vendredi 14 janvier 2011

As correlações entre a Religião e a Política


Religião e política, para Paul Tillich, não são realidades estanques, isto porque as raízes do pensamento político não são apenas pensamentos. Pensamento político é a expressão de um ser político, de uma situação social. Não se pode entender o pensamento quando se subestimam as realidades sociais das quais vem o pensamento político.

As raízes do pensamento político não podem agir com uma força igual em todo momento e em todo grupo. Um ou outro pode predominar, depende de uma situação social, grupos ou formas de dominação determinadas, pois dependem de estruturas sociopsicológicas, da interação com a situação social objetiva. Assim, o primeiro referencial é o ser. Nesse sentido, Tillich trabalha com uma fenomenologia política quando analisa questões como o ser, a origem do pensamento político, enquanto mito, e a partir daí procura trazer à tona os elementos não reflexivos do pensamento político.[1] E a questão do ser, presente na teologia, leva a uma antropologia existencial. Ora, a questão existencial é traspassada pela religião, que é a dimensão da profundidade, o espectro da profundidade na totalidade do espírito humano. A metáfora profundidade significa que o aspecto religioso aponta em direção àquilo que, na vida espiritual do ser humano, é último, infinito e incondicional. No sentido mais amplo e fundamental do termo, religião é preocupação última. E a preocupação última se manifesta em absolutamente todas as funções criativas do espírito humano. Assim, a religião constitui a substância, o fundamento e a profundidade da vida espiritual do ser humano.[2]

Nem sempre é necessário perguntar pelas raízes de um fenômeno social, mas quando a existência está sob risco, então é necessário perguntar quais são suas raízes? É necessário procurar pelas raízes do pensamento político no próprio ser humano. Sem uma imagem do humano, de suas forças e tensões, não se pode dizer nada sobre as fundações políticas do pensamento e do ser político. Sem uma teoria do humano, não se pode construir uma teoria das orientações políticas. Mas, o ser humano, diferente da natureza, é um ser dividido. Não importa saber onde termina a natureza e onde começa o humano, não importa que a passagem entre os dois se faça através de lentas transições ou por um salto. O importante é que em determinado momento, a diferença ficou clara. Há, no entanto, um processo vital indiviso, que desdobra a natureza sem interrogar nem requerer, um processo que está ligado àquilo que se encontra nele e faz parte do que ele é. Assim, existe um processo vital que deseja saber sobre o humano, e que coloca algumas questões para ele: já não é indiviso, mas também dividido. É idêntico a si mesmo quando diante de si mesmo, no ato de pensar e de conhecer. Mas não apenas isso.

O ser humano tem consciência de si mesmo, ou em outras palavras, distingue-se da natureza enquanto ser que se desdobra, tornando-se um ser consciente de si mesmo. A natureza ignora esta divisão. Por isso, o humano não é uma combinação de duas partes autônomas, tais como natureza e mente ou corpo e alma, mas um só ser, porém fendido em sua unidade. Estas determinações gerais levam a algumas considerações no que se refere à pesquisa do pensamento político. Elas negam qualquer dedução do pensamento político enquanto puro movimento de pensamento, de exigências ético-religiosas, ou considerações ditadas por determinada cosmovisão.

O pensamento político vem do ser humano enquanto unidade. Está enraizada no ser e na sua consciência, mais precisamente em sua unidade indissolúvel. É por isso que não se pode entender um sistema de pensamento político sem contextualizar seu enraizamento no ser humano enquanto ser social, ou seja, o imbricamento de pulsões e interesses, os constrangimentos e as aspirações constituintes do ser social. Mas também é impossível separar o ser de sua consciência, ou ver o pensamento político como simples subproduto do ser. Assim, a consciência estrutura todo o ser do homem, todo o ser social, em cada um de seus elementos, inclusive as sensações pulsantes mais primitivas. Quando se tenta desfazer laços passa-se ao largo da primeira e mais importante característica da essência humana, o que produz uma distorção no quadro geral que ele faz de si próprio, de que há uma consciência inadequada ao ser, uma falsa consciência, mas que não invalida a unidade do ser e da consciência. Isto porque, afirma, o conceito de falsa consciência não é possível quando a coisa que se designa é não conhecível. Assim, a consciência justa é uma consciência que emerge do ser e ao mesmo tempo o determina. Não pode ser uma coisa sem ser a outra, porque o humano é uma unidade na divisão, e desta unidade nascem as duas raízes de todo pensamento político. O ser humano se encontra enquanto realidade dada, assim como seu ambiente. Mas estar no mundo enquanto realidade significa que não vem de si mesmo, que não é sua própria origem. Conforme diz Heidegger, o humano é um ser lançado. Esta situação leva o ser humano a colocar-se o problema da fonte. O que mais tarde vai aparecer como questão filosófica. Mas tal discussão é uma construção, e o mito apresenta a primeira resposta, enquanto determinante para a discussão de conjunto.  

