dimanche 24 juillet 2016

Cultura e religião

Jorge Pinheiro

A relação entre cultura e religião manifesta-se na forma de um paradoxo, no sentido de um modo de pensar que está à margem das opiniões aceitas e mesmo em oposição a elas. O paradoxo inicial da religião reside no fato de ser ela uma obra da cultura na forma de um saber racional que tem a intenção de explicar a realidade e, por extensão, a própria cultura da qual procede. Essa universalidade da intenção religiosa deve ser designada como sendo o predicado da interrogação religiosa que se dirige à essência ou ao ser das coisas. Ela determina o caráter paradoxal da relação entre cultura e religião na medida em que é origem, instância fundadora da cultura. Há aqui um entrecruzamento de causalidades históricas, mas é importante assinalar como outras produções culturais, a arte, a literatura e a política apresentam essa originalidade de terem nascido ostentando os traços do que serão as suas essências como intenção de conhecimento. Nesse sentido, o estudo da religião pode ser considerado não só um caminho para se penetrar no espírito da cultura mas introdução ao estudo dos temas do pensamento religioso em geral. 

É necessário ter presente a relação dialética que existe entre o dinamismo da cultura e a produção religiosa que povos diferentes construíram na história. A sobrevivência das construções das civilizações mostra que a religião é um dos elos que asseguram a continuidade da tradição que chamamos cultura ocidental. 

Assim, a religião está inscrita no destino da cultura ocidental, faz parte do seu espírito. Por isso é necessário perguntar qual a razão que conduz esse destino. Ora, a própria religião oferece nos dá motivos para essa interrogação. Ela nomeia a razão debaixo do qual a cultura ocidental caminha, sendo a única que fez de tal razão o seu emblema, embora sejamos obrigados a levar em conta os tristes caminhos que essa razão ofereceu ao suceder histórico da civilização. Mas é fato que a descoberta do instrumento racional pelas duas religiões formadoras do pensamento ocidental, o judaísmo e o cristianismo, e a legitimação social de seus usos, foram a causa do aparecimento de um conhecimento religioso e de vida, que se apresentaram marcados pelo paradoxo da interrogação universal sobre o ser e pela utopia. 

A estrutura geral da relação entre cultura e religião cristã foi caracterizada inicialmente pela necessidade do exercício inerente ao desenvolvimento de uma cultura que aceitou legitimar socialmente o livre uso da razão. A religião passou a ser, então, a forma exemplar da vida segundo a razão. Ora, a intenção de universalidade que move o pensamento religioso ocidental, levando-o a voltar-se reflexivamente sobre si mesmo e sobre a cultura que lhe deu origem, opera aqui uma inversão na significação dos termos da relação entre a cultura e a religião como sua criação própria. Inicialmente a cultura é o termo fundante nessa relação, se considerarmos a religião cristã segundo sua gênese histórica e as condições do seu florescer. Considerada, porém, na sua natureza de interrogação racional sobre o ser e, portanto, intencionalmente universal, a religião assume, na sua relação com a cultura, a posição de termo fundante, já que a cultura se torna objeto a ser explicado pela religião no tribunal da razão. 

Essa explicação nos leva a estabelecer, de modo sistemático, a ordem das razões segundo a qual a cultura pode ser pensada na sua natureza, na sua unidade e nos seus fins. Como termo fundante da sua relação com a cultura, a religião descobre o seu propósito essencial na conjuntura histórica em que se exerce. Pensar a cultura significa para a religião cristã, de um lado, examinar a solidez do edifício da cultura, os conceitos ontológicos que tornam possível a atividade espiritual do ser humano: o ser e a essência, e definir segundo o seu estatuto ontológico, as condições de exercício dessa construção, a razão e a justiça. Nesse sentido, a cultura, em sua acepção mais ampla, a de ser o mundo do conhecimento, do agir e do fazer do humano, leva toda religião é ser uma religião da cultura. 

Podemos afirmar que a estrutura geral da relação entre cultura e religião apresenta uma forma dialética, pois nela a cultura e a religião invertem, no movimento do conceito, o papel de termo fundante da relação. Essa estrutura dialética caracteriza justamente a tensão histórica entre cultura e religião que afirmamos ser paradoxo tanto no ato de pensar religiosamente, quanto na intenção de ser religioso. Ela obriga a religião, ao constituir-se como termo fundante da sua relação com a cultura, a passar além das esferas de interesse dentro das quais ocorrem as diversas iniciativas culturais. Por isso, o lugar antropológico da tensão dialética entre cultura e religião, nesse impulso de remoer as origens, encontrará satisfação na religião, enquanto história que conhece diferentes tentativas de superação dessa tensão, que estão no começo e no anunciado ato final do destino histórico da religião. Existe assim uma regência não só simbólica, mas política da cultura pela religião. É o de tornar-se mundo pelo advento do estágio final da história, da qual ela é a coroa. Donde, a inevitabilidade da pergunta pelo futuro, inscrita como destino e como condição de sobrevivência no próprio ser da humanidade ocidental. 

Portanto, a situação da religião na cultura contemporânea nos convida a conviver com essa tensão que assume feições diversas ao ser a religião confrontada com os universos culturais que constituem a realidade complexa da cultura: particulares, mas universal. Talvez, por isso, o futuro da religião e o da civilização ocidental permanecem conjuntamente problematizados: a religião vive essa tensão e é a partir dela que se articulam as questões fundamentais do humano no alvorecer do novo milênio.
 
A primeira tarefa da reflexão religiosa é uma tarefa crítica no sentido original da justificação, enquanto integridade que conduz à dúvida tanto sobre sobre Deus, como sobre a própria religião. No caso da cultura essa tarefa se apresenta difícil, pois se desenvolve no terreno da tensão dialética da qual é a religião que deve refletir criticamente sobre a própria cultura. Na modernidade, o paradoxo dessa situação se manifestou quando a pretensão da religião de julgar o ser da cultura foi contestada pela modernidade. Essa pretensão era condenada em razão da relatividade dos paradigmas religiosos que se dissolviam na pluralidade das culturas históricas. Tratava-se, porém, de uma pluralidade quantitativa no espaço e no tempo históricos, mas qualitativamente relativas, já que a cultura mostra sua solidariedade com a vida, que se diferencia em profusão de formas, e assim mostra esse dinamismo de diferenças na vida da religião. Dessa maneira, a reflexão sobre a cultura coloca a religião em face de um questionamento: o problema da unidade e diversidade do ser, que está presente no fundamento das versões modernas do viver cultural e político. 

O fundamento da unidade da cultura está na ontologia, enquanto ontologia do ser humano. Para esse fundamento reflui a interrogação sobre a unidade ontológica da cultura e a questão se formula nesses termos: qual o princípio antropológico do que a cultura produz? É certo que o humano cria seu próprio universo de significação, que é justamente a cultura, e é nela que vamos encontrar o ato e a forma da nossa expressividade. Dessa maneira, o primeiro momento da reflexão da religião sobre a cultura consiste em assegurar, seja no ato da produção cultural a unidade que só pode ser pensada em oposição ao fluxo do tempo e à dispersão do espaço onde a experiência se situa. Essa intuição inaugura o pensar nos primeiros passos da religião cristã ocidental. Donde, a unidade ontológica da cultura, aquilo que é inteligivel no seu ser reside na relação dialética entre a estrutura transcendental da pessoa e aquilo que é ideal e transcendente no que a cultura produz, que se manifesta na forma transtemporal e transespacial que lhe dá perenidade simbólica. A própria religião apresenta-se, então, como o paradigma perfeito da utilidade ontológica da cultura, pois nela são tematizadas a transcendência do ação, como interrogação sobre o que é, e a idealidade da forma como forma objetiva do ser. Assim, a natureza da unidade da cultura é a unidade analógica porque a produção cultural é expressão da abertura do ser humano à universalidade do ser e é no horizonte dessa universalidade que a produção se situa e adquire a sua idealidade simbólica. Por isso, a unidade da cultura é assegurada pelas categorias de estrutura e relação estabelecida pela antropologia e articuladas pelo movimento dialético da expressão da pessoa.

A unidade é, então, uma unidade na diferença e por isso analógica, que permite ao ser humano realizar-se na pluralidade das culturas históricas e na profusão de formas por elas produzidas. É, pois, o caráter analógico da unidade da cultura que dá origem ao problema dos universos culturais. A questão dos universos culturais conduz ao problema das categorias antropológicas que exprimem as relações do ser humano com a realidade, no âmbito da sua abertura transcendental ao ser. A diferenciação dessas categorias obedece à diferenciação do ser na realidade e incide na diferenciação dos modos de relação do humano com o ser, de maneira que a categoria de objetividade delimita o campo da relação de produção enquanto campo da relação teórica e campo de relação da práxis. O entrelaçamento dessas relações no existir histórico do ser humano define a cultura, sob a perspectiva da religião. Assim, o ser humano como ser em relação é, ontologicamente, um ser de cultura, assim como a realidade é, para ele, uma realidade de cultura. A unidade analógica da cultura deve ser pensada segundo a analogia de atribuição, ordenada em direção à inteligibilidade. A determinação dessa direção orienta a discussão sobre a relação entre teoria e práxis. Até a modernidade, a teoria reivindicou primazia. Na modernidade, porém, um movimento de civilização deslocou a direção de inteligibilidade da cultura para as formas de vida orientadas à produção e a práxis. Economia, política e trabalho passaram a ser os pólos unificadores da cultura moderna. Atualmente, há um retorno à teoria, entendida como ciência, o que leva a cultura a ser regida pelo cientificismo. O que traduz no paradoxo de que a teoria perde espaço para a práxis, pois a ciência moderna é instrumento de transformação da natureza e da sociedade. 

A primeira forma da reflexão da religião sobre a cultura tem em vista o estatuto ontológico que rege a atividade cultural do ser humano e o seu objeto. Esse estatuto ontológico exprime-se como unidade da cultura encontrando sua efetivação histórica nos diversos ciclos culturais, como é o caso da civilização ocidental. Mas, ao colocar em evidência no ser da cultura a dimensão da realização do ser humano, a religião descobre o caráter normativo que lhe é inerente. A ontologia prolonga-se necessariamente numa ética da cultura. A normatividade da cultura é tão evidente quanto sua própria existência, pois o ser humano funda o mundo da cultura tendo em vista o seu próprio bem. O ético não deve ser entendido como um predicado que externo à cultura. Os dois conceitos são complementares, porque a produção encontra seu lugar no espaço daquilo que é que é moral, ethos e morada do ser humano. Ethos é a forma de vida da cultura. É por sua própria natureza, conhecimento normativo da cultura. Fazendo-se reflexão ética, a reflexão religiosa sobre a cultura tem a função constitutiva de operar no ser humano e em sua produção. Assim, a religião tem por objeto a ontologia e a ética do ser da cultura. É por isso que a tematização ontológica e ética da cultura ocorre no âmbito da civilização que se elevou ao nível da sua autojustificação em termos de razão, de civilização que inventou a religião cristã. No momento em que a cultura coloca no centro do seu espaço simbólico os sistemas criados pela razão, entre os quais está a religião cristã, ela define o estatuto dessa produção simbólica, as regras e as normas do seu uso em vista da realização daquilo que é humano, e este é o seu fim. Desde o momento em que o campo simbólico da cultura dilata-se no espaço universal da razão, os limites do ethos tradicional tornam-se estreitos e cabe à religião a instauração de um outro ethos, a ética. Por isso, a religião é produtora dessa instauração. O roteiro da ética na civilização ocidental acompanha o roteiro seguido pelo pensamento cristão. Ele reflete as dificuldades da cultura nas horas dessa crise de civilização que vivemos como crise universal de cultura, mas também como crise ética. Mas a crise da modernidade tem um paradigmática que traduz este momento especial de final de milênio. Esta crise é a doença da modernidade, que nasceu do mesmo solo que possibilitou sua expansão, os solos americanos. É uma doença dos últimos tempos. As utopias que encontramos nas declarações dos direitos modernos, de que os seres humanos nascem livres e iguais, traduzem as visões milenaristas da história ocidental e cristã. Se as conquistas das terras americanas abriram espaço para a modernidade, foi o nascimento da razão instrumental, orientada à conquista e ao poder, que levou à vitória a razão moderna. Na verdade, esta foi uma razão interessada na instrumentalização da força e no cálculo da da capacidade de resistência do adversário, que jamais pensou em mover-se em sintonia em sintonia com a terra e os povos conquistados. E a partir da conquista dos continentes americanos, o cristianismo europeu converteu o mundo, colonizando-o, levando a Europa, a partir de então, a dispor de recursos que alimentaram um sistema econômico organizado mercantilisticamente.

Mas houve um segundo momento, aquele em que a a Europa se abriu ao mundo novo e que foi assinalado pela tomada do poder sobre a natureza, quando as novas ciências da natureza desencantaram o mundo, tiram-lhe o mistério e a alma para torná-lo escravo, e transformaram os europeus em proprietários da natureza. Esta tomada de poder da civilização européia no mundo pode ser entendida como a de uma fé messiânica convicta de que por mil anos os santos reinarão sobre os povos do mundo, e que esta era cristã seria também a última da humanidade, aquela idade de ouro que precederia o fim do mundo. Agora poderá se cumprir o que há muito fora prometido. Este é a doença messiânico com que se batiza a modernidade, pois o ser humano se tornou capaz de dominar a terra e restabelecer sua semelhança com Deus, esmaecida por sua própria culpa. E como a glória reflete a luz: esta foi a idade das luzes, do Iluminismo, momento do êxodo definitivo dos seres humanos da sua minoridade culpável para o exercício livre da razão. 

A aqui estamos diante de uma esperança milenarista realizada na história. Esse milenarismo compreendeu o reino de Deus de modo teleológico, não apocalíptico, por não ser leitura catastrófica do mundo mas ethos possível aos seres humanos. Dessa maneira, a escatologia apocalíptica se transformou em teleologia, cheia de otimismo, que definiu o ser humano como bom e viu o irracional preso por mil anos. Essa fé moderna, de que o bem poderia difundir-se livremente e a história realizar-se enquanto reino de Deus, produziu o cristianismo milenarista da modernidade, contra o qual o fundamentalismo apocalíptico da alta modernidade levantava-se em protesto.

A fé no progresso e o ideal de humanidade do Iluminismo alemão constituiu esse milenarismo teológico. Para o idealismo alemão e depois para os hegelianos de esquerda, entre os quais Marx, a revolução francesa era um sinal da história que atestava a disponibilidade moral da humanidade em caminhar em direção ao melhor, um sinal de que a história se direcionava para um fim escatológico. As filosofias da história oriundas do idealismo alemão, com suas idéias de evolução, progresso e fim, derivaram dessa teologia histórico-salvífica do milenarismo e não foram outra coisa que a tradução do plano salvífico, do reino de Cristo do protestantismo. A partir dessa leitura, o reino de Deus foi visto como não como fruto de uma revolução apocalíptica preparada por Deus, mas de um caminhar no âmbito do ethos e da razão. Esta é a diferença entre o milenarismo de origem hegeliana, no qual podemos incluir o marxismo, e o milenarismo teológico, porém ambos trabalham com um ideal de superação programada da história, com o progresso e do fim último. Foi o idealismo alemão e as diferentes correntes oriundas dele que possibilitaram essas transferências de um milenarismo teológico para sistemas de caráter histórico. 

Mas uma enfermidade acompanhou essa releitura da religião em Feuerbach e Marx, e assim como a fé que demonstraram na razão, abriram caminho para esse caráter messiânico e milenarista na vontade de realização de uma história ainda não realizada. Aqui reside a tendência ao autoritarismo desses pensamentos, que tinham por base a esperança de que se realizaria uma libertação possível e necessária da humanidade, que se libertaria das dependências da natureza para se tornar sujeito da própria história. O sonho milenarista da era moderna foi o de dominar as nações, adquirir o poder sobre a natureza e projetar uma civilização que transformasse os seres humanos em sujeitos da história. No entanto, se uma ética da cultura está em unidade orgânica com uma ontologia da cultura, já que o fundamento sobre o qual ambas repousam é a antropologia, e seu núcleo conceptual comum é a categoria de pessoa, princípio e fim do discurso cristão sobre o ser humano, também a crise ética se encontra em unidade orgânica com uma crise da ontologia da cultura. E porque a ética está em crise deixa de propor-se como uma ética da pessoa modelada culturalmente, pois deixa de ser uma unidade analógica, onde várias são as perspectivas que se oferecem para a organização sistemática de uma reflexão ética, que percorre categorias que exprimem funções personalizantes da cultura: tradição e ethos; fundamento e lei; unidade e fim; liberdade e justiça, para se tornar exatamente o choque permanente desses contrários. Do ponto de vista ontológico, não deixamos de ter uma ética, mas estamos diante de uma corrpção, pois ela deixa de aprofundar a reflexão sobre o dever-ser inerente à pessoa e sua produção. Tal corrpução a leva a abandonar seu dever-ser, que deveria ocorrer na própria dialética da produção da justiça, que se desenvolveria sob a norma do idealmente igual e livre. 

Ora, a ética começa por investigar o caráter normativo com que o ser se apresenta ao humano na atividade de livre criação, ou seja, na justiça. Essa normatividade do ser não é mais do que a exigência do igual e livre, que confere à atividade humana sua estrutura teleológica e constituindo o humano como um ser ético. Por isso, a transcrição histórica da essência ética do ser humano realiza-se na extensão do espaço simbólico da justiça. Há, pois, uma relação transcendental entre a justiça e o dever-ser do bem a que ela tende. Essa relação é dialética e se apresenta como estrutura ideal normativa tanto do ato de justiça quanto daquilo que ela produz. É o que leva à perfeição como fim, que orienta a construção da justiça; a outra questão é a realização na qual a estrutura ideal é confrontada com o desafio de realizar-se na contingência, e por isso limitada pela própria existência. Nesse sentido, a religião se ocupa com a estrutura ou a normatividade ontológica da justiça, porque seu objetivo é conceber a razão ética que deve orientar o caminho da realização histórica. 

Para a justiça, o risco é a recusa da normatividade da estrutura, já que a forma é o dever-ser imanente à ação, tendo como fundamento a estrutura ontológica da pessoa, e é o dever-ser imanente à produção, que tem como fundamento a estrutura ontológica da realidade. O conflito entre a estrutura e a realização traduz-se no abandono da justiça, que fica sem a regra da proporção, sem o vínculo ao necessário e à finalidade. Estamos então diante de uma negação do ser, que pode ser caracterizado como corrupção da justiça ou a perda do humano.  Por isso devemos explicar a norma ontológica imanente à atividade da justiça no sentido de que deve exprimir, na particularidade da ação humana, a unidade e a riqueza ontológica do ser. É o que possibilita a constelação sob cujo signo nasce, cresce e se desenvolve a justiça. Assim, a justiça deverá (pré)ocupar-se com a presença normativa desse processo no qual a história humana tem a sua realidade, desafios e possibilidades de destino.

