul Ricoeur, Interpretação e Ideologias, RJ, Francisco Alves, 1990, pp.94-95.
[5] Antonio Manzatto in Teologia e Literatura, São Paulo, Edições Loyola, 1994, p. 41.
[6] Citado por Hans Walter Wolff, in Antropologia do Antigo Testamento, São Paulo, Edições Loyola, 1975, p. 215.