A origem é o que faz emergir. Este aparecimento dá lugar a algo novo, que não existiu antes, que produz uma consciência própria, diferente da origem. A realidade que somos está colocada, mas também é algo próprio. É uma tensão entre o ser-posto e o ser-próprio. Mas, a origem não nos liberta. Não se pode dizer que era e que não é mais. Constantemente somos puxados pela origem: ela nos faz emergir, nos segura firme. É ela que nos estabelece como algo, enquanto essência. Dessa maneira, ser-posto no mundo supõe caminhar para a morte.

As concepções conservadoras e progressistas

A concepção conservadora admite o surgimento do eterno no tempo, que repousa no passado. Por essa razão nega toda mudança, presente ou futura.[3] A força dessa concepção repousa no fato de que considera o eterno como dado e não como resultado da ação cultural e religiosa do ser humano.

Paul Tillich ao falar da plenitude do tempo no evento Jesus, explica a construção de sua concepção de kairós: um tempo carregado de tensão, de possibilidades e impossibilidades, qualitativo e rico de conteúdo. Nem tudo é possível sempre, nem tudo é verdade em todos os tempos, nem tudo é exigido em todo momento. Diversos mestres, diferentes poderes cósmicos, reinam em tempos diferentes, e o Senhor que triunfa sobre anjos e poderes, reina no tempo pleno de destino e de tensões, que se estende entre a Ressurreição e a Segunda vinda. Ele reina no tempo presente que, em sua essência, é diferente dos outros tempos do passado. É nessa viva e profunda consciência da história que está enraizada a idéia de kairós, e é a partir dela que deve ser elaborado o conceito de uma filosofia consciente da história.[4] A concepção conservadora também reconhece o kairós, mas o situa no passado. Desconsidera que se aconteceu no passado como acontecimento único, é ele quem se revela em todos os sim/não do passado, do presente e futuro. Sob tal visão repousa o pensamento político conservador. Perdeu o sentido supratemporal do kairós.[5] e

O mito expressou com profunda riqueza este estado de coisas, com o testemunho de objetos e eventos nos quais o grupo humano percebe sua origem. Em todos os mitos ressoa a lei cíclica do nascimento e da morte. Todo o mito é mito da origem, responde à pergunta da providência e conta porque somos segurados na origem e estamos debaixo de seu império.[6] A consciência mítica original é a raiz de todo o pensamento político conservador e romântico. A consciência mítica não apresenta a origem de forma abstrata, mas concreta, sob a forma de poderes originais determinados. A existência humana distinta e suas origens são diferentes, assim como o são os poderes da origem, percebidos no mito e atualizados no culto. Porém, é possível operar alguns reagrupamentos significantes de poderes originais que têm uma grande importância política. [7]
   
Embora haja pontos de contato entre os conceitos expressos por Paul Tillich e o pensamento marxista, principalmente no que se refere à construção de um pensamento político conservador, é interessante ver as diferenças. Para Marilena Chauí, filósofa brasileira, teórica do Partido dos Trabalhadores, o mito deve ser entendido enquanto conceito antropológico, no qual a narrativa é a solução imaginária para tensões, conflitos e contradições que não encontram caminhos para serem resolvidos no nível da realidade.

Um mito fundador é aquele que não cessa de encontrar novos meios para exprimir-se, novas linguagens, novos valores e idéias, de tal modo que, quanto mais parece ser outra coisa, tanto mais é a repetição de si mesmo.[8]

Dessa maneira, para Chauí, o mito é sempre falsa consciência. Mas o ser humano vai além do colocar-se como realidade dada, vai além do saber colocar-se diante do ciclo do nascimento e a morte. Faz a experiência de uma exigência que separou o imediato da vida e o leva a colocar-se diante da pergunta da providência uma outra pergunta: por que? Esta pergunta quebra o ciclo de uma maneira fundamental, eleva o ser humano acima da esfera do simples viver. Porque é a exigência de algo que não está aí, que tem que se tornar realidade. Quando se faz a experiência desse tipo de exigência não se está mais colado à origem. Vai-se além da afirmação do que já está. A exigência nomeia o que deve ser. E o que deve ser não é determinado com a afirmação daquilo que já é, disso que é, significa que tal exigência impôs ao ser humano o incondicionado. O por que não está dentro dos limites da fonte. É o incondicionalmente novo. Através desse por que o ser humano deve alcançar algo de incondicionalmente novo. Este é o sentido da exigência, quando o humano, por ser dividido, faz esta experiência. Ele detém um conhecimento próprio, por isso é possível ir além da realidade, além daquilo que o cerca. Tal é a liberdade do ser humano: não que ele tenha uma vontade livre, mas não está preso, enquanto humano, ao que está dado. O ciclo do nascimento e morte foi quebrado, sua existência e sua ação não estão amarradas na simples propagação de sua origem. Quando esta consciência se impõe, são rasgados os laços da origem, o mito original está quebrado. A ruptura do mito original pela exigência incondicional é a raiz do pensamento político liberal, democrático e socialista.