Ora, a partir da revolução francesa de 1789, as declarações de direitos passaram a se abrir com o enunciado de que todos os seres humanos são criados livres e iguais. E foi assim que a Europa, que se afirmou como potência mundial, assumiu os traços de uma realidade humana com dimensão universal. O direito universal à liberdade e à igualdade motivou os movimentos de libertação dos excluídos: escravos, mulheres, povos. O direito à liberdade e à igualdade legitimou as revoluções modernas. E se a democracia é a forma política na qual se exprime a liberdade, então sua figura econômica deveria ser a igualdade. Mas, a democracia enquanto expressão da justiça social também entrou em crise, e não poderia ser diferente, porque cultura e ethos se encontravam em crise. Mas a expressão visível dessa crise da democracia é o fato de ter tornado-se escrava das leis de mercado. Está submetida à economia, que faz a lei. Esse é o paradoxo. A democracia está em crise e encontra-se desencantada. O fim do comunismo enquanto cosmovisão, que teve presença sobre parte da humanidade, foi positivo, porque foi o fim de uma barbárie, mas foi o fim também de uma esperança. E a enfermidade e crise da cultura, do ethos e da democracia nos leva a viver num mundo perigoso, onde o modelo que permanece se torna cada vez mais dogmático. Mas se há crise, há também recuperação, embora recuperar não signifique restaurar valores que caducaram com o mundo que se foi, nem reconstituir um ethos que já não responde às necessidades humanas. Fazer assim seria heteronomia que leva ao autoritarismo. Recuperar o princípio de liberdade e igualdade entre os seres humanos significa reinventar o socialismo, enquanto idéia solidária da incondicionalidade da justiça. Os valores humanos, aqueles que mais prezamos, sempre foram reiventados, porque o mundo muda, e de nada adianta sonhar que estamos no século da Reforma ou vivendo os tempos de glória do Iluminismo. Por isso recuperar é recriar. É preciso então reinventar os valores fundadores da democracia: a fé no destino humano, a solidariedade, a razão. A democracia só permanece se muda, pois não é um estado natural da sociedade, é sempre um projeto. Por isso, necessita sempre ser reinventada, pois as ameaças à democracia mudam: já foi o nazismo, o comunismo, e hoje são a ditadura das leis do mercado, os fundamentalismos e as mídias controlada pelos grandes grupos. A democracia deve mudar para se recriar enquanto esperança democrática. A liberdade democrática é fundamental, e é preciso defendê-la, mas não basta que o cidadão vote, eleja governantes, mas permaneça distante das ações do poder, por isso democracia implica em participação, não se restringe a escolher candidatos e elegê-los. Mas se a democracia deve ser recriada significa que não pode ter modelos. Dizer que a democracia é um valor ao qual os povos têm direito não significa que em todos os lugares ele deva ser igual. E é interessante que esta leitura da democracia e da reinvenção do socialismo apresenta hoje caras diferentes que se expressam no Forum Social Mundial e em organismos como a Anistia Internacional ou o Green Peace. São novas formas de militância, que constatam a existência de valores universais, mas afirmam o respeito às culturas. Se os seres humanos foram criados livres e iguais, as sociedades têm que articular os direitos à liberdade enquanto direitos sociais à igualdade. Mas se não existirem as mesmas condições de possibilidade, não pode funcionar a democracia, pois se não garante a realização da liberdade, não podemos esperar que funcione enquanto sistema fundado sobre os princípios da justiça social. O caráter universal das declarações que têm por base "todos os seres humanos são criados livres e iguais" só podem se realizar numa comunidade mundial de estados que considerem os direitos humanos fundamentais aos cidadãos. Trata-se de uma utopia, mas aquilo que começou como utopia do humanismo messiânico pode se tornar necessidade quando a unidade da humanidade é colocada pelo conjunto dessa própria humanidade. 

Na modernidade, a religião viu surgir um novo desafio ao sentido da sua presença no mundo da cultura e da política. Esse desafio se formulou no terreno das relações entre a religião e a política moderna. Ora, é na sociedade, enquanto espaço onde se cruzam os universos da cultura, que se formam as globalidades da política contemporânea. Alguns desses universos, como o universo da produção de conhecimentos e da formação profissional têm remetem na sociedade da alta modernidade, estruturalmente, a uma sociedade de comunicação e produção de massa, ou seja, à política de massa. Essa é a cara visível e mais verdadeira da política contemporânea e com a qual deve conviver o pensamento socialista. 

Donde, o lugar e a razão de ser da religião, nesse contexto, é que a religião não poderá alinhar-se entre os produtos políticos de uso e consumo imediatos da sociedade de massa. Sua situação será uma situação de paradoxo, que se manifesta na tensão dialética entre as estruturas formais da instituição, que a acolhe e lhe assegura fundamento e legitimação sociais, e a intenção reflexivamente crítica e igualmente fundante com que a religião se volta sobre a própria política, para pensar a natureza dessa política, as normas éticas que a regem e os fins a ela atribuídos pela sociedade que a institui. 

Assim, se o mundo moderno foi produzido pelo Iluminismo e o Iluminismo nasceu do espírito cristão da esperança messiânica. No passado a questão religiosa partia da discussão sobre a origem do mundo. E o problema era resolvido a partir dos mitos de origem ou dos símbolos relacionados com a vida. Mas, com a modernidade, o futuro é motivo de exaltação ou de ameaça, pois redime ou apaga, dá consolação e sentido ao sofrimento e ao agir na história. Portanto, o futuro se tornou o paradigma da transcendência. E o pensamento teológico passou a ser reflexão movida pela esperança, onde a teologia cristã passou a ter como tarefa remover a presunção messiânica e a subordinação apocalíptica. 

A situação da religião na política não está numa situação de repouso, mas é ao cumprir o paradoxo de seu destino que pode ser fiel a si própria. E a política, e aqui nos referimos mais especificamente ao socialismo, deve ter interesse em assegurar à religião as condições para o exercício de sua fidelidade, o que possibilitaria a ele, socialismo, recriar a partir de sua identidade histórica, as razões mais decisivas de sua missão nas globalidades da política contemporânea. 

Fazer uma leitura teológica da história e das possibilidades do PT implica, num primeiro momento, em fazer uma discussão mais abrangente sobre a relação entre política e religião. Geralmente, quando se fala em religiosidade imagina-se uma dimensão de vida que se caracteriza pelo afastar-se do mundo e como conseqüência negar a política como dimensão da vida humana e social, e a possibilidade de construção de uma teologia, que por ter a ética como uma de suas bases, é de fato espiritual e socialmente transformadora. Mas, se consideramos que política e religião não são conceitos excludentes, nos vemos obrigados a procurar entender ambos conceitos antes de ver como se relacionam.
 
A palavra política nos leva a quatro conceitos distintos: a doutrina do direito e da moral, a teoria do Estado, a arte de governar e o estudo dos comportamentos intersubjetivos. Na abordagem que estamos fazendo, ao analisar as imbricações entre religiosidade e política, nos interessa abordar a política enquanto doutrina do direito e da moral, pois a partir daí temos elementos para entender, também, a política sob as demais perspectivas. Podemos dizer que a política, enquanto conhecimento que trata dos aspectos práticos da ética, e que se apóia na antropologia filosófica ou teológica, por necessitar definir uma concepção de ser humano, remete a questões como a natureza e alcance da liberdade, os diversos tipos de liberdade e a natureza e formas de justiça.

Assim, a política deve responder de forma prática à pergunta pelo bem dos membros de determinada comunidade, traduzindo esta ação nas questões do poder e das estruturas de governo. Mas e a religião tem algo a dizer à política?

De forma abrangente podemos dizer que religião é aquela relação do ser com a transcendência, que dá sentido à vida. O ser humano, unidade multiforme, tem em seu espírito não uma dimensão parcial da vida, mas irredutível. Nesse sentido, o espírito é a totalidade da vida. Nas situações de perda, falta de sentido e de ameaça à vida também há experiência com a transcendência, pois mesmo na negação dela há um sentido transcendente. Essa visão de espírito nos leva a uma compreensão abrangente da religião, que por isso não pode ser entendida apenas como sinônimo de piedade ou como conhecimento dos princípios e das práticas de que se compõe a piedade. Se a religião pode ser vista entre os cristãos como uma interpretação particular do ideal evangélico, podemos dizer que há uma religiosidade comum à espécie humana, que se expressa existencialmente.

Nas ações sociais magicamente orientadas, onde a distinção entre sagrado e profano é menos nítida, embora exista, é mais difícil delimitar e definir o conceito de religiosidade. Mas nas sociedades mais complexas, naquelas religiões onde o espaço e o tempo do sagrado e profano são mais bem definidos, envolvendo escolha, disciplina e prática levam a experiências avançadas de religiosidade. Tais experiências com o sagrado encorajam e incorporam no adorador aquilo que lhe é distinto. Apesar dessa relação de aparente intimidade, de relacionamento, permanece o abismo entre adorador e sagrado. Dessa maneira, este desejo de saltar sobre o abismo que separa humano e sagrado é em última instância o móvel que dará origem à religiosidade.

A religiosidade cristã se construiu ao redor da cruz. A paixão de Cristo era entendida como exaltação, como dom da vida de Deus aos seres humanos. E porque a morte já não era olhada como derrota, mas como dom livremente aceito, o martírio foi o primeiro momento da religiosidade cristã. Dessa maneira, podemos dizer que a religiosidade tem uma dimensão apofática, enquanto negação daquilo que é humano, enquanto martírio, cruz e morte. E uma dimensão catafática, positiva e simbólica, que possibilita o encontro com Deus através das fanias, enquanto manifestação de Deus na realidade. 

A dimensão negativa da religiosidade é, em última instância, uma aproximação das trevas, limiar da inacessibilidade divina. Diante dela reconhecemos nossa ignorância e tal reconhecimento nos possibilita conhecer para além da razão. Mas porque a religiosidade tem uma dimensão catafática, o negativo se realiza num ultrapassar sem se desligar de sua base. Assim, quanto mais a religiosidade é construída no sentido vertical da busca do sagrado, mas encontra raízes no sentido horizontal da história humana. O primeiro elemento na experiência do sagrado é a santidade do ser e o segundo a santidade do dever. A primeira forma de fé é de tipo ontológico e a segunda é fé ética. No sagrado, a dinâmica da fé é definida por estes dois tipos de fé e por sua interdependência e antagonismo. Assim, onde quer que a religiosidade humana seja experimentada, também se experimenta o seu poder de exigir aquilo que deveríamos ser. Por isso, se a religiosidade está ligada ao rigor da fé, enquanto dimensão apofática, como vemos na oração, na contrição e no sofrimento, ela sempre se realiza existencialmente, enquanto encontro com a transcendência. Esse encontro é a raiz da conversão e da vida contemplativa, mas remete sempre a um segundo encontro com a pessoa do irmão menor. A contemplação do divino no irmão que sofre é um chamado ao compromisso. Esse encontro que é serviço faz de ambos contemplativos na ação, dentro da  tradição cristã.

A partir desse momento em que a religiosidade torna-se caminho para a transcendência através do serviço ao próximo, a religiosidade tem algo a dizer à política. Pode parecer desconcertante relacionar religiosidade e política, mas ao falar de religiosidade estamos falando de ascese pessoal, de contemplação e do exercício do amor, e por política entendemos a transformação da sociedade na direção do reino de liberdade e justiça, onde aqueles que estão excluídos encontrarão vida e salvação histórica. Nesse sentido, a religiosidade dá sentido à vida cotidiana e torna-se além de mística e profética, política.

Quando trazemos esta discussão para a realidade brasileira, vemos que a partir dos anos 60 com o engajamentos de católicos e protestantes na luta contra o regime militar tomou corpo a discussão sobre a responsabilidade política da comunidade cristã. Foi e continua sendo importante para o cristianismo brasileiro que tal discussão se faça, mas expressivos setores da comunidade cristã ainda não ultrapassaram a religiosidade privatizada em direção ao compromisso social efetivo. 

O caminho desse diálogo da religiosidade com a política tem uma essência: o uso do poder, já que este determina os caminhos da sociedade. E esse poder político recorre à autoridade social instituída e possibilita ao Estado exercer coerção em nome do direito dos cidadãos. Mas as convicções pessoais sobre a soberania de Deus, numa leitura reducionista da religiosidade, quando a vemos apenas em sua dimensão negativa, têm profundas implicações no modo como se pensa a política. Ao optar por uma religiosidade privatizada, ofuscam-se caminhos e mascaram-se práticas, às vezes, corruptas através de atitudes aparentemente piedosas. 

A afirmação de que não há política sem o uso de poder , embora possa parecer óbvia, não tem sido aceita pela religiosidade negativa, que apresenta propostas que buscam uma ordem política onde o amor sem poder deve superar o poder sem amor. Ao analisar tais propostas, ao contrapor as políticas de poder ao amor cristão, vemos que para o negativismo é impossível combinar políticas e vida cristã. Chamam à criação de comunidades que rejeitem qualquer forma de poder, representada na ordem econômica e política sob o poder do Estado. Mas ao rejeitarem as políticas de poder da sociedade estão aceitando o uso do poder, pois não defendem uma retirada do mundo. Neste sentido, diferem dos separatismos do século XVII, que propunham a radical separação entre Igreja e Estado em nome da liberdade de consciência. Estes separatismos acreditavam que o fracasso das políticas de poder eram impedimento para a manifestação do poder de Deus no testemunho da comunidade cristã. Era um fundamentalismo de cunho liberal, fazia a crítica da política e propunha o distanciamento físico dos poderes do mundo. O que se traduzia em uma atitude política consciente.

Hoje, a religiosidade cristã no Brasil não é separatista e não foge do mundo. Acredita ter uma missão moral de transformação e não nega a possibilidade de real envolvimento político. Ora, se a comunidade cristã tem uma moral política, deve exercer poder e utilizar os meios que possibilitam chegar aos fins que busca, pois rejeitar o poder é rejeitar políticas. Tal rejeição poderia até ser aceita, desde que seus agentes tenham consciência do que estão fazendo e abandonem o mundo. O problema é quando se faz uma opção pela renovação da consciência moral da comunidade, mas se rejeita a política como meio de viabilizar a opção social escolhida. Quando a comunidade acredita que a omissão diante da política e do poder favorece à instalação do reino de Deus tem-se a negação da política como possibilidade cristã, o que fortalece os grupos que buscam o poder em benefício próprio. E, ao contrário do que propõe o negativismo, tal postura não estabelece o reino de Deus. 

Se não é possível falar de política, sem falar de poder, fica uma outra questão: amor e poder são compatíveis? A pergunta procede porque a religiosidade remete à prática do serviço ao próximo. Mas, em nome da religiosidade e do amor ao próximo comunidades cristãs negam a possibilidade de todo e qualquer poder.  Tal postura é um equívoco, pois o poder de ser não é uma identidade morta, mas um processo dinâmico sobre o qual o ser se separa dele mesmo e retorna a ele mesmo. O poder, por outro lado, é tão grande quanto a separação vencida foi grande. O processo pelo qual é reunido aquilo que estava separado se chama amor. Mas se há o amor reunificador, há o não-ser vencido e há o poder de ser. O amor é a base e não a negação do poder. Mas o amor é um ato da vontade. Não se pode forçar uma pessoa a amar. Porém, atos de ordem política contêm elementos involuntários. Isto porque o poder do Estado está associado a ações que podem estar fora de nossa vontade, enquanto o ato de amor está associado a ações do querer, por isso diz-se que a ação do Estado extrapola o amor porque este não pode ser forçado. Outro fato importante é que o amor é algo que deve ser mediado pessoalmente. Como a natureza voluntária do amor necessita da existência de uma pessoa que o ative, o amor sempre é pessoal. O Estado, como qualquer outra ordem social instituída, tem uma existência objetiva e alcança seus fins indiscriminadamente. A relação do cidadão com o Estado é uma relação entre pessoa e instituição, em lugar da relação eu e você, que possibilita a mediação pessoal que ativa o amor.  Além disso, o amor tem um caráter sacrificial, ou seja, possibilita ações que a despeito dos interesses particulares, imediatos, responde ao bem-estar do outro. Conscientemente, é um perder para que outro ganhe. Sacrificam-se direitos, sem estar forçados por obrigação legal, para que o outro seja beneficiado. E por ser livremente determinado, o amor vai além de uma obrigação moral ordinária. Cumprir obrigação moral é responder à necessidade moral, é um ato de dever em lugar de um testemunho moral livre. É importante entender que esse processo de ir além da obrigação moral envolve, como paradoxo, uma vontade moral implícita. Por isso, só o amor pode se transformar segundo as exigências concretas das pessoas e das instituições sociais, sem perder a própria eternidade, a dignidade e a validade incondicional. Assim, podemos dizer que o amor é voluntário e livremente entregue, que envolve volição moral, deve ser mediado pessoalmente, é sacrificial. E, finalmente, que o amor vai além do dever ou da obrigação moral, embora implique, paradoxalmente, em obrigação moral ou realização de um dever de origem.  

Mas política implica em servidão involuntária. Sua natureza baseia-se no uso de coerção e da força para alcançar seus fins. É organização formal e opera impessoalmente. Os políticos e aqueles que atuam ao nível do Estado se ocupam de ações que levam terceiros ao sacrifício, por isso a necessidade da força e da coerção e, em última instância, do próprio Estado. A maioria da população geralmente se considera satisfeita quando vive sob determinada ordem política que pelo menos responde às exigências de sua obrigação moral. E quando isso não acontece somos chamados à rebelião contra o Estado, a fim de exigir dele a realização daquilo que é sua obrigação moral. Fazendo assim atua-se no sentido de que não se torne totalitário, ou seja, negando os limites de seu poder de Estado ou passando por cima das obrigações que tem com os cidadãos.

Por isso, usar o poder do Estado como meio de realizar o amor entre os cidadãos é um contra-senso, pois moralmente não se pode coagir ninguém ao amor. Tal coerção destruiria também a obrigação moral do Estado, que baliza a diferença entre poder limitado e governo totalitário. Dado a dualidade entre poder e amor e o conflito aparente entre poder sem amor e amor sem poder, como a comunidade cristã deve se situar frente à política? Colocada a questão nestes termos, de fato é difícil escolher entre ser massa de manobra, mas cidadão do reino, e ser um político atuante à margem da salvação. Como seguir o caminho cristão sem rebaixar a nobreza do amor no altar do poder? 

Há um conceito, presente na teologia cristã, que leva a alternativas de reconciliação entre poder sem amor e amor sem poder. É o conceito de justiça. A definição mais aceita de justiça é o de dar a toda pessoa aquilo que por direito lhe pertence. Mas aqui se levanta outra questão: o que por direito lhe pertence? Esta pergunta leva o estudioso a analisar o conceito tradicional de justiça. 

