mardi 17 juin 2008

O Mal: uma leitura hermenêutica

Prof. Dr. Jorge Pinheiro

Primeira parte
Na teologia cristã, teodicéia, termo cunhado por Gottfried Wilhelm Leibniz (1646-1716), designa a doutrina que procura conciliar a bondade e onipotência divinas com a existência do mal no mundo. E será a partir dessa doutrina que vamos analisar a questão do mal. A palavra mal vem do latim malu, e refere-se aquilo que é nocivo, prejudicial, que fere, que é um estado mórbido, doença, angústia, sofrimento, e desgraça. Temos, então, o mal moral, contrário ao caráter do Criador, produzido por agentes morais e temos o mal natural, conseqüência dos desequilíbrios da natureza: furacões, terremotos, epidemias, e as sequências degenerativas, como as epidemias, deformidades congênitas, AIDS, etc.

As cosmovisões se posicionam diante da questão do mal de diferentes maneiras. Para alguns pensadores ateus e agnósticos o mal não existe. Jean-Paul Sartre, por exemplo, embora descartasse o mal, falará sobre o absurdo da existência, e dirá que o inferno são os outros. Mas, a posição clássica dos ateísmos humanista, positivista, marxista e mesmo existencialista relativizam o mal, já que é uma visão antropocêntrica, sem contudo negá-lo. Assim para um militante comunista, que é ateu, o mal é o imperialismo norte-americano.

Já para o panteísmo monista, como é o caso do hinduísmo e setores do budismo, tudo é deus, então nada é mal. Para essa cosmovisão, as coisas parecem más, mas isso é ilusão, pois não há mal.

Para o teísmo, o mal é uma realidade. Mas o teísmo tem muitas leituras, assim, para as correntes dualistas, existem duas forças opostas em equilíbrio, o bem e o mal. Para as correntes teístas finitistas, que negam atributos da divindade, Deus pode ser bom, mas não onipotente. Essa é a cosmovisão do judaismo contemporâneo e do mormonismo. O problema dessa leitura é que apresenta um Deus com limitações, que não controla o universo (Ef.1:11). Outra afirmação do teísmo finitista é de que Deus pode ser onipotente, mas não é lá muito bom. Essa cosmovisão foi defendida por John Stuart Mill e R. Roth. O problema aqui é que esse Deus se contradiz, já que nas Escrituras Ele diz o contrário. Ele é Santíssimo. (Tg.1:17). Mas há ainda outras leituras teístas, como a de Irineu e J. Hick que acreditavam que Deus criou um universo como lugar de provação e aperfeiçoamento. Aqui também temos um problema é que o conceito de resgate do ser humano diante do pecado deixa de ter significado, pois Deus é o responsável pela condição do mundo. (Gn.1:31).

Ora, em Gn. 1:31; Tg.1:17; ITm.4:4; Ez. 28:12-16 vemos que o universo, enquanto criação dinâmica, é bom no sentido teleológico, tem as qualidades adequadas à sua natureza ou função, e que Deus fez seres livres que tinham e têm opção de escolha. A impossibilidade de escolha diante do bem e do mal implicaria na remoção do livre arbítrio. Hc.1:13; Tg.1:13; IJo.1:5; Is.6:3; At.17:31; IITm.2:13; Tito.1:2; Ap.4:8.

Dessa maneira, o mal tem origem no exercício do livre arbítrio de seres espirituais (Ez.28:12-17; Is.14:12-15; Jo.8:44; Ap.12:9; Mt.13:19; Ef.6:16, IJo.2:13s; 3:12; 5:18) e de humanos (Gn.3:1-20; Rm.5:12-19). A liberdade de escolha era e é boa, enquanto liberdade dinâmica e progressiva, pois reflete a própria imagem do Deus criador. Mas, tecnicamente, o Criador é responsável pela possibilidade de degradação de algo bom, o livre arbítrio, mas não pela execução do mal, pois o mal moral e o mal natural são fruto do processo de deslocamento da imagem de Deus, é o que teologicamente chamamos de mau encontro, conceito antropológico criado por La Boétie e mais tarde utilizado por Pierre Clastres, que usamos como categoria que traduz as disfunções da imago Dei na espécie humana: alienação espiritual (Gn 3.8-11, 1Co 2.14), alienação psicossomática (Gn 3.3, 4, 16, 19, Jó 14.1-2), alienação sociológica (Gn 3.12, 16-17; Gn 4) e alienação antropo-ecológica (Gn 3.17-19; 9.12). Assim, O ser humano está alienado, separado, em estado de pecado em relação a Deus, a si mesmo, aos outros homens e em relação à natureza, e esta consigo mesma.

Uma grande parte da ciência no século XX apresentou-se como materialista. É bom lembrar que cientistas como Galileu, Francis Bacon, Isaac Newton, B. Pascal, M. Faraday e muitos outros não negavam as verdades bíblicas. Albert Einstein, por exemplo, afirmou: “Deus nunca joga dados com o Universo”. Ao negar o ação criadora de um Deus infinito e pessoal, o materialismo retira a base para qualquer significado no universo. O ser humano e todos os particulares passam a ser nada.

Por isso, vamos retomar aqui a questão do termo dia, yom, em Gênesis 1:1-2:3. A raiz de yom aparece 2.355 vezes no texto massorético e pode exprimir um instante de tempo (Gn.3:5); um período de luz (Gn. 1:14,16,18); um período de 24 horas; uma época; um período geral e indefinido (Gn. 2:4, sete dias; 4:3, ao cabo de dias; 29:14, um mês inteiro; 41:1, ano; Amós 5:18, o dia de Iaveh. Não temos um conceito único para yom. Não há uma posição unânime na igreja. Agostinho considerou que o tempo surge com o universo. E Tomás de Aquino disse que o tempo é uma medida humana.

Mas tempo nos remete a outro conceito o de caos. E aí vem a pergunta: Deus criou o caos? Na leitura tradicional, tohu significa apenas sem forma, caos; e bohu vazia, desolada. Mas temos outros termos que nos levam a idéia de caos: trevas (Gn.1:2,4, 5); abismo (Gn.1:2); águas (Gn.1:2,6-10,21). Mas na leitura tradicional o caos reflete apenas uma situação sem ordem, é plenamente histórico e faz parte da criação original.

Mas temos outras teorias, como as da catástrofe: (a) teoria da criação a partir do caos ou teoria da recriação. Nela, Gn.1:1 é um resumo do capítulo inteiro (1:2-2:3). Aqui a conjunção vê, em hebraico, traduz seu sentido mais comum “e”. E céu e terra significam o universo organizado (Gn.2:4, 5:1; 9:32). Essa seria a primeira criação que aparece em Hb.11:3; Cl.1:16,17; Jo.1:1-3; e Rm.4:17. (b) e teoria da brecha, onde Gn.1:1 é criação original e a conjunção vê que inicia 1:2 deve ser traduzida como porém, simbolizando um lapso de tempo desconhecido, em que houve uma catástrofe entre os dois períodos. Donde, Gn. 1:3-21 é uma recriação da terra.

A questão da criação é fundamental para o estudo do mal, pois posiciona o mal em condições e momentos diferentes, conforme a leitura que se faça de Gênesis. De todas as maneiras, a relação criação versus mal sublinha o risco calculado de Deus ao fazer o ser humano à sua imagem e semelhança, que consistiu, entre outras coisas, em conceder liberdade ao ser humano como pessoa. O ser humano poderia usar essa liberdade para retribuir o seu amor ao Criador, oferecendo-se a ele em adoração e serviço. Mas no dom da liberdade estava contida outra possibilidade, a de decidir se opor a Deus e fazer-se a si próprio alvo de seu amor. A queda consiste nisso, na decisão do ser humano de distanciar-se de seu Criador. Essa deslocamento leva ao abuso da dignidade própria e à distorção da aliança de seu ser à imagem de Deus, colocando-se a si próprio como deus, como centro de seu querer e amor, para ser como Deus. Ou como disse Etienne La Boétie (Discurso da servidão voluntária, São Paulo, Brasiliense, 1982, p. 19), “que mau encontro foi esse que pode desnaturar tanto o ser humano, o único nascido de verdade para viver francamente, e fazê-lo perder a lembrança de seu primeiro ser e o desejo de retomá-lo?”. E Pierre Clastres (Liberdade, Mau Encontro, Inominável, in Etienne La Boétie, Discurso da servidão voluntária, São Paulo, Brasiliense, 1982, pp. 110-111), analisando o texto desse libertário do século 16, que influenciou o pensamento huguenote francês, afirma:

“Mau encontro: acidente trágico, azar inaugural cujos efeitos não cessam de ampliar-se, a tal ponto que é abolida a memória do antes, a tal ponto que o amor da servidão substituiu-se ao desejo de liberdade. O que diz La Boétie? Mais do que qualquer outro clarividente, afirma inicialmente que essa passagem da liberdade à servidão deu-se sem necessidade, afirma acidental – e, desde então, que trabalho pensar o impensável mau encontro!”.

Antropologicamente, mau encontro é descrito como enfermidade, vício ou corrupção da liberdade do ser humano por ele próprio que, por essa corrupção, se coloca em estado de servidão voluntária. Teologicamente, definimos como a opção do ser humano de não mais confiar a Deus sua vida, mas deixar-se dominar por suas próprias paixões. O entendimento do mau encontro enquanto rebelião forma o pilar da antropologia evangélica, já que o problema do mau encontro passa a estar ligado à liberdade do ser humano e porque essa liberdade é uma expressão da imago Dei. Infelizmente, a ciência moderna esqueceu que o mau encontro e a degradação da liberdade humana, assim como a ativação do ser pessoal do humano num sentido contrário à vontade de seu Criador, introduziram a desordem no relacionamento de todo o universo de Deus.

A revolta do ser humano contra Deus teve como conseqüência o entorpecimento da responsabilidade e da materialidade do mundo, dando à morte poder sobre o ser humano. Criou distorção na primitiva relação de equilíbrio da imago Dei e inverteu a relação entre espírito, alma e corpo, gerando conflitos que não remontam à estrutura original do ser humano, mas estão na base do distanciamento do ser humano em relação a Deus. O distanciamento do ser humano, que entorpece sua liberdade, nos leva à compreensão do Cristo como figura histórica que representa o penhor de redenção do ser humano, conforme João 1.4. Assim, dois elementos fazem parte da compreensão da encarnação: o primeiro deles é a absoluta irrepetibilidade do acontecimento; e o segundo é o fato material de que o próprio Deus, como ser humano, como membro de uma família, de uma comunidade, de um tempo, entra na corporabilidade, na materialidade da história da humanidade, criando no meio dela a semente de uma radical transformação de todo o modo de ser do humano, abrangendo todas as esferas da natureza humana, material, psíquica e espiritual.

Vejamos como se dá na tradição judaico-cristã essa relação entre liberdade versus mal. No Antigo Testamento temos uma aspiral conceitual na trindade aliança, fidelidade e constância, cujo centro epistemológico é a liberdade. No Novo Testamento o vértice é o conceito de destino.

Paralelamente ao pensamento hebraico, a cultura grega apresentará uma leitura diferente do conceito de destino, que traduzia a maneira de pensar e viver do helenismo. Na sua época, por razões apologéticas, o apóstolo Paulo apresentará um conceito de destino que resgata e transcende o conceito veterotestamentário de aliança. Entre os gregos, a religião e o culto de mistérios traduziam uma luta contra o destino, numa tentativa de colocar-se acima dele. A origem dos cultos de mistérios não pode ser entendida quando os vemos apenas como mitos. Para o ser humano helênico a luta com o destino era inevitável porque o destino tinha qualidades demoníacas. Era um poder sagrado e destrutivo. Envolvia o ser humano numa culpa objetiva. Os cultos de mistério, dessa forma, ofereciam uma purificação das mãos de deuses que manipulando o destino, excluía do ser humano qualquer possibilidade de liberdade. Assim, também a filosofia helênica, através do conhecimento, procurava elevar o ser humano à transcendência, despojando-o dos objetivos e formas da vida imediata, para lançá-lo através da abstração em direção ao ser puro. O mundo helênico era um mundo de culpa objetiva e castigo trágico e m profundo pessimismo atravessava todo o conhecimento, desde Anaximandro, passando por Pitágoras, Demócrito, Sócrates, Platão e Aristóteles.

Apesar dessa visão trágica, os gregos eram apaixonados pela vida e é essa dicotomia que dará riqueza a esta que será uma das mais expressivas culturas da humanidade. Mas, em última instância, a luta do filósofo permaneceu inalterada em todo o helenismo: superar o destino. E isso foi tentado através do domínio do pensamento, como forma de elevar-se acima da existência, já que no campo da ação e da transformação da existência é impossível superar o destino. No entanto, nunca essa meta foi alcançada. Possibilidade e necessidade foram conceitos chaves nas discussões do helenismo pós-platônico. O medo de demônios obscureceu o espírito helênico. O epicurismo tentou, em vão, libertar seus seguidores do medo, mas ao definir o conceito de possibilidade absoluta [ou azar], abriu o espaço para o medo em sua argumentação filosófica.

Dessa maneira, a filosofia grega caminhou para ceticismo, já que a busca de uma certeza transcendente para a existência humana se mostrou nula. Ao mesmo tempo, enquanto força sobre-humana do destino, as nações eram submetidas ao poderio romano. Diante desse destino trágico, o mundo helênico tinha necessidade da revelação. Ameaçado por um destino demoníaco, o mundo helênico ansiava por um destino salvador, necessitava de graça.

