O
desafio da existência
"A linguagem humana é profunda
como o mar, e as palavras dos sábios são como os rios que nunca secam” (Provérbios 18.4).
Nos séculos dezenove e vinte, o protestantismo
fundamentalista e a ciência se confrontaram através de porta-vozes muitas vezes
brilhantes e referenciais nessas duas áreas. E é esse confronto que José Mário Galdino aborda aqui com
maestria, ao analisar dois textos que são expoentes de extremidades: Os fundamentos,
discurso e relação entre religião e ciência moderna, obra maior do evangelicalismo conservador, e Religião e ciência: a relação entre a
ciência moderna e religião, de Bertrand Russell.
Mas, nesta abertura à reflexão de
Galdino, considero que dois pensadores são paradigmáticos de encontros e
desencontros do desafio da existência, Charles Darwin e Teilhard de Chardin.
Charles Darwin continua
polêmico, nestes mais de duzentos anos
após seu nascimento e mais de cento e cinquenta anos depois da publicação de A Origem das Espécies. Afinal, como
sabemos, é difícil, principalmente para o fundamentalismo religioso aceitar que
o ser humano, visto como elemento de um ecossistema, não é autônomo e
independente em relação às outras espécies.
Da mesma maneira, o jesuíta Pierre
Teilhard de Chardin, precursor do evolucionismo cristão, foi um cientista e
teólogo proibido pela igreja. Só depois da morte, em 1955, aos poucos suas
pesquisas e produção saíram do ostracismo. Hoje é leitura obrigatória quando em
teologia se discute criacionismo e evolução.
Assim, as discussões sobre a origem
da vida continuam a gerar polêmicas, principalmente porque muitos leitores da
Bíblia tomam o relato de Gênesis, em seus três primeiros capítulos, como
literalidade absoluta. Por isso, as ideias de Darwin causam tanto desconforto hoje
como em 1858, quando apresentou a teoria da evolução à comunidade científica.
Quase setenta anos depois daquele
desconforto, em 1926, Teilhard de Chardin, com 45 anos de idade, vivendo e
trabalhando como paleontólogo em Tientsin, na China, escreveu à sua prima
Margueritte Chambom: "Estou decidido a relatar o mais simplesmente
possível a experiência ascética e mística que vivo e ensino há algum tempo. Não
pretendo abandonar o rigor do cristianismo. Mas quero ir adiante".
Na época de Darwin, outra leitura
sobre a origem da vida, defendida pelo pastor William Paley, ameaçou ganhar
força: dizia que a adaptação dos organismos vivos era fruto de um projeto
inicial, de um desenho inteligente. Paley procurava, dessa maneira, construir
uma ponte entre as duas compreensões da origem da existência. A leitura de
Darwin, porém, era radical: os seres vivos se desenvolveram a partir de
mudanças aleatórias e as particularidades do humano se deram por razões
adaptativas.
O Darwin da teologia
Para Chardin, “ir adiante” era uma
postura de paleontólogo. Mas ele não era só um paleontólogo, era teólogo e
místico. Assim, ir à frente significava que arriscaria se tornar o Darwin da
teologia. E, em Tientsin, onde a Companhia de Jesus acabara de abrir um
instituto de estudos superiores e para onde foi mandado numa espécie de exílio,
pois lá suas ideias não repercutiriam, mergulhou em pesquisas de campo e
produção teórica.
É interessante ver que as oposições
que Darwin e Chardin enfrentaram foram semelhantes. Ainda hoje, mesmo na Europa
e Estados Unidos, a teoria da evolução só é de fato bem aceita em meios
científicos. Mas muito possivelmente as reservas por parte da população possam
ser explicadas pelos equívocos e folclores atribuídos a Darwin.
Um exemplo é o chamado “darwinismo
social", que afirma existir raças superiores e raças inferiores, e que foi
amplamente utilizado pelo nazismo. Darwin não defendeu tais ideias. Ao
contrário, quando deixou o Brasil disse que não voltaria mais a um país
escravagista. Já folclore é a ideia linear da evolução, presente naqueles
desenhos de um macaco de quatro, outro semi-ereto na frente e, por último, o homo
sapiens. De acordo com Darwin, o homo sapiens não veio do macaco,
mas de um ancestral comum tanto ao homo sapiens como aos macacos. E,
mais ainda, não há uma espécie menos evoluída e outra mais evoluída: todas
emergem como ramificações da vida que se espraia.