As reivindicações de justiça só podem ser operacionais numa comunidade se forem definidas com um grau significante de particularidade. Justiça requer julgamentos distintos de reivindicações contraditórias. Justiça como generalidade não basta. É necessário trabalhar a compreensão de justiça no particular, para não cair na armadilha do moralismo, quando não se tem nada a oferecer quando se fala de forma idêntica em tempos, espaços e situações particulares diferentes. Uma definição clásica diz que se faz justiça quando se dá a cada cidadão aquilo que lhe é por direito. A partir dessa afirmação duas questões de levantam: se todas as pessoas têm igualdade moral, então essa igualdade deve se estender a todo grupo social, às relações econômicas e políticas em que se fazem presentes. E se as pessoas são desiguais nas contribuições que fazem à sociedade, então essas desigualdades devem se traduzir nos grupos sociais e nas relações econômicas e políticas. Ambos os argumentos, sem dúvida, têm suas razões de ser. E fazem parte dos debates políticos entre socialistas e liberais. 

Por encontrar dificuldades na formulação prática do conceito de justiça, algumas teologias têm rejeitado o conceito de justiça enquanto ordenação da criação. Neste conceito teológico, o ser humano tem um conhecimento universal do bem e por isso compreende a necessidade de justiça. Outro conceito defendido por teologias calvinistas é o de ordenação da redenção, que parte da aceitação de que, devido à queda humana, não existe um conhecimento seguro de justiça fora da revelação. Dentro dessa leitura teológica, só houve justiça antes da queda. Ora, rejeitar a idéia de uma compreensão humana e universal como algo fora da revelação leva a um problema epistemológico, pois afirma que a razão não tem nada que dizer fora da fé. Essa visão tem conseqüências práticas na elaboração de estratégias para a ação política, porque define que só a partir da fé se pode falar com autoridade sobre justiça. Ou seja, os cristãos não podem, em política, trabalhar com não-cristãos, pois não há base secular para o envolvimento político dos cristãos. Assim, quando nega o conhecimento natural do bem político, a única alternativa é omitir-se ou estabelecer uma política cristã sectária. Por isso, a leitura da justiça a partir de uma teologia da universalidade do humano rechaça a negatividade das ordenações da redenção por isolar, alienar e separar a pessoa e a comunidade da prática política. Ora, a justiça deve estar baseada em reivindicações universais de direito. Estabelecer justiça em base de autoridade sectária é violentar a compreensão de que todas as pessoas têm um conhecimento do bem. Donde, todas as pessoas compreendem a necessidade de justiça.
  
Assim, a justiça deve ser definida dentro do contexto de uma determinada ordem social e deve ser aplicada em termos de particulares, pois fundamentar o argumento da justiça apenas na pessoa não é o bastante. Devido à universalidade das normas de justiça e à universalidade da consciência de justiça, uma pessoa pode ter procedimentos e práticas que aprofundem políticas e programas que favorecem a justiça. É exatamente isso que os direitos civis buscam trazer para as democracias constitucionais. É o reconhecimento de que os meios empregados não devem violentar os fins procurados. É necessário, ainda, reconhecer que as normas de justiça são objetivas e que elas existem independentemente de volição humana. Conseqüentemente, podem ser feitas reivindicações no nome de justiça e podem ser rejeitadas reivindicações no nome de justiça. Ao entender que o amor deve ser volitivamente entregue, conclui-se que a justiça exige reconhecimento independente da vontade humana. Amor e justiça não podem ser contrapostos. O amor pode ir além da justiça, mas nunca pode buscar menos que a justiça. O amor pode inspirar reverência à justiça, mas nunca pode ser desculpa para esquecer as reivindicações da justiça.  

Se a justiça é uma qualidade objetiva que estabelece direitos e obrigações, projetos podem e devem ser desenvolvidos pelos indivíduos e sociedades para criar ações que sirvam as reivindicações de justiça. Dado o fato que nem todas as pessoas buscam a justiça de boa vontade, o poder pode ser usado legitimamente quando serve à causa de justiça. Dizemos que o amor não pode usar o poder para alcançar seus fins, mas que a justiça têm que usar o poder para alcançar seus fins. Tais distinções são necessárias porque não se pode dizer ao Estado que ame, porque suas ações têm por base o poder, e porque as reivindicações do amor estão arraigadas em reconhecimento pessoal e particular ao invés de normas universais de justiça. Assim, usar o Estado como um instrumento de amor leva a um Estado sectário e autoritário. Por causa disso, as normas distintivas da justiça são usadas para delimitar o que é meu e o que é teu. Negar a justiça em nome do amor é negar direitos humanos.  

O conceito de justiça aliado aos de amor e poder apresenta alternativas para as comunidades cristãs ao pensar a ação política. A política, com base no poder, cumpre uma função legítima quando serve as reivindicações da justiça. Amar, sem rejeitar o poder, indo além dos direitos e deveres estabelecidos pela justiça possibilita um testemunho de justiça e uma motivação moral que coroam o ato justo. Amar, através da mediação pessoal, complementa a justiça em suas demandas objetivas.  

Vamos exemplificar isso através de um fato recente em nossa história. Herbert de Souza, o Betinho, já falecido, ativista da Juventude Universitária Católica e combatente da Ação Popular, disse que “fome é exclusão. Da terra, da renda, do salário, da educação, da economia, da vida e da cidadania. Quando uma pessoa chega a não ter o que comer, é porque tudo o mais já lhe foi negado. É uma forma de cerceamento moderno ou de exílio. A morte em vida. E exílio da terra. A alma da fome é política”. Para ele, a fome era política.
 
O clamor de Betinho foi um clamor para que a justiça desse sentido humano à política. E ele acreditou nessa possibilidade, ao dizer que o “ato de solidariedade, por menor que seja, é importante. É uma mudança de paradigma, um olhar novo que mostra todas as relações, restabelecendo as bases de uma reconstrução radical de toda a sociedade. Se a exclusão produziu a miséria, a união destruirá a produção da miséria, produzirá a cidadania plena, geral e irrestrita. Democrática”. 
 
Quando a justiça é negada, a política torna-se escrava do poder. Perde o eixo da vida da ação política, já que a injustiça só será vencida pelo reconhecimento da dignidade da pessoa, e essa é uma tarefa política. Para conquistar tal dignidade, o poder deve ser exercido. Assim, a síntese deste diálogo pertinente entre política e religiosidade é a justiça. Esta foi razão de ser que possibilitou o surgimento e expansão do Partido dos Trabalhadores. Mas para entender tal relação é necessário compreender esse mito fundante do PT e o que ele representa para o futuro do partido. O mito de origem fundante do Partido dos Trabalhadores é o socialismo, traduzido principalmente pela experiência da revolução cubana. Essa realidade pode ser vista na preocupação sempre presente de defesa da Revolução Cubana, de seus líderes e de suas ações políticas, mesmo as mais discutíveis. A origem é o que faz emergir. Este aparecimento deu lugar a algo que não existia antes, que produziu uma consciência própria, diferente da origem. A realidade daquilo que o PT é está colocada, mas também é algo que lhe é próprio. É uma tensão entre o ser-posto e o ser-próprio. A origem não liberta. Não se pode dizer que era e que não é mais. Constantemente a origem puxa: faz emergir, segura firme. É ela que estabelece o PT como algo. Mas, também para o PT, ser-posto no mundo significa amadurecer, envelhecer, morrer. 

A concepção conservadora no PT repousa no passado. Por essa razão, o pensamento e a política conservadora negam a mudança, presente e futura. Um exemplo é seu velho ideal de partido, o partido de leitura leninista,que é entendido como síntese dos interesses da classe proletária e nesse sentido sujeito histórico das transformações sociais. E por ser sujeito histórico do bem futuro, sua ação está acima da ética, porque encarna ele próprio a ética da nova sociedade. A força dessa concepção repousa no fato de que não considera o eterno como resultado da ação cultural e religiosa do ser humano. Embora a concepção conservadora reconheça o kairós, o situa no passado. O kairós é um tempo carregado de tensão e transformação, possibilidades e impossibilidades, qualitativo, e rico de conteúdo. Nem tudo é possível sempre, nem tudo é verdade em todos os tempos. O kairós reina no tempo presente ,que é diferente dos tempos do passado. É nessa viva consciência da história que está enraizada a idéia de kairós, e é a partir dela que deve ser construída uma ação política consciente da história. A concepção conservadora, presente no PT, desconsidera que se aconteceu no passado como evento, é ele, o kairós, quem se revela em todos os sim e não do passado, do presente e futuro. Ao perder o sentido supratemporal do kairós, o pensamento político conservador congela as possibilidades de transformação da história. 

O mito fundador do PT expressa com profunda riqueza este estado de coisas, com o testemunho de eventos nos quais o partido percebe sua origem. Em todos os mitos ressoam a lei cíclica do nascimento e da morte. Assim o mito transmite ao PT a segurança da origem e o coloca debaixo de seu império. A consciência mítica original do PT é a raiz do pensamento político conservador petista.    

Mas o PT foi além do colocar-se como realidade dada. Fez a experiência de uma exigência que o separou do imediato da concepção socialista e o levou a colocar-se diante da pergunta: por que? Esta pergunta quebrou o ciclo nascimento/morte e elevou o PT acima da esfera meramente socialista. Por que é a exigência de algo que tem que se tornar realidade. Quando se faz a experiência desse tipo de exigência não se está mais colado à origem. Vai-se além da afirmação do que já está. A exigência nomeia o que deve ser. E o que deve ser não é determinado com a afirmação daquilo que já é, significa que tal exigência impôs ao PT o incondicionado. O por que está fora dos limites da fonte. Através do por que o PT deve alcançar algo incondicionalmente novo. Este é o sentido da exigência: quando o Partido dos Trabalhadores, por ser um partido dividido, que tem contradições, faz esta experiência, ele detém um conhecimento próprio, por isso é possível ir além da realidade, além daquilo que o cerca. 

Tal é a liberdade do partido, hoje. Não tem uma vontade livre de circunstâncias e situações, mas não está preso, enquanto partido, ao que está dado. Sua existência e sua ação não estão amarradas na simples propagação de sua origem. Quando esta consciência se impõe, podem ser rasgados os os laços da origem, o mito original pode ser quebrado. Essa ruptura do mito original pelo incondicionado da exigência é a raiz da possibilidade de surgimento do pensamento democrático no Partido dos Trabalhadores. 

Mas, essa concepção que é progressista tem seus limites, pois considera o eterno um alvo infinito, existente em cada época, mas que não se apresenta enquanto irrupção. Assim, os tempos tornam-se sem decisão, sem responsabilidade. Na concepção progressista existe uma tensão diante do que foi, pois a consciência de que o alvo é inacessível a debilita e produz um compromisso continuado com o passado. A concepção progressista em si mesma não oferece opção ao que está dado. Transforma-se em crítica pontual desprovida de tensão, onde não há nenhuma responsabilidade última.  Este progressismo mitigado é a atitude característica da social-democracia. É uma que ameaça, é a supressão do anúncio da plenitude dos tempos. É o adversário do espírito profético.

A exigência que o PT faz na experiência diante do incondicionado não é estranha a ele. Se fosse estranha não poderia discernir tal coisa como exigência. Se ela lhe toca é porque coloca diante de seus olhos a sua essência enquanto exigência. Funda-se a incondicionalidade, a irrevogabilidade com que o dever-ser o confronta e exige ser afirmado por ele. Se a exigência da incondicionalidade é a própria essência de um partido dos trabalhadores, nascido das lutas sociais, essência do PT encontra seu fundamento na sua origem e, então, a providência e o destino não pertencem a mundos diferentes. Ainda, diante do original, o que é requerido é o incondicionalmente novo. Assim, a origem é ambígua. Há nela uma separação entre origem verdadeira e a origem real. O que é realmente original não é o que é original de verdade. 

A realização da origem é esta exigência e este dever-ser pelo qual o PT é confrontado. O por que do partido é a realização da sua providência. A origem real é negada pela origem verdadeira; mas certamente, não é uma pura e simples negação. A origem real tem que levar à verdadeira, ela é sua expressão, mas também disfarce e distorção. A pura consciência mítica original ignora todas as ambigüidades da origem. É por isto que esta consciência está presa à origem e considera sacrilégio toda a ultrapassagem da origem. Só a consciência que, fazendo a experiência da exigência da incondicionalidade, se livra dos laços de origem e se apercebe da ambigüidade da origem.    

O Partido dos Trabalhadores não recebe sua exigência incondicionada de outros partidos. É no encontro dele com a sociedade que a exigência torna-se concreta. Seu conteúdo é reconhecido pela sociedade com a dignidade de partido dos trabalhadores, dignidade para ser livre, portador da realização daquilo que aponta à origem. Reconhecer na sociedade uma dignidade igual ao de partido dos trabalhadores é justiça. A exigência que arrasta o PT à ambigüidade da origem é a exigência de justiça. A origem não rompida conduz a poderes em tensão que procuram a dominação tanto do partido como da sociedade. Quando a origem é rompida vem o poder de ser PT, o declínio dos poderes julgados por seu sacrilégio, de acordo com a ordem do tempo. 

Diante do poder e da impotência de ser PT, opõe-se a justiça, que provém do dever-ser. Portanto, não há uma simples oposição, porque o dever-ser é a realização do ser partido dos trabalhadores. A justiça é o verdadeiro poder do ser PT. Nisto se torna realidade o que é apontado na origem. Na relação entre os dois elementos da existência partidária e as raízes do pensamento político, a exigência predomina sobre a pura origem, e a justiça sobre o puro poder do ser PT. A pergunta do por que é superior à da providência. O mito original não deve representar no pensamento político mais do que uma crença desvelada. sse é o caminho da utopia socialista. Sem o espírito utópico socialista não há protesto, nem transformação. Mas, a utopia socialista quer realizar a eternidade no tempo, e esquece que o eterno abala o tempo e todos seus conteúdos. É por isso que a utopia socialista leva, necessariamente, à decepção. Progresso mitigado é o resultado da utopia socialista desencantada.

A idéia do kairós nasce da discussão com a utopia socialista. O kairós comporta a irrupção da eternidade no tempo, o caráter absolutamente decisivo deste instante histórico enquanto destino, mas tem a consciência de que não pode existir um estado de eternidade no tempo, a consciência de que o eterno faz a irrupção no tempo sem, contudo, fixar-se nele. Assim, a realização da visão profética se encontra além do tempo, lá onde a utopia socialista pode desaparecer, mas não a sua ação. Ora, toda transformação exige uma compreensão do momento vivido que vá além do aqui e agora. Deve projetar-se no futuro, deve entender que há um choque entre a utopia socialista e o kairós. É a partir dessa compreensão do que significa o espírito de profecia no tempo presente, que se deve voltar ao kairós, mas agora com novos conteúdos, construído enquanto responsabilidade inetulável. Tal desafio não pode ser resolvido por um líder, por mais carismático que seja. O sujeito da transformação é, em última instância, a comunidade dos excluídos.
  
As raízes do pensamento político mantêm relações que vão além da simples justaposição. A exigência predomina na origem. Onde são requeridas decisões, o conceito tradicional de realidade não é aplicável. Outra coisa é quando esta exigência vai além do momento imediato. Por isso, não é possível entender o socialismo quando não se experimenta a exigência de sua justiça como uma exigência do incondicionado. Quem não é confrontado pelo socialismo não pode falar do socialismo, a não ser enquanto expressão que vem do exterior.  Aqui reside a polarização de opiniões que a discussão sobre o socialismo no PT gera. Pois toda ação política requer autoridade, não só no sentido do uso do poder, mas também em termos de consentimento manifesto das pessoas. Tal consentimento só é possível quando o partido representa uma idéia-força que tenha significado para todos. Existe, pois, na esfera política uma relação entre a autoridade e a autonomia. Exatamente por isso, autoridade e autonomia estão presentes no Partido dos Trabalhadores e não podem existir sem correção da democracia. 

Aqui reside o desafio ao Partido dos Trabalhadores: manter seu socialismo de origem, sem se deixar congelar por ele; projetar seus sonhos, sem sacrificar vidas no altar da utopia: ser democracia, quando a intolerância e o arbítrio marcaram e fazem parte da tradição política brasileira. E ser voz profética que se projeta no tempo, além das classes, lá onde a utopia socialista deve desaparecer para que irrompa o kairós.

A importância do cristianismo para a práxis petista está em que cria paradigmas que reafirmam os valores da democracia e da liberdade e possibilitam o encontro de caminhos que ligam reforma e revolução, alinhavando as conquistas sociais com a criação de uma nova ordem fundada na expansão do espaço público e da desmercantilização da vida social. 

E isso é possível, porque a relação entre o cristianismo e a práxis do PT é profunda. Mas o fundamento de origem do cristianismo na formação da consciência brasileira e da práxis petista apresenta aproximações e estranhamentos, que não se traduzem em tendência à cisão, mas juízos reveladores da força de origem das utopias. O cristianismo, enquanto visão de mundo é utópico e normativo, age para expandir e renovar o sentido transformador da experiência cristã no seio da sociedade brasileira e da práxis petista, e é exatamente esse movimento que leva tanto às aproximações quanto aos estranhamentos. Em sua própria forma de ser o cristianismo trabalha com mediações de valores e daquilo que deve ser. Coloca-se assim na antípoda do realismo político, em particular de suas expressões pragmáticas, de afinidade com os valores liberais de mercado. 

O cristianismo brasileiro, a partir de sua experiência comunitária, distanciou-se do poder de Estado e firmou-se em sua autonomia de origem social e de identidade cultural. Assim, no período republicano, é escassa sua experiência de sua matriz governativa, tendo, principalmente a partir dos anos 1960, optado pela paixão dos humilhados e ofendidos à força imanente dos símbolos de poder. Mas, ao mesmo tempo, essa presença e força faz do cristianismo, através de milhares de igrejas e entidades, o poder de maior experiência frente às expresões da barbárie e opressões. Nas favelas, no sertão nordestino, nos cárceres, entre as crianças sem lar, idosos sem abrigo, entre as prostitutas, entre os aviltados, se faz presente a mão fraterna da Igreja. 

Tomado nesta perspectiva, o cristianismo não é mera instituição ou poder institituído, nem mesmo programa ou modelo fixado de respostas aos grandes dilemas da política, mas movimento gerador de paradigmas, que possibilitam reflexões sobre os fundamentos da vida na comunidade política. Esses paradigmas propõem conceitos, ordenação de valores, estilos de pensar e fazer a política. 

Há nesses paradigmas questões fundamentais que o diferenciam dos paradigmas liberais e burgueses. A primeira é o modo como define a liberdade, não em sentido negativo, de espaço da ausência de intervenção do Estado. A liberdade para o cristianismo significa não depender de vontade arbitrária, o que aproxima o conceito liberdade da noção de autonomia, embora vá além, transceda. A segunda é que para a burguesia liberal, o Estado mínimo maximiza a liberdade. Mas o cristianismo relaciona liberdade e igualdade. Dentro da tradição burguesa liberal, o desejo de igualdade ameaça à liberdade, produzindo tensões entre as duas metas. E a maneira de enfrentar o problema, para a burguesia liberal, repousa sobre a noção de igualdade de oportunidades diante do mercado. Para o cristianismo é a desigualdade que provoca riscos à liberdade. A terceira questão é o modo como se relaciona o indivíduo e o Estado: a burguesia liberal coloca o acento na dinâmica da sociedade civil, pensada como em oposição ao Estado, em particular em sua dimensão mercantil. Já o cristianismo coloca o acento nas responsabilidades cidadãs, de participação na comunidade política, na formação de uma práxis imprescindível à proteção do corpo político das ameaças à própria liberdade, que não pode ser garantida apenas por boas leis. Esta práxis política comum requer uma comunidade de valores, a noção de bens públicos, uma fundação e uma narrativa da construção de um modo de viver em liberdade, que faz com que os cidadãos sintam-se, apesar das diferenças, parte de uma mesma comunidade política. 