Segunda parte

O cristianismo é a vitória sobre a idéia da força resistível da matéria eterna, traduz a idéia de que o mundo é uma criação divina. É a vitória da crença na perfeição do ser em todos seus aspectos sobre o medo trágico e a matéria que resiste, hostil ao divino. É a negação radical do caráter demoníaco da existência em si. Dá a existência um valor essencialmente positivo e valoriza os acontecimentos da ordem temporal. Com o cristianismo, ao contrário do que pensava Anaximandro, a ordem do tempo não leva apenas ao transitório e perecível, mas também à possibilidade de algo totalmente novo, um propósito e um fim que dá pleno significado à vida humana.

No cristianismo o tempo triunfa sobre o espaço. O caráter irreversível do tempo bom [kairós] substitui o tempo cíclico, transitório e perecível do pensamento helênico. A partir desse momento, destino outorga graça, que traz salvação no tempo e na história. O mundo helênico e sua interpretação da vida estão superados e com eles, a filosofia, a religião e os cultos de mistério.

Antes, a filosofia buscava desesperadamente a revelação, agora a revelação apodera-se da filosofia dando origem à teologia. Assim, a teologia jogou fora o destino demoníaco e por extensão a metafísica helenística e se apropriou de suas formas lógicas e de seus conteúdos empíricos. O transitório e perecível da filosofia helenística não teve importância na formação do pensamento ocidental, mas sim a idéia da criação divina do mundo e a fé numa providência divina, através da salvação que se constrói historicamente e acontece num tempo bom. E isso já não é helenismo, mas antropologia teológica cristã.

Mas voltemos um pouco atrás, para entendermos esse processo. Dentro da visão paulina, que traduz o pensamento cristão palestino, destino (proorivzw, wvrisa, wrivsqhn), no sentido de que os limites estão dados de antemão, é a lei transcendente na qual está imbricado o conceito de liberdade. Assim, destino também implica numa trindade conceitual: (1) o destino está sujeito à liberdade; (2) destino significa que a liberdade também está sujeita à lei; (3) destino significa que liberdade e lei são interdependentes e complementares.

Analisando o conceito cristão palestino de destino, exposto por Paulo [Romanos 8.31-39; e 9], podemos dizer que a liberdade humana está ligada às leis universais, de tal forma que liberdade e leis se encontram intrinsecamente entrelaçadas. Aqui Paulo trabalha com um conceito judaico, de que lei é imposição de limites, que faz parte da revelação, que se expressa pela primeira vez como criação de Deus. Mas para Paulo, se o mal é uma probabilidade que surge da dialética lei e graça, o julgamento era inerente a tudo na criação, mas também a liberdade.

Assim, a certeza de que o destino é divino e não demoníaco e tem um significado realizador e não destruidor é a peça chave do pensamento paulino, que coloca o Logos acima do destino. Ao fazer isso, Paulo está dizendo que a compreensão do destino não está ao alcance do ser humano, nem pode ser submetido aos processos do pensamento humano. Mas esse Logos eterno se reflete através de nossos pensamentos, embora não exista um ato do pensamento sem a secreta premissa de sua verdade incondicional [Romanos 12.2 e ICoríntios 2.16]. Mas a verdade incondicional não está ao nosso alcance. Em nós humanos há sempre um elemento de aventura e risco em cada enunciado da verdade. Mas, mesmo assim, devemos correr este risco, sabendo que este é o único modo que a verdade pode ser revelada a seres finitos e históricos.

Quando mantemos relação com o Logos eterno e deixamos de temer a ameaça do destino demoníaco, aceitamos o lugar que cabe ao destino em nosso pensamento. Podemos reconhecer que desde o princípio esteve submetido ao destino e que o nosso pensamento sempre desejou livrar-se dele, mas nunca conseguiu. Tarefa teológica da maior importância, na análise cristã do destino é saber relacionar Logos e kairós. O Logos deve alcançar o kairós. O Logos deve envolver e dominar as leis universais, a plenitude do tempo, a verdade e o destino da existência. A separação entre Logos e existência chegou ao fim. O Logos alcançou a existência, penetrou no tempo e no destino. E isso aconteceu não como algo extrínseco a ele próprio, mas porque é a expressão de seu próprio caráter intrínseco, sua liberdade.

É necessário, porém, entender que tanto a existência como o conhecimento humano estão submetidos ao destino e que o imutável e eterno reino da verdade só é acessível ao conhecimento liberto do destino: a revelação. Dessa maneira, ao contrário do que pensavam os gregos, todo ser humano possui uma potencialidade própria, enquanto ser, para realizar seu destino. Quanto maior a potencialidade do ser – que cresce à medida que é envolvido e dominado pelo Logos – mais profundamente está implicado seu conhecimento no destino.

Nosso destino, que aqui deve ser entendido como missão, é servir ao Logos, num novo kairós, que emerge das crises e desafios de nossos dias. Quanto mais profundamente entendermos nosso destino [no sentido de prokeimai, estar colocado, ser proposto] e o de nossa sociedade, tanto mais livres seremos. Então, nosso trabalho será pleno de força e verdade.

A vontade humana não é neutra e a liberdade humana sempre se dá dentro de uma realidade condicionada. Assim, a liberdade entende-se como relação dialética entre lei e graça. Quando Hegel afirmava que a liberdade é a consciência da necessidade, como fez questão de mostrar Marx, cometia um erro porque descartava a realização da liberdade. É por isso que Marx dirá que liberdade é práxis. Ora, para Marx, práxis é consciência da necessidade mais ação transformadora. Ou seja, em termos teológicos, consciência da lei diante da existência do mal é arrependimento, e ação transformadora do Logos produzindo justificação e mudança de vida, graça.

Dentro da visão cristã e exatamente pelo que acabamos de ver, o mal, ao contrário do que pensavam os gnósticos, não é um ser, mas um fazer. Em relação ao imediato é um estado e no que se refere à espécie humana é um domínio. Numa definição teológica, o mal acontece perante aquilo que minha liberdade é desafiada, quando ele, o mal, é chamado à surgir como feitura humana. Nesse sentido, o mal não se apresenta sem agente moral, sem liberdade. Toda vez que realizo minha liberdade a lei está presente, pois o mal é um antítipo da salvação.

Por isso só podemos responder ao mal reconhecendo que o mal é feitura minha e de minha espécie, colocando a ruptura desse domínio nas mãos daquele único que pode fazê-lo, o Logos. A partir daí, ao nível do pensamento, já que é um desafio teológico, o caminho é a reflexão, como aquela que Agostinho fez frente aos gnósticos, quando esses levantarem a satânica pergunta: Por que o mal existe? Transformando assim o mal em coisa e mundo, dando existência e imagem ao mal. Agostinho responde dizendo que a única pergunta que posso fazer é: O que me leva a fazer o mal? E ao nível da vontade e do sentimento, crendo em Deus apesar do mal, pois a cristologia nos ensina que o Logos também sofreu. E por fim, ao nível da ação, pois o mal é o que não devia estar, devemos ter uma ética de responsabilidade social, de combate a este estado e domínio na vida de meu próximo e da sociedade.

Mil anos depois de Agostinho, a questão do mal continuava em discussão e a teodicéia, ainda em construção, oscilou entre dois imperativos aparentemente excludentes, o da soberania de Deus, (ICr.29:11-14; Sl 139:1-16; Is 45:1-13; 63:16-17; Ef 1:11; Jo 6:44; Rm 9:11-24) e o do livre arbítrio (IIPe 2:1 redenção, Ijo 2:2 propiciação, IICo 5:19; reconciliação, Is. 53:6, Jo 1:29, 3:16-18, 4:42, ITm 4:10, IIPe 3:9). Mas, no início do século XX, a partir da teologia dialética, passou-se a ver tais imperativos como conjunto ou totalidade. Assim eleição e oferta aberta foram lidos como termos complementares, e a cruz como base da salvação e da condenação, Jo 3:18,36.

Mas vamos analisar a dialética de tais imperativos sob um novo ângulo. Em 1970, Manuel Ballestero publicou em Madri, pela Siglo XXI, La Revolución del Espíritu (Tres pensamientos de libertad), analisando o caráter radical da liberdade no pensamento de três gênios da modernidade: Nicolas de Cusa, Lutero e Marx. Ballestero diz que sua preocupação residiu em analisar o projeto de libertação desses três pensadores, sabendo que o ato livre e a autonomia são concebidos de maneiras diferentes e mesmo antagônicas, embora existam, no contexto da obra dos três, analogias de fundo, “já que neles, em um e outro plano, liberdade significa abolição da lei, colapso da determinação exterior, e não – à maneira conservadora – comportamento que se adequou aos limites da ordem. Liberdade para os pensadores que aqui analisamos significa a destruição de toda ordenação que seja exterior e anterior ao próprio ato livre.”

Os ensaios mostram que a revolução teórica empreendida por Cusa e Lutero não é gratuita, nem produto de um simples ato ideal, mas se enraíza no tecido histórico do movimento de decomposição global da formação social pré-capitalista. Cusa e Lutero clamam por essa destruição. Sem entrar nos detalhes das mutações vividas no século 16, com a ruptura do equilíbrio cidade/campo, o surgimento das manufaturas e consolidação do sistema de trabalho assalariado, vemos que a dimensão negativa da condição humana na incipiente sociedade capitalista será percebida por Cusa e Lutero: a autonomia do sujeito se dá como dor. Mas ambos consideram essa subjetividade liberada pelo início da arrancada capitalista como desequilíbrio. Assim, tanto Cusa quanto Lutero partem da negação dessa subjetividade alienada do nascente capitalismo, considerando que deve ser superada para que o Espírito floresça. Aí, então, teríamos o fim da inessencialidade do sujeito alienado e a inserção deste na totalidade objetiva. Mas isso não pode acontecer sem a transformação dessa realidade objetiva em realidade espiritual, que sustém o ser humano. Dessa maneira, para os dois pensadores, o Espírito constrói num nível superior o universo anteriormente negado.

O jovem Marx, seguindo os passos de Hegel, partirá dessa discussão. Para ele, a religião é a realização imaginária da essência do ser humano, já que essa essência do ser humano não tem realidade alguma. Mas há um ponto de interligação nessa perspectiva, quando vê, assim como Cusa e Lutero, a liberdade como abolição da legalidade, como coincidência do momento subjetivo com o momento objetivo, e como responsabilidade suprema do ser humano. Para entender esse ponto de partida de Marx é bom ler seus manuscritos econômicos e filosóficos, mas também sua Introdução à Crítica da Economia Política (Marx, São Paulo, Abril Cultural, 1982), texto que só foi descoberto em 1902 e publicado por Kautsky em 1903.

“O cristão é senhor de todas as coisas e não está submetido a ninguém. O cristão é servo em tudo e está submetido a todo mundo” (Lutero, Les grands écrits reformateurs, Paris, Aubier, 1955, p. 225). Livre e não submisso, servo e escravo. Para Lutero, o ser humano existe como estrutura ontológica dual. Sua conceituação traduz a ansiedade teórica do século 16, mas traduz-se em superação da subjetividade alienada. O cristão é senhor de todas as coisas, não está submetido a ninguém e esse senhorio radical é produto da graça. Sua liberdade é fruto da fé que transforma a subjetividade alienada em realidade objetiva. Nesse sentido, o caráter espiritual da autonomia do cristão se dá como processo. Morre o imediato, o alienado, e tem início a construção de uma segunda natureza. A liberdade surge como deslocamento do ser humano natural, como distanciamento crítico daquilo que foi naturalmente dado. O primeiro momento da liberdade parte de uma concepção trágica, porque o senhorio num primeiro momento implica em servidão, criando tensão e luta... “É necessário desesperar-se por você mesmo, fazer com que você saia de dentro de você e escape de sua prisão” (Lutero, Les grands écrits, p. 259). Mas superada a tensão, temos a liberdade enquanto espiritualidade, uma dimensão de combate. O ser humano, que em Cristo vive essa metamorfose, tem a liberdade que vai além, a liberdade que é fonte de realidade e ação. Assim, o cristão transforma-se em receptáculo da fé, em intencionalidade aberta ao Absoluto.

samedi 14 juin 2008

Le Protestantisme brésilien : phénomène doux vu du dehors

Du mercredi 16 au samedi 18 mars, la Faculté protestante de théologie de Montpellier accueillait le 3e. Rencontre international des doctorands du Sud en France, évènement de l’Association Francophone Oecuménique de Missiologie - AFOM, par discuter «Le rôle des intellectuels chrétiens dans la société». Jorge Pinheiro, doctorand en sciences religieuses, qui a été invité par l’Association, approchait du théme d’un point de vue latino-américain et parlait de…
Le Brésil religieux et son défi pour l'intellectuel chrétien
Deuxième partie

Du point de vue de la sociologie religieuse, les missionnaires protestants représentent une force culturelle envahissante pour l'Amérique Latine. D'autres agents culturels venus avec l'expansion commerciale (techniciens, experts, entrepreneurs), déstabilisent les modèles locaux, mettent en question le statut quo socio-religieux et font naître la possibilité d'une nouvelle forme de pratique religieuse. Cela va créer des conflits avec un système religieux catholique qui était efficace dans les pays latino-américains.

Toutes les missions protestantes historiques sont arrivées au Brésil pendant le règne de D. Pedro II. Les méthodistes arrivent en 1836, quatorze ans après l'indépendance et cinq de l'abdication de D. Pedro I. Les presbytériens, les épiscopaliens, les congrégationalistes et les luthériens arrivent dans la seconde moitié du XIXe siècle, au moment favorable du règne du second empereur brésilien, D. Pedro II. Les baptistes arrivent finalement en 1881.