A concepção progressista considera o eterno um alvo infinito, existente em cada época, mas que não se apresenta enquanto revolução. Assim, os tempos tornam-se vazios, sem decisão, sem responsabilidade. Na concepção progressista existe uma tensão diante do que foi. Mas a consciência de que o alvo é inacessível a debilita e produz um compromisso continuado com o passado. A concepção progressista não oferece nenhuma opção ao que está dado. Transforma-se em progresso mitigado, em crítica pontual desprovida de tensão, onde não há nenhuma responsabilidade última. Este progressismo mitigado é a atitude característica da sociedade burguesa. É um perigo que ameaça constantemente, é a supressão do não e do sim[9] A exigência que o ser humano faz na experiência diante do incondicionado não é estranha a ele. Se fosse estranha à sua essência, não lhe seriam concernentes e ele não poderia discernir tal coisa como exigência. Se ela lhe toca é porque coloca diante de seus olhos sua essência enquanto exigência. Funda-se a incondicionalidade, a irrevogabilidade com que o dever-ser aborda o humano e exige ser afirmado por ele. Se a exigência é a própria essência do humano, então ela encontra seu fundamento na sua origem, e então a providência e o destino não pertencem a mundos diferentes. Ainda, diante do original, o que é requerido é o incondicionalmente novo. Assim, a origem é ambígua. Há nela uma separação entre origem verdadeira e a origem real. O que é realmente original não é o que é original de verdade. Dessa maneira, a realização da origem é esta exigência e este dever-ser pelo qual o humano é confrontado. O por que do ser humano é a realização da sua providência. A origem real é negada pela origem verdadeira; mas certamente, não é uma pura e simples negação. A origem real tem que levar à verdadeira, ela é sua expressão, mas também disfarce e distorção. A pura consciência mítica original ignora todas as ambiguidades da origem. É por isto que esta consciência está presa à origem e considera sacrilégio toda a ultrapassagem da origem. Só a consciência que, fazendo a experiência da exigência da incondicionalidade, se livra dos laços de origem e se apercebe da ambiguidade da origem.    incondicionais, a supressão do anúncio da plenitude dos tempos. É o verdadeiro adversário do espírito profético.

A exigência quer a realização da origem verdadeira. Porém o ser humano não recebe uma exigência incondicionada de outros. É no reencontro do "eu e você" que a exigência torna-se concreta. Seu conteúdo é reconhecido no você com a dignidade do "eu", a dignidade para ser livre, portador da realização daquilo que apontada à origem. Reconhecer no você uma dignidade igual a do eu, isto é justiça. A exigência que nos arrasta à ambiguidade da origem é a exigência de justiça. A origem não rompida conduz a poderes em tensão que procuram a dominação e destroem um ao outro. Quando a origem é rompida vem o poder do ser, o declínio dos poderes que expiam e são julgados por seu sacrilégio, de acordo com a ordem do tempo, como já evocou a filosofia grega. A exigência incondicional eleva acima deste ciclo trágico. Diante do poder e da impotência do ser, opõe a justiça, que provém do dever-ser. Mas essa teoria tillichiana de uma justiça criativa não deve levar aquele que a pratica ao esquecimento das violências do passado, quando grupos se lançaram uns contra os outros, mas nos opormos a essas ações e outras semelhantes, pois o amor pode ir além da separação, não ignorando diferenças, mas dirigindo as partes aos valores mais elevados. Esse é o desafio da justiça criativa: trabalhar a partir das relações pessoais e comunitárias para sobrepujar os problemas do passado e as estruturas existentes, a fim de desenvolver novos modelos de relacionamento e criar leis novas que contribuam para unir as pessoas e os povos, e aumentar o poder. A justiça criativa constitui a última interrelação do amor, do poder e da justiça, mas podemos senti-la e mesmo experimentá-la de maneira fragmentária e momentânea, em meio às ambigüidades da vida. A justiça criativa põe em evidência o poder transformador do amor.[10] Portanto, não há oposição entre justiça e poder, porque o dever-ser é a realização do ser. A justiça é o verdadeiro poder do ser. Nisto se torna realidade o que é apontado na origem. Na relação entre os dois elementos da existência humana e as duas raízes do pensamento político, a exigência predomina sobre a pura origem, e a justiça, sobre o puro poder do ser. A pergunta do por que é superior à da providência. O mito original não deve representar no pensamento político mais do que uma crença rompida, uma crença desvelada. Esse é o caminho da utopia. Sem o espírito utópico não há protesto, nem crítica profética. Para Tillich, esse espírito profético está envolvido na situação histórica concreta, tem coragem de decidir e colocar-se sob julgamento ao nível do particular, sem esquecer que sua relação aponta ao incondicionado, e que o ponto mais elevado que é possível alcançar no tempo está submetido ao não. Por isso, o espírito profético não deve perder a audácia do não e do sim concretos.