Mas, o que esse cristianismo de leitura latino-americana, esse cristianismo mestiço, apresentou de novidade ao socialismo real. Em primeiro lugar o conceito de identidade, onde se deve partir da identidade particular de cada pessoa, de cada grupo humano e da família. Da identidade da comunidade, do estado, da nação, das nações latino-americanas e da identidade universal, humana. Foi assim que o cristianismo mostrou ao socialismo real que universalidade significa um complexo de identidades e que ninguém pode em nome dela impor sua própria identidade. Mas o cristianismo latino-americano mostrou ao socialismo real que todos têm direito a uma civilização superior. E aqui superior traduz aquilo que é espiritual. 

Nisso reside a essência do fenômeno cultural e religioso vivido no Partido dos Trabalhadores. Não consiste, porém, em situar o problema de crer ou não crer em Deus, já que o dilema da existência de algo mais além do que a ciência reconhece é e será sempre uma opção da pessoa. O que explica não haver dentro do Partido dos Trabalhadores formas expressas de dogmatismos de fundamentos culturais e religiosos. O militante do PT, esclarecido, não se move por esquemas religiosos. Na verdade, a grande aspiração da teologia da libertação presente no PT era uma aproximação às questões da fé sem contradizer a ciência. Isso explica porque ao invés de florescer no Partido dos Trabalhadores princípios dogmáticos, de enquadramento do socialismo, apareceram princípios éticos. Essa é uma das chaves do pensamento do PT original: o que em outros partidos se impõs como esquemas rígidos ou pressupostos definitivos, no PT apareceu como princípios éticos. Não podemos dizer que o PT tenha sido em sua origem um partido dogmático, embora tenha sido um partido firme no que se refere a determinadas idéias. Nesse sentido, esse amálgama com as idéias cristãs, o levou a combater a nostalgia neoliberal. O PT olhou com rigor crítico essa volta ao passado. E isso em grande parte se deve ao pensamento proposto pelos teólogos da libertação que explicaram esse incapacidade científica das disciplinas sociais, econômicas e políticas na modernidade burguesa pelo fato de que não analisarem toda a realidade. Incapacidade de enxergarem a dor da pessoa, a dor da comunidade, da nação, humana. A dor é uma realidade histórica, angustiante e óbvia, por isso não pode estar fora da análise da política. 

Essa compreensão se faz solidária com o sofrimento humano e molda a voz cristã com a impaciência do que urge. Assim, falar da influência do cristianismo, em especial da Igreja popular, na consciência pública contemporânea brasileira é trabalhar com as noções de fundamento e de formação. Não é uma situação onde um ser constituído exerce influência sobre a evolução de outro ser. São processos formativos em mútua compenetração. Assim, o cristianismo brasileiro, através de sua leitura libertadora, fez a afirmação da liberdade como emancipação do poder arbitrário, compatível com os ideais de liberdade e igualdade, com acento na participação como fundamento das virtudes da comunidade política. Tal compreensão tem óbvias afinidades com a práxis do PT e faz parte, inclusive, da própria pré-história do PT. A própria identidade socialista e democrática do PT pode ser imaginada a partir dessa práxis. O socialismo proposto pela filosofia da libertação, que integra o valor da soberania popular, seria, desse ponto de vista, um socialismo religioso. Como história vivida e em transformação, essa imaginação trouxe para os petistas, desafiados pelo esforço de transformar o Brasil, um campo possível de experiência e programa. Para a própria construção do PT foi central o papel da Igreja na formação de uma práxis dos direitos humanos na moderna democracia brasileira. Esta presença, fundamental nos anos da ditadura militar, ganhou alento nas duas últimas décadas através da estratégia da particularização dos direitos como demanda de pastorais específicas, como a das crianças, idosos, carcerária, das prostitutas, e das campanhas da fraternidade. Não é marginal a presença da Igreja no movimento pela ética na política. Pelo contrário, a primeira lei contra a corrupção eleitoral teve na Igreja progressista sua inspiração através da liderança de Chico Whitaker, vinculado à CNBB. A luta contra a corrpução política faz parte da mensagem da Igreja.

O PT, partido ligado ao mundo do trabalho, à esquerda socialista e à Igreja popular, fez do seu nascimento tardio um enigma aberto à história, ao colocar no centro de sua identidade as relações entre socialismo e democracia. De fato, esta relação ainda não encontrou uma solução estável, a partir de alguma experiência histórica, na tradição socialista. O desafio lançado aos socialistas ainda não encontrou uma resposta: pela democracia ainda não se chegou ao socialismo, mas lançando-se contra a democracia, o socialismo traiu seus ideais de emancipação social. 

O caráter tardio do nascimento do PT explica sua identidade. No final dos anos 1970, já estava muito avançado o processo de desestalinização da práxis do socialismo internacional e, por diferentes caminhos e pensamentos, o tema da relação entre socialismo e democracia, voltava à cena. Houve, nesta práxis, tentativas de de resposta: a trotsquista, que defendeu os valores do pluralismo e os direitos humanos na democracia socialista; a do grupo francês "Socialismo ou Barbárie", que desdobrou-se na crítica ao totalitarismo e na defesa da democracia como instituição social permanente, a partir dos conflitos, e na postulação da autonomia como valor fundante; e a eurocomunista, que afirmava a democracia como um valor universal e, portanto, compatível com o socialismo. 

Mas há um outro caminho, percorrido por teólogos protestantes nos anos 1960. Essa militância não se identificou simplesmente com a esquerda histórica, mas teve forte influência
De teologia protestante das primeiras décadas do século XX. O socialismo para eles era mais que um movimento histórico, mais que um programa, antes uma ética e uma política que necessitam de uma atitude profunda por parte do ser humano, da mesma maneira que a ressurreição não é apenas uma figura da insurreição, mas de irrupção da eternidade. Por isso, não separaram militância e discipulado, pois o socialista religioso tem um duplo engajamento, está presente nas comunidades dos trabalhadores, nas fábricas e nas periferias das grandes cidades industriais, mas também nas comunidades de fé. É esse duplo engajamento, de trabalhador e de cristão, que faz dele não apenas massa, mas também membro do corpo. Esse socialista religioso, no entanto, deve fazer uma autocrítica do parêntese marxista, e reconhecer a crise do socialismo. Por isso, os socialistas religiosos têm três tarefas: elaborar um socialismo pós-marxista: passar do socialismo científico a um socialismo ético; entender que o socialismo deve retornar às suas raízes cristãs e em especial estabelecer uma relação nova com o princípio protestante, enquanto desafio anti-weberiano que não identifica a ética protestante e com o espírito do capitalismo mas, ao contrário, o espírito protestante e com a ética do socialismo. O que leva a uma terceira tarefa, lutar contra o pensamento fraco da pós-modernidade, hoje dominante, e relançar uma cultura histórica baseada nas fontes da tradição cristã e aberta ao socialismo.

Mas, não podemos esquecer que os políticos de esquerda são sensíveis às crises ideológicas
E, por isso, intelectuais protestantes ligados ao socialismo, muitas vezes, diante da crise, propõem um retorno às idéias socialistas anteriores a Marx, numa linha que remonta à revolução francesa, e que apresentam um ideal amplo de justiça, de legalidade, de solidariedade e de direitos humanos. Mas, em termos políticos, o melhor caminho creio ser o de trabalhar no sentido de redimensionar Marx, de releitura da história do pensamento filosófico e político redescobrindo o primado de Hegel e Marx. Isto porque a desilusão antes as utopias marxistas não conduzem a nada, ao contrário, levam a sobrevalorizar a história em detrimento do escatológico. Mas, será possível construir um novo socialismo unicamente a partir da recuperação da cultura histórica? E será a escatologia cristã suficiente para dar sentido à história? Depende do socialismo que propomos. Pode-se dizer que o socialismo se diluiu, que se transformou em fumaça ideológica de contornos imprecisos. Mas há a marca evidente de uma herança comum entre socialismo e cristianismo, é sua afirmação do caráter comunitário da esperança. Esse é o caminho do socialismo religioso.

No PT, a presença cristã católica ocupou um lugar central na crítica do stalinismo e no repensar a crise do socialismo. O solidarismo, enquanto leitura social que relaciona pessoa e comunidade, poder de pensar e desejo de viver, é uma resposta ao socialismo compulsório, que despersonaliza, assim como à sociedade de consumo, que transforma a pessoa em objeto consumidor. Esta imbricação, poder de pensar através da pessoa em comunidade e querer viver enquanto pessoa na comunidade, forma o núcleo do paradigma solidário. Nele, a prova existencial do que é vivido e a sua compreensão intuitiva precedem qualquer procura filosófica. É por isso que se constrói em direção ao ser humano. 

O solidairsmo teve papel na formação de uma geração de lideranças cristãs católicas no Brasil. Assim, um pensamento cristão, político, procurou responder à crise do capitalismo, mas fazendo a crítica do sentido anti-humanista das formas dominantes do socialismo real. Hoje, esse solidarismo coloca-se como resposta não somente ao stalinismo, mas à própria crise do socialismo. Os cristãos católicos brasileiros posicionaram-se em eqüidistância do capitalismo e do stalinismo. Admitiram a propriedade privada como direito, inscrita na afirmação de sua função social, trabalhando com o solidarismo e o princípio da socialização na sociedade moderna, das dimensões coletivas na vida social. Teóricos do PT estudando as formulações da economia solidária se aproximaram desse comunitarismo cristão. Assim, o socialismo defendido pelo PT, que se propõe a compatibilizar as metas de uma nova sociedade com o princípio da soberania dos trabalhadores e do povo, implica em trazer o marxismo para o solo do cristianismo, elevando o seu conceito de público a uma perspectiva anti-burguesa. Neste retorno e nesta função de duas visões anti-liberais, a cristã e a socialista, há um potencial de experiência histórica, de inovação conceitual e de imaginação de novos futuros possíveis. 

A práxis participativa desenvolvida pelo PT, antes de ser governo, e o potencial entrevisto nas formas de economia solidária devem ser  repensadas como formas avançadas de construção do poder e da economia, não estritamente estatal. Poderiam abrir espaços de experiência social para dar a essas inovações um caráter nacional. A agendas do Fórum Social Mundial ganhariam um sentido de busca de simetria de direitos e deveres entre os povos do mundo, diante de um contexto de concentração do poder econômico, militar e geopolítico. A práxis cristã do socialismo do PT seria, assim, uma forma de disputar valores na democrática brasileira com os poderes e interesses do liberalismo e do patrimonialismo. A utopia do PT se enraizaria, de modo amplo, na tradição histórica da formação cristã brasileira, de superação das heranças da condição colonial, escravocrata, e de aviltamento dos direitos do trabalhador. Neste encontro entre cristianismo e socialismo pode-se repensar as relações entre reforma e revolução, questão não resolvida na tradição socialista clássica. O conceito de transição formulado no contexto de avanços democráticos poderia atualizar seu sentido, unindo as conquistas do cotidiano com a noção de uma civilização organizada fora dos parâmetros dominantes do mundo do capital e da opressão.

As utopias brasileiras não cessaram de interrogar suas origens. Um partido do socialismo revisita a práxis das comunidades cristãs, católicas e protestantes, solidárias e socialistas religiosas que se fazem presentes, como forças básicas de sua formação. Conhecer suas origens, transformar-se a si mesmo para transformar o mundo: neste campo da práxis não há derrota definitiva para as forças da emancipação. O cristianismo, enquanto síntese de práxis, adquiriu no processo da civilização brasileira uma universalização. Nesta dialética entre igreja cristã e povo brasileiro, o ideal de justiça é  redentor: « erit opus iustitiae pax, et cultus iustitiae silentium, et securitas » Isaiae 32.17.

samedi 23 juillet 2016

Olhar na contramão

Olhar na contramão
Por Jorge Pinheiro


Gnocchi alla crema
Começou pela borda
Olhar fixo
Gorgonzola gratinati

Al forno con olio tartufato
Por onde o pé caminha
Olhava sem tirar o olho
Lasagne al ragù di carne

Alla Toscana, Chianti
Pelo chão da firmeza
Ela picniqueava na dele
Panne artesanal

Casa Sasso di Dante
As pernas abertas
Sem o amasso do peso
Fa caldo, Fiorenza augusta e bella

Tutto che circonda
O vestido não cobria
A calcinha de pois preto
Do barro que cola na sola
Lèvati, Aquilone, e vieni, o Austro!

Ele olhava fixo
Sem a lama que amola o lustro
Ela levantou-se na prontidão do passo
Soffiate sul mio giardino, 

Sì che se ne spandano gli aromi!
Ar bravo e chegou-se
Na esteira da linha fixa da montagem
Sem besteira dita alhures

No vão da despreocupação
Por que o senhor não tira 
Com respeito, ousadia, direção
Gli occhi del mio giardino?

De quem sabe que a sizânia não se espalha
Ele continuou a olhar o nada
O em cima está aqui na frente,
Ao alcance da mão operosa,

Desculpe senhorita, sou cego!
Coração sábio, o futuro se constrói
Então o senhor não viu nada?
Nada, nadinha? Pobre!

Com os movimentos de hoje
Venga l'amico mio nel suo giardino,
e ne mangi i frutti deliziosi!
E vissero felici e contenti






Política e religião

POLÍTICA E RELIGIÃO
JORGE PINHEIRO, PhD
 
Introdução

Religião e política não são realidades estanques. Isto porque as raízes do pensamento político não são apenas pensamentos. Pensamento político é a expressão de um ser político, de uma situação social. Não se pode entender o pensamento quando se subestimam as realidades sociais das quais vem o pensamento político. 

As raízes do pensamento político não podem agir com uma força igual em todo momento e em todo grupo. Um ou outro pode predominar, depende de uma situação social, grupos ou formas de dominação determinadas. Depende de estruturas sociopsicológicas, da interação com a situação social objetiva. 

Partimos, em nosso estudo, de uma antropologia da imago Dei e de uma teologia da existência. Assim, nosso primeiro referencial é o ser. Nesse sentido, podemos dizer que trabalhamos com uma fenomenologia política quando analisamos questões como o ser, a origem do pensamento político, enquanto mito, e a partir daí procuramos trazer à tona os elementos não reflexivos do pensamento político. 

1. A questão existencial, presente na teologia, nos leva a uma antropologia existencial. Ora, a questão existencial é traspassada pela religião, que é a dimensão da profundidade, o espectro da profundidade na totalidade do espírito humano.

A metáfora profundidade significa que o aspecto religioso aponta em direção àquilo que, na vida espiritual do ser humano, é último, infinito e incondicional. No sentido mais amplo e fundamental do termo, religião é preocupação última. E a preocupação última se manifesta em absolutamente todas as funções criativas do espírito humano. Assim, a religião constitui a substância, o fundamento e a profundidade da vida espiritual do ser humano.

Nem sempre é necessário perguntar pelas raízes de um fenômeno espiritual ou social. Muitas vezes tal pergunta mostra-se supérflua, principalmente quando um testemunho saudável revela a integridade das raízes. Mas quando se apresentam distorções ou desvios, quando o testemunho congela ou a vida principia a desaparecer, então se torna necessário perguntar: quais são suas raízes? 

2. É necessário procurar pelas raízes do pensamento político no próprio ser humano. Sem uma imagem do ser humano, de suas forças e tensões, não se pode dizer nada sobre as fundações políticas do pensamento e do ser político. Sem uma teoria do ser humano, não se  pode construir uma teoria das orientações políticas. 

O ser humano diferente da natureza, é um ser dividido. Não importa saber onde termina a natureza e onde começa o ser humano, não importa que a passagem entre os dois se faça através de lentas transições ou por um salto. O importante é que em determinado momento, a diferença ficou clara.

Há, no entanto, um processo vital indiviso, que desdobra natureza sem interrogar nem requerer, um processo que está ligado àquilo que se encontra nele e faz parte do que ele é. Assim, existe um processo vital que deseja saber sobre o ser humano, e que coloca algumas questões para ele: já não é indiviso, mas também dividido. É idêntico a si mesmo quando diante de si mesmo, no ato de pensar e de conhecer. Mas não apenas isso.

3. O ser humano tem consciência de si mesmo, ou em outras palavras, distingue-se da natureza enquanto ser que se desdobra, tornando-se um ser consciente de si mesmo. A natureza ignora esta divisão. Por isso, o ser humano não é uma combinação de duas partes autônomas, tais como natureza e mente ou corpo e alma, mas um só ser, porém fendido em sua unidade.
    
Estas determinações gerais levam a algumas considerações no que se refere à pesquisa do pensamento político. Elas negam qualquer dedução do pensamento político enquanto puro movimento de pensamento, de exigências ético-religiosas, ou considerações ditadas por determinada cosmovisão. 

4. O pensamento político vem do ser humano enquanto unidade. Está enraizada no ser e na sua consciência, mais precisamente em sua unidade indissolúvel. É por isso que não se pode entender um sistema de pensamento político sem contextualizar seu enraizamento no ser humano enquanto ser social, ou seja, o imbricamento de pulsões e interesses, os constrangimentos e as aspirações constituintes do ser social. 

Mas também é impossível separar o ser de sua consciência, ou ver o pensamento político como simples subproduto do ser. Assim, a consciência estrutura todo o ser do ser humano, todo o ser social, em cada um de seus elementos, inclusive as sensações pulsantes mais primitivas. 

Quando tenta desfazer laços passa-se ao largo da primeira e mais importante característica da essência humana, o que produz uma distorção no quadro geral que ele faz de si próprio, de que há uma consciência inadequada ao ser, uma falsa consciência, mas que não invalida a unidade do ser e da consciência. Isto porque, afirma, o conceito de falsa consciência não é possível quando a coisa que se designa é não conhecível. Assim, a consciência justa é uma consciência que emerge do ser e ao mesmo tempo o determina. Não pode ser uma coisa sem ser a outra, porque o ser humano é uma unidade na divisão, e desta unidade nascem as duas raízes de todo pensamento político. 

5. O ser humano se encontra enquanto realidade dada, assim como seu ambiente. Mas estar no mundo enquanto realidade significa aquele não vem da si mesmo, que ele não é sua própria origem. Conforme diz Heidegger, o ser humano é um “ser lançado”. Esta situação leva o ser humano a colocar-se o problema da fonte. O que mais tarde vai aparecer como questão filosófica. Mas tal discussão é uma construção, e o mito apresenta a primeira resposta, enquanto determinante para a discussão de conjunto.   
 
6. A origem é o que faz emergir. Este aparecimento dá lugar a algo novo, que não existiu antes, que produz uma consciência própria, diferente da origem. A realidade que somos está colocada, mas também é algo próprio. É uma tensão entre o ser-posto e o ser-próprio.