A Companhia de Jesus, sem desejar,
colocou Chardin no lugar certo, pois em Tientsin estavam sendo realizadas
escavações e expedições paleontológicas. De 1923 a 1946, ele permaneceu lá. E
não se afastou de suas pesquisas. Aprofundou-se na ciência, a procura de um
novo pensar teológico. E foi assim que surgiu sua principal obra, O fenômeno
humano (1955), onde apresentou os conceitos que passaram a balizar o
evolucionismo cristão. Mas escreveu também outros trabalhos importantes: O
coração da matéria (1950), O surgimento do homem (1956), O lugar do homem na
natureza (1956), O meio divino (1957), O futuro do homem (1959), A energia humana
(1962), Ciência e Cristo (1965).
Chardin formatou novas leituras da
evolução, da estrutura orgânica do universo e da tendência do ser a alcançar um
estado cada vez mais orgânico, de unificação. O fim da existência passou a ser
visto como a convergência das consciências individuais na consciência do centro
Ômega, momento de completude do processo evolutivo.
"Uma só liberdade, tomada
isoladamente, é fraca, incerta e pode facilmente errar nos seus tateios. Uma
totalidade de liberdades, agindo livremente, acaba sempre por encontrar o seu
caminho. E eis por que, incidentemente, sem minimizar o jogo ambíguo da nossa
escolha em face do Mundo, eu pude sustentar implicitamente, no decurso desta
conferência, que nós avançávamos, livre e inelutavelmente, para a Concentração
através da Planetização. Na evolução cósmica, poder-se-ia dizer, o determinismo
aparece nas duas pontas, mas, aqui e lá, sob duas formas antitéticas: em baixo,
uma queda no mais provável por defeito, - em cima, uma subida para o improvável
por triunfo de liberdade".[1]
Universo e consciência
O universo, para Chardin, está
impregnado de pensamento, o que se torna patente com a evolução, através da
crescente complexidade estrutural que a matéria alcança. Chardin intuiu laivos
de consciência nos graus ínfimos da existência, no plano físico do universo. A
evolução levou esta consciência a revelar-se mais avançada no ser humano. Ora,
a organicidade do todo implica uma lógica, seria absurdo determo-nos neste
ponto do caminho sem continuá-lo.
Assim, para Chardin, o fenômeno
humano não completou a sua trajetória e não alcançou a necessária conclusão,
mas tal movimento está implícito na lógica do desenvolvimento do próprio
fenômeno. Então Cristo, para este cientista e teólogo, pode ser proposto à ciência
como biotipo do fenômeno humano, como modelo que o humano poderá atingir com a
evolução, e o Evangelho como a lei social da unidade coletiva representada pela
humanidade do futuro. Esse é o processo da evolução, numa correlação das
compreensões da ciência e da espiritualidade cristã. E o humano faz parte deste
processo.
Chardin constrói, assim, uma
teologia da evolução, onde a santificação se dá por meio da presença universal
do pensamento imanente de Deus. É a sagração da evolução. Chardin caminhou no
terreno do cristianismo, mas fez uma nova leitura da origem da existência, onde
a estrutura mais íntima do ser é de natureza psíquica, para concluir que a vida
é pensamento coberto de morfologia e a espiritualidade é o ápice da evolução.
Ou como diz numa oração: "Rico
da seiva do Mundo, subo para o Espírito que me sorri para além de toda
conquista, revestido do esplendor concreto do Universo. E, perdido no mistério
da Carne divina, eu já não saberia dizer qual é a mais radiosa destas duas
bem-aventuranças: ter encontrado o Verbo para dominar a Matéria, ou possuir a
Matéria para atingir e receber a luz de Deus".[2]
Galdino constata que a racionalidade na modernidade e o cientificismo não foram
capazes de alcançar todos os registros da vida social,
e que o movimento
fundamentalista não se rendeu às novidades da modernidade. Ou seja, ainda hoje religiosos cristãos, católicos e protestantes adotam a mesma postura dos fundamentalistas do início do século passado.
O livro de Galdino, por sua profunda pesquisa de autores e pensares, é uma referência, mas também um
grito profético, no sentido de que “novos ventos cheguem repletos de tolerância para que
ciência e religião possam estabelecer suas práticas, reservando espaço para o diálogo”. O que nos leva a ler o trabalho
de Galdino com entusiasmo e também esperança.
Creio, assim, também, que a partir
das vidas de Darwin e Chardin podemos dizer que pensar a existência humana é
tarefa aberta e permanente para a ciência e a teologia. E que, mais do que
perder-se em formulações dogmáticas, quer na ciência ou na teologia, o desafio
humano é a busca para compreender como (ciência) e por que (teologia) estamos
conectados à existência e ao Universo.
Jorge Pinheiro
Professor Doutor em Ciências da
Religião
[1] Teilhard de Chardin, “La
formation de la Noosphère”, Revue des Questions Scientifiques, Louvain, jan.
1947, pp. 7-35.The Future of Man, New York: Harper & Row, 1964.
[2] Teilhard de Chardin, La Messe sur le
Monde, Ordos, 1923.