A utopia e o kairós

Isto é verdade porque cada tensão orientada para adiante comporta uma representação daquilo que deve vir e de como se entende a realização desse ideal. A utopia está presente em todo agir incondicionalmente orientado à transformação do presente.[11] A utopia quer realizar a eternidade no tempo, mas esquece que o eterno abala o tempo e todos seus conteúdos. É por isso que a utopia leva, necessariamente, à decepção. Progresso mitigado é o resultado da utopia revolucionária desencantada.

A idéia do kairós nasce da discussão com a utopia.[12] O kairós comporta a irrupção da eternidade no tempo, o caráter absolutamente decisivo deste instante histórico enquanto destino, mas tem a consciência de que não pode existir um estado de eternidade no tempo, a consciência de que o eterno é, em sua essência, aquele que faz a revolução no tempo, sem, contudo, fixar-se nele. Assim, a realização da visão profética se encontra além do tempo.[13]kairós e a utopia, que pensa poder fixar a eternidade no tempo presente. E é a partir dessa compreensão do que significa o espírito da profecia no tempo presente, que voltamos ao kairós, mas agora com novos conteúdos, construído enquanto responsabilidade inetulável.[14] Kairós significa tempo concluído, o instante concreto e, no sentido profético, a plenitude do tempo, a irrupção do eterno no tempo. Kairós não é um momento qualquer, uma parte do curso temporal: kairós é o tempo onde se completa aquilo que é absolutamente significativo, é o tempo do destino. Considerar uma época como um kairós, considerar o tempo como aquele de uma decisão inevitável é considerá-lo enquanto espírito da profecia. Tal desafio não pode ser resolvido por um homem ou por uma mulher, por mais que encarnem o espírito da profecia. O sujeito da transformação será, em última instância, a massa. Metodologicamente, toda transformação exige uma compreensão do momento vivido que vá além do meramente histórico, do aqui e agora. Deve projetar-se no futuro, deve entender que há no espírito profético da responsabilidade inelutável um choque entre este
 
Essas duas raízes do pensamento político mantêm entre elas uma relação que é mais do que simples justaposição. A exigência predomina na origem. Considerando as várias tendências políticas, não se pode supor que elas sejam atitudes humanas justificadas. Onde são requeridas decisões, o conceito tradicional de realidade não é aplicável, diferente de quando estamos diante de uma exigência do incondicionado.

Ninguém pode entender o socialismo se não experimentar a exigência de sua justiça como uma exigência do incondicionado. Quem não é confrontado pelo socialismo não pode falar do socialismo, a não ser enquanto expressão que vem do exterior.[15] Não pode falar dele porque é contrário às tendências políticas que defende. Aí está o nó da origem. Mas, todo sistema político requer autoridade, não só no sentido de possuir instrumentos de força, mais também em termos de consentimento tácito das pessoas. Tal consentimento só é possível se o grupo que está no poder representa uma idéia poderosa, que goze de significado para todos. Existe, pois, na esfera política uma relação entre a autoridade e a autonomia. Toda estrutura política pressupõe poder[16] e um grupo que o assume. Mas um grupo de poder é também um conglomerado de interesses opostos a outras unidades de interesses e sempre necessita uma correção. A democracia está justificada e é necessária na medida em que é um sistema que incorpora correções contra o uso errôneo da autoridade política.[17] Assim, religião e política não são realidades estanques, porque as raízes do pensamento político não são apenas pensamentos. Religião e política estão imbricadas, mas não existem sem a necessidade de correção, ou seja, da democracia,[18] enquanto grupo no poder.