Mas, a origem não nos liberta. Não se pode dizer que era e que não é mais. Constantemente somos puxados pela origem: ela nos faz emergir, nos segura firme. É ela que nos estabelece como algo, enquanto essência. Dessa maneira, ser-posto no mundo supõe caminhar para a morte. 

6. A concepção conservadora admite o surgimento do eterno no tempo, que repousa no passado. Por essa razão nega toda mudança, presente ou futura. A força dessa concepção repousa no fato de que considera o eterno como dado e não como resultado da ação cultural e religiosa do ser humano. 

A concepção conservadora também reconhece o kairós, mas o situa no passado. Desconsidera que se aconteceu no passado como acontecimento único, é ele quem se revela em todos os sim e não do passado, do presente e futuro. Sob tal visão repousa o pensamento político conservador. Perdeu o sentido supratemporal do kairós.

7. O mito expressou com profunda riqueza este estado de coisas, com o testemunho de  objetos e eventos nos quais o grupo humano percebe sua origem. Em todos os mitos ressoam a lei cíclica do nascimento e da morte. Todo o mito é mito da origem, responde à pergunta da providência e conta porque somos segurados na origem e estamos debaixo de seu império. A consciência mítica original é a raiz de todo o pensamento político conservador e romântico.    

Mas o ser humano vai além do colocar-se como realidade dada, vai além do saber colocar-se diante do ciclo do nascimento e a morte. Faz a experiência de uma exigência que separou o imediato da vida e o leva a colocar-se diante da pergunta da providência uma outra pergunta: por que?

Esta pergunta quebra o ciclo de uma maneira fundamental, eleva o ser humano acima da esfera do simples viver. Porque é a exigência de algo que não está aí, que tem que se tornar realidade. Quando se faz a experiência desse tipo de exigência não se está mais colado à origem. Vai-se além da afirmação do que já está. A exigência nomeia o que deve ser. E o que deve ser não é determinado com a afirmação daquilo que já é, disso que é, significa que tal exigência impôs ao ser humano o incondicionado. 

O “por que” não está dentro dos limites da fonte. É o incondicionalmente novo. É através do “por que” que o ser humano deve alcançar algo do incondicionalmente novo. Este é o sentido da exigência, quando o ser humano, por ser dividido, faz esta experiência. Ele detém um conhecimento próprio, por isso é possível ir além da realidade, além daquilo que o cerca. 

9. Tal é a liberdade do ser humano: não que ele tenha uma vontade livre, mas não está preso, enquanto ser humano, ao que está dado. O ciclo do nascimento e morte foi quebrado, sua existência e sua ação não estão amarradas na simples propagação de sua origem. Quando esta consciência se  impõe, são rasgados os laços da origem, o mito original está quebrado. A ruptura do mito original pelo incondicionado de exigência é a raiz do pensamento político liberal,  democrático e socialista. 

A concepção progressista considera o eterno um alvo infinito, existente em cada época, mas que não se apresenta enquanto irrupção. Assim, os tempos tornam-se vazios, sem decisão, sem responsabilidade. Na concepção progressista existe uma tensão diante do que foi. Mas a consciência de que o alvo é inacessível a debilita e produz um compromisso continuado com o passado. A concepção progressista não oferece nenhuma opção ao que está dado. Transforma-se em progresso mitigado, em crítica pontual desprovida de tensão, onde não há nenhuma responsabilidade última .  

Este progressismo mitigado é a atitude característica da sociedade burguesa. É um perigo que ameaça constantemente, é a supressão do não e do sim incondicionados, a supressão do anúncio da plenitude dos tempos. É o verdadeiro adversário do espírito profético .

10. A exigência que o ser humano faz na experiência diante do incondicionado não é estranha a ele. Se fosse estranha à sua essência, não lhe seriam concernentes e ele não poderia discernir tal coisa como exigência. Se ela lhe toca é porque coloca diante de seus olhos sua essência enquanto exigência. Funda-se a incondicionalidade, a irrevogabilidade com que o dever-ser aborda o ser humano e exige ser afirmado por ele. 

Se a exigência é a própria essência do ser humano, então ela encontra seu fundamento na sua  origem, e então a providência e o destino não pertencem a mundos diferentes. Ainda, diante do original, o que é requerido é o incondicionalmente novo. Assim, a origem é ambígua. Há nela uma separação entre origem verdadeira e a  origem real. O que é realmente  original não é o que é original de verdade. 

A realização da origem é esta exigência e este dever-ser pelo qual o ser humano é confrontado. O “por que” do ser humano é a realização da sua providência. A origem real é negada pela origem verdadeira; mas certamente, não é uma pura e simples negação. A origem real tem que levar à real verdadeira, ela é sua expressão, mas também disfarce e distorção. A pura consciência mítica original ignora todas as ambigüidades da origem. É por isto que esta consciência está presa à origem e considera sacrilégio toda a ultrapassagem da origem. Só a consciência que, fazendo a experiência da exigência da incondicionalidade, se livra dos laços de origem e se apercebe da ambigüidade da origem.    

A exigência quer a realização da origem verdadeira. Porém o ser humano não recebe uma exigência incondicionada de outros. É no reencontro do "eu e você" que a exigência torna-se concreta. Seu conteúdo é reconhecido no você com a dignidade do "eu", a dignidade para ser livre, portador da realização daquilo que  apontada à origem. Reconhecer no você uma dignidade igual ao do eu, isto é justiça. 

11. A exigência que nos arrasta à ambigüidade da origem é a exigência de justiça. A origem não rompida conduz a poderes em tensão que procuram a dominação e destroem um ao outro. Quando a origem é rompida vem o poder do ser, o declínio dos poderes que "expiam e são julgados por seu sacrilégio, de acordo com a ordem do tempo", como já evocou a filosofia grega. 

A exigência incondicional eleva acima deste ciclo trágico. Diante do poder e da impotência do ser, opõe a justiça, que provém do dever-ser. Portanto, não há uma simples oposição, porque o dever-ser é a realização do ser. A justiça é o verdadeiro poder do ser. Nisto se torna realidade o que é apontado na origem. Na relação entre os dois elementos da existência humana e as duas raízes do pensamento político, a exigência predomina sobre a pura origem, e a justiça, sobre o puro poder do ser. A pergunta do “por que” é superior à da providência. O mito original não deve representar no pensamento político mais do que uma crença rompida, uma crença desvelada.    

Esse é o caminho da utopia. Sem o espírito utópico não há protesto, nem espírito profético.  

Isto é exato na medida em que cada tensão orientada para adiante comporta uma representação daquilo que deve vir e de como se entende a realização desse ideal. Eis porque o espírito da utopia está presente em todo agir incondicionalmente decidido, em todo agir orientado à transformação do presente .

12. A utopia quer realizar a eternidade no tempo, mas esquece que o eterno abala o tempo e todos seus conteúdos. É por isso que a utopia leva, necessariamente, à decepção. Progresso mitigado é o resultado da utopia revolucionária desencantada.

A idéia do kairós nasce da discussão com a utopia. O kairós comporta a irrupção da eternidade no tempo, o caráter absolutamente decisivo deste instante histórico enquanto destino, mas tem a consciência de que não pode existir um estado de eternidade no tempo, a consciência de que o eterno é, em sua essência, aquele que faz a irrupção no tempo, sem contudo fixar-se nele.

Assim, a realização da visão profética se encontra além do tempo, lá onde a utopia desaparece, mas não a sua ação.  

Considerações finais

Metodologicamente, toda mudança, toda transformação exige uma compreensão do momento vivido que vá além do meramente histórico, do aqui e agora. Deve projetar-se no futuro, deve entender que há no espírito profético da responsabilidade inelutável um choque entre este kairós e a utopia, que pensa poder fixar a eternidade no tempo presente. Tal desafio não pode ser resolvido por um ser humano, por mais que encarne o espírito da profecia. O sujeito da transformação será, em última instância, a massa.
  
Essas duas raízes do pensamento político mantêm entre elas uma relação que é mais do simples justaposição. A exigência predomina na origem. Considerando as várias tendências políticas, não se pode supor que elas sejam atitudes humanas justificadas. Onde são requeridas decisões, o conceito tradicional de realidade não é aplicável. Outro, no entanto, é quando estamos diante de uma exigência do incondicionado. 

Ninguém pode entender o solidarismo cristão se não experimentar a exigência de sua justiça como uma exigência do incondicionado. Quem não é confrontado pelo solidarismo não pode falar do socialismo, a não ser enquanto expressão que vem do exterior.  Não podem falar dele em verdade, porque é contrário às tendências políticas que defendem. Aí está o nó da origem.

Mas, todo sistema político requer autoridade, não só no sentido de possuir instrumentos de força, mais também em termos de consentimento mudo ou manifesto das pessoas. Tal consentimento só é possível se o grupo que está no poder representa uma idéia poderosa, que goze de significado para todos.


Considerações finais


Existe, pois, na esfera política uma relação entre a autoridade e a autonomia, relação que se caracteriza assim: 

Toda estrutura política pressupõe poder e, conseqüentemente, um grupo que o assume. Mas um grupo de poder é também um conglomerado de interesses opostos a outras unidades de interesses e sempre necessita uma correção. A democracia está justificada e é necessária na medida em que é um sistema que incorpora correções contra o uso errôneo da autoridade política.

Assim, religião e política não são realidades estanques, porque as raízes do pensamento político não são apenas pensamentos. E por isso, religião e política estão imbricados, mas não existem sem a necessidade de correção, ou seja, da democracia, enquanto grupo no poder.

São Paulo, 23 de abril de 2003.

jeudi 21 juillet 2016

PT -- do projeto socialista ao pragmatismo

Um, dois, três
Jorge Pinheiro


Na primeira campanha do Partido dos Trabalhadores, em 1982, quando Luiz Inácio Lula da Silva concorreu ao governo paulista, o número da sigla era o três, não o 13. Os slogans: "Vote no três porque o resto é burguês" e "Trabalhador vota em trabalhador" traduziam os princípios do novo partido, que teve sua "Carta de princípios" lançada em 1979 e foi fundado no ano seguinte. O PT nasceu se auto-afirmando como partido de classe. Desejava representar os assalariados contra os patrões. "O PT buscará (...) uma sociedade igualitária, onde não haja explorados nem exploradores", dizia o manifesto de 1980.


No 1º Encontro Nacional do PT, em 1981, Lula anunciou o caráter "socialista" do partido. Seguindo a tradição do "Manifesto Comunista" (1848), disse que "a libertação dos trabalhadores será obra dos próprios trabalhadores". Mas apesar de defender uma sociedade sem classes, o PT nunca se declarou marxista, isso porque duas das suas três matrizes formadoras não eram marxistas, os ativistas católicos e os sindicalistas. Mas sua terceira matriz foi formada por militantes de organizações de esquerda, que se inspiravam em Karl Marx, Vladimir Lênin, León Trotski e outros marxistas históricos.


Nas suas origens, o PT condenou o autoritarismo da União Soviética e o que considerava excessiva moderação política do Partido Comunista Brasileiro, sobretudo pelas alianças que historicamente tentou construir com a burguesia nacional. A partir dos anos 90 mudou radicalmente esse leitura política. No cenário internacional, o PT deu seus primeiros passos iniciais num ambiente conturbado pela revolução sandinista na Nicarágua (1979) e o movimento Solidariedade na Polônia pró-soviética.

Depois da discreta estréia nas urnas em 1982, o PT fomentou a fundação da CUT (1983) e mergulhou na campanha das Diretas (1984). 

Em 1985, recusou-se a comparecer ao Colégio Eleitoral e a votar na chapa Tancredo-Sarney contra Paulo. Era uma época de formulações à esquerda, pela "estatização do sistema bancário e financeiro", conforme o 4º Encontro Nacional do PT, 1986 e "estatização dos serviços de transportes coletivos" (5º Encontro Nacional do PT, 1987).


Mas foi a eleição para a Prefeitura de Fortaleza, em 1985, que mostrou ao PT a diferença entre ser oposição e ser governo. E por falta de experiência em adequar seu discurso à realidade de governo de uma importante cidade nordestina, o PT fracassou em Fortaleza. E Luiza Erundina, eleita em 1988 na cidade de São Paulo, teve que se debater nos conflitos com o partido que acabou por abandonar. Ainda em 1988, o PT venceu as eleições para a prefeitura de Porto Alegre, onde conseguiu fazer um governo que conquistou o eleitorado e população da cidade, ao contrário as experiências de Fortaleza e São Paulo. 

Começava a surgir um modelo petista de governar, mais pragmático e que procurava evitar as palavras de ordens dos primeiros anos de formação do partido. Mas tal modelo não conquistou corações e mentos de imediato. E não se traduziu de forma clara na campanha presidencial, quando Lula enfrentou Fernando Collor de Mello, e recebeu 17,01% dos votos válidos no primeiro turno da eleição de 1989, e perdeu no segundo turno. Até aquele momento o PT estabelecia como objetivo não só de administrar a sociedade, mas de revolucioná-la, conforme havia expressado o 6º Encontro Nacional do PT, 1989: "O conteúdo socialista da candidatura Lula (...) deverá criar condições para o socialismo". É interessante que mesmo influenciando a Constituinte no sentido de uma forte tonalidade social à nova Carta, os deputados do PT, conforme decisão do partido, se recusaram a assiná-la.


A reviravolta internacional, com o fim da União Soviética e a volta da economia de mercado no Leste europeu, teve impacto definitivo na virada dos anos 80 para os 90. Embora o PT nunca se tenha declarado parte do campo soviético, a nova ordem obrigou o partido a repensar o mundo. E assim ele começou a pensar num "renovado projeto de socialismo democrático", embora mantendo sua visão histórica de recusar ""o mercado capitalista (...) como forma de organização da produção social" (1º Congresso, 1991). Mais tarde, diante da corrupção e da crescente oposição popular ao governo Collor, o PT levantou-se como mola propulsora da campanha "Fora, Collor". Quando o presidente caiu, o partido negou-se a integrar o governo Itamar Franco, apesar de convidado.


As derrotas de Lula em 1994 e 1998 ocorreram numa conjuntura em que as mobilizações sindicais que haviam apoiado o partido arrefeceram. O apoio ao Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra -- MST, dirigido por militantes do PT ligados à igreja,  assustava a classe média. Mas, nessa época, o PT começou a atenuar suas formulações sobre o socialismo e realçando os valores da democracia. Propôs uma "revolução democrática" cujos contornos remetem aos partidos socialistas europeus, em especial o PS francês e o SPD alemão. Como consequência sua postura diante da reforma agrária mudou, antes deveria ter  o "controle dos trabalhadores", agora enquadrava-se na Constituição. Essa compreensão da importância de democracia, fez com que o PT buscasse um equilíbrio entre luta anti-capitalista e antigos ideais, assim a bandeira do não-pagamento da dívida externa foi reformulada para suspensão, mas em dezembro de 2001, o 12º Encontro Nacional do PT reafirmou a necessidade de uma "ruptura necessária" com o neoliberalismo e aprovou a "denúncia do acordo com o FMI". Já na campanha presidencial , a palavra ruptura colocada de lado e um novo acordo com o FMI foi aceito.


O 12º Encontro Nacional do PT declarou a fé partidária nos "valores do socialismo democrático". Mas se o socialismo do PT nunca foi a ditadura do proletariado idealizada pelo líder da revolução russa de 1917, Vladimir Lênin, nem era mais a "socialização dos meios de produção" do 4º Encontro Nacional do PT, de 1986, faltava definir quais eram esses valores do socialismo democrático. Mas a direção do partido não considerou necessária tal definição, embora tenha descartado a terceira via do Labor Party de Tony Blair. 

Sem dúvida, o PT estava mudando, mas de forma pragmática, pouco preocupado em definir quais eram essas mudanças. Já não era o caso de insinuar revoluções, mas de conferir ao Estado um cunho "social e público", propondo que o novogoverno, conforme o 12º Encontro Nacional do PT, fosse "democrático e popular". Assim a corrente de Lula, coordenada por José Dirceu, que controlava 69 das 108 cadeiras do Diretório Nacional do PT, construiu um acordo com o PL e preparou uma ampla coalizão, isso apesar de o PT, assim acreditavam as bases, manter seu viés anticapitalista. Dessa maneira, o governo PT nasceu mais conservador, que traduziu, de fato, duas décadas de marcha em direção a uma leitura pragmática da política brasileira.

mercredi 20 juillet 2016

O erótico como negação da transgressão

Georges Bataille
O erótico como negação da transgressão 

Por Jorge PINHEIRO


Até que ponto o comportamento humano é tão diferente do comportamento dos animais? Logicamente, responder a esta pergunta nos leva a discutir se de fato há liberdade e responsabilidade no comportamento humano. Se voltarmos, por exemplo, a Baruch Spinoza o comportamento humano deve ser descrito em termos de causas mecanicistas, como os demais fenômenos da natureza. Spinoza dedica ao problema moral e à sua análise os livros III, IV e V da Ethica. No livro III faz uma história natural das paixões, isto é, analisa as paixões teoricamente e cientificamente, e não desde um ponto de vista moral. 

O filósofo deve humanas actiones non ridere, non lugere, neque detestari, sed intelligere; assim se exprime Spinoza no proêmio ao II livro da Ethica. Tal atitude científica, em Spinoza, é favorecida pela concepção determinista da realidade, em virtude da qual o mecanismo das paixões humanas é tão necessário como o mecanismo físico-matemático, e as paixões devem ser tratadas com a mesma serena indiferença que as linhas e superfícies das figuras geométricas. E bom passa a ser apenas uma palavra para descrever coisas que nos dão prazer e mau coisas que nos causam dor. Na verdade, foi o marquês de Sade (1740-1814), antes de Nietzsche, a dizer que o que move a ação do ser humano é o bom e o ruim. E o bom, para Sade, é tudo o que causa prazer ao indivíduo, ao passo que o ruim não é o que causa desprazer, mas antes o que vai contra à Natureza. Por isso, podemos chegar a Bataille partindo de Spinoza e passando por Sade, para quem a essência do bom é uma inversão de valores, que visa transformar o mundo em outro que se acredita melhor.

Talvez seja necessário partir daí, da experiência marcada pelo prazer. O prazer de viver. Tal leitura procura superar a acentuação de uma teologia do pecado, com a conseqüente culpa infindável, que perpassa a tradição cristã, no mínimo, pós-agostiniana. Aliás, a tradição cristã traduz este tropeço, uma vez que em sua metanarrativa fundante pesa a sombra de um instrumento de tortura, a cruz. Mas sem negar a dor e o mal, talvez seja possível, mesmo no cristianismo, recuperar o prazer de viver. Ou, como disse Gonzaguinha, "viver e não ter a vergonha de ser feliz. Cantar e cantar a beleza de ser um eterno aprendiz. Eu sei que a vida devia ser bem melhor e será. Mas isso não impede que eu repita: é bonita, é bonita e é bonita". O que é o que é, Gonzaguinha.

