A construção democrática do mundo árabe
nos leva à discussão de questões imbricadas à teologia, como alienação e ética.
Hoje, as nações se perguntam: quem deve dirigir o processo de democratização do
mundo árabe? Alguns crêem que devem ser os Estados Unidos. Outros, a Europa. Mas
há aqueles que apostam na presença do Brasil e do conjunto das nações reunidas
em assembléia geral. Antes de responder quem, uma questão não pode ser colocada
de lado: quais devem ser os critérios dessa democratização?
Vamos analisar tal questão a partir do
conceito de estranhamento em Marx e da proposta de uma ética crítica de defesa
da vida. Para tal partiremos de dois trabalhos acadêmicos, um de Maria Norma
Alcântara Brandão de Holanda e outro de Tarcyane Cajueiro Santos, citados na
bibliografia.
“Então eu me
arrependi de ter trabalhado tanto
e fiquei
desesperado por causa disso.” Eclesiastes
2.20.
Karl Marx em Teorias sobre a mais
valia, conforme expõe Maria Norma Alcântara Brandão de Holanda, considera
que o desenvolvimento das forças produtivas enquanto "desenvolvimento
da riqueza da natureza humana como fim em si" se efetiva mediante "um
processo no qual os indivíduos são sacrificados".
O que está em questão aqui não é o
desenvolvimento das forças produtivas, mas o reconhecimento de seus limites
ontológicos, que se expressam no âmbito do desenvolvimento econômico-social.
O desenvolvimento das forças produtivas é
também o desenvolvimento da capacidade humana, mas este não produz
obrigatoriamente desenvolvimento da pessoalidade humana. Ao contrário, muitas
vezes, potencializando capacidades singulares, pode desfigurar tal pessoalidade.
Estamos aí diante de um processo de
alienação antropológica e existencial. Diante de um paradoxo, desenvolvimento
das forças produtivas e desenvolvimento da pessoalidade humana. E, pelo que
vemos hoje, mais desenvolvidas as forças produtivas mais evidentes tais
contradições.
As exigências colocadas pelo
desenvolvimento da economia globalizada, ao mesmo tempo em que apresenta
possibilidades para o desenvolvimento humano, tem produzido um impressionante
nível de desumanidade.
Marx, nos Manuscritos econômico-filosóficos
de 1844 escreveu: "quanto mais
produz o operário com seu trabalho, mais o mundo objetivo, estranho que ele
cria em torno de si, torna-se poderoso, mais ele empobrece, mais pobre torna-se
seu mundo interior e menos ele possui de seu".
Ao partir de sua preocupação central, o
estudo da economia política de seu tempo, Marx diz que "a miséria do operário está em razão inversa
do poder e da grandeza de sua produção". Mais produz, maior é a sua
miséria.
Assim, a produção não faz apenas da pessoa
mercadoria, a mercadoria humana, gente
sob forma de mercadoria, mas o faz também ser espiritual e
fisicamente desumanizado....
Se o desenvolvimento das forças
produtivas ao mesmo tempo em que desenvolve as possibilidades humanas cria a
reprodução da desumanidade, evidenciam-se os limites antropológicos e
existenciais de tal desenvolvimento, já que toda relação social não se dará
apenas através de uma elevação espiritual, mas de movimentos que deixam em
aberto as possibilidades para a própria destruição do humano.
“Como a justiça encaminha para a vida,
quem insiste no mal caminha para a morte”. Provérbios 11.19
Se olharmos sob a perspectiva da ética,
tal processo leva ao esgotamento da moral, que deveria ser presente na história
ocidental cristã diante da emergência da amoralidade globalizada, mas se
transformou em instância de definição da legitimidade do comportamento imperial
hegemônico em detrimento das singularidades culturais e nacionais.
O choque entre projetos imperiais
hegemônicos e diferenças culturais deve nos levar a uma consciência crítica de
defesa das fronteiras éticas contra a destruição do humano, fruto, como vimos,
tanto do desenvolvimento das forças produtivas, como do estranhamento humano
presentes nesse mesmo desenvolvimento.
É nessa fronteira entre elevação
espiritual e degradação, que culturas e globalidade devem negociar as margens
do caos.
Aqui a ética nascerá da delimitação da
violência capitaneada pelos impérios hegemônicos, já que a globalização se
tornou personagem principal do processo de desenvolvimento das forças
produtivas mundializadas.
Assim, a ética crítica, como meio e não
como fim, “está baseada no livre
exercício do corpo e da alma, no desejo e na afirmação da vida”, como
afirma Tarcyane Cajueiro Santos.
Porém, a virtude
esbarra na heteronomia, na contradição do estranhamento, conforme detectou
Marx. Somos parte da natureza, vivemos circundados por número ilimitado de
efeitos externos e poderosos. Somos seres cheios de paixão ou passivos,
enquanto causa parcial, conduzidos e dominados por forças externas à nossa alma
e ao nosso corpo.
E as paixões,
como afirma Spinoza, não são em si nem boas nem más, pois fazem parte da
natureza: a alegria, a tristeza e o desejo vibram em nosso ser. Assim, a
alegria aumenta a capacidade de existir, enquanto o estranhamento degrada a
existência.
“Sem
conselhos os planos fracassam,
mas
com muitos conselheiros há sucesso”. Provérbios
15.22
O
movimento da paixão à ação, da rebeldia à autonomia, ocorre na imanência do
próprio desejo, a partir do instante que temos condições de controlar e
submeter o estranhamento que degrada. Nesse momento, a liberdade torna-se “atividade que transcende o presente pela
possibilidade do futuro como abertura no tempo”, conforme disse Marilena
Chauí.
Assim
no caminhar da globalização, a ética deixa de ser dever moral, imperativo
categórico a priori, e passa a ser compreendida como balizadora daquilo que é
humano.
Para
construir tal ética crítica, que leve à práxis democrática, é necessária a
existência a nível mundial de um sujeito
ético moral, nas palavras de Chauí, “que
sabe o que faz, que conhece as causas e os fins de sua ação, o significado de
suas intenções e de suas atitudes e a essência dos valores morais”.
Acreditamos
que hoje no planeta, com todas as dificuldades reais, a democratização das
nações árabes deve ser obra dos povos árabes, apoiados pelo conjunto das nações
reunidas em assembléia geral, crítica aos projetos hegemônicos, de supremacia de nações imperiais sobre povos em construção de suas democracias.
Fontes
Karl Marx, Manuscritos
Econômico-Filosóficos, Coleção Os Pensadores, São Paulo, Editora Abril,
1997.
Maria
Norma Alcântara Brandão de Holanda, Lukács e o estranhamento em Marx,
Unicamp, Instituto de Filosofia e Ciências Humanas, Centro de Estudos
Marxistas:
www.unicamp.br/cemarx
Marilena
Chauí, Convite à filosofia, São Paulo, Ática, 1999.
Tarcyane Cajueiro Santos, O eticismo da sociedade tecnólogica e a
ética em Espinosa, ECA-USP, Núcleo
de Estudos Filosóficos da Comunicação: www.eca.usp.br/nucleos/filocom