Notas
[1] Paul Tillich, “La Décision Socialiste”, in Écrits contre les nazis (1932-1935), op. cit., p. 27.
[2] Paul Tillich, Teologia de la cultura y otros ensayos, A dimensão religiosa na vida espiritual do homem, Buenos Aires, Amorrortu Editores, 1974, pp. 16-17. Man’s right to knowledge, Columbia University Press, 1954.
[3] Paul Tillich, “Kairos II. Idées à propos de la situation spirituelle du temps présent”, in Christianisme et Socialisme, Écrits socialistes allemands (1919-1931), Paris, Genebra, Québec : Les Éditions du Cerf, Éditions Labor et Fides, Les Presses de l’Université Laval, 1992, pp. 253-267. “Kairos II, Ideen zur Geisteslage der Gegenwart”, Die Widerstreit von Raum und Zeit, Gesammelte Werke VI, 1963, pp. 29-41. Trad. fr. Nicole Grondin e Lucien Pelletier.
[4] Paul Tillich, “Kairós II”, in Christianisme et socialisme, Écrits socialistes allemands (1919-1931), op. cit., pp. 259-260.    
[5] Paul Tillich, “Kairós II”, in Christianisme et socialisme, Écrits socialistes allemands (1919-1931), op.cit., p. 260.
[6] Martin Leiner, “Mythe et modernité chez Paul Tillich, in Marc Boss, Doris Law, Jean Richard (ed.), Mutations religieuses de la modernité, Actes du XIVe. Colloque International Paul Tillich, Marselha, 2001,  Hamburgo, Londres, LIT, 2002, p. 13. 
[7] Paul Tillich, La Décision Socialiste, op. cit., p. 17.
[8] Marilena Chauí, Brasil, mito fundador e sociedade autoritária, São Paulo, Editora Fundação Perseu Abramo, 2000, p. 9.
[9] Paul Tillich, “Kairós II”, op.cit., p. 260.
[10] Mary Ann Stenger, “La justice créative dans les écrits de Tillich sur le socialisme et dans ‘Amour, pouvoir et justice’”, in Etudes théologiques et religieuses, ETR, 79o. ano, 2004/4, p. 527, Montpellier, Institut Protestant de Théologie, 2004.
[11] Paul Tillich, Kairós II, op.cit., p. 260.
[12] Paul Tillich, “Idéologie et utopie. À propos d’un ouvrage de Karl Mannheim” in Christianisme et Socialisme, Écrits socialistes allemands (1919-1931), Paris, Genebra, Québec : Les Éditions du Cerf, Éditions Labor et Fides, Les Presses de l’Université Laval, 1992, pp. 320-322.  “Ideologie und Utopie”, Begegnungen, Gesammelte Werke XII, Evangelisches Verlagswerk Stuttgart, 1971, pp. 255-261. Trad. fr. Nicole Grondin e Lucien Pelletier.
[13] Paul Tillich, Kairós II, op. cit., p. 261.
[14] Paul Tillich, História do Pensamento Cristão, São Paulo, ASTE, 2000, p. 24. Texto original: A History of Christian Thought, Ed. Carl E. Braaten, Nova York, Harper and Row Publishers, Inc., 1968. Vorlesungen uber die Geschichte des christlichen Denkens, Stuttgart, Evangelische Verlag W., 1971.
[15] Paul Tillich, “La décision socialiste”, op.cit., p.31.
[16] Paul Tillich, “Le problème du pouvoir. Essai de fondation philosophique” in Christianisme et Socialisme, Écrits socialistes allemands (1919-1931), Les Éditions du Cerf, Éditions Labor et Fides, Les Presses de l’Université Laval, 1992, pp. 486-488. “Das Problem der Macht, Christentum und soziale Gestaltung, Gesammelte Werke II, Evangelisches Verlagswerk Stuttgart, 1962, pp. 193-208. Trad. fr. Nicole Grondin e Lucien Pelletier.
[17] Paul Tillich, Teologia de la cultura y otros ensayos, op. cit., pp. 239-240.
[18] Paul Tillich, “Le socialisme” in Christianisme et Socialisme, Écrits socialistes allemands (1919-1931), Paris, Genebra, Québec, Les Éditions du Cerf, Éditions Labor et Fides, Les Presses de l’Université Laval, 1992, p. 346.  “Sozialismus”, Christentum und Soziale Gestaltung, Gesammelte Werke II, Evangelisches Verlagswerk Stuttgart, 1962, pp.139-150. Trad. fr. Nicole Grondin e Lucien Pelletier.

Fonte
Jorge Pinheiro, Teologia e Política, Paul Tillich, Enrique Dussel e a Experiência Brasileira, São Paulo, Fonte Editorial, 2006, "As correlações entre a Religião e a Política", pp.33-42.

jeudi 13 janvier 2011

Um estudo em Lucas

Introdução
Partimos nesta análise da hipótese de que existem compósitos universais na eclesiologia batista, e que a partir da experiência neotestamentária e da tradição anabatista temos elementos para explicar as universalidades dessa eclesiologia. Tal entendimento nos leva a traçar um caminhar entre a tradição neotestamentária e anabatista, teológica e histórica, a fim de explicar essas universalidades.

No início da era cristã, o evangelho de Lucas e o livro de Atos formavam uma só obra em dois volumes, que poderíamos chamar de "História das Origens Cristãs". Esses dois volumes só foram separados por volta dos anos 150. O título "Atos dos Apóstolos" surgiu nessa época, já que a literatura helenística conhecia os "Atos de Aníbal" e os "Atos de Alexandre", entre outros.

Documentação e Linguagem
A sinopse padrão que delineamos para Atos está intimamente ligada às correntes de informação recolhidas por Lucas. É certo que o valor excepcional do livro se funda no testemunho ocular do autor em relação a uma série de acontecimentos. No entanto, Lucas teve acesso a uma documentação variada, extensa e pormenorizada, conforme ele próprio afirma no prólogo de sua obra (1:1-4).

Segundo o helenista P. Benoit, da Escola Bíblica de Jerusalém, "a despeito de uma atividade literária sempre vigilante, que por toda parte deixou seus traços e assegura a unidade do livro, facilmente se reconhece a utilização de documentos diversos". (1) Benoit afirma ainda que a própria linguagem de Atos varia de um grego excelente, quando Lucas depende de si mesmo e se inspira nas suas notas de viagem, a um texto semitizante, às vezes incorreto, quando fala sobre os primórdios da comunidade cristã na Palestina. Muito possivelmente porque respeita e corrige o menos possível as informações de textos aramaicos, apesar de o livro de Atos e o evangelho de Lucas, (assim como o tratado aos Hebreus) conterem a redação grega mais culta de todo o Novo Testamento.