Trois facteurs au moins expliquent le succès de la présence missionnaire nord-américaine au Brésil : (1) le règne de D. Pedro II et sa politique d'ouverture au monde commercial et culturel anglais et nord-américain, et la tentative de construction d'un état monarchique libéral ; (2) la relation conflictuelle entre l'Église Catholique et l'État pendant la même période ; (3) et la vague migratrice qui apporte une main d'œuvre d'Europe et des États-Unis.

La crise de l'économie basée sur l'esclavage7 et les exigences de l'économie exportatrice qui se développe, appelle un volume de plus en plus grand de main d'œuvre immigrée. L'empereur, voulant en même temps à développer la colonisation intérieure du Brésil et à satisfaire les élites économiques, cherche dans les pays européens et aux États-Unis la population qu’il estime nécessaire au développement de la nation. Le recrutement d'immigrés commence autour de 1820, et atteint son apogée dans la seconde moitié du siècle.

Dans cette période le pays assume les dépenses de transport des nouveaux immigrants, dont le nombre atteint le chiffre record de 133.000 immigrés dans la seule années 1888. Entre 1820 et 1930 le pays reçoit entre quatre et cinq millions d'immigrés européens et nord-américains. La majorité d'entre eux s’installent dans les provinces du sud. Une bonne partie de ces immigrés est européenne et catholique, mais un petit nombre est originaire des États-Unis et protestant. Ce sont ces immigrés nord-américains qui contribuent de deux manières à l'implantation des missions protestantes dans le pays

Premièrement par le style de vie qu’ils apportent. La technologie et les habitudes nord-américaines représentent un tout, religion comprise exprimant le plus haut niveau de développement. Entre autres des technologies de transport de culture des terres, de construction (maisons de briques), de cuisine et de transformation des aliments (cuisinières modernes, broyeurs de café), d’ustensiles ménagers (lampes de kérosène, machines de couture, surtout quatre nouvelles cultures agricoles : le coton de montagne, la pastèque américaine, le raisin, et les noix.

Deuxièmement les immigrés protestants cherchent auprès de l'empereur protection pour l'exercice de leur religion. Ayant obtenue la protection impériale, ils demandent à leurs Églises d'origine l'envoi de pasteuts pour la communauté, pasteurs qui deviendront les premiers missionnaires au Brésil. Le but de la mission étant que des Brésiliens se convertissent au protestantisme, le gouvernement contrôle officiellement les religions non catholiques, attitude qui entraîne l'envoi de plus de missionnaires et l'expansion de leurs secteurs d'activités à côté des communautés nord-américaines immigrées dans le sud du pays.

Ainsi, en un siècle environ le protestantisme implanté par des missionnaires est devenu brésilien, selon un processus de création de quelque chose de plus en plus différent de ses origines historiques, soit européennes, soit nord-américaines. Aujourd'hui, le protestantisme est présent, avec ses diverses ramifications, dans tout le Brésil, de plus en plus, maintenant, comme phénomène doux vue du dehors, implanté dans les classes sociales, urbaines et populaires. D’un protestantisme historique il est devenu pentecôtiste et néo pentecôtiste présentant des taux de croissance remarquable.

Conclusion

La diversité institutionnelle, doctrinale, morale et politique, très changeante de la réalité chrétienne au Brésil montre la difficulté d'étudier le phénomène comme un tout. Il est certain que n'y a pas un protestantisme brésilien, mais différents protestantismes au Brésil. Dans ce pays où coexistent le cosmopolitisme mondialisé, de fortes présences politiques de gauche et un régionalisme traditionnel, une société multiculturelle et religieusement plurielle a été consolidée. Dans le protestantisme sont entrées des personnes venues d'autres religions, de l'indifférentisme religieux et même du matérialisme. De plus, à l'intérieur de l'espace protestant lui-même, se produisent des mouvements d’une communauté locale à l’autre ou d’une dénomination à l’autre principalement en fonction de la mobilité de haut en bas de l’échelle sociale.

Selon Cavalcanti8, “ tant que le protestantisme historique apparaît comme une alternative culturelle liée à l'idéologie bourgeoise, le pentecôtisme est apparu comme une proposition de contre-culture populaire, de racines pré-modernes et d'idéologie anti-moderne, à partir des mêmes sources du catholicisme populaire. S'éloigner du principe protestant‚ a été regardé par les protestants historiques comme un catholicisme de substitution”. Messianique, et malade d'une espèce de “tentation théocratique”, le pentecôtisme a substitué le protestantisme historique et son discours sur l'aliénation, par une sorte d’engagement à produire des résultats. Il a oublié l'appel de la théologie sociale reformée et s'est tourné vers des pratiques du clientélisme politique, a commencé à soutenir les secteurs politiques conservateurs et de droite, promettant aux exclus la possibilité d'une ascension dans l’échelle sociale.

Mais, dans les dernières vingt années, le Brésil est passé par une nouvelle étape de cette croissance du protestantisme : le phénomène urbain du neo pentecôtisme, avec son accent mis sur la métaphysique, le mysticisme, et une eschatologie infra-historique. Ou encore, dans sa version néo-libérale, avec la “théologie de la prospérité”. Ainsi, ce neo pentecôtisme s'est divisée en deux tendances : l’une populaire, dirigée vers les exclus, l’autre bourgeoise, dirigée vers les émergents. Les uns aspirent à des bénédictions matérielles qu’ils convoitent, les autres remercient pour ce qu’ils ont déjà reçu. La mobilité sociale et le bourgeonnement de ce neo pentecôtisme ont favorisé, à partir de la dernière décennie, la dislocation du pentecôtisme traditionnel qui conduit à une nouvelle approche des Eglises historiques, et à une revalorisation de la théologie réformée. Et les Églises historiques, à leur tour, ont incorporé des pratiques du monde pentecôtiste.

En devenant une partie constitutive de la société brésilienne, le protestantisme reflète ses contradictions, ses misères et ses potentialités. Les situations sont diverses et divers aussi sont les discours. Les différences et les conflits internes s'accentuent et la coopération interdénominationnelle connaît aussi une baisse. En partant de ces contradictions, on peut dire que l'élite protestante se réfère au paradigme progressiste, elle ne fait pas partie de la masse, et ne voit pas l’Église comme “abri”. En revanche, les masses exclues de la mobilité sociale ascendante, ainsi que les classes moyennes qui subissent un processus descendant, cherchent dans les Églises un abri.

Une partie de cette élite protestante milite dans des organisations et partis de gauche et vote pour ses candidats. Du fait de toutes ces contradictions et conflits, nous pouvons dire que l'étude du protestantisme brésilien et, par extension, de ses potentialités missiologiques, dépendent de notre capacité à écouter les voix de ce phénomène religieux, comme signe critique d’un accouchement d'une créature nouvelle, l'Église protestante brésilienne, encore sans visage et sans forme. La seule certitude que nous avons est que nous sommes des millions, différents et sectaires9. Sans doute donc que la missiologie, comme praxis chrétienne du dialogue inter-religieux, est nécessaire au Brésil aujourd'hui.

C'est le défi de l'intellectuel chrétien aujourd'hui au Brésil : au lieu de cultiver le sectarisme et la dénégation permanente de la richesse de la foi chrétienne, malgré nos évolutions et nos différences, il faut montrer “la richesse de la grâce, que Dieu a répandu abondamment sur nous par toute espèce de sagesse et d’intelligence”10. Pour que naisse cette Église chrétienne brésilienne, traduction de la sagesse multiforme de Dieu, l'action missiologique de l'intellectuel chrétien consiste d’abord à construire de ponts : c’est un cri prophétique pour la recherche du dialogue, par lequel il pourra alors se rendre présent à la société.

Notes

7. Leonildo Silveira Campos, Pentecôtisme, conversion et lien social au Brésil, in FATH, Sébastien, Le protestantisme évangélique: un christianisme de conversión, EPHE, p.185.
8. Israel Belo de Azevedo, A celebração do indivíduo, a formação do pensamento batista brasileiro, Piracicaba, Editora Unimep, 1996, p.172.
9. “Le monde évangélique est divisé. Aucun il y a une unité institutionnelle qui est mise sur aux divergences, comme dans le Catholicisme. Il y a une diversité immense d'organisation, théologique, liturgique et politique. Si quelqu'un n'aime pas quelque aspect de son église, il peut aller pour autre, ou égal fonder un nouveau, sans laisser le monde évangélique. C'est principe de l'auto-gestion et du marché libre. Dans un certain chemin, 'évangélique' (ou 'Protestant') c'est une catégorie résiduelle, c'est ce qui est resté du champ chrétien après l'Église catholique et des Églises Orthodoxes, un type de Troisième Monde”. Paul Freston, Fé Bíblica e Crise Brasileira, São Paulo, ABU Editora, 1992, p. 78.
10. Êpitre de Paul aux Éphésiens 1.7-8.

Bibliographie

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TROELTSCH, Ernst. The Social Teachings of the Christian Churches. 2 vols. New York: Harper & Row. 1960.

jeudi 12 juin 2008

Le Brésil religieux

Du mercredi 16 au samedi 18 mars 2005, la Faculté protestante de théologie de Montpellier accueillait le 3e. Rencontre international des doctorands du Sud en France, évènement de l’Association Francophone Oecuménique de Missiologie - AFOM, par discuter «Le rôle des intellectuels chrétiens dans la société». Jorge Pinheiro, doctorand en sciences religieuses, qui a été invité par l’Association, approchait du théme d’un point de vue latino-américain et parlait de…

Le Brésil religieux
et son défi pour l'intellectuel chrétien

Première partie

Jorge Pinheiro

Quand nous voulons parler du Brésil religieux on court le risque de ne penser qu’au Brésil du carnaval, au Brésil touristique, à un Brésil exotique, avec sa présence solide de la culture noire et des religions Afro-brésiliennes. Sans aucun doute, ce Brésil existe-t-il, mais cela ne traduit ni l’essentiel du pays, ni même la religiosité brésilienne.

Par conséquent, pour parler de Brésil religieux et de son défi pour l'intellectuel chrétien, nous nous voyons forcés de comprendre quelle est la religiosité aujourd'hui. Et comment dans ce contexte l'intellectuel chrétien a un défi bien défini à relever. Mais, comme dit Gounelle, une description comporte inévitablement des jugements de valeur: la scientificité n’implique cependant pas une certitude absolue. En effet, la détermination du principe ne se fait jamais par simple déduction; elle implique une prise de position, un engagement interprétatif2. C’est le défi de ma exposition: penser la subjectivité sans perdre de vue les estructures fondamentales de l’analyse scientifique du phénoméne religieux.

Le Brésil est un pays de 180 millions d’habitants. La majorité de la population (73,8%) est catholique et le deuxième groupe religieux en importance, ce sont les protestants3. 6% seulement professent des cultes afro-brésiliens, comme la umbanda ou le candomblé, des spiritismes, des cultes orientaux, également de l’athéisme. Le Brésil est donc ce qu’on peut encore appeler un pays de chrétienté.

Mais cette chrétienté de 170 millions de personnes n’est pas une chrétienté unie et solide. Il y a une haine silencieuse entre catholiques et protestants. Les catholiques sont divisés en plusieurs tendances, où les trois plus fortes sont les traditionnels/conservateurs, les charismatiques et les tendances populaires. De la même manière, les protestants sont divisés: la tendance la plus forte aujourd’hui est formée par le pentecôtisme et ensuite seulement par le courant historique, dont les baptistes qui sont le groupe plus dynamique, avec trois millions de fidèles.

En général, les protestants brésiliens sont fondamentalistes et politiquement conservateurs, ils ont peur du socialisme et du communisme et n’aiment pas le gouvernement Lula et le Parti des Travailleurs.

C’est pourquoi, l’oecuménisme n’est pas une idée en vogue. Pour le fondamentalisme évangélique c’est même une idée diabolique, qui a pour objectif de détruire la foi, comme ils disent que tel a été le cas en Europe. Un exemple de cette situation c’est le fait qu’un évêque de l’Église Universelle du Royaume de Dieu, a donné un coup de pied dans une image de la Vierge Aparecida, patronne catholique de Brésil, au cours d’une émission du télévision. Comment expliquer cette situation? Comment a commencé l’histoire du protestantisme au Brésil?

La missiologie de l'autogestion et du marché libre

Les missions protestantes arrivent parallèlement à l’expansion capitaliste de la seconde moitié du XIXe siècle. Cette période apporte aussi, pour l'Amérique Latine et pour le Brésil en particulier, d’autres formes de christianisme, avec les promesses des Lumières présentes dans l'idéologie protestante de cette époque.

Les missions protestantes contemporaines représentent une parcelle culturelle qui a été transplantée de l’hémisphère Nord et vers l’hémisphère Sud dans la seconde moitié de le XIXe siècle. Si cette expansion capitaliste a eu de conséquences économiques, politiques et sociales pour les nations du sud, elle a aussi apporté une nouvelle forme d'église.

L’immigration d'Européens et de Nord-Américains dans cet hémisphère provoque la création de nouvelles couches sociales dans les pays en développement exigeant une génèse de nouvelles possibilités religieuses.

L'expansion capitaliste de XIXe siècle, n’est pas parallèle à l’expansion des missions protestantes par hasard. Les églises protestantes ont profité de l'expansion du commerce et de la colonisation promus par l’hémisphère Nord pour développer une vision plus englobante de leur missions. Missions qu'on peut classer dans au moins deux modèles, le modèle d'Église officielle et le modèle de l'autogestion et du marché libre religieux.