Assim, prazer, do latim placere, traduz a idéia de emoção agradável que resulta da atividade satisfeita, inclusive de gozo sensual, mas por oposição nos lembra dor e aflição. Nesse sentido, costumamos chamar aquele prazer que envolve a sexualidade de erotismo, já que aí está implícita a idéia de amor sensual. Por isso, erotismo pode ser considerado a indução ou tentativa de indução de sentimentos, mediante sugestão, simbólica ou alusiva, da questão sexual, o que nos leva ao prazer erótico. João Ubaldo Ribeiro, em entrevista ao jornal português Diário de Notícias, de 22/1/2000, conta que uma cadeia de supermercados portuguesa recusou-se a vender seu livro, A Casa dos Budas Ditosos, invocando o fato de esta ser pornográfica. Para o escritor tal atitude traduz o fato de que na cultura cristã, “há um sentimento de culpa ligado ao prazer, que tem marcado o pensamento ocidental. A ponto de Epicuro (...) passar a ser olhado com uma certa reserva, por ser o filósofo do prazer. (...) Numa sociedade que suspeita do prazer. É comum nós, cristãos, ou pelo menos de formação cristã e católica, sentirmo-nos desconfiados no momento em que estamos felizes”.

Georges Bataille, 1897-1962, nasceu em Billon, Puy-de-Dôme, França. Filósofo e escritor francês, ficou conhecido como o metafísico do mal. Sua obra está marcada por três experiências centrais: a experiência cristã de sua formação católica e jesuítica, a experiência estética no âmbito do surrealismo e a experiência política de esquerda. Escreveu sobre sexo, morte, degradação e as potencialidades do prazer. 

Considerava que o objetivo de todo intelectual, artista e teólogo, deveria ser a aniquilação da racionalidade em um ato violento, transcendental de comunhão. Bataille cursou teologia, com a intenção de ser padre, participou do movimento surrealista, mas acabou por se dedicar à sociologia, religião e literatura. Fundou e editou jornais. Foi o primeiro a publicar pensadores como Barthes, Foucault e Derrida. Casou-se duas vezes. Primeiro com Sylvia, que depois de divorciar-se de Bataille casou-se com o psicanalista Jacques Lacan. Em 1946, Bataille casa-se com a princesa Diane Kotchoubey de Beauharnais, filha do príncipe Eugene Kotchoubey de Beauharnais e Helen Pearce. Georges e Diane tiveram uma filha, Julie Bataile, que nasceu em 1949.

Uma de suas obras mais polêmicas é a Histoire de l´oeil (1928), que foi filmada, e que influenciou, entre outros, a filmografia do diretor japonês Nagisa Oshima (Império dos Sentidos) e a produção do cantor pop islandês Björk Guödmundsdóttir. Outras obras importantes são Le bleu du ciel (1945), L´abbé (1950). No campo da religião produziu um clássico chamado O Erotismo. Sua bibliografia é muito vasta e influenciou alguns dos principais pensadores modernos, que não lhe poupam elogios, como Jürgen Habermas, Barthes, Foucault e Derrida. Um ano antes de sua morte, em 1961, Pablo Picasso, Max Ernst e Juan Miró organizaram um leilão de pinturas para ajudar Bataille a superar suas dificuldades financeiras. Bataille morreu em Paris no dia 8 de julho de 1962. 

Em O Erotismo, Bataille apresenta uma chave de análise dos aspectos fundamentais da natureza humana, o ponto limite entre o natural e o social, o humano e o inumano. Bataille vê a experiência do prazer como aquela que permite ir além de si mesmo, superar a descontinuidade que condena o ser humano. E a partir dessa constatação, se propõe tratar da questão sob três perspectivas, o prazer dos corpos, o prazer dos corações e o prazer sagrado, já que o desafio é substituir o isolamento do ser, a sua descontinuidade, por um sentimento de continuidade profunda. 

As duas heranças

A herança monástica

Quando, devido à secura das vidas, os ascetas monásticos sentiam que o seu maior inimigo, a sensualidade, os abandonava, eles inventavam outro inimigo. Desta forma, mantinham à frente daqueles que não eram santos a imagem de seres especiais, em luta contra o mal. E, assim, tudo que era natural, as sensações de prazer, a sensualidade era apresentada como má, pecaminosa, fazendo com que as pessoas vivessem num mundo de medo, inseguras e desconfiadas ao lidar com as emoções. Por isso, para Nietzsche, até nos sonhos revelava-se a consciência atormentada dos santos. Essa associação do natural com o pecado, equívoco dos ascetas, dos sacerdotes e dos metafísicos, levou a um resultado pior do que o pretendido. Ao acreditar que o ser homem era mau e pecador por natureza, ao invés de melhorá-lo, considerava Nietzsche, a herança monástica tornava o humano pior.

Tal mal-estar, oriundo das culpas imaginárias, acumulava impressões pesarosas, fazia com que se acreditasse que o pecado era tamanho que somente uma força sobrenatural poderia arrancá-lo daquele sofrimento, da sensação de sentir-se perdido. Essa vida, que na verdade era morte, criou o clima para que os herdeiros do monasticismo saíssem em busca da salvação, já que induzidos pelo engano, acreditavam estar irremediavelmente extraviada. Por isso, Nietzsche vai constatar que o que provoca a angústia nos cristãos, assim como a redenção pretendida de modo algum "corresponde em absoluto a uma pecaminosidade real, e sim a uma falta imaginária". Os cristãos, considerava Nietzsche, lutam o tempo inteiro contra os fantasmas criados pelos ascetas, pelos sacerdotes e pelos metafísicos. Espectros que ficavam pairando ao redor deles como se fossem assombrações das quais eles jamais conseguiam se livrar. E esses fantasmas assombraram o jovem jesuíta Georges Bataille.  

“Se alguém se confessa angustiado, é preciso mostrar o vazio das suas razões. Ele imagina a solução para seus tormentos: se tivesse mais dinheiro, uma mulher, uma outra vida... a frivolidade da angústia é infinita. Ao invés de ir até a profundeza de sua angústia, o ansioso tagarela, degrada-se e foge. E, no entanto, a angústia era a oportunidade: ele foi escolhido na medida dos seus pressentimentos. Mas que desperdício, se ele se esquiva: sofre da mesma maneira, humilha-se, torna-se estúpido, falso, superficial. A angústia evitada faz de um homem um jesuíta agitado, mas em vão. (...) o homem não é contemplação (ele só possui a paz, fugindo), ele é súplica, guerra, angústia, loucura”. 

A herança libertária

Mas se o monasticismo e a cultura do corpo mau eram herança presente, devemos nos remeter também ao pensamento libertário herdado por Georges Bataille. E vamos fazê-lo a partir do Marquês de Sade (Donatien Alphonse François de Sade, 1740-1814) e de Friedrich Nietzsche.

Sade foi um precursor da moral que ganhou espaço no mundo contemporâneo depois do Maio francês de 1968, ou seja, foi precursor da revolução sexual, incluindo nessa leitura a homossexualidade. Em Os 120 Dias de Sodoma satiriza o domínio do pensamento heterossexual e a condenação à morte de pessoas acusadas de comportamentos desviantes. É interessante, que este romance, onde nobres abusam de crianças raptadas e fechadas num castelo, num clima de violência, com coprofagia, mutilações e assassinatos, foi produzido durante sua prisão, manuscrito em letras miúdas num rolo de papéis colados, e teve sugestões dadas por sua mulher, Renné. Ela, aliás, passou parte da vida a defender o marido nos tribunais e só se separou dele quando o marquês foi libertado da cadeia, por breve intervalo de vida livre depois da Revolução Francesa.

Clássico maldito, o surrealismo e a psicanálise encamparam a visão da relação prazer e dor que a obra de Sade expõe. Vemos sua influência nos filmes de Luis Buñuel, quando em A Idade do Ouro, retrata a saída de Cristo e dos libertinos do castelo das orgias de Os 120 Dias de Sodoma. De igual modo nas imagens em que a navalha cega o olho da mulher em O Cão Andaluz. Também vemos referências em A Bela da Tarde e em Via Láctea, na cena em que Sade converte uma menina ao ateísmo. A influência de Sade pode ser notada também na obra de Jean Genet, dramaturgo, homossexual, ladrão e presidiário, que retomou muitos dos temas do marquês (O balcão, Os negros e Os biombos). Mas, sem dúvida, a obra que melhor retratou em toda sua crueza o paradoxo do prazer e da dor, ou seja, do erótico em Sade foi Saló ou Os 120 Dias de Sodoma, de Píer Paolo Pasolini. O filme situa-se na Itália fascista, durante a Segunda Guerra Mundial, e apresenta cenas de tortura e degradação de um grupo de adolescentes.


Bataille, admirador de Sade, entendeu a linguagem erótica como liberdade que viabiliza a negação da transgressão que gera a proibição. Ao realizar tais explorações, como possibilidade de vida, Sade e Bataille fazem a crítica explícita da tradição cristã e expõem os princípios que negam o humano. Eles se impõem à tarefa de ouvir a voz humana dos algozes, considerando o que para a sociedade são as suas não-razões, de forma a construir uma cumplicidade no conhecimento do mal. Nesse sentido, Bataille tem uma explicita admiração por Sade. Em A literatura e o mal, o chama de gênio:

"À primeira vista, a Revolução marca na literatura francesa uma época pobre. Propõe-se uma importante exceção, mas ela diz respeito a um desconhecido (que teve uma reputação durante a vida, mas deplorável). Se bem que o caso excepcional de Sade não infrinja de modo algum uma opinião que ele logo iria confirmar. É preciso dizer em primeiro lugar que o reconhecimento do gênio, do valor significativo e da beleza literária das obras de Sade é recente: os escritos de Lean Paulhan, de Pierre Klossowski e de Maurice Blanchot o consagraram; é certo que uma manifestação clara, sem insistência, evidente não foi dada antes de uma opinião tão vasta, que suscitou homenagens ruidosas e que se impôs lenta, mas seguramente". Georges Bataille, A literatura e o mal, RS, L&PM Editores, 1989. La Litterature et le Mal, trad. fr. Suely Bastos.

E o peso libertário de Nietzsche não foi menor, mas nessa abordagem queremos partir de uma mulher: Lou Andréas-Salomé (1861-1937). Feminista, no sentido revolucionário da expressão, e psicanalista freudiana, em seu ensaio Reflexões Sobre o Problema do Amor, de 1900, analisou como a feminilidade e o sentimento amoroso encontram eco em nossas experiências contemporâneas. Nesse sentido, a palavra vida, no sentido apaixonante do termo, o de usufruir com vontade e ardor a existência, é central no pensamento de Lou. E no correr dessa vida apaixonada/ apaixonante, ela encantou e foi encantada por personagens exuberantes como os filósofos Paul Rée, Friedrich Nietzsche e o poeta Rainer Maria-Rilke. E o que nos interessa aqui, é que para essa pensadora, nascida em uma abastada família russa como Ljolia von Salomé, na São Petersburgo de 1861, amor era sinônimo de libertação.

Nietzsche foi o homem que ousou apaixonar-se por Lou e que, depois de um período de amizade, de onde resultaram livros capitais de ambos, teve seu amor recusado. Através das cartas trocadas entre Nietzsche e o objeto de sua paixão, podemos acompanhar o processo de enlouquecimento de um homem que, roído de dor e ciúme, acompanha os desvarios da irmã Elisabeth, que organiza uma campanha de difamação pública contra Lou ao ver o irmão mergulhado num caminho sem volta. 

Lou, Rée e Nietzsche, logo no início dessa criativa amizade, quase viveram juntos, sob o mesmo teto, à maneira de uma santíssima trindade. Não podemos nos esquecer que Paul Rée, também apaixonado por Lou, pôs fim à vida, atormentado pela ausência de Lou. 

Lou casou-se com um homem quinze anos mais velho, Carl Andreas, seu companheiro durante mais de quatro décadas, fidelidade que talvez seja explicada pelo fato de nunca ter imposto a ela as obrigações de esposa no contexto do século 19, e que aparentemente fechou os olhos aos admiradores que Lou colecionou no correr da vida.

A única paixão de Lou começou em 1897 quando, já com 36 anos, casada com Carl, conheceu o poeta René-Marie Rilke, de 22 anos. Foi uma relação fecunda para ambos: Rilke cresceu como poeta e Lou escreveu A humanidade da mulher e Reflexões sobre o problema do amor (1899 e 1900), sob o impacto da intensa experiência vivida. Até a morte de Rilke, em 1928, e muitos anos depois, até a sua própria morte, em fevereiro de 1937, aos 73 anos, Lou faria do poeta a razão de sua existência e afeto.

Em 1910, Lou escreveu o ensaio O Erotismo, que encontrou ressonância no pensamento Georges Bataille. No ensaio, propõe aos leitores a necessidade de correlacionar experiência e o conhecimento. Lou Andréas-Salomé colocou-se assim como interlocutora de Nietzsche e, por extensão, de Bataille. 

A santidade do prazer

A religiosidade primitiva, para Bataille, extraiu das proibições o espírito da transgressão, enquanto, a religiosidade cristã se opôs ao espírito de transgressão. A visão de bom e mau, prazer e pecado, nos limites do cristianismo está ligada a esta relativa oposição.

Há no cristianismo um movimento duplo. Nos seus fundamentos o cristianismo quis abrir-se às possibilidades dum amor que era princípio e fim. Quis encontrar em Deus a continuidade perdida, invocar os delírios rituais para além das violências reguladas, o amor total e sem cálculo dos fiéis. Os homens, transfigurados pela continuidade divina, eram chamados, em Deus, a amarem-se uns aos outros. 

Assim, o cristianismo jamais abandonou a esperança de levar este mundo de descontinuidade ao reino da continuidade, abraçado pelo amor. O movimento inicial da transgressão derivou no cristianismo na visão duma superação da violência, que foi. transmutada no seu próprio contrário. Há neste sonho algo de sublime e trágico.

A transgressão é a desordem organizada, ao introduzir num mundo organizado algo que o ultrapassa. Mas essa organização, fundada no trabalho, tem por base a descontinuidade do ser. O mundo organizado do trabalho e o mundo da descontinuidade são o mesmo mundo. Se os utensílios e produtos do trabalho são coisas descontínuas, aquele que se serve do utensílio e fabrica produtos é também um ser descontínuo e a consciência da sua descontinuidade aprofunda-se na utilização e criação de objetos descontínuos. E é no mundo descontínuo do trabalho que a morte se revela: já que para quem trabalha a descontinuidade se faz presente, com poder, através da morte. Ela é tragédia elementar que evidencia a inanidade do ser descontinuo. 

Ao reduzir o sagrado, o divino, à pessoa descontínua de um Deus criador, o cristianismo foi longe e transformou o outro mundo num local onde se prolongavam todas as almas descontínuas. Povoou céus e infernos de multidões condenadas à descontinuidade eterna de cada ser isolado. Eleitos e condenados, anjos e demônios, transformaram-se em fragmentos, para sempre divididos, para sempre distintos uns dos outros, para sempre desligados dessa totalidade do ser à qual era contudo necessário religá-los.

Assim, o dilema está colocado: como continuar religioso sem perder o prazer? Tal como a proibição criou, na violência organizada das transgressões, o prazer inicial, proibindo a transgressão organizada, o cristianismo aprofundou os graus da perturbação sensual. 

E o prazer se ligou à transgressão. Mas o mal não é a transgressão, é a transgressão condenada. O mal é o pecado. É o pecado de que fala Baudelaire, já que segundo Otto Maria Carpeaux, Baudelaire era espiritualista porque levou às últimas conseqüências o pecado como condição da alma, ora enfatizando audazmente a dissolução, ora padecendo pelo que a consciência lhe dita. Daí o ser denominado “poeta do tormento humano”. As narrativas dos sabbats, por exemplo, correspondem a uma procura do pecado. Sade negou o mal e o pecado, pois “ser arrebatado não é sempre ativamente resultado do objeto duma paixão. O que destrói um ser arrebata-o também; o arrebatamento é sempre, por outro lado, a ruína dum ser que se dera os limites do decoro.” Mas teve que introduzir a idéia de irregularidade para transmitir o desencadeamento da crise voluptuosa. Teve de recorrer à blasfêmia. Sentiu que a profanação era inócua, se o blasfemo negava o caráter sagrado do bem, que pretendia macular. A necessidade e a impotência das blasfêmias de Sade são significativas. A Igreja negou o caráter sagrado do prazer, encarado como transgressão. 

Por isso, filósofos e poetas negaram o que a Igreja considerava sagrado. “Onde quer que a neurose religiosa tenha aparecido na terra, nós a encontramos ligada a três prescrições dietéticas perigosas: solidão, jejum e abstinência sexual”. Nessa negação, a Igreja perdeu em parte o poder religioso de evocar uma presença sagrada: perdeu-o quando o diabo deixou de estar na base duma perturbação fundamental. Ao mesmo tempo, os espíritos livres deixaram de acreditar no mal. Desse modo, encaminharam-se para um estado de coisas em que o prazer, deixando de ser um pecado, deixava de poder encontrar-se na certeza de fazer o mal, o que implica a destruição da sua própria possibilidade. Num mundo profano só haverá mecânica animal. A consciência do pecado pode manter-se, mas só se mantém ligada à consciência de um logro. 

Ultrapassar uma situação não pode significar regressos ao ponto de partida. Há na liberdade a impotência da liberdade, mas nem por isso a liberdade deixa de ser disposição de nós por nós próprios. As ações dos corpos podem, na lucidez, abrir-se, apesar dum empobrecimento, à recordação inconsciente duma metamorfose infindável, cujos aspectos não deixarão de estar disponíveis. O prazer dos corações, o prazer mais ardente, ganhará aquilo que o prazer dos corpos tiver perdido, o que nos remete à fêmea do louva-a-deus como heroína sadiana. 

Didier Ottinger, Retrato da fêmea do louva-a-deus como heroína sadiana, nos conta que “em maio de 1934, a revista Minotaure traz efetivamente um estudo de Roger Caillois: "La mante religieuse, de la biologie à la psychanalyse", em que o autor fornece aos futuros exegetas do louva-a-deus as chaves de sua interpretação sadiana. Um ano mais tarde, o artigo desenvolvido constituirá um capítulo da obra de Caillois, O mito e o homem. Se lhe aplicássemos as apreciações típicas de André Breton, o louva-a-deus pertenceria sem dúvida alguma à categoria dos "obcecados". Caillois nos ensina que o inseto é um matador apenas por lubricidade. Cita o entomólogo Raphael Dubois, de acordo com quem um acridídeo, se decapitado, executa melhor e mais demoradamente os movimentos reflexos e espasmódicos próprios da cópula. Os biólogos F. Goltz e H. Busquet, a partir dessa constatação, se indagam se "a fêmea do louva-a-deus, ao decapitar o macho antes do acasalamento, não teria por finalidade obter, mediante a ablação dos centros inibidores do cérebro, execução mais prolongada e melhor dos movimentos espasmódicos do coito, de tal forma que, em última análise, fosse o próprio princípio do prazer que lhe ordenasse a morte do amante".  