Assim, temos quatro blocos de informações diferentes, que podemos enumerar da seguinte forma: (a) aquele que se refere à primitiva comunidade de Jerusalém  (do capítulo 1 ao 5); (b) as atividades de personagens como Filipe (8:4-40) e Pedro (9:32-11:18 e 12), que podem ter sido fornecidas pelo próprio Filipe, já que ele se encontrou com Lucas em Cesaréia (21:8); (c) o da comunidade de Antioquia, fornecidos por judeus helenistas (6:1-8:3; 11:19-30; 13:1-3) e, sem dúvida, pelo próprio Paulo, que deve ter passado a Lucas informações sobre sua conversão e sobre suas viagens (9:1-30; 13:4-14; 15:36s; 28); (d) o período final das viagens de missão contou com as notas pessoais de Lucas e muito possivelmente foi daí que transcreveu as seções em que diz "nós". Esses são trechos do livro onde se concentram as particularidades do texto de Lucas (11:28; 16:10-17; 20:5-21; 18; 27:1-28).

Esse material foi organizado num todo, interligado por recursos de estilo, como em 6:7, 9:31, 12:24, entre outros. É interessante ver que as descobertas arqueológicas têm confirmado a exatidão histórica de Lucas. Por exemplo, sabe-se atualmente que o uso que Lucas fez dos títulos de vários escalões de oficiais locais e governamentais de províncias, procuradores, cônsules, pretores, politarcas, asiarcas e outros, mostra-se acuradamente correto, correspondentes às ocasiões e lugares acerca dos quais Lucas estava escrevendo. Assim, o arrazoado lucano forma um texto que pode ser subdividido em doze blocos de acontecimentos e eventos, que seguem uma não muito estrita sequência cronológica, conforme apresentamos abaixo: (1) A fé se implanta em Jerusalém, onde a comunidade cresce em graça e número. Capítulos: 1 a 5. (2) Tem início a expansão fora de Jerusalém, devido à tendência universalista dos convertidos do judaísmo helenista e pela fuga em consequência do martírio de Estêvão. Capítulos: 6:1 a 8:3. (3) Atinge-se a Samaria. Capítulo: 8:4-25. (4) A região sul e oeste de Jerusalém até a costa de Cesaréia é evangelizada. Capítulos: 8:26-40; 9:32 a 11:28. (5) Damasco já tem comunidades cristãs e a evangelização segue em direção à Cilícia. Capítulo: 9:1-30. (6) Antioquia recebe a mensagem de Jesus. Capítulo: 11:19-26. (7) Antioquia e Jerusalém estabelecem acordos sobre os principais problemas missionários. Capítulos: 11:27-30; 15:1-35. (8) Pedro, depois da conversão de Cornélio e da prisão em Jerusalém, parte com destino desconhecido. Capítulo: 12:7. (9) Primeira viagem de Paulo a Chipre e a Ásia Menor, antes do Concílio de Jerusalém. Capítulos: 13 e 14. (10) Outras duas viagens de Paulo o levarão até a Macedônia e a Grécia. Capítulos: 15:36 a 18:22; 18:23 a 21:17. (11) Paulo retorna a Jerusalém, é preso e levado cativo a Cesaréia. Capítulos: 21:18 a 26:32. (12) É conduzido preso até Roma, onde acorrentado anuncia a Cristo. Capítulos: 27 e 28.

Uma Abordagem Histórica
Podemos dizer que o texto de Lucas, em seu segundo livro, parte da percepção de que a história tem importante significado teológico. Aliás, o escritor apresenta em seus trabalhos uma visão da continuação dos atos de Deus no testamento antigo: quer no evangelho, como atos de Jesus, quer em seu livro segundo, como atos do Espírito Santo.

Lucas mostra que Deus se revela através dos atos e eventos da história humana, definidos por sua presciência. É fundamental entender que se há negação da realidade dos eventos históricos não há base para a fé. Nesse sentido, o evangelho não é uma mensagem meramente existencial, sem conexão imediata com a história.

A compreensão de Lucas da historicidade do cristianismo parte da própria tradição judaica, que entendia o monoteísmo ético e a esperança escatológica como frutos da intervenção divina na vida do povo judeu. Lucas traz essa tradição teológica, singular em relação à religiosidade do mundo antigo, para a vida do que seria anos mais tarde chamado de novo testamento.

Assim, para o escritor, todos os eventos que se registraram em Atos foram levados a efeito por meio da vontade e do propósito de Deus. E esses fatos surgem na vida da igreja como cumprimento das Escrituras. Dessa maneira, a história que Lucas descreve foi dirigida por Deus. E o poder de Deus revela-se através da ação do Espírito Santo, em sinais e maravilhas operados em nome do Senhor Jesus.