Les missions européennes tendent à suivre le modèle religieux que Troeltsch définit comme celui d'église officielle où la religion est exportée comme partie de l'ordre social géré par l'État. Comme dans les pays africains et asiatiques sous la tutelle coloniale européenne, les églises protestantes sont l’expression religieuse de la présence colonisatrice. Les missionnaires utilisent l'infrastructure coloniale (principalement des systèmes de transport et de communications exportées pour les colonies) pour développer leur travail, éparpillant non seulement des temples dans les nations de l'hémisphère sud, mais aussi des réseaux scolaires et hospitaliers qui influenceront le développement de ces colonies. De cette manière, les Églises protestantes se rendent participantes de l'établissement d'un nouvel ordre social dans les pays colonisés.

Quant aux missions nord-américaines, elles adoptent un autre modèle, celui de l'autogestion ou du “marché ouvert” 4 où des églises différentes se constituent par l'adhésion volontaire des fidèles. Dans ce modèle, chaque église aurait les caractéristiques sociologiques que Troeltsch qualifierait de secte5. La séparation constitutionnelle entre l'Église et l'État aux États-Unis force les églises d’origine nord-américaines à se constituer comme des organisations religieuses indépendantes de la tutelle du gouvernement, dénominations qui fonctionnent par l'adhésion des fidèles dans un marché religieux ouvert, où aucune de ces églises n’aura pas l'aide exclusive du pouvoir.

Dans les pays sous tutelle coloniale européenne ont assiste donc à une complète exportation de la culture et des habitudes de la société colonisatrice pour la société colonisée. La forme du gouvernement, l'organisation économique, le modèle de religion, le système d'éducation, et le système de santé sont organisés à l'aide des mêmes paramètres sociaux que ceux de la nation dominante.

Dans l’Etats Unis, les églises s'établissent à leur propre frais et combattent pour assumer une part du marché. Les églises missionnaires des États-Unis ne voient pas leur avantage à opérer dans l’Amérique Latine, mais les missionnaires sont plutôt envoyés dans les pays qui maintiennent le commerce avec l'États-Unis.

Dans un marché religieux ouvert, chaque église va développer une catéchèse efficace pour convaincre une partie de la population locale de la supériorité de sa doctrine et de sa pratique religieuse. Dans le cas des dénominations nord-américaines, çà ne va pas être facile, parce que le système religieux qu’elles exportent pour l'Amérique Latine est très différent du système existant dans le continent. La culture ibérique, non calviniste, repose sur un système de relations sociales et spirituelles, dans de nombreux cas, diamétralement opposés au système nord-américain.

Une des questions les plus importantes pour l'étude de missions dans un marché religieux ouvert comme celui du Brésil, est l’impact de la dissonance entre l'idéologie protestante et la réalité latino-américaine pour déterminer le degré d'acceptation des missions. Jusqu'à ce quel point la foi apportée par les missionnaires peut réveiller l’intérêt des populations locales pour un nouveau modèle d'Église et jusqu'à ce quel point cette vision est étrangère et demeure inadaptable et inacceptable?

Cette question est importante parce qu’au cours du XIXe siècle les églises protestantes nord-américaines apportent au Brésil une foi qui accepte inconditionnellement les promesses des Lumières et elles voient dans les États-Unis l'expression la plus grande de la modernité6. Pour ces missionnaires, leur patrie est bénie par les libertés politiques et civiles, et par les associations volontaires qui contribuent à l'intégration communautaire et à l'identité nationale, exactement tout ce que professe la foi protestante.

La nation américaine est présentée au Brésil comme un pays basé sur les principes de tolérance religieuse et sur une égalité politique. Par conséquence le Brésil est vu par les missionnaires comme un pays surchargé par l'héritage oligarchique.

Ainsi, se constitue une composante déterminante de la nation: le fort caractère anticatholique importé par le protestantisme lors de son arrivée au Brésil, face aux entraves maintenues par l’Église catholique, dominante dans la société et dans l’Etat brésilien. L’identité protestante au Brésil s’est constituée dans une “opposition à l’identité catholique [...]. Le catholicisme serait synonyme d’archaïsme culturel et économique tandis que le protestantisme représenterait le progrès”.7

Ce choc a des répercussions dans la pensée protestante brésilienne jusqu’à nos jours avec des variations cependant. La séparation entre Église et État prôné par les protestants aurait pour conséquence un manque d’intervention directe de leur part dans la politique brésilienne, facteur qui distinguerait catholiques et protestants, ces derniers se maintiendraient à distance de la scène sociale vue comme un lieu de corruption dominé par des valeurs catholiques. Une autre conséquence de cette position anticatholique, se vérifie par le désintérêt des protestants pour la culture brésilienne, imprégnée de valeurs considérées comme rétrogrades. Des habitudes morales protestantes cultivent ainsi la différence entre l’attitude du catholique, lequel boit et fume, etc. alors que le protestant ne fait rien de tout cela et progresse dans la vie parce que il est “ honnête, travailleur et qu’il sait lire (au moins à Bible) ”.8


Notes

. Jorge Pinheiro fait le Doctorat en Sciences de la Religion dans l’Université Méthodiste de Sao Paulo ; il est professeur de Théologie Systématique dans la Faculté Théologique Baptiste de Sao Paulo et pasteur dans l'Église Baptiste à Perdizes, Sao Paulo. Actuellement, il accomplit recherche en Paul Tillich dans la Faculté de théologie protestante à Montpellier.
2. André Gounelle, "Philosophie et théologie selon Troeltsch et Tillich", in A. Dumais et J. Richard, éd, Philosophie de la religion et théologie chez Ernst Troeltsch et Paul Tillich, Québec, Presses de l’Université Laval, 2002, p. 166.
3. Les chiffres du Recensement 2000 de l'Institut brésilien de Géographie et Statistiques, IBGE, montrent l’ascension et l’augmentation expressive des protestants dans le pays. En 1970, ils étaient 5,17% de la population, mais en 2000 ils arrivent à 15,4%. Dans les nombres absolus: dans l'année 2000 les protestants ont traversé la marque des 25 millions. [www.ibge.gov.br].
4. H. B. Cavalcanti, O Projeto Missionário Protestante no Brasil do Século 19: Comparando a Experiência Presbiteriana e Batista, University of Richmond.
5. Ernst Troeltsch, "Que signifie essence du christianisme?", in Oeuvres, 3, pp. 223-237, cf. A. Dumais, Sur la essence christianisme. La position d’Ernst Troeltsch; Laval Théologique et Philosophique, juin 1998, pp. 338-342.
6. Peri Mesquida, Hegemonia norte-americana e educação protestante no Brasil, Juiz de Fora/São Bernardo do Campo, Editora da UFJF e Editeo, 1994.
7. Leonildo Silveira Campos, "Pentecôtisme, conversion et lien social au Brésil", in FATH, Sébastien, Le protestantisme évangélique: un christianisme de conversión, EPHE, p.185.
8. Israel Belo de Azevedo, A celebração do indivíduo, a formação do pensamento batista brasileiro, Piracicaba, Editora Unimep, 1996, p.172.

mardi 27 mai 2008

Programa de Antropologia Aplicada

ANTROPOLOGIA APLICADA
Faculdade Teológica Batista de São Paulo
Primeiro semestre de 2008

OBJETIVO
O estudo da Antropologia é essencial porque não se pode pensar hoje um cidadão brasileiro que não seja solicitado a refletir o momento político e social que o País vive. Isso significa que todos deveriam ter uma concepção da história de nossa formação enquanto povo e dos desafios a que somos chamados a responder. Tal concepção de brasilidade deve reforçar ou modificar maneiras de agir e pensar o tempo brasileiro. E como protestantes e batistas conhecer a formação e o sentido da identidade brasileira, o que permitirá o desenvolvimento de uma consciência crítica, pela qual a experiência vivida pode ser transformada em consciência compreendida da realidade brasileira.

ABORDAGEM
Optamos por uma abordagem temática da Antropologia, sem descuidar da referência necessária à história da formação e sentido do Brasil, que permita estabelecer o fio condutor da exposição dos temas. Isto porque fazer um estudo da história e formação do povo brasileiro implica em fazer antropologia do povo brasileiro e sociologia da cultura. Tais abordagens não podem ser encaradas como atividades solitárias, mas enquanto diálogo entre pensadores que expõem diferentes visões.

AVALIAÇÃO
Os alunos serão avaliados por sua participação em classe (peso 3) e pelos seminários apresentados.

MATÉRIA

1. O processo civilizatório e as abordagens da Antropologia
Povos germinais / liberdade e história
Darcy Ribeiro, O povo brasileiro, a formação e o sentido do Brasil, São Paulo, Companhia das Letras, 2002, pp.64-80.
Jorge Pinheiro, Deus é brasileiro, as brasilidades e o Reino de Deus, São Paulo, Fonte Editorial, 2008, pp. 11-38.

2. Gestação étnica e travessias da questão hermenêutica

Os brasilíndios / os afro-brasileiros / os neobrasileiros / os brasileiros / ser e consciência.
Darcy Ribeiro, O povo brasileiro, a formação e o sentido do Brasil, São Paulo, Companhia das Letras, 2002, pp.106-140.
Jorge Pinheiro, Deus é brasileiro, as brasilidades e o Reino de Deus, São Paulo, Fonte Editorial, 2008, pp. 39-68.

3. Processo sócio-cultural e o Reino de Deus

Classe e poder / cristianismo e Reino de Deus
Darcy Ribeiro, O povo brasileiro, a formação e o sentido do Brasil, São Paulo, Companhia das Letras, 2002, pp.208-227.
Jorge Pinheiro, Deus é brasileiro, as brasilidades e o Reino de Deus, São Paulo, Fonte Editorial, 2008, pp. 69-100.

4. O destino nacional e o princípio protestante

As dores do parto / os confrontos e o princípio protestante
Darcy Ribeiro, O povo brasileiro, a formação e o sentido do Brasil, São Paulo, Companhia das Letras, 2002, pp.447-456.
Jorge Pinheiro, Deus é brasileiro, as brasilidades e o Reino de Deus, São Paulo, Fonte Editorial, 2008, pp. 101-128.

BIBLIOGRAFIA OBRIGATÓRIA
Darcy Ribeiro, O povo brasileiro, a formação e o sentido do Brasil, São Paulo, Companhia das Letras, 2002.
Jorge Pinheiro, Deus é brasileiro, as brasilidades e o Reino de Deus, São Paulo, Fonte Editorial, 2008.

BIBLIOGRAFIA AUXILIAR
Antonio Gouvêa Mendonça, Protestantes, pentecostais e ecumênicos, o campo religioso e seus personagens, São Bernardo do Campo, UMESP, 1997. Ler capítulo 3, Protestantismo e Cultura.
Marilena Chauí, Brasil: mito fundador e sociedade autoritária, São Paulo, Editora Fundação Perseu Abramo, 2000.
Milton Santos, Por uma outra globalização, São Paulo, Editora Record, 2000. Ler capítulo 6, A transição em marcha.

mardi 13 mai 2008

Novela de memórias: um pedaço de mim, de Jorge Pinheiro


Novela de memórias: um pedaço de mim, de Jorge Pinheiro
Extractos e entrevista com o autor

AUTOR: Omar L. DE BARROS FILHO

Quem, como eu, teve a oportunidade de conhecer Jorge Pinheiro durante sua ativa militância socialista na década de 70, depois do exílio na Argentina, Chile e Europa, foi surpreendido com os rumos de sua trajetória posterior, após a derrota da ditadura militar e a consolidação democrática brasileira, ainda em processo. O corriqueiro seria que o jornalista talentoso ocupasse um cargo de importância nos veículos de comunicação tradicionais, ou fosse para alguma assessoria de comunicação na área de governo ou privada. Entretanto, Jorge Pinheiro, um sobrevivente da ação repressiva da polícia política do Brasil e do paredón de fuzilamento durante o golpe contra Allende, no Chile, optou por um caminho distinto: converteu-se à fé do cristianismo e adotou a construção da Igreja Batista como seu novo objetivo. Doutorou-se em teologia, escreveu obras de cunho religioso, tornou-se professor e pastor. Agora, ao concluir o primeiro volume de uma trilogia em preparação – Novela de memórias: um pedaço de mim –, que será lançado pela Eleva Cultural no próximo dia 31 de maio, em São Paulo, o cientista da religião Jorge Pinheiro abre uma nova etapa em sua caminhada. Uma inflexão que o levou a descrever e refletir sobre a marcha de um militante marxista e seus camaradas em um continente sem rumo, oprimido por regimes discricionários, uma América Latina injusta e violenta que, mesmo assim, sobreviveu sob as sombras das asas do condor.

Capítulo 1 – Indo...

Rebeca tirou o pé do acelerador. O carro deslizou de lado e bateu forte no barranco. Por alguns momentos, nenhum de nós entendeu o que estava acontecendo. Filemón estava com o rosto sangrando, o corpo amolecido pelo impacto. No banco de trás, Yasmin e eu nos recuperamos rápido do susto e saltamos do carro. Juntos, os três agarramos Filemón pelos braços e o puxamos para fora. Estava pálido demais, cor de cera, a não ser pelo vermelho que continuava a lhe escorrer pela cara.

– Está morto, disse Rebeca.

– Não, não está, respondeu Yasmin.