O prazer da santidade 

O prazer nos deixa na solidão. Prazer é aquilo sobre que é difícil falar. Por razões que não são meramente convencionais, o prazer, principalmente o dos corpos, é definido pelo segredo. Não pode ser público. Tal experiência prazerosa situa-se fora da vida de todos os dias. No conjunto da nossa experiência, permanece separada da comunicação que fazemos das nossas emoções. Trata-se de tabu. Evidentemente que nada é completamente tabu, há sempre transgressões. Mas o tabu intervém para que se possa dizer que o prazer, sendo intensa emoção, já que nossa existência está presente sob a forma de linguagem, existe como se não existisse.

Há em nossos dias uma atenuação deste tabu, mas, apesar de tudo, o prazer ficará sempre como algo de exterior, algo que só é possível sob uma condição: sair para mergulhar na solidão, numa separação do mundo em que estamos. Assim, a experiência prazerosa leva ao silêncio.

Não sucede a mesma coisa com a santidade. A emoção experimentada na experiência da santidade pode ser expressa no discurso, pode ser objeto dum sermão. A experiência prazerosa, contudo, talvez seja vizinha da santidade. 

Isto não quer dizer que prazer e santidade tenham a mesma natureza. Mas que uma e outra experiência têm uma intensidade extrema. Quando se fala da santidade, fala-se da vida que determina a presença em nós de uma realidade sagrada, de uma realidade que pode nos perturbar completamente. A emoção da santidade e a emoção do prazer, quando traduzem uma intensidade extrema, nos aproximam de outras pessoas e nos afastam delas, nos deixam na solidão.

A passagem do prazer à santidade tem sentido, afirma Bataille. É a passagem do que é maldito e rejeitado ao que é abençoado e bendito. O prazer é crime solitário, que não salva senão opondo-nos a todos os outros, que não salva senão na euforia de uma ilusão, uma vez que aquilo que no prazer leva ao extremo grau da intensidade atinge-nos ao mesmo tempo com a maldição da solidão. Já a santidade faz sair da solidão, com a condição de aceitar este paradoxo -- felix culpa! -- cujo próximo excesso resgata. 

Só um desvio permite nestas condições regressar aos nossos semelhantes. Este desvio merece sem dúvida o nome de renúncia, uma vez que no cristianismo não podemos simultaneamente operar a transgressão e gozar dela, e só outros podem gozar dela na condenação da solidão. O acordo com os seus semelhantes só é encontrado pelo cristão sob condição de nunca mais gozar daquilo que o liberta, daquilo que nunca é mais do que transgressão, violação das proibições sob as quais repousa a civilização.

Se seguirmos o caminho indicado pelo cristianismo, considera Bataille, podemos não apenas sair da solidão, mas aceder a uma espécie de equilíbrio, que escapa ao desequilíbrio primeiro e que nos impede de conciliar disciplina e trabalho com a experiência dos extremos. A santidade cristã abre-nos pelo menos a possibilidade de levar até ao fim a experiência desta convulsão final, a morte. Aquele que compreende a importância do prazer apercebe-se que esse valor é o valor da morte. Talvez seja um valor, mas a solidão abafa-o.

Por isso, para Bataille, o santo vive como se morresse, mas vive a fim de encontrar a vida que é a vida. A santidade é sempre um projeto. Talvez não o seja em essência. A intenção da vida eterna liga-se à santidade como se liga ao seu contrário. Como se, na santidade, só um compromisso permitisse entregar o santo à multidão, entregar o santo a todos os outros: à multidão, ou seja, ao pensamento comum.

Alguns finalmentes

O mais estranho é que possa haver ligação entre a transgressão deliberada e a condição de não se falar dela. Este acordo é encontrado nas religiões arcaicas. O cristianismo inventou um caminho aberto à transgressão que permite se falar da transgressão. Reconhecemos assim que o pensamento, que no cristianismo vai além, tende a negar tudo o que se assemelha à transgressão, a negar tudo o que se assemelha à proibição. 

Na palavra do prazer erótico há uma recusa de viver o tempo que produz desprazer, que leva à angústia. Esse tempo é morto, sacrificado na linguagem do erótico, que substitui a angústia pelo tempo subjetivo: evita assim que a pessoa se torne refém das exigências externas ao se submeter ao desejo do outro. Mas, a morte do tempo que produz desprazer leva à ressurreição, leva a um novo tempo. Por isso, na linguagem do prazer erótico, como a vê Bataille, há libertação porque na seqüência gozo, angústia, desejo, o gozo não é mais atemporal, mas temporal. 

Assim, no plano do prazer, temos a palavra do prazer, que é negação da proibição, negação da transgressão que gera a proibição. Aqui, a linguagem do prazer é negação que define o humano em oposição ao animal.

lundi 18 juillet 2016

O programa da revolução democrática

Segundo Azevedo, na primeira fase de sua história, o PT afirmou que a democracia tinha valor substantivo, que ela não era um objetivo provisório, instrumental, embora muitas vezes em seu discurso, abandonava a legalidade democrática para preservar o socialismo proclamado. Assim, se num primeiro momento, o PT favorece o discurso socialista, sua tendência será movimentar-se em sentido contrário. Vai favorecer o discurso democrático e o socialismo será visto como qualidade das reformas a serem feitas. Dessa maneira, desde 1986 o PT balançou entre duas estratégias, utilizar os slogans socialistas de 1982 ou o tom moderado de 1985. Caminhou para a segunda opção e elegeu dezesseis deputados federais e quarenta estaduais.


No ano seguinte, o 5º Encontro Nacional definiu a estratégia de um “governo democrático-popular” e propôs uma política de alianças com outros partidos. E na Constituinte defendeu um programa de democracia radical, a favor da estatização dos bancos, reforma agrária, nacionalização das reservas minerais, benefícios às empresas de capital nacional e formas de democracia direta. Como suas propostas ficaram à margem, em 1988, os deputados do partido não assinaram a nova Constituição. Mas, em novembro, o PT elegeu os prefeitos de São Paulo, Porto Alegre, Vitória e de 35 outras cidades. 


Então optou pelo caminho das reformas democráticas, deixando o socialismo como bandeira para os dias de festas. Assim, em 1989, o 6º Encontro Nacional lançou Lula à Presidência, mas a partir desse encontro o PT não se definiu mais como partido sem patrões, embora declarasse como adversários banqueiros, latifundiários, multinacionais e monopólios privados. Também deixou de propor a estatização de setores da economia, preferindo permanecer na defesa da manutenção das estatais existentes. No primeiro turno das eleições presidenciais, em novembro, Lula ficou em segundo lugar, com 17,1% dos votos válidos. No segundo turno, Fernando Collor venceu Lula, que obteve 47% dos votos válidos. 

O documento “O Socialismo petista”, aprovado em 1990, quando o Partido dos Trabalhadores procurou definir os caminhos do seu socialismo, sintetizou um momento especial da utopia socialista no PT. Naquela época, o socialismo dentro do PT começava a se descolar das concepções stalinistas e trotskistas, e os petistas começavam a ver a utopia com um novo sentido. Se antes ela era expressão de um movimento operário imaturo, passava agora a designar a necessidade de alargar a imaginação dos movimentos sociais para além dos limites do imediatamente possível. Na resolução reafirmava-se o juízo sobre o sistema capitalista, mas, ao mesmo tempo, se identificava as dificuldades de construção do socialismo. É importante notar que o PT fazia esta sistematização de sua utopia, começando pela afirmação da necessidade da democracia:


“A democracia tem, para o PT, um valor estratégico. Para nós, ela é, a um só tempo, meio e fim, instrumento de transformação e meta a ser alcançada. Aprendemos na própria carne que a burguesia não tem verdadeiro compromisso histórico com a democracia. (...) Será decisiva, no futuro, a instituição de uma democracia qualitativamente superior, para assegurar que as maiorias sociais de fato governem a sociedade socialista pela qual lutamos”.

A partir desse conceito de democracia enquanto necessidade, definiu, por extensão, o conceito de necessidade da democracia interna ao partido, já que o PT era visto como a continuação da história dos partidos que construíram sua utopia da experiência de transformar o mundo. Embora muitas dessas experiências tivessem ganho dimensões sectárias, o PT deveria caminhar além da dimensão dogmática e buscar razões instrumentais em relação às necessidades práticas. Ou seja, superar a concepção de um programa formado à margem da experiência de transformar o mundo, e por isso obstáculo aos princípios normativos da democracia. Mas, essa defesa da democracia, em si mesma correta, levou o PT a repetir um processo conhecido na história de muitos partidos de esquerda: o do abandono da utpoia socialista. E essa utopia desencantada que expressa a tificação social-democrata, se traduziu na elaboração do Programa da Revolução Democrática, construído ao redor das tarefas imediatas de complementação da revolução democrático-burguesa, mas desconectado das transformações pós-revolucionárias. Não havia nessa leitura programática uma teoria da transição, que combinasse as reformas do agora com a revolução do amanhã. Como consequência, as exigências práticas e as pressões da ordem tenderam a ganhar espaço sobre a identidade socialista, levando-o por percursos diversos, a desencantar-se com suas utopias anticapitalistas.

O Programa da Revolução Democrática foi aprovado no II Congresso Nacional do Partido dos Trabalhadores, realizado em Belo Horizonte, entre os dias 24 e 28 de novembro de 1999, e apresentou propostas para transformar a sociedade brasileira a partir de três eixos: o social, o democrático e o nacional.

O II Congresso do Partido dos Trabalhadores aconteceu em um momento especial da história, que coincidiu com a proximidade do quinto centenário da invasão portuguesa em terras brasileiras e a entrada do novo milênio. Diante das discussões dos problemas estruturais da sociedade, alguns com profundas raízes históricas decorrentes da ação de uma elite predatória, o PT considerou que só a presença dele enquanto partido representativo das massas populares poderia viabilizar  que transformações reais.

Naquele momento, a conjuntura internacional mostrava-se incerta, e a partir da hegemonia político-militar dos Estados Unidos, que “fere a soberania de nações e povos e tende a cristalizar uma ordem internacional desigual, injusta e autoritária”, o PT considerava que tal situação internacional ameaçava a economia global, em particular países da periferia, como o Brasil. Afirmava que as experiências neoliberais e a globalização econômica e financeira chegavam a seus limites, que o anunciado “fim da História” não havia chegado, e que o “pensamento único” revelara-se enganoso. Fazia a crítica do Fundo Monetário Internacional, ao afirmar que suas políticas e ajustes liberais contribuíram para aumentar a miséria pelo mundo afora.

Afirmava que a terceira via de Tony Blair e Bill Clinton eram operações de maquiagem de neoliberalismo na qual o governo de Fernando Henrique Cardoso  tentara pegar carona. 

Essa postura conformista e conservadora parte da falsa premissa de que não é mais possível impulsionar políticas de crescimento com inclusão social e pleno emprego. Seus partidários no mundo desenvolvido, a partir do colapso da URSS e dos regimes do leste, pretendem justificar o abandono das políticas de bem-estar que a social-democracia adotou no pós-guerra. As esquerdas, inclusive setores da social-democracia, hoje denunciam e rejeitam essas teses. No Brasil, onde a exclusão social foi e é a regra, a Terceira Via aparece em sua face mais grotesca. O novo quadro mundial cria condições para a construção de novos projetos nacionais e internacionais. Para tanto, são necessárias transformações radicais que somente grandes maiorias poderão realizar. Essas transformações requerem visão e propostas de caráter estratégico.

Para a elaboração de seu programa de revolução democrática, o PT partir de sua própria história: havia nascido em meio à crise dos paradigmas da esquerda e do colapso do modelo nacional-desenvolvimentista em nosso país. E, por isso, se definiu como “um partido pós-comunista e pós-socialdemocrata”, que não buscava o “assalto ao poder” por meio de uma revolução violenta, nem tinha como objetivo conquistar o governo para amenizar o capitalismo. Mas via a necessidade de uma revolução democrática, capaz de construir um Brasil livre, igual e solidário, que socializasse a riqueza, o poder e o conhecimento. E agregava: “a revolução democrática é um longo processo. Ela não será resultado de teorias pré-elaboradas, nem de vanguardas auto-proclamadas, mas da ação de amplas maiorias conscientes de seus objetivos”.

E por isso, considerou, baseando em considerações do 5o. Encontro Nacional, de 1987, que havia a necessidade de desenvolver uma política de acumulação de forças, pois seria através desse processo que se alterariam as relações de poder e o partido poderia construir uma nova hegemonia, criando as condições para a transformação da sociedade brasileira. Tal acumulação de forças se daria através de movimentos que articulariam as lutas sociais com as transformações institucionais. E explicitava essa política: “sabemos que é importante combinar as ocupações de terra, as lutas no chão de fábrica, as greves e as mobilizações da sociedade em busca de novos direitos sociais e políticos com a ação nos parlamentos e nos governos municipais e estaduais”.

Dessa maneira, o PT propôs-se formular um programa alternativo das esquerdas para o Brasil, construído a partir dos eixos social, democrático e nacional, que deviam ser traduzidos em reformas econômicas e políticas radicais e apoiados por uma coalizão de forças sociais e políticas. Essas reformas teriam um efeito “desestabilizador sobre o capitalismo” e desencadeariam uma ofensiva reformuladora que necessitaria de uma nova correlação de forças na sociedade, condição para que as esquerdas chegassem ao governo e enfrentassem o problema do poder.

Anteriormente, quando elaborou o documento “O socialismo petista”, o campo da relação do PT com a utopia estabelecia um diálogo entre o socialismo que desejava alcançar e a experiência de transformar o mundo. Era uma inovação, já que fazia a defesa do pluralismo como princípio da democracia socialista e defendia a idéia de que o PT era uma síntese aberta de culturas libertárias, entre elas, o cristianismo. Ou seja, a utopia não estava dada, mas poderia “ser formulada através de ordenações capazes de indicar um princípio civilizatório alternativo ao mundo do liberalismo”, e se constituir em princípio de orientação da prática partidária: esse seria o caminho da utopia socialista. E, como consequencia, embora os trabalhadores continuassem a ser a base referencial do partido, a construção da utopia não estaria concebida como expressão do desenvolvimento da consciência dessas classes. Donde, a identidade socialista não seria auto-referida. Mas aqui surgiu um problema: se a utopia socialista não fosse vivida através do diálogo com a experiência das classes trabalhadores e dos excluídos, sobre que bases se haveria de construir o campo da experiência partidária? Ao não responder essa questão e diluir o campo da experiência partidária na construção de um hipotético bloco hegemônico, acabou por incluir todos os setores sociais e econômicos descontentes com o governo Fernando Henrique Cardoso nesse bloco. Assim, a utopia foi desencantada, e o PT abriu caminho para alianças com setores conservadores e inimigos do socialismo. 

A dimensão social como foi entendida pelo Programa da Revolução Democrática deveria partir de mudanças na economia que enfrentassem o capital financeiro nacional e internacional, assim como as pressões internacionais e os mecanismos de intervenção externa na economia. Temia a possibilidade de confronto, mas garantia que tal opção política não levaria ao populismo. 

As novas prioridades provocarão enfrentamentos com os interesses do capital financeiro nacional e internacional que condicionam hoje as grandes decisões econômicas nacionais. Inverter prioridades não significa opção populista. Uma política de distribuição de renda exige um ambicioso projeto de desenvolvimento e a definição de suas condições de financiamento. Um país como o Brasil permite (e exige) uma nova política econômica, mesmo levando em conta os graves constrangimentos internacionais atuais.

Acontece que antes, ao fazer a crítica da economia capitalista, a utopia socialista ressaltava o potencial transformador das culturas e a importância da criação de espaços plurais de formas de propriedade social. Por isso, criticava as sociedades baseadas no socialismo real por não terem se comprometido com a liberdade, nem se preocupado em estabelecer pontes com o ser humano enquanto pessoa, por terem desvinculado participação política e regulação da vida econômica. Eram tempos em que a utopia socialista do PT aproximava-se do cristianismo social. Até aquele momento, podemos dizer que a utopia socialista tinha uma compreensão cristã da vida e norteara politicamente o PT, mas agora, no final dos anos 90, a nova agenda democratica estaca sendo convertida em liberalismo radical.

É importante dizer, que muitas das bandeiras levantadas pelo Programa da Revolução Democrática sempre fizeram parte do ideário petista e que eram entendidas por suas bases como necessárias. Dessa maneira, o programa afirmava a necessidade de um modelo econômico estruturado em torno da construção de um mercado interno de bens de consumo de massa, capaz de “alimentar, vestir, dar moradia e transporte, aos milhões de brasileiro marginalizados ou empobrecidos”. O que exigiria uma reforma agrária, que garantisse terra, emprego e financiamento para os trabalhadores rurais, cobrando assim significado social e político e importância econômica, já que a agricultura familiar era entendida como componente de um projeto de desenvolvimento sustentado.

A bandeira da reforma agrária é cara à esquerda. Mobilizou camponeses no início da década de 1960 e nos anos 1980 levou ao Movimentos dos Trabalhadores Rurais Sem Terra – MST. O problema é que, com o passar dos anos, o PT foi afunilando sua política partidária no caminho da democracia representativa. Assim, a utopia tornou-se “informulada”. E, porque os desafios da prática distanciaram-se da espera/esperança do socialismo, o PT não conseguiu formular como sua utopia deveria transformar o Brasil. E ao fixar os olhos na questão nacional, viu um gigante a ser vencido: um Estado vergado sob a dívida financeira, um Congresso conservador, os meios de comunicação sob domínio conservador, os estados nas mãos da oposição e a conjuntura internacional controlada pelos organismos financeiros, os grandes grupos e pelo poder militar. Tal situação congelou a utopia e levou o partido a defender a necessidade de uma longa transição democrática, porque  o discurso socialista carecia de fundamentos. 

Mas, seria possível discordar do Programa da Revolução Democrática quando ele definiu como prioridade especial um programa de educação, que erradicasse o analfabetismo, colocasse todas as crianças na escola e criasse as bases da cidadania. E que esse modelo deveria prever o refinanciamento do Estado para que pudesse impulsionar políticas sociais, e a redistribuição radical da riqueza? Ou quando propunha uma reforma tributária que desonerasse a produção, combatesse o rentismo, eliminasse os mecanismos de sonegação e evasão fiscais, e fosse um instrumento de distribuição de renda? De fato, o programa propôs um modelo que tivesse efeito expansivo sobre a economia e que articulasse um ciclo de desenvolvimento sustentado que, por sua vez, levasse a uma política industrial que compatibilizasse “a produção e atividade de micros, pequenas e médias empresas, com as de grandes grupos regionais, nacionais e internacionais, especialmente no âmbito de um Mercosul renovado”.

Não, de fato, ninguém no PT discordava dessas necessidades, Mas, como afirma Guimarães, ao não formular o sentido histórico desta transição criou-se as condições para o desencantamento da utopia. Essa informulação da utopia foi o lugar por excelência de onde surgiria o pragmatismo, o realismo político, que se transmutaria em acomodação diante das realidades do poder. O que poderia haver em comum entre o discurso de ruptura e o discurso que assume as limitações como virtude de governo? Esse impasse na definição da utopia socialista democrática abriria uma crise futura.