Entendendo que o livro de Atos tem como finalidade transmitir a força da expansão espiritual do cristianismo e o ensinamento teológico vivido pelos cristãos, podemos dizer que há um plano sinóptico claro, traçado por Lucas, que num primeiro momento se nos apresenta como histórico. Mas a história de Lucas não é a história da igreja, e sim aquela que foi possível redigir com os documentos e informações de que dispunha. Não relata, por exemplo, a fundação da igreja de Alexandria, nem a de Roma. E nada fala do apostolado de Pedro fora da Palestina. Mas, esses silêncios e omissões só contam a favor. Estamos diante de um homem que foi profundamente fiel à documentação de que dispunha.

Da mesma maneira, não podemos entender a história de Lucas sem inserir nela toda a contribuição vivenciada pelos primeiros cristãos. A fé em Cristo, base do querigma apostólico, aí está exposta, primeiro pelo triunfo do homem Jesus como kyrios, em grego, pela ressurreição (2:22-36), e depois, pela boca de Paulo, como Filho de Deus (9:20). Vemos ainda, através dos discursos, a formulação da cristologia e a base para a argumentação com os judeus, notadamente os temas referentes ao Servo (3:13-26; 4:27-30; 8:32-33), e a Jesus, com o novo Moisés (3:22s; 7:20s). A ressurreição é comprovada através do salmo 16:8-11 (2:24-32; 13:34-37). Dessa maneira, a história do povo eleito deve colocar os judeus de sobre-aviso contra as resistências à graça (7:2-53; 13:16-41) e aos pagãos invocam-se argumentos de uma teodicéia mais geral (14:15-17; 17:22-31).

O problema crucial da igreja nascente era o do acesso dos gregos à salvação, e o segundo livro de Lucas mostra como os irmãos de Jerusalém, reunidos em torno de Tiago, continuam fiéis à lei judaica (15:1-5; 21:20s), enquanto os helenistas, cujo porta-voz é Estêvão, sentem a necessidade de romper com o templo. Pedro e Paulo garantem o triunfo da doutrina da graça no Concílio de Jerusalém (15:1-29), que dispensa os pagãos da circuncisão e das observâncias mosaicas. A verdade, de que a salvação vem de Israel, leva Paulo a pregar sempre, inicialmente, aos judeus, para depois voltar-se aos gentios, quando seus irmãos de raça o rejeitam (13:5+).

Aparentemente, o objetivo de Atos é descrever a missão definida em 1:8: "Sereis minhas testemunhas tanto em Jerusalém, como em toda a Judéia e Samaria, e até aos confins da terra". Acontece que o propósito da igreja é proclamar de Jesus.

Assim, a igreja se posiciona em relação ao reino, ao apresentar os elementos universais da nova aliança e entregar ao mundo as chaves do reino. Essas conclusões estão presentes numa abordagem que cruza o projeto redentivo e a realidade histórica. Ora, nenhuma menção à igreja é feita após as duas referências de Mateus (16 e 18) até depois do evento de Pentecostes em Atos. O Pentecostes foi iniciado com uma assembléia pessoas que perseveraram na doutrina dos apóstolos e na comunhão, no partir do pão e nas orações  (2:42). A primeira referência à igreja é encontrada em 5:11, após o primeiro exercício da função bloqueadora das chaves do Reino, no caso de Ananias e Safira. Sobreveio, então, um grande temor sobre toda a igreja e sobre todos que ouviram a notícia daqueles acontecimentos. Inicialmente, os discípulos foram chamados de irmãos, de santos (9:32), de fiéis (10:45), depois de numerosa multidão (11:26) e de  muitas pessoas (12:12). Somente quando organizados e governados por pastores, eles são designados como igreja (cf. 13:1-3; 14:19-28; 15:1-41). E no final do livro de Atos encontramos referências a igrejas que tinham grupos de crentes batizados, que confessavam uma fé, eram ordenados por pastores, e que se reuniam para adoração, proclamação e missão. E tal igreja, a quem foi confiada as chaves do reino, deveria proclamar a mensagem do reino, conforme Mt 24:14; 28:18-20. (2)

A missão só pode ser compreendida se inserida na mensagem, que é Jesus. Essa é a tarefa dos apóstolos, que conviveram com o Messias, participaram de seu ministério e estiveram com ele após a ressurreição. E que agora estavam equipados para a proclamação da boa nova oferecida por Deus.

É interessante notar que Lucas coloca o centro de sua mensagem teológica na ressurreição e exaltação de Jesus. Essa postura, no entanto, é uma particularidade do cristianismo nascente e vemos esse pensamento funcionar como pedra angular entre todos os escritores do Novo Testamento. As bençãos provenientes dessa boa nova é o perdão dos pecados e o nascer do Espírito.