E cada uma olhou para a outra, numa disputa de olhares que todo mundo conhecia muito bem. Elas se odiavam e nunca perdiam a oportunidade de demonstrar isso. Absurdo, essas duas vão começar a brigar aqui, quem sabe vão se engalfinhar, se morder, xingar a mãe, sei lá, enquanto o Filemón se esvai em sangue.

– Ele está com a cabeça machucada. Se for alguma coisa muito grave, a gente só vai saber depois. Não dá para chamar o médico, agora.

As duas olharam para mim como se estivessem diante de um extraterrestre. Pegamos uma estopa velha e suja de óleo, a única que havia na hora, limpamos a cabeça de Filemón e fizemos uma bandagem com uns trapos que estavam jogados no fundo do carro, um Dauphine que era pau pra toda obra.

Encostamos o rapaz no barranco e, então, voltamos ao mundo real. Eram duas e trinta da madrugada. Ali estávamos quatro militantes do Movimento Nacionalista Revolucionário com um carro cheio de armas, tombado junto a um barranco da Rua Almirante Alexandrino, em Santa Teresa, no Rio de Janeiro. Na verdade, eu tinha avisado a Rebeca que tomasse cuidado porque esses trilhos escorregavam. Cuidado com essa curva perto do hospital alemão, cuidado. Mas, quem disse que Rebeca escutava. Ela sempre se considerava uma Mata Hari. Só não usava piteira. Mas será mesmo que Mata Hari usava piteira ou isso era mais uma criação de Hollywood?

– Estamos perto da casa. Uns cinqüenta metros. O problema é se passa alguém.

Recomposta da ira inoportuna, Yasmin ajeitou a blusa e a mini-saia, que tinha subido até o alto da coxa. Ela sempre combinava a cor da mini-saia com a cor da calcinha. E para ser verdadeiro, as mini de Yasmin eram micros. Tinha uma dúzia delas. Sacudiu a cabeça, passou a mão pelo cabelo, como se, de repente, estivesse acordando para a vida.

– Vamos à luta, antes que alguém nos veja.

E mais uma vez os três voltamos a trabalhar juntos. Destombamos o carro, abracei Filemón o melhor que pude, agarrando-o como se fosse um bêbado e o arrastei até o prédio. As duas mulheres, cheias de pacotes, tentavam andar rápido na minha frente. Não corriam. As metralhadoras, mesmo desmontadas, formavam volumes pesados. Era só o que faltava, sermos presos agora, depois de uma viagem tão longa.

Capítulo 15 – Ahumada con huérfanos

Cena Três - Diálogo Três

O homem que foi baleado no peito, à queima roupa, que tem a camisa e a parca verde oliva queimadas, continua sua história. Todos ouvem em silêncio.

A rua é sem saída e um ônibus de carabineiros bloqueia a rua. Começam a chegar tanques. Vou tentar romper o cerco pela retaguarda. Explodimos uma parede e saímos por trás. Estamos em San Joaquín, em frente à Coca-Cola.

León é metralhado. Companheiros o levam de volta para Indumet. Os carabineiros invadem Indumet e fuzilam León e mais dois operários.

Cruzamos San Joaquín e nos enfiamos por uma rua ao lado da Coca-Cola.

Nosso comando chegou a La Légua. Um caminhão de carabineiros tentou nos interceptar, mas respondemos com tiros de bazuca. O caminhão incendiou. Pegamos todas as armas deles e fizemos um pequeno discurso exortando a que lutassem ao lado do povo e não contra ele.

Ocupamos a praça de La Légua. Tomamos um caminhão de bombeiros, ligamos a sirene e passamos de población em población chamando a população a resistir e a defender o governo.

Em La Légua deixamos uma companheira que estava ferida no tornozelo. Ficou com alguns moradores de uma población e se salvou.

Chegamos a Sumar, que era um dos locais de concentração, segundo nosso plano de resistência. Vários companheiros estavam chegando de Tomás Moro. Um deles com uma camioneta cheia de armas.

O companheiro Lozada, da comissão política, dirigiu nossa reorganização. Tínhamos 200 homens armados.

Somos então atacados por um helicóptero Puma do Exército. Ele desce à altura das copas das árvores e começa a nos metralhar. Uns cem companheiros respondem de imediato. O Puma é atingido e afasta-se rapidamente, mortalmente ferido.

Pensei derrubá-lo com um tiro de bazuca ou de M60, mas já não tínhamos essas armas à mão. No meio dessa confusão, veio a frase do Che: “Se a revolução é verdadeira, ou se vence ou se morre”.

Para não sermos um alvo fácil e concentrado, criamos um comando para juntar-se aos trabalhadores de Mademsa-Madeco. Eu fui com esse comando.

No caminho, por La Légua, fomos atacados por unidades de carabineiros. Como a ordem era chegar a Mademsa-Madeco, um grupo ficou combatendo, enquanto outro, cerca de 50 companheiros, rompeu o cerco e seguiu seu caminho.

Chegamos a nosso destino e aí criamos nossa segunda defesa perimetral, com carros, rádio e o controle de vários quarteirões.

Às três da tarde tive uma reunião com o interventor da fábrica, um companheiro socialista. Conseguimos pão e víveres para os combatentes. Fui então informado pela central de rádio que até aquele momento não havia nenhuma comunicação das regionais.

Os militares tinham ocupado todas as rádios.

FICHA TÉCNICA:
Novela de memórias: um pedaço de mim
Autor: Jorge Pinheiro dos Santos
Editora: Eleva Cultural
Acabamento: Brochura
Formato: 16 X 23, 152 páginas
Preço: R$ 28,00

LANÇAMENTO:
31 de maio, às 18h, na Saraiva Mega Store Pátio Paulista
Rua 13 de Maio, 1947 Bela Vista, São Paulo/SP
Tel: (11) 3171.3050
Contato com Layr Cruz. E-mail: elevacultural@elevacultural.com
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Leia, a seguir, a entrevista de Jorge Pinheiro com Omar L. de Barros Filho, editor de ViaPolítica, sobre Novela de memórias: um pedaço de mim, onde o autor detalhadamente discorre sobre o livro e sobre as bases de sua opção religiosa.

VP - Você ainda é jovem. Políticos, jornalistas e escritores, em geral, escrevem suas memórias já tarde, quando o ocaso se aproxima. Por que você está lançando seu livro agora?

Jorge Pinheiro - Obrigado pelo jovem. Tenho 63 anos, saudáveis até agora, mas 63 anos nos levam a pensar no trânsito em direção à eternidade. Donde, começou a contagem regressiva. As idéias do livro partem de dois fatores, o papel da utopia socialista na minha vida e os demônios que infernizaram a minha juventude.

Na verdade, como novela de memórias o livro tem dois personagens: eu mesmo e a utopia socialista. Quando falo utopia não estou menosprezando o sonho do socialismo, mas colocando-o num patamar de realização permanente, histórica e trans-histórica. Ou seja, vejo o caminhar permanente da utopia, sinto o seu cheiro agradável, mas não necessariamente vou vivê-la como desejaria.

E os demônios, seguindo Nietzsche, são os pecados da juventude que se tornam virtude na velhice. São os pesadelos que andam sempre ao lado dos sonhos. Nesse sentido, como qualquer texto biográfico, o meu livro tem função de exorcismo. Exorcizar fantasmas e demônios e ficar com a utopia geradora de novos sonhos.

O livro é a primeira parte de uma trilogia esperada. É a minha história e a história da minha utopia, onde tudo o mais é cenário. É biografia, mas também ficção, pois sonhos e demônios são personificados, interferindo na vida do autor e de seu sonho maior.

VP - Qual o período de sua história pessoal que é abrangido pela obra que em breve será lançada?

Jorge Pinheiro - A história cobre os anos de 1969 a 1973. Ou seja, minha militância no Movimento Nacionalista Revolucionário/MNR, o primeiro exílio, a militância no Chile de Allende, a prisão depois do golpe de Pinochet e a condenação por fuzilamento.

Se levarmos em conta que fui para o paredón para ser fuzilado e hoje posso contar a história para vocês, é fácil entender os demônios da minha história pessoal.

VP - Você sente algum tipo de nostalgia em relação ao período marcado pela ação política de 68, passados 40 anos do ocorrido?

Jorge Pinheiro - Vocês publicaram a coisa de semanas um ótimo artigo sobre Daniel Cohn-Bendit http://www.viapolitica.com.br/artigo_view.php?id_artigo=58, onde ele pede às novas gerações que esqueçam o Maio francês. Eu e minha mulher, Naira Carla Di Giuseppe Pinheiro dos Santos, temos trabalhado bastante sobre esta questão. E, ao contrário de Cohn-Bendit, não negamos a contemporaneidade de 1968. Ao contrário, agradecemos a Deus por aquele kairós, enquanto esforço de ruptura com uma sociedade arcaica e sem sintonia com o novo que se avizinhava, e de construção de um socialismo democrático e revolucionário. Chamar o movimento de 68 de rebeldia juvenil é não entender a riqueza criativa do kairós histórico. É negar as lutas que partiram de estudantes e trabalhadores da França em direção aos EUA, Itália e Alemanha, e jogar no lixo as lutas entre o capital e o trabalho, as guerras do Vietnã, Laos, Camboja e as insurreições populares no Chile, Portugal e Nicarágua.

Não tenho nostalgia, porque não situo minha ação no passado, mas no presente, enquanto ativista político-social que sou. O Maio francês abriu um novo momento na história do planeta e não se limitou à Europa. Espraiou-se pelo mundo. E minha vida política, quer no Brasil, no Chile, na Argentina e mesmo na Europa, esteve correlacionada ao Maio francês. Aprendi desde pequeno que não se cospe no prato em que se come. Creio que cresci em relação à minha ingenuidade militante e juvenil, mas isso não significa negar os momentos nobres e poderosos da minha militância nos anos 60 e 70.

Minha conversão ao cristianismo, que é um ato de fé no sacrifício do Cristo, de forma nenhuma implicou um abandono de minha consciência política. Nós, batistas, consideramos inalienável a liberdade de consciência e acreditamos que cada pessoa é livre perante Deus em todas as questões de consciência.

Nesse sentido, sou um utópico: acredito que devo me posicionar a partir de uma ética da responsabilidade social. Isso implica entender o paradoxo da multicultura relacional brasileira: vivemos num país onde impera a moral autoritária do senhor, da casa grande e da senzala, e a moral libertária da contracultura – a moral do “não existe pecado do lado de baixo do Equador/ vamos fazer um pecado rasgado, suado, a todo vapor”.

Por isso, qualquer atuação no campo social implica compreender esta realidade. Mas, consciente de que as sociedades devem se organizar através de relações democráticas, considero que a igreja na América Latina tem como desafio embasar seu compromisso no imperativo protestante: liberdade, conhecimento e justiça.

Tal processo se expandirá conforme cresça a consciência de que temos a tarefa de transformar o Brasil num país onde todos possam acessar condições dignas de vida e justiça social. E, logicamente, todo o continente.

VP- Como ocorreu o processo vivido por você -- um militante marxista radical considerado perigoso pela ditadura militar brasileira -- de rompimento com sua política e o posterior encontro com o cristianismo, a Igreja Batista, a teologia? Como você lida com essa questão hoje?

Jorge Pinheiro – Jesus proclamou a chegada do Reino de Deus, que é um reino de justiça, paz e alegria. É bem verdade que, muitas vezes, o cristianismo tem deixado a proclamação do Reino de Deus de lado e procurado viver sob a tutela do reino deste mundo. Mas, só para mostrar o envolvimento cristão protestante na transformação do mundo, vou me remeter à história da militância cristã na Inglaterra do século 18.

William Wilberforce e William Pitt são nomes conhecidos na Inglaterra, mas não entre nós. Amigos desde a universidade, esses dois homens, no século 18, chegaram ao Parlamento no início dos seus vinte anos. Pitt elegeu-se primeiro-ministro e ganhou o apelido de "o jovem", para diferenciá-lo do pai, que também ocupara o cargo. E resolveu implantar um projeto político audacioso: acabar com o tráfico de escravos, liderado pela Inglaterra. Projeto difícil, pois a maioria dos parlamentares estava direta ou indiretamente ligada ao tráfico.

Pitt convocou Wilberforce para ajudá-lo na tarefa. E foi assim que dois movimentos marcaram a Inglaterra: a campanha contra a escravidão, que começou em 1789, com um discurso de William Wilberforce na Câmara dos Comuns, e as campanhas pelas reformas trabalhistas, que desembocaram no movimento social cristão. Em 23 de fevereiro de 1807, o tráfico de escravos foi interrompido, graças à intensa militância cristã e política de Wilberforce.

A partir desse momento, as campanhas abolicionistas foram lideradas por outro ativista, Thomas Fowell Buxton. Ambos, Wilberforce e Buxton, pertenciam a um pequeno grupo protestante surgido na paróquia de Clapham, vilarejo distante oito quilômetros de Londres. Assim, a comunidade de Clapham, aliada a grupos não-conformistas, e através da publicação de literatura, realização de palestras e mobilizações de rua, foi responsável por algumas das manifestações sociais mais importantes da Inglaterra. Em 25 de julho de 1833, o Ato de Emancipação libertou os escravos em todo o império britânico.

O significado dessa ação repercutiu em todo o mundo, inclusive no Império brasileiro, estrategicamente ligado à Inglaterra, através de três intelectuais: Joaquim Nabuco, Rui Barbosa e Luiz Gama. Nabuco, que era diplomata, se inspirou no cristianismo militante de Wilberforce para organizar o movimento que levou a monarquia brasileira a aprovar a Lei do Ventre Livre. Somada à pressão britânica, a militância de Nabuco contribuiu para determinar a abolição da escravatura, em 1888.

