"Ce qu'il y
a de plus profond chez l'homme, c'est la peau". Paul Valéry
Há
alguns anos, um outdoor estava presente na cidade de São Paulo nos dias
de Carnevale. Nele uma jovem dizia: “Mostre que você já cresceu e
sabe o que quer, use camisinha”. Tal slogan, me pareceu, poderia ter várias
leituras. Uma delas seria: você que é mocinha, dona do seu próprio nariz, faça
sexo.
E
o slogan me remeteu a uma questão teológica, que envolve os conceitos carne e
corpo. E vou começar a conversa a partir de um texto clássico da literatura
brasileira:
“Invadiu-a
um desalento imenso, um nojo invencível de si própria. Robustecer o intelecto
desde o desabrochar da razão, perscrutar com paciência, aturadamente, de dia,
de noite, a todas as horas, quase todos departamentos do saber humano, habituar
o cérebro a demorar-se sem fadiga na análise sutil dos mais abstrusos problemas
da matemática transcendental, e cair de repente, com os arcanjos de Milton, do
alto do céu no lodo da terra, sentir-se ferida pelo aguilhão da carne,
espolinhar-se nas concupiscências do cio, como uma negra boçal, como uma cabra,
como um animal qualquer... era a suprema humilhação.”
A
Carne de Júlio Ribeiro é
um romance naturalista publicado em 1888, que fala de divórcio, sexo livre e
aponta para a liberdade sócio-cultural feminina. Mas, apresenta também os
preconceitos da sociedade escravocrata no Segundo Império. A Carne é a
história de Lenita, uma jovem órfã de mãe, cujo pai lhe deu uma educação
sofisticada e fora do comum para a época.
Aos
22 anos, após a morte do pai, Lenita teve a saúde abalada e foi viver no
interior de São Paulo. Lá conheceu Manuel, um intelectual que vivia trancado
com seus livros e que de vez em quando fazia longas caçadas. Lenita e Manuel
tornam-se amantes e o romance de Júlio Ribeiro narra a trajetória desse amor,
marcado por desejo e violência, por luta entre a razão e a carne.
“As pessoas
que pertencem a Cristo Jesus crucificaram a natureza humana, junto com todas as
paixões e desejos dessa natureza”.
A
carta do apóstolo Paulo aos Gálatas (5.24), escrita em grego, fala de paixões e
desejos. Paixão, paté, aqui, indica deficiência que domina a natureza
humana, sarks, carne. O texto discorre sobre a possibilidade de controle
de uma disfunção quando afirma que aqueles que pertencem a Cristo crucificaram
todas as paixões e desejos da natureza humana.
Durante
a Idade Média, grupos de cristãos interpretaram a exortação à crucifixão da
carne como apelo ao sofrimento e suplício, ao encarceramento e solidão,
procurando causar dor e desprazer ao próprio corpo.
Mas o apóstolo
faz diferença entre carne e corpo. Carne nos remete às disfunções que envolvem
desejos e paixões como impureza, lascívia e prostituição. E corpo traduz a materialidade do ser, a base para a realização da existência.
O domínio e o
exercício do corpo advêm como expressividade quando há integração
lingüístico-cultural. No corpo residem os sentidos e a razão e, por isso, não é
resto, não está despojado de vida, configura-se como totalidade. Seu
equivalente na linguagem teológica das escrituras judaicas é a nefesh,
singularidade no mundo, face ao outro, interpelado, atravessado por afeições e
sentimentos. Orgânico, natural, o corpo alia indeterminação entre a dimensão
lingüístico-cultural que o atravessa e constitui e a dimensão emotiva que o
movimenta.
Por
isso o corpo -- e com ele as emoções, sentimentos e a própria razão -- é
dimensão profunda do ser. É o corpo que projeta as forças que vão moldar o ser
aos desejos e paixões. Nesse sentido não há pecado da carne, sem que antes
tenha passado pelo próprio corpo.
No
romance A Carne, Lenita encontra cartas de outras mulheres guardadas por
Manuel, sente-se traída e o abandona. Mesmo grávida, casa-se com outro homem. Diante
da perda da amante, Manuel suicida-se.
“A
placidez da morte sem dor, da morte pela paralisia dos nervos motores, converteu-se
em um suplício atroz, pavoroso, para cuja descrição não tem palavras a
linguagem humana.
Morto
e vivo!
Tudo
morrera: só vivia o cérebro, só vivia a consciência e vivia para a tortura...
Por que não ter despedaçado o crânio com uma bala? A paralisia invadiu os
últimos redutos do organismo, o coração, os pulmões, sístole e diástole
cessaram, a hematose deixou de se fazer. Um como véu abafou, escureceu a
inteligência de Barbosa, e ele caiu de vez no sono profundo de que ninguém
acorda”.
Assim,
Júlio Ribeiro finaliza o resultado da batalha perdida entre a razão e a carne.
Para ele, os triunfos dos desejos e paixões da carne levam, ao final, à morte
do corpo. É isso que o apóstolo Paulo nos fala. Por isso, no Carnevale,
ou em qualquer outra atividade humana, a liberdade deve ser parceira da
existência plena de alegria, justiça e paz, e não da alienação e morte, pois ser livre é realizar-se no
tropismo do corpo à vida.