Apesar dessa informulaçao de sua utopia, continua a ter razão Oliveira quando diz que o PT testemunhou “a construção inédita na história brasileira e, a rigor, poucas vezes vista na história mundial: a construção de um partido de massas, nascido nas lutas reais das classes trabalhadoras brasileiras, posto como necessidade histórica e possibilidade inscrita na nova estrutura de classes, que emerge para ultrapassar a institucionalidade burguesa.

Ora, de fato, há que relacionar tradição e ruptura, ao se considerar os elementos em questão para definir o seu perfil, “nota-se que é a tradição do pensamento de esquerda ou dos partidos que se ligaram ao movimento operário no Brasil que foi confrontada com a conjuntura daqueles anos. E na medida em que esta tradição não responde às necessidades do momento, novas propostas são elaboradas. Como resultado deste contato intenso, o PT acaba por abrigar elementos importantes deste ‘velho’ universo político, sem deixar de realizar verdadeiras rupturas”.

Tais mudanças que levaram da utopia socialista à democracia enquanto realpolitik são uma realidade para a direção do Partido dos Trabalhadores. Tomemos, por exemplo, a análise feita por Pedro Tierra, um de seus teóricos sobre a discussão que se dá a partir das eleições municipais de 2000 acerca do esmaecimento do vermelho petista. 

“O exame dos resultados das eleições municipais de 2000 mostra que a moldura rompeu-se. (...) Abertas as urnas, abriu-se com elas uma verdadeira batalha em torno das versões oferecidas para entendermos os resultados. (...)Permeando todas elas, tentativas (...) preferem examinar os matizes internos para localizar qual PT afinal foi vencedor. O PT vermelho ou o PT cor-de-rosa? Diante do óbvio crescimento do Partido dos Trabalhadores, exercitou-se uma discriminação interna cujo propósito é justificar o discurso segundo o qual os milhões votos descarregados na sigla, não aspiram afinal a grandes mudanças. Ou seja, é um voto, em última análise... conservador”.

Entre as muitas declarações de Luís Inácio Lula da Silva, presidente do Partido dos Trabalhadores, que traduzem esse trânsito da utopia à realpolitik, é interessante a que ele faz à jornalista Miriam Leitão: 

Um homem de 56 anos não pensa como pensava aos 20. Quando comecei minha vida política, meu discurso era para metalúrgicos. Hoje, tenho que pensar no Brasil e adequar o discurso à realidade.

E, talvez por isso, antigas bandeiras foram pousadas no chão. Uma delas a velha luta anti-imperialista, tão cara aos socialistas brasileiros. E outro intelectual, Marcos Arruda, escreveu ao próprio Lula traduzindo em carta toda sua frustração.

“Dirceu e Lula, eu percebo e concordo que o PT como partido neste momento precisa tornar viável a vitória eleitoral. É preciso negociar com todos os atores, e ter uma estratégia clara para lidar com cada um. (...) Mas não parece ser isto que estão fazendo, pelo menos a partir do que experimentamos na Plenária e do que nos chega pela imprensa. Francisco Campos afirmou na FSP, e não pela primeira vez, que o PT  ‘não é contra o livre comércio, mas contra a forma como a ALCA está sendo implementada´. Coube ao candidato do PSTU, José Maria de Almeida, dizer, na mesma reportagem, o que o PT devia estar dizendo: Alcântara e ALCA ´estão dentro do questionamento sobre a soberania nacional. São duas vertentes de um mesmo tema´. Mas se o livre comércio e o mercado auto-regulado são a velha enganação do  capitalismo clássico, o de colocar raposa e galinhas dentro do galinheiro continental e dar a todos os mesmos direitos!... (...) A ALCA, conforme dissemos na Declaração de Quito que lhe mandei, é uma das três pinças da estratégia de dominação dos EUA sobre o continente, e talvez seja hoje, no reino do G. W. Bush, o menos crucial para o projeto imperial”.

E aqui vale a pena voltar ao mito. Garcia (1990) contou que quando Lula, numa de suas andanças pelo Brasil, foi perguntado se era comunista ou social-democrata, teria respondido que era um “torneiro-mecânico”. Tal colocação expressa a indefinição petista. Hoje, passados anos de história petista, talvez seja o momento de lhe propor uma réplica: qual torneiro-mecânico, o socialista ou o social-democrata? 

Pudenci Furtado, já se perguntava em 1996 sobre como as disputas ideológicas dentro do PT dificultavam a definição de seu perfil. Partido socialista ou social-democrata? Ou seja, era um partido para a classe trabalhadora, para a classe média ou para ambas. E concluía que ainda era cedo para afirmações categóricas. Mas apesar da indefinição, que em última instância traduz uma práxis partidária, não podemos esquecer a crescente importância do Partido dos Trabalhadores para a sociedade brasileira. Em termos sociais, o PT surgiu enquanto organização ligada às classes trabalhadoras da cidade e do campo, polarizando a política nacional. Um exemplo disso é o fato de que o PT atuou sobre o conjunto da sociedade brasileira modificando padrões sociais anteriormente estabelecidos. Assim, sua inserção nos grotões, através da presença cristã, modificou o perfil do voto conservador e de direita dessas áreas.

Ora, essa importância social nos leva à questão política. Sem mistificar os limites da presença do PT no cenário nacional, podemos dizer que construiu novas lideranças e desenvolveu uma maneira de fazer política, de diálogo com os setores excluídos e marginalizados da sociedade, senão inédita, ao menos resgatada, já que estava esquecida desde os governos de Vargas e João Goulart. Mas essa constatação não é unânime. Segundo Guimarães, por exemplo, “o PT apresenta uma série de elementos ideológicos (diluição de sua feição socialista), políticos (incompletitude programática e estratégica), organizativos (uma certa adaptação naturalista de sua estrutura, combinada com pressões de institucionalização) que dificultam a construção de um projeto alternativo à ordem capitalista. Estes elementos tendenciais, em sua projeção, se não alterados, poderão cristalizar uma cultura partidária que bloqueie o potencial transformador dos trabalhadores. O termo ´passivo´ que acompanha a caracterização vale exatamente para caracterizar a modalidade negativa da integração burguesa. 

Assim, considera que na cultura do PT, o enigma dos elos entre tradição e ruptura é conscientemente incorporado e sua resolução projetada para o futuro. Ou seja, no confronto com as utopias socialistas, o PT é um enigma espelhado em outro enigma: refletido, mas não revelado. Souza, porém, considera que o Partido dos Trabalhadores constitui, de fato, algo novo no cenário social e político brasileiro, mas uma novidade permeada de tradições e permanências legadas pelo passado.

A nova esquerda traz em seu âmago – ora negando, ora afirmando – a velha esquerda, já que os agentes da renovação história têm como paradigma os agentes da conservação histórica, seja para negá-los abertamente ou para incorporá-los implicitamente.

Talvez por isso, as recentes palavras do presidente Lula pareçam vir de um passado distante, de uma época em que lá na Vila Euclides os jovens, operários, estudantes e intelectuais, sonhavam com um Brasil socialista:

“Continuaremos a ter atuação decidida no sentido de unir as diversas forças políticas e sociais para construir uma nação que beneficie o conjunto do povo. Vamos promover um Pacto Nacional pelo Brasil, formalizar o Conselho de Desenvolvimento Econômico e Social, e escolher os melhores quadros do Brasil para fazer parte de um governo amplo, que permita iniciar o resgate das dívidas sociais seculares. Isso não se fará sem a ativa participação de todas as forças vivas do Brasil, trabalhadores e empresários, homens e mulheres de bem. Meu coração bate forte. Sei que estou sintonizado com a esperança de milhões e milhões de outros corações. Estou otimista. Sinto que um novo Brasil está nascendo”. 

Desencantada a utopia socialista, a esperança começaria a se esfumaçar e com ela, inclusive, o programa da revolução democrática.

dimanche 10 juillet 2016

Um rei chamado Shlomo

Eclesiastes, aquele-que-sabe
O rei e o livro -- uma leitura popular
Jorge Pinheiro, PhD


Shlomo, que quer dizer “pacífico” em hebraico e que traduzimos por Salomão, foi rei de Israel. Seu reinado está contado no Livro dos Reis. Era filho de Davi com Bate-Seba e, segundo a tradição, foi o terceiro rei de Israel, governando quarenta anos, de 966 a 926 antes de Cristo.

Quando falamos de Shlomo vem a mente estórias de sabedoria, riqueza e poder. Ele não era o filho mais velho do rei Davi e, por isso, não deveria herdar o trono. Na verdade, o Segundo Livro de Samuel (3.4) conta que na linhagem sucessória ao trono estavam Amnon (filho de Davi e Ainoã), Absalão (filho de Davi e Maacá) e Adonias (filho de Davi e Hagite). Mas com a morte de Amnon e Absalão, e as intrigas palacianas pela sucessão, já que cada pretendente ao trono era filho de uma mulher de Davi e tinha seus apoiadores no palácio, o rei Davi decide descartar definitivamente Adonias e promete a Bate-Seba que Shlomo seria o escolhido. Quando o rei Davi, já velho, adoece e fica prostrado na cama, a família real, que já vinha conspirando para que Adonias tomasse o poder, resolve comemorar o futuro reinado de Adonias. 

E Shlomo toma posse em segredo.
 
Assim, muita gente do palácio não sabia o que estava acontecendo. E o profeta Natã, que já tinha sido informado por Davi de que deveria empossar Shlomo e cuidar para que o jovem não fosse assassinado, foi chamado por Bate-Seba. Sem perder tempo, o profeta abençoou o jovem Shlomo, que teve que enfrentar, desde o início de seu reinado, conspirações e tempos turbulentos. 

Apesar de todos esses problemas, o Shlomo deixou um legado de escritos de sabedoria. E agora vamos ver algumas lições que podemos aprender com ele, em seu livro chamado Qoheleth, ou “aquele-que-sabe”, ou simplesmente "mestre". E que nós chamamos em português de Eclesiastes. 

Muitas vezes, a sabedoria de Eclesiastes parece um pouco densa, mas se fizermos uma síntese dessas páginas podemos dizer que o resumo é: os nossos esforços para alcançar a felicidade, distantes de um repousar sobre a espiritualidade, são inúteis.

E assim esse rei planejou e organizou a construção do primeiro templo da história de Israel, escreveu três mil provérbios, mil e cinco canções, além do livro de Eclesiastes, considerado um dos textos filosóficos mais importantes da literatura judaica.

Lança o teu pão sobre as águas

Shlomo enfrentou anos difíceis e enormes desafios. Na verdade, durante seu reinado possibilitou o crescimento econômico e a expansão do comércio e da indústria. Ele havia criado uma indústria naval, embora os hebreus não fossem navegadores, nem tivessem intimidade com o mar. Ao contrário, era gente da terra firme, que sabia enfrentar as vicissitudes da aridez dos desertos. 

Mas Shlomo era um visionário. E, assim, contratou os seus vizinhos fenícios, esses sim, homens amantes das viagens marítimas. E instalou com a contratação dessa mão-de-obra especializada estaleiros no norte de Israel e ali construiu navios com o melhor da tecnologia marítima da época. 

Sim, eram tempos de crescimento econômico e expansão do comércio. Mas isso exigia trabalho duro e ele sabia disso. Foi por isso que trouxe para Israel um costume egípcio que não era muito bem visto. Passou a exigir dos jovens, o trabalho forçado obrigatório por dois anos seguidos, que muita gente dizia ser escravidão. Não, não era escravidão, mas fazia com que a força jovem das famílias deixassem os campos e fazendas para trabalharem para o governo de Shlomo no norte do país. 

E como se não bastasse, os jovens mais espertos eram convidados pelo governo de Shlomo a integra-se na força tarefa que se lançava nos mares a fim de realizar o comércio com outras nações do além-mar.

É verdade, eram tempos de trabalho duro, mas de conquistas e sonhos ousados. Mas havia outra questão e ele, como rei de Israel, sabia disso muito bem: não era só necessário pensar grande e trabalhar duro. Era necessário investir, afinal o governo precisava captar recursos para que o sonho pudesse se tornar realidade.

E foi assim que ele fez chegar a todo o povo de Israel uma campanha que dizia, “lança o teu pão sobre as águas, porque depois de muitos dias o acharás“ (Eclesiastes 11.1).

E depois no corpo da campanha, explicava que os investidores não deviam aplicar apenas em uma mercadoria, ou apenas num investimento -- reparte com sete e ainda com oito --, porque na economia há imponderáveis que, às vezes, é impossível prever. E fazia um alerta importante, quem fica esperando que tudo dê certo antes, nunca vai arriscar ou investir, ou seja, “quem observa o vento não semeará e quem atenta para as nuvens não ceifará”. E Shlomo aconselha, “semeia de manhã a tua semente e, de tarde, não deixes repousar a tua mão, pois não sabes qual das duas prosperará, se esta ou aquela ou se ambas serão igualmente boas”. 

Que campanha genial, que marketing brilhante! E todo o povo de Israel entendeu o recado do rei Shlomo. Vamos investir no comércio marítimo, no trigo e outros bens. E vamos importar também, cedro do Líbano e madeiras nobres, ouro e prata. A gente investe agora, diversifica os investimentos, pois sabemos que há riscos e não podemos prever tudo, mas apostamos junto com o governo de Shlomo, que é de crescimento econômico e prosperidade. Investir nos projetos do rei é uma atitude sábia e recompensadora, apesar dos riscos da empreitada. 

A campanha significava apostar nas safras de trigo e de outros bens agrícolas, investir no comércio exterior, e importar madeiras, ouro e prata, ou seja, “lançar o pão sobre as águas” e esperar, porque depois das viagens distantes, receberiam a recompensa de um ou mais dos investimentos feitos. Mas esses não eram investimentos de curto prazo, era necessário aplicar com tranquilidade na produção agrícola, nas viagens das naus de Shlomo, nas importações e esperar.

Eis as lições que podemos tirar deste sábio conselho presente no livro de Eclesiastes (11.1-8), uma coletânea de textos de sabedoria do rei Salomão.

Devemos, mesmo nos tempos de crise e de trabalho duro, investir, poupar, diversificando nossos investimentos. Sabendo que a longo prazo seremos recompensados, receberemos os dividendos, teremos o lucro dos investimentos realizados.

Sugestão de leitura: Eclesiastes 11. 1-8.

Vai e goza a vida

Shlomo amou muitas mulheres, além da filha de Faraó, moabitas, amonitas, edomitas, sidônias e hetéias. Segundo a tradição, foram setecentas princesas e trezentas concubinas, ou seja, mulheres com as quais não formalizou suas relações. Shlomo, possivelmente para agradar suas esposas, já na velhice, construiu altares para Camos, deus dos moabitas, e para Milcon, deus dos amonitas. E junto com elas, queimava incenso e sacrificava a esses deuses. (Reis 11: 1-8).

É importante notar, porém, que ter um harém era um sinal de riqueza de um reino e também da virilidade do rei. Afinal, um rei com potência sexual era considerado um sinal de bênção para o reino. E o fato de Shlomo casar com princesas estrangeiras fazia parte da diplomacia, porque os acordos entre cidades e reinos eram ratificados com a troca de princesas, que eram consideradas um capital econômico que regularizava as relações sociais. Por isso, tanto política como para manter a paz familiar, Shlomo devia respeitar as crenças de suas mulheres e, logicamente, construir locais de culto para os deuses delas.

Talvez essa situação toda tenha pesado no coração de Shlomo e no livro de Eclesiastes ele considerou que deveria dar um conselho especial aos jovens. 

Vai e “goza a vida com a mulher que amas, todos os dias da tua vida vã que ele te deu debaixo do sol, por todos os dias da tua vaidade. Pois essa é a tua porção na vida e no teu trabalho com que te afadigas debaixo do sol”. (9.9)

Shlomo está dizendo para os jovens que não adianta ter muitas mulheres se você não ama nenhuma delas. Entre todas, você deve escolher aquela que ama e atravessar a vida com ela. E como a vida é passageira, como a névoa que se dissipa pela manhã, você deve viver com intensidade cada momento. Afinal é isso que o Eterno deu a você, a oportunidade de viver e as lutas da vida.

Sugestão de leitura: Eclesiastes 9.1-10.

Teme ao Eterno

Shlomo entendeu que as posses são importantes, mas não bastam. E compreendeu também que gozar a vida é fundamental, mas viver com plenitude não se resume a isso. Vai, então, ensinar aos jovens uma outra lição:  “Este é o fim do discurso. Tudo já foi ouvido: teme ao Eterno e observa os seus preceitos, porque isso é o tudo do homem” (12.13). Ou seja, a vida em plenitude é um momento especial da espiritualidade, que possibilita às pessoas desfrutarem aquilo que conquistam e viverem com intensidade os dias da existência.

É um presente poder comer, beber e desfrutar o produto de nosso trabalho, e isso é um dom do Eterno. O encontro entre o ser humano e a transcendência eterna, essa comunhão profunda da espiritualidade, Shlomo nos conta que é fruto do escutar com atenção o que o universo nos fala. Não é fruto de uma liturgia exterior, mas a celebração no cenário complexo e paradoxal da vida. É a celebração com o corpo, onde a corporalidade assume o papel de tradutor dos mistérios do Eterno. 

“Eu vi ainda debaixo do sol que a corrida não é para os ligeiros, nem a batalha para os fortes, nem o pão para os sábios, nem as riquezas para os inteligentes, nem o favor para os homens de destreza; mas tudo depende do tempo e do acaso. Pois o homem não sabe a sua hora. Como os peixes que são apanhados numa rede cruel e como os pássaros que são presos no laço, assim os filhos dos homens são enlaçados no tempo mau, quando este dá sobre eles de improviso. Vi também este sinal de sabedoria debaixo do sol, que me pareceu grande”. (9.10-14).

Os frutos do trabalho e de seus investimentos, a sexualidade e o erotismo fazem parte do entendimento de Shlomo sobre os ganhos e os prazeres da vida. As palavras sábias de Shlomo lançam por terra uma compreensão superficial da vida. Os problemas da existência, o infortúnio e o mal não são inerentes ao mundo, não são frutos do pecado, nem maldição do Eterno, mas são manifestações das contingências e das fragilidades humanas. E por medo, o tolo não pode apreciar a beleza do mundo e a finalidade do esforço humano. Por isso, não se deve viver sem sabedoria. E este é o presente maior do Eterno.

Shlomo, aquele-que-sabe, o mestre sábio, construiu um cenário onde as pessoas desempenham na existência o papel que lhes é entregue pelo grande dramaturgo. Assim, comédia, drama e tragédia estão presentes no repertório teatral que cada pessoa escolhe (3.1-8). 

Mas, através da sabedoria horizontes estreitos são ampliados. Estar aqui, agora, quer rindo ou chorando, é um presente da eternidade. Estar aqui hoje é o dom que o Eterno me deu. Sem o aqui e agora de cada dia, meu desejo de ter, meu desejo de poder controlar o amanhã de acordo com o esforço de hoje não procede. A vida plena tem que acontecer hoje, pois não sabemos o dia de nossa morte. Tudo o que temos é a série de eventos agradáveis ​​e dolorosos que compõem a força da espiritualidade do nosso agora.

Sugestão de leitura: Eclesiastes 12.1-14.