Junto com as campanhas abolicionistas, as reformas trabalhistas mobilizaram outros intelectuais protestantes vindos do anglicanismo, como John Malcolm Ludlow (1821-1891), Charles Kingsley (1819-1875) e Thomas Hughes (1822-1896), que lutaram pelo fim da escravidão, contra o trabalho infantil nas fábricas e pela jornada de dez horas. Essas mobilizações levaram a uma ampla reforma social e ao surgimento do movimento social cristão inglês.

Assim, os protestantes deram início ao movimento social inglês. Homens como Ludlow, Kingsley, Maurice e Hughes criaram o socialismo cristão na Inglaterra. Com plena consciência do que estava fazendo, Maurice afirmou “a necessidade de uma reforma teológica inglesa, como meio de evitar uma revolução política e de trazer o que de bom existe nas revoluções estrangeiras, tem estado cada vez mais impresso no meu pensamento”.

O movimento inglês repercutiu com força nos Estados Unidos. E, apesar da visão escravista de muitos protestantes estadunidenses, como Richard Furman, líder batista da Carolina do Sul, que, de certa forma, traduzia o sentimento generalizado entre os grandes fazendeiros sulistas, no norte surgiu um forte movimento protestante contra a escravidão. Seu primeiro grande ativista foi Charles G. Finney, seguido por abolicionistas como Theodore Weld e Lymann Beecher.

Um romance marcará a campanha abolicionista e entrará para a história da literatura mundial: “A cabana do pai Tomás”, de Harriet Stowe. Numa leitura escatológica milenarista, Harriet Stowe considerava que a escravidão não era apenas um pecado do Sul, mas que a culpa era nacional e, por isso, o juízo seria nacional.

No livro, atacava a consciência nacional escravista na esperança de que uma purificação da alma dos Estados Unidos livrasse o corpo político da vingança divina. É interessante que o argumento de Wilberforce, exposto em suas campanhas, sobre a inviolabilidade do conceito de que todos os homens são iguais, foi usado pelo presidente estadunidense Abraham Lincoln no ato de 1863, que aboliu a escravidão nos Estados Unidos. Lincoln, cujo mandato se desenrolou em meio à Guerra de Secessão, compartilhava a visão de Wilberforce de que era uma imoralidade possuir um outro ser humano e citava o inglês em seus discursos.

Com a guerra, veio a vitória do norte e a abolição da escravatura. Finda a escravidão, a discussão sobre a industrialização do país, os danos humanos, misérias e exclusão que produzia entraram na ordem do dia. Surgiram assim os “protestantes públicos” que, ao contrário dos “privatistas”, falavam de cristianismo social, evangelho social, serviço social. Expoentes desse pensamento foram Washington Gladden, ministro congregacional de Ohio, o escritor Charles Sheldon, que produziu uma obra até hoje famosa, “Em Seus Passos Que Faria Jesus?”, e o pastor batista Walter Rauschenbusch.

Rauschenbusch (1861-1918) era de origem alemã. Levantou a questão do evangelho social, a partir de uma leitura que combinava a doutrina bíblica da responsabilidade social e os socialistas utópicos. Defendeu uma democracia econômica e política e propôs uma atuação através dos sindicatos.

“Nossa economia política tem sido por muito tempo o oráculo de um deus falso. Ensinaram-nos a ver as questões econômicas do ponto da vista dos bens e não do homem. Disseram-nos como a riqueza é produzida e dividida e consumida pelo homem, e não como a vida e o desenvolvimento do homem podem melhorar e serem promovidos pela riqueza material. É significativo que a discussão do consumo da riqueza esteja negligenciada na economia política, contudo a questão humana é a mais importante de todas. A teologia deve ser cristocêntrica, mas a economia política deve tornar-se antropocêntrica. O homem é cristianizado quando põe Deus acima de si próprio, a economia política será cristianizada quando colocar o homem acima da riqueza. É isso que uma economia política socialista faz”, afirmou em “Christianity and the social crisis”.

No mesmo livro, dizia que “nada dará a classe trabalhadora uma compreensão real de seu status de classe e de seu objetivo final do que a luta permanente para conquistar suas reivindicações mínimas e para eliminar as pressões reacionárias contra seus sindicatos. Nós partimos do princípio de que uma organização fraternal da sociedade não terá força se for apoiada apenas por idealistas. Ela (a organização fraternal da sociedade) necessita da sustentação firme da classe trabalhadora, cujo futuro econômico depende do sucesso desse ideal. A classe trabalhadora industrial é, consciente ou inconscientemente, a força para a realização desse princípio. Assim, aqueles que desejam a vitória, desde um ponto de vista religioso, terão que fazer uma aliança com a classe trabalhadora. Mas o princípio protestante da liberdade religiosa e o princípio democrático da liberdade política levam à vitória através da aliança da classe média, que também deseja a conquista do poder, com a classe trabalhadora; dessa maneira, o novo princípio cristão, que busca uma organização fraternal da sociedade, deve aliar-se para a conquista que ambos querem”.

Acho que estou em boa companhia, principalmente quando me lembro do companheiro Martin Luther King Jr., pastor batista, e um dos maiores militantes da causa social em todos os tempos.

VP - Como essa crise e a superação dela aparecem no livro? A revolução e Cristo ainda caminham juntos na América Latina? Por quê?

Jorge Pinheiro – Hoje, na América Latina, muitos intelectuais, pastores e teólogos protestantes estão organizados ao redor de projetos político-sociais. Mas, logicamente, a preocupação primeira das igrejas protestantes é com a vida espiritual das pessoas e sua renovação em Cristo. Hoje, não poucos evangélicos atuam inspirados na fé cristã em movimentos populares, sindicatos, partidos políticos e ministérios de ação social de suas igrejas. E, em relação ao nosso país, atuar politicamente já faz parte da vida dos protestantes brasileiros.
Em termos de organização, vou falar de dois movimentos que, embora novos, têm fermentado positivamente o solo militante evangélico. O primeiro é o movimento da Missão Integral, que procura envolver as igrejas locais com o compromisso social. Na visão da Missão Integral, da qual faço parte e sou um dentre muitos teóricos, a proclamação do Evangelho tem conseqüências sociais quando olha o ser humano como totalidade.

Assim, a teologia da Missão Integral busca a justiça social porque entende a fé como intervenção política, material e espiritual, e acredita que a transformação das pessoas e as mudanças estruturais estão correlacionadas.

E porque acreditamos que o ser humano é a imagem de Deus, a Missão Integral é uma teologia para aqueles que carecem de bens e possibilidades, mas que, como os demais, são imagem de Deus. Os despossuídos de bens e possibilidades têm conhecimento, habilidades e recursos. Tratá-los com respeito significa propiciar condições para que sejam arquitetos de mudança em suas comunidades, ao invés de impor soluções. Trabalhar com os despossuídos e expropriados envolve a construção de relações que conduzem a uma mudança mútua.

E, para a Missão Integral, quem pode e deve atuar assim são as igrejas locais. O futuro da missão integral se define, pois, em termos de capacitar as igrejas locais para que transformem as comunidades das quais fazem parte. As igrejas, como comunidades de cuidado e inclusividade, estão no coração do que significa fazer missão. As pessoas são, em particular, atraídas à comunidade cristã antes de serem atraídas pela mensagem cristã.

Esse jeito de produzir inclusão social nasce de baixo, nasce nas igrejas, traduz uma teologia do Reino de Deus, comunitária, a experiência de caminhar com as comunidades. Olhando assim, a igreja não é meramente uma instituição, mas comunidade na qual se concretizam os valores do Reino de Deus.

A participação dos despossuídos e expropriados na vida da igreja leva a encontrar novas maneiras de ser igreja no contexto da cultura brasileira. Dessa maneira, a Missão Integral, que hoje envolve centenas de igrejas evangélicas brasileiras, é uma teologia social. Tal atividade se amplia para incluir avanços até a transformação de valores, a valorização das comunidades e a cooperação em questões de justiça. Em sua presença entre os despossuídos e expropriados, a igreja está numa posição singular para restaurar a dignidade das pessoas, apresentando valores que produzem recursos e criam redes de solidariedade.

Mas os problemas continuam presentes, por isso toda ação de transformação é permanente. Temos problemas políticos e sociais, como pobreza, violência, corrupção. Má qualidade dos serviços públicos nas áreas de educação e saúde, agressões contra o meio ambiente. Por isso, num momento em que a visibilidade e o reconhecimento da presença protestante reclamam expressões políticas de responsabilidade e serviço, nós, ou seja, um grupo de evangélicos de igrejas diferentes e de diferentes partes do Brasil, estamos atuando na construção de um movimento chamado Evangélicos pela Justiça.

Bem, você deve estar pensando, mas por que dois movimentos: Missão Integral e Evangélicos pela Justiça? Considero que a Missão Integral, que hoje já é estudada como matéria em muitas faculdades de teologia, visa atuar através das igrejas, sugerindo programas e propostas para estas atuarem nos lugares onde estão implantadas. Aqui, então, o agente é a igreja local: agente de transformação social.

Já no caso do movimento dos Evangélicos pela Justiça desejamos ter neste primeiro momento uma atuação conscientizadora sobre os formadores de opinião do mundo protestante. Ao mesmo tempo, temos uma preocupação definitivamente política, pois queremos uma alter sociedade, que supere o capitalismo e suas orientações ideológicas, o neoliberalismo e as chamadas terceiras vias. Trata-se de meta histórica e estratégica, que necessita de um programa de transição, e que envolverá contribuições de dentro e de fora do campo protestante. Mas, acima de tudo, não é um projeto que envolva a criação de um poder evangélico ou apoiado na religião.

Por isso, nós, os Evangélicos pela Justiça, rejeitamos os modelos de fusão entre instituições religiosas e poder político. Não porque consideramos a política indigna ou contrária à mensagem do Reino de Deus, mas porque acreditamos que as instituições políticas de uma sociedade democrática devam ser construções históricas, pactuadas entre pessoas de qualquer fé ou de nenhuma fé. E que o papel dos cristãos é testemunhar de sua fé também nas questões sociais e políticas.

Assim, a luta contra a globalização excludente e suas formas de legitimação ideológicas, seculares e religiosas, conservadoras ou progressistas, é um projeto que exige estratégia histórica, que vai além das confissões religiosas, remetendo à aspiração de uma humanidade livre e democrática. Mas é um projeto legítimo para quem vê a fé cristã como chamado ao compromisso com a libertação de todas as formas de escravidão, opressão e discriminação, que negam nos seres humanos a imagem de Deus e nos impedem de um encontro com nosso Criador. É isso aí.

jeudi 8 mai 2008

APOLOGÉTICA -- TEMOS A MENTE DE CRISTO

Textos: Jó 42:1-6 e I Coríntios 2: 6-16

O que é conhecimento?

1. A centralidade da revelação
Jesus Cristo é a centralidade da revelação. Nós cristãos temos quatro doutrinas básicas: Criação (criados para ser integralmente pessoas: pensam, têm vontade própria, afetividade, personalidade, atuam sobre a realidade, têm experiências e constróem o mundo e seus relacionamentos), revelação (a natureza visualizada e vivida e as Escrituras verbalizadas ou vivendo os pensamentos de Deus), redenção (o Verbo se fez carne e pagou o preço) e juízo (julgados por nossa obediência).

Mas aqui, vamos nos ater à redenção, já que esta produz salvação eterna, reconstitui a imagem divina no homem (Efésios 3.14-19) e exige a proclamação da boa nova. Por isso, está intimamente ligada à apologética e a discusão sobre a fé. A redenção é o momento maior da soberania de Deus em relação as suas criaturas. E também a loucura da pregação porque bate de frente com a auto-suficiência humana.

2. A mente vazia de Deus e a mente cristã

A mente vazia ou falta de compreensão da centralidade da redenção leva ao ritualismo, à violência social e, como extremo ao ateísmo. Diante disso, devemos entender que todos os seres humanos somos confrontados por um desafio ético: pensar e agir conforme o conhecimento que temos.

A mente cristã é uma mente adoradora, que reconhece Deus como Senhor da natureza, Senhor das nações, Senhor que se revela através de atos concretos, Senhor que cria e mantém o universo, Senhor que redime e preserva seu povo. Seu ato mais poderoso é o nascimento, a vida, a morte e a ressurreição de Jesus Cristo. É Deus presente, Espírito Santo.

Mas mente cristã, que é em primeiro lugar, adoradora, tem por base e fundamente a fé integral. Muita gente considera o conhecimento como algo meramente racional. Teologicamente, conhecimento é fé (Hb 11.1), assim aqueles que consideram o conhecimento como processo exclusivamente racional, também vêem a fé como puramente racional. Excluem assim a vontade, o afeto, a personalidade, a ação humana, as obras e as experiências de sua compreensão de fé. Tal abordagem nos levam a fazer três perguntas, que elucidarão a relação entre revelação e conhecimento.

Qual é a natureza da fé?
A fé vem antes ou depois do arrependimento?
A fé vem antes ou depois da regeneração?


Respondendo ao primeiro questionamento, consideramos que a fé depende de uma opção da pessoa e que é um estado do coração. Vejamos porque: Tomando por base alguns textos (Rm 10.9-10; 1 Jo 5.1; Jo 5. 38-40, 42, 44; 2 Ts 2.10; At 8. 37) podemos dizer que a fé (1) é um dever e, portanto, a vontade está incluída; (2) que é uma graça entregue pelo Espírito Santo (1 Co 13), e sendo graça não está limitada ao intelecto; (3) que dá glória a Deus e não se dá glória a Deus só com a razão, já que envolve toda a personalidade humana; (4) expressa-se em termos de afeto (2Ts 2.10). Ora receber inclui afeto, implica assim em engajamento de afetividades (Rm 10.9-10); (5) a falta de fé está ligada a uma disposição moral (Jo5; Jo 8.33+; Hb 3; Ef 4.17). A incredulidade é um estado do coração, não é um erro enquanto abordagem meramente racional.

Em relação à segunda questão, consideramos que se não houver arrependimento não há fé verdadeira. João, o batista, pregava o batismo do arrependimento. Ver também o chamado de Jesus em Mc 1.15; Lc 24; e a experiência da igreja primitiva em At 2.37-38; 3.19; 5.31; 20 e 26.18.

Quanto ao terceiro questionamento consideramos que sem regeneração não há fé. Os textos que nos levam a pensar assim são 1Co 2.10-16, 1Co 12.3; a experiência de Nicodemos (Jo 3) e Rm 8.7.

Assim, a compreensão da fé ou do conhecimento da revelação como opção do coração, arrependimento e regeneração elimina a idéia de que podemos conhecer exclusivamente através de processos racionais. Por isso, dizemos que o processo de conhecimento da revelação está ligado à obediência, que em última instância é disposição positiva do coração, enquanto totalidade da personalidade humana, arrependimento e regeneração de vida (vide o exemplo de Abraão).

A fé e o conhecimento teológico têm por base o caráter e as promessas de Deus. É uma confiança integral, que nasce de uma profunda reflexão e leva à constatação de que Deus é digno de crédito. Mas, de maneira nenhuma, lança fora a vontade, a afetividade, a personalidade, as ações, obras e experiências humanas enquanto componentes e realidades da fé.

Tal fé que nasce da adoração leva à busca da santidade. Consiste em buscar uma vida digna, que agrade a Deus. Não basta saber o que devemos ser, temos que resolver, em nossas mentes, atingir o objetivo. Por isso, podemos dizer que a batalha é ganha nas mentes.

Tudo isso solidamente soldado, amarrado pelo amor.

dimanche 4 mai 2008

I Macabeus capítulos 1 e 2

Os dois livros de Macabeus fazem parte da História de Israel e contam a heróica resistência do povo judeu diante da invasão do império selêucida. Por sua importância histórica, estes dois livros devem ser lidos pelos cristãos. Por isso, nosso blog publica os dois primeiros capítulos de I Macabeus. Uma boa leitura para todos. Jorge Pinheiro


I Macabeus, 1

1. Ora, aconteceu que, já senhor da Grécia, Alexandre, filho de Filipe da Macedônia, oriundo da terra de Cetim, derrotou também Dario, rei dos persas e dos medos e reinou em seu lugar. 2. Empreendeu inúmeras guerras, apoderou-se de muitas cidades e matou muitos reis. 3. Avançou até os confins da terra e apoderou-se das riquezas de vários povos, e diante dele silenciou a terra. Tornando-se altivo, seu coração ensoberbeceu-se. 4. Reuniu um imenso exército, 5. impôs seu poderio aos países, às nações e reis, e todos se tornaram seus tributários. 6. Enfim, adoeceu e viu que a morte se aproximava. 7. Convocou então os mais considerados dentre os seus cortesãos, companheiros desde sua juventude, e, ainda em vida, repartiu entre eles o império. 8. Alexandre havia reinado doze anos ao morrer. 9. Seus familiares receberam cada qual seu próprio reino. 10. Puseram todos o diadema depois de sua morte, e, após eles, seus filhos durante muitos anos; e males em quantidade multiplicaram-se sobre a terra. 11. Desses reis originou-se uma raiz de pecado: Antíoco Epífanes, filho do rei Antíoco, que havia estado em Roma, como refém, e que reinou no ano cento e trinta e sete do reino dos gregos. 12. Nessa época saíram também de Israel uns filhos perversos que seduziram a muitos outros, dizendo: Vamos e façamos alianças com os povos que nos cercam, porque, desde que nós nos separamos deles, caímos em infortúnios sem conta. 13. Semelhante linguagem pareceu-lhes boa, 14. e houve entre o povo quem se apressasse a ir ter com o rei, o qual concedeu a licença de adotarem os costumes pagãos. 15. Edificaram em Jerusalém um ginásio como os gentios, dissimularam os sinais da circuncisão, afastaram-se da aliança com Deus, para se unirem aos estrangeiros e venderam-se ao pecado. 16. Quando seu reino lhe pareceu bem consolidado, concebeu Antíoco o desejo de possuir o Egito, a fim de reinar sobre dois reinos. 17. Entrou, pois, no Egito com um poderoso exército, com carros, elefantes, cavalos e uma numerosa esquadra. 18. Investiu contra Ptolomeu, rei do Egito, o qual, tomado de pânico, fugiu. Foram muitos os que sucumbiram sob seus golpes. 19. Tornou-se ele senhor das fortalezas do Egito, e apoderou-se das riquezas do país. 20. Após ter derrotado o Egito, pelo ano cento e quarenta e três, regressou Antíoco e atacou Israel, subindo a Jerusalém com um forte exército. 21. Penetrou cheio de orgulho no santuário, tomou o altar de ouro, o candelabro das luzes com todos os seus pertences, 22. a mesa da proposição, os vasos, as alfaias, os turíbulos de ouro, o véu, as coroas, os ornamentos de ouro da fachada, e arrancou as embutiduras. 23. Tomou a prata, o ouro, os vasos preciosos e os tesouros ocultos que encontrou. 24. Arrebatando tudo consigo, regressou à sua terra, após massacrar muitos judeus e pronunciar palavras injuriosas 25. Foi isso um motivo de desolação em extremo para todo o Israel. 26. Príncipes e anciãos gemeram, jovens e moças perderam sua alegria e a beleza das mulheres empanou-se. 27. O recém-casado lamentava-se, e a esposa chorava no leito nupcial. 28. A própria terra tremia por todos os seus habitantes e a casa de Jacó cobriu-se de vergonha. 29. Dois anos após, Antíoco enviou um oficial a cobrar o tributo nas cidades de Judá. Chegou ele a Jerusalém com uma numerosa tropa; 30. dirigiu-se aos habitantes com palavras pacíficas, mas astuciosas, nas quais acreditaram; em seguida lançou-se de improviso sobre a cidade, pilhou-a seriamente e matou muita gente. 31. Saqueou-a, incendiou-a, destruiu as casas e os muros em derredor. 32. Seus soldados conduziram ao cativeiro as mulheres e as crianças e apoderaram-se dos rebanhos. 33. Cercaram a Cidade de Davi com uma grande e sólida muralha, com possantes torres, tornando-se assim ela sua fortaleza. 34. Instalaram ali uma guarnição brutal de gente sem leis, fortificaram-se aí; 35. e ajuntaram armas e provisões. Reunindo todos os espólios do saque de Jerusalém, ali os acumularam. Constituíram desse modo uma grande ameaça. 36. Serviram de cilada para o templo, e um inimigo constantemente incitado contra o povo de Israel, 37. derramando sangue inocente ao redor do templo e profanando o santuário. 38. Por causa deles, os habitantes de Jerusalém fugiram, e só ficaram lá os estrangeiros. Jerusalém tornou-se estranha a seus próprios filhos e estes a abandonaram. 39. Seu templo ficou desolado como um deserto, seus dias de festa se transformaram em dias de luto, seus sábados, em dias de vergonha, e sua glória em desonra. 40. Quanto fora ela honrada, agora foi desprezada, e sua exaltação converteu-se em tormento. 41. Então o rei Antíoco publicou para todo o reino um edito, prescrevendo que todos os povos formassem um único povo e 42. que abandonassem suas leis particulares. Todos os gentios se conformaram com essa ordem do rei, e 43. muitos de Israel adotaram a sua religião, sacrificando aos ídolos e violando o sábado. 44. Por intermédio de mensageiros, o rei enviou, a Jerusalém e às cidades de Judá, cartas prescrevendo que aceitassem os costumes dos outros povos da terra, 45. suspendessem os holocaustos, os sacrifícios e as libações no templo, violassem os sábados e as festas, 46. profanassem o santuário e os santos, 47. erigissem altares, templos e ídolos, sacrificassem porcos e animais imundos, 48. deixassem seus filhos incircuncidados e maculassem suas almas com toda sorte de impurezas e abominações, de maneira 49. a obrigarem-nos a esquecer a lei e a transgredir as prescrições. 50. Todo aquele que não obedecesse à ordem do rei seria morto. 51. Foi nesse teor que o rei escreveu a todo o seu reino; nomeou comissários para vigiarem o cumprimento de sua vontade pelo povo e coagirem as cidades de Judá, uma por uma, a sacrificar. 52. Houve muitos dentre o povo que colaboraram com eles e abandonaram a lei. Fizeram muito mal no país, e 53. constrangeram os israelitas a se refugiarem em asilos e refúgios ocultos. 54. No dia quinze do mês de Casleu, do ano cento e quarenta e cinco, edificaram a abominação da desolação por sobre o altar e construíram altares em todas as cidades circunvizinhas de Judá. 55. Ofereciam sacrifícios diante das portas das casas e nas praças públicas, 56. rasgavam e queimavam todos os livros da lei que achavam; 57. em toda parte, todo aquele em poder do qual se achava um livro do testamento, ou todo aquele que mostrasse gosto pela lei, morreria por ordem do rei. 58. Com esse poder que tinham, tratavam assim, cada mês, os judeus que eles encontravam nas cidades 59. e, no dia vinte e cinco do mês, sacrificavam no altar, que sobressaía ao altar do templo. 60. As mulheres, que levavam seus filhos a circuncidar, eram mortas conforme a ordem do rei, 61. com os filhos suspensos aos seus pescoços. Massacravam-se também seus próximos e os que tinham feito a circuncisão. 62. Numerosos foram os israelitas que tomaram a firme resolução de não comer nada que fosse impuro, e preferiram a morte antes que se manchar com alimentos; 63. não quiseram violar a santa lei e foram trucidados. 64. Caiu assim sobre Israel uma imensa cólera.

I Macabeus, 2

1. Foi nessa época que se levantou Matatias, filho de João, filho de Simeão, sacerdote da família de Joarib, que veio de Jerusalém se estabelecer em Modin. 2. Tinha ele cinco filhos: João, apelidado Gadis, 3. Simão, alcunhado Tasi, 4. Judas, chamado Macabeu, 5. Eleazar, cognominado Avarã, e Jônatas, chamado Afos. 6. Vendo as abominações praticadas em Judá e em Jerusalém, exclamou: Ai de mim, por que nasci eu, para ver a ruína de meu povo e da cidade santa, 7. e ficar sem fazer nada, enquanto ela é entregue ao poder de seus inimigos 8. e seu centro religioso abandonado aos estrangeiros? Seu templo tornou-se como um homem desonrado 9. e os vasos sagrados, que eram o motivo de seu orgulho, levados como para um cativeiro; seus filhos foram trucidados nas ruas e os seus jovens sucumbiram ao gládio do inimigo. 10. Que povo há que não tenha herdado de seus atributos reais, que não se tenha apoderado dos seus despojos? 11. Toda a sua glória desapareceu e, de livre que era, tornou-se escrava. 12. Eis que tudo o que tínhamos de sagrado, de belo, de glorioso, foi assolado e profanado pelas nações. 13. Por que viver ainda? 14. Matatias e seus filhos rasgaram suas vestes, cobriram-se de sacos, e choravam amargamente. 15. Sobrevieram enviados do rei a Modin, para impor a apostasia e obrigar a sacrificar. 16. Muitos dos israelitas uniram-se a eles, mas Matatias e seus filhos permaneceram firmes. 17. Em resposta disseram-lhe os que vinham da parte do rei: Possuis nesta cidade notável influência e consideração, teus irmãos e teus filhos te dão autoridade. 18. Vem, pois, como primeiro, executar a ordem do rei, como o fizeram todas as nações, os habitantes de Judá e os que ficaram em Jerusalém. Serás contado, tu e teus filhos, entre os amigos do rei; a ti e aos teus filhos o rei vos honrará, cumulando-vos de prata, de ouro e de presentes. 19. Matatias respondeu-lhes: Ainda mesmo que todas as nações que se acham no reino do rei o escutassem, de modo que todos renegassem a fé de seus pais e aquiescessem às suas ordens, 20. eu, meus filhos e meus irmãos, perseveraremos na Aliança concluída por nossos antepassados. 21. Que Deus nos preserve de abandonar a lei e os mandamentos! 22. Não obedeceremos a essas ordens do rei e não nos desviaremos de nossa religião, nem para a direita, nem para a esquerda. 23. Mal acabara de falar, eis que um judeu se adiantou para sacrificar no altar de Modin, à vista de todos, conforme as ordens do rei. 24. Viu-o Matatias e, no ardor de seu zelo, sentiu estremecerem-se suas entranhas. Num ímpeto de justa cólera arrojou-se e matou o homem no altar. 25. Matou ao mesmo tempo o oficial incumbido da ordem de sacrificar e demoliu o altar. 26. Com semelhante gesto mostrou ele seu amor pela lei, como agiu Finéias a respeito de Zamri, filho de Salum. 27. Em altos brados Matatias elevou a voz então na cidade: Quem for fiel à lei e permanecer firme na Aliança, saia e siga-me. 28. Assim, com seus filhos, fugiu em direção às montanhas, abandonando todos os seus bens na cidade. 29. Então, uma grande parte dos que procuravam a lei e a justiça, encaminhou-se para o deserto. 30. Ali refugiaram-se, com seus filhos, suas mulheres e seus rebanhos, porque a perseguição se encarniçava contra eles. 31. Contaram aos oficiais do rei e às forças acantonadas em Jerusalém, na cidadela de Davi, que certo número de judeus, culpáveis de terem transgredido a ordem real, havia descido ao deserto, para ali se ocultar e que muitos se haviam precipitado em seu seguimento. 32. Os sírios arremessaram-se ao encalço deles e os alcançaram, depois se prepararam para agredi-los no dia de sábado. 33. Isso basta, agora, gritaram-lhes eles, saí, obedecei à ordem do rei, e vivereis. 34. Não sairemos, replicaram os judeus, e nem obedeceremos ao rei, com a profanação do dia de sábado. 35. Instantaneamente os sírios travaram combate contra eles; 36. mas eles não responderam, não atiraram uma pedra e não barricaram seu refúgio. 37. Que morramos todos inocentes! O céu e a terra nos servirão de testemunha, de que nos matais injustamente. 38. E foi assim que os inimigos se lançaram sobre eles em dia de sábado, morrendo eles, suas mulheres e seus filhos, com seu gado, em número de mil. 39. Matatias e seus amigos o souberam e comoveram-se muito; 40. mas disseram uns aos outros: Se todos nós agirmos como nossos irmãos, e se não pelejarmos contra os estrangeiros para pormos a salvo nossas vidas e nossas leis, exterminar-nos-ão bem depressa da terra. 41. Tomaram, pois, naquele dia a seguinte resolução: Mesmo que nos ataquem em dia de sábado, pugnaremos contra eles e não nos deixaremos matar a todos nós, como o fizeram nossos irmãos no seu esconderijo. 42. Então se ajuntou a eles o grupo dos judeus assideus, particularmente valentes em Israel, apegados todos à lei; 43. e todos os que fugiam das perseguições se ajuntaram do mesmo modo a eles e os reforçaram. 44. Formaram, pois, um exército e na sua ira e indignação massacraram certo número de prevaricadores e de traidores da lei; os outros procuraram refúgio junto aos estrangeiros. 45. Assim Matatias e seus amigos percorreram o país, destruíram os altares e 46. circuncidaram à força as crianças, ainda incircuncisas nas fronteiras de Israel 47. e perseguiram os sírios orgulhosos. Sua empresa alcançou bom êxito. 48. Arrancaram a lei do poder dos gentios e dos reis, e não permitiram que prevalecesse o mal. 49. Ora, chegou para Matatias o dia de sua morte e ele disse a seus filhos: O que domina até este momento é o orgulho, o ódio, a desordem e a cólera. 50. Sede, pois, agora, meus filhos, os defensores da lei e dai vossa vida pela Aliança de vossos pais. 51. Recordai-vos dos feitos de vossos maiores em seu tempo, e merecereis uma grande glória e um nome eterno. 52. Porventura, não foi na prova que Abraão foi achado fiel? E não lhe foi isso imputado em justiça? 53. José observou os mandamentos na sua desgraça e veio a ser o senhor do Egito. 54. Finéias, nosso antepassado, por ter sido inflamado de zelo, recebeu a promessa de um perpétuo sacerdócio. 55. Josué, cumprindo a palavra de Deus, veio a ser juiz em Israel. 56. Caleb deu testemunho na assembléia e herdou a terra. 57. Por todos os séculos, em vista de sua piedade, mereceu Davi o trono real. 58. Porque ardia em zelo pela lei, Elias foi arrebatado ao céu. 59. Ananias, Azarias e Mizael foram salvos das chamas por terem tido fé. 60. Daniel, na sua retidão, foi livre da boca dos leões. 61. Recordai-vos assim, de geração em geração, de que todos os que esperam em Deus não desfalecem. 62. Não receeis as ameaças do pecador, porque sua glória chega à lama e aos vermes:63. hoje ele se eleva e amanhã desaparece, porque tornará ao pó, e seus planos são frustrados. 64. Quanto a vós, meus filhos, sede corajosos e destemidos em observar a lei, porque por ela chegareis à glória. 65. Aqui tendes Simão, irmão vosso, eu sei que ele é homem de conselho, ouvi-o sempre e será para vós um pai. 66. Judas Macabeu, bravo desde a juventude: será o general do exército e dirigirá a guerra contra os gentios. 67. Atraireis a vós todos os que observam a lei e vingareis vosso povo. 68. Pagai aos gentios o que nos fizeram e atendei aos preceitos da lei. 69. Depois disso abençoou-os e foi unir-se aos seus pais. 70. Morreu no ano cento e quarenta e seis. Seus filhos sepultaram-no em Modin, entre as sepulturas de seus antepassados, e todo o Israel o chorou dolorosamente.

vendredi 4 avril 2008

Os deuterocanônicos e a Igreja cristã

O que são os livros deuterocanônicos?

O termo deuterocanônico é formado pela raiz grega deutero (segundo) e canônico (que faz parte do Cânon, isto é, do conjunto de livros considerados inspirados e normativos por uma religião ou igreja). Assim, o termo é aplicado a livros e partes de livros bíblicos que só num segundo tempo foram considerados como canônicos.

Eles têm importância teológica?
O adjetivo deuterocanônico é aplicado a um número de textos pelos cristãos que consideram que tais textos são inspirados e fazem parte integrante da Bíblia. Sendo também a terminologia teológica aplicada a esse conjunto de livros.

O fato de setores do cristianismo não os considerarem inspirados, não caracteriza a desvalorização desses livros, pois são considerados patrimônios históricos da fé: refletem e fizeram parte das crenças cristãs ao longo da História, sendo portanto de grande valor literário e religioso. Lutero reconheceu a importância dos mesmos para a formação cristã e incluiu na sua tradução da Bíblia para o alemão estes livros como apêndice. Além da Igreja católica apostólica romana, outras igrejas utilizam-se dos livros deuterocanónicos em suas Bíblias, como as Igrejas ortodoxas (copta, siríaca, grega e russa), anglicana e maronita.

Quais são os livros deuterocanônicos
São deuterocanônicos os seguintes livros bíblicos: Tobias, Judite, I e II Macabeus, Sabedoria, Eclesiástico, também chamado Ben Sirah, e Baruque. Fora os livros deuterocanônicos podemos também encontrar fragmentos deuterocanônicos dentro de livros canônicos como: adições em Ester e adições em Daniel nomeadamente os episódios da Casta Susana e de Bel e o dragão.

A origem dos deuterocanônicos
Os livros deuterocanônicos foram escritos no período intertestamentário, época que segundo os Evangelhos a revelação do Antigo Testamento ainda se fazia presente, culminando com João Batista (cf. Mt 11.12; Lc 16.16).

Os textos deuterocanônicos, acima citados, chegaram até nós apenas em grego (alguns escritos originalmente nessa língua, outros traduzidos de versão hebraica que se perdeu), fazendo parte da chamada Bíblia dos Setenta, ou Septuaginta, a tradução da Bíblia em grego, feita por volta do século III a.C, para uso dos judeus da diáspora, e adoptada pelos cristãos desde o início como seu texto bíblico de referência. Tais textos não se encontram, pois, na Bíblia hebraica ou Tanach.

Num famoso encontro de rabinos judeus, o chamado Concílio de Jâmnia, realizado nos finais do século I d.C, destinado a procurar um rumo para o judaísmo, após a destruição do Templo de Jerusalém, no ano 70 d.C, os participantes decidiram considerar como textos canônicos do judaísmo apenas os que existiam em língua hebraica e que remontassem ao tempo do profeta Esdras.

A crítica moderna considera que alguns livros do cânon judaico são posteriores ao tempo de Esdras, como é o caso do Livro de Daniel, e que os fariseus não dispunham de condições científicas para datar com precisao um texto, e nem mesmo para atribuir a ela um autor. De qualquer forma, os critérios por eles adotados excluíram os livros deuterocanônicos do cânon judaico.

O uso dos deuterocanônicos pela Igreja
Estes livros já eram conhecidos pelos cristãos, que os citavam e utilizavam. Encontramos citações nas obras de Ireneu, Justino, Agostinho, Jerônimo, Basílio Magno e Ambrósio. Assim, foram considerados inspirados por Ireneu, Justino, Agostinho, Cirilo e Cipriano. Outros, porém, os consideraram eclesiásticos: não canônicos, porém não contrários à fé. Foi o caso de Melitão, Rufino e Atanásio.

Jerônimo inicialmente negou a canonicidade dos deuterocanônicos. Porém, os estudiosos encontraram uma mudança posterior de sua opinião em suas cartas escritas a Rufino e a Paulino, bispo de Nola. Embora existisse discordância nas opiniões dos Pais da Igreja, esta discordância não influenciou o parecer comum da Igreja dos primeiros séculos. Nenhum concílio da Igreja dos primeiros séculos recusou a canonicidade destes livros. Ao contrário, foram declarados canônicos nos concílios regionais de Roma (382 d.C, dando origem ao cânon Damaseno), Hipona I (cânon 36, 393 d.C), Cartago III (cânon 47, 397 d.C), IV (cânon 24, 417 d.C), Trullo (cânon 2, 692). Um documento conhecido como decreto Gelasiano (496 d.C) também apresenta a canonicidade dos deuterocanônicos.

A aceitação comum dos deuterocanônicos como livros inspirados pode ser constatada nas primeiras versões da Bíblia, como a Vetus Latina e a Vulgata. No Oriente, a Septuaginta foi adotada como a versão oficial do Antigo Testamento.

Como a história registra, os deuterocanônicos faziam parte da vida dos judeus através da tradução grega chamada Septuaginta ou Tradução dos Setenta (LXX). A primeira tradução da Bíblia para o latim, conhecida como Vetus Latina continha os deuterocanônicos do AT. E na Vulgata, tradução empreendida por Jerônimo no século IV, estavam presentes os deuterocanônicos do AT. A primeira Bíblia impressa da história, conhecida como a Bíblia de Gutenberg, também continha os livros deuterocanônicos do AT. E nas primeiras versões protestantes, como a KJV (King James Version), os deuterocanônicos também estavam presentes. Um exemplo é a versão original da KJV de 1611.

A oposição aos deuterocanônicos
No início do séc. XV, um grupo dissidente da Igreja copta (também chamados de monofisistas), conhecidos como jacobitas questionaram o Cânon Alexandrino entre outras coisas. Em 1441, O Concílio Ecumênico de Florença, através da Bula Cantate Domino (4/2/1442) reafirmou o caráter canônico do Cânon Alexandrino.

Com a Reforma protestante, Lutero questionou o caráter canônico dos deuterocanônicos negando inclusive seu caráter eclesiástico, pois para ele estes livros nada acrescentavam à fé, mas os incluiu na sua tradução da Bíblia para o alemão, colocando-os como apêndice. Em 1545, foi convocado o Concílio de Trento, que reafirmou o caráter canônico do Cânon Alexandrino.

No início não houve consenso entre os protestante sobre o Cânon do AT. O Rei Jaime I da Inglaterra, responsável pela famosa tradução KJV (King James Version), defendia que os deuterocanônicos deveriam continuar constando nas bíblias protestantes. Praticamente na mesma época surgiu uma tradução conhecida como Bíblia de Genebra, que definiu os deuterocanônicos como apócrifos.

Somente após a "Confissão de fé de Westminster" (séc. XVII), os protestantes ingleses influenciados pelo calvinismo e puritanismo removeram das suas listas os livros deuterocanônicos, passando a adotar como lista de composição do AT o Cânon Hebraico conforme instituído no Concilio de Jâmnia. Princípios desta confissão foram espalhando-se por várias denominações e seu conteúdo funcionou como resposta ao concílio de Trento.

Atualmente, evangélicos têm denominado esse livros de apócrifos, por considerarem que neles existem erros geográficos e que não há provas de fatos narrados nesses livros, abdicando da utilização dos mesmos nas suas igrejas.

Existem deuterocanônicos no Novo Testamento?
É importante dizer que, segundo exegetas, também no NT existem livros deuterocanônicos. Seriam eles Tiago, Hebreus, Apocalipse, 2 Pedro e 2 e 3 João que tiveram sua canonicidade contestada.

Lutero não considerou canônicos Hebreus, Tiago, Judas e Apocalipse, que na sua tradução da Bíblia para o alemão deixou-os num apêndice sem numeração de páginas. Mas os demais reformadores aceitaram a tradição cristã, já que esses livros eram utilizados nas comunidades, e eles foram definitivamente incluídos no Novo Testamento.

Bibliografia
BITTENCOURT, Benedito P., O Novo Testamento, Cânon, Língua, Texto. São Paulo: Aste, 1965
LIMA, Alessandro. O Cânon Bíblico, A Origem da Lista dos Livros Sagrados. São José dos Campos. SP: Editora COMDEUS, 2007.
LIVROS DEUTEROCANÔNICOS, Wikipedia: http://pt.wikipedia.org/wiki/Deuterocan%C3%B4nico
PASQUERO, Fedele. O Mundo da Bíblia, vv.aa. São Paulo: Paulinas, 1986.
ROST, Leonard. Introdução aos Livros Apócrifos e Pseudo-Epígrafos do Antigo Testamento. São Paulo: Paulinas, 1980.
SHELLEY, Bruce L., História do Cristianismo ao alcance de todos: uma narrativa do desenvolvimento da Igreja Cristã através dos séculos. São Paulo: Editora Shedd, 2004.