A Mensagem é a Missão
O roteiro do trabalho de Lucas é a expansão da mensagem. Lucas produz um texto, cuja história vai num crescendo emocionante, com clímax e anticlímax, até cortar repentinamente a narrativa. Momentos de clímax são a morte de Estêvão, a conversão e o naufrágio de Paulo, entre outros. Momentos de anticlímax, que levam à reflexão teológica, são os discursos, o concílio e as defesas de Paulo ante tribunais e governadores. Esse roteiro acontece não somente dentro de uma situação histórica singular, como é histórico em seu próprio desenrolar.

O batismo no Espírito Santo, já anunciado por João Batista (Mt 3:11) e prometido por Jesus (At 1:8), será inaugurado no Pentecostes (2:1-4). A seguir, segundo o mandato de Cristo (Mt 28:19), os discípulos e apóstolos continuarão a administrar o batismo 2:41; 8:12 e 38; 9:18; 10:48; 16:15 e 33; 18:8; 19:5) como ritual de iniciação ao reino messiânico (cf. Mt 3:6+), agora "em nome de Jesus" (2:38+). Pela fé na obra redentora de Cristo (cf. Rm.6:4+), o batismo será não apenas de arrependimento, mas simbolizará a concessão do Espírito Santo (2:38).

O Espírito Santo, tema especialmente caro a Lucas (Lc 4:1+), aparece antes de tudo como um poder (Lc 1:35; 24:49; At 1:8; 10:38), enviado de junto de Deus por Cristo (2:33) para a difusão da boa nova. O Espírito Santo outorga os dons, que autenticam a mensagem: dons de línguas (2:4+), dos milagres (10:38), de profecia (11:27+; 20:23; 21:11), de sabedoria (6:3, 5,10), dá força para anunciar a Jesus Cristo, apesar das perseguições (4:8 e 31; 5:32; 6:10; cf. Fl. 1:19) e dar testemunho dele. Intervém, enfim, nas decisões capitais: na admissão dos gentios na igreja (8:29 e 39; 10:19,44-47; 11:12-16; 15:8) e nas missões de Paulo no mundo gentio (13:2s; 16:6-7; 19:11).

Assim, todo o livro está impregnado, dirigido e impulsionado pela presença irresistível do Espírito Santo. Ele atua na expansão da igreja (1:8) com tal poder que muitos se sentem a vontade para chamar o livro de "Atos do Espírito Santo".

Para Lucas, a organização e a vida da igreja são uma questão teológica. E graças a isso, aprendemos que a presença do Espírito Santo é a base do funcionamento da igreja. Ele guia na escolha dos líderes, na atividade evangelizadora e, inclusive, na estrutura que a igreja vai construindo. Apóstolos, anciãos, profetas e mestres, residentes ou itinerantes, todos tem atividades definidas, e se colocam sob a direção do Espírito Santo.

O Espírito Santo é Deus pleno. Por isso, Lucas vê a igreja como comunidade levantada e dirigida por Deus. Ele acredita no triunfo final do evangelho. Mas essa teologia da glória está mediada pelo sofrimento e pelo martírio, pela teologia da cruz.

Os discípulos de Jesus Cristo que vieram a ser designados pelo nome batista se caracterizavam pela sua fidelidade às Escrituras e por isso só recebiam em suas comunidades, como membros atuantes, pessoas convertidas pelo Espírito Santo de Deus. Somente essas pessoas eram por eles batizadas e não reconheciam como válido o batismo administrado na infância por qualquer grupo cristão, pois, para eles, crianças recém-nascidas não podiam ter consciência de pecado, regeneração, fé e salvação. Para adotarem essas posições eles estavam bem fundamentados nos Evangelhos e nos demais livros do Novo Testamento. A mesma fundamentação tinham todas as outras doutrinas que professavam. Mas sua exigência de batismo só de convertidos é que mais chamou a atenção do povo e das autoridades, daí derivando a designação "batista" que muitos supõem ser uma forma simplificada de "anabatista", "aquele que batiza de novo".

A designação surgiu no século XVII, mas aqueles discípulos de Jesus Cristo estavam espiritualmente ligados a todos os que, através dos séculos, procuraram permanecer fiéis aos ensinamentos das Escrituras, repudiando, mesmo com risco da própria vida, os acréscimos e corrupções de origem humana. Através dos tempos, os batistas se têm notabilizado pela defesa destes princípios:

1º - A aceitação das Escrituras Sagradas como única regra de fé e conduta.
2º - O conceito de igreja como sendo uma comunidade local democrática e autônoma, formada de pessoas regeneradas e, biblicamente, batizadas.
3º - A separação entre igreja e Estado.
4º - A absoluta liberdade de consciência.
5º - A responsabilidade individual diante de Deus.
6º - A autenticidade e apostolicidade das igrejas.

Caracterizam-se também os batistas pela intensa e ativa cooperação entre suas igrejas. Não havendo nenhum poder que possa constranger a igreja local, a não ser a vontade de Deus, manifestada através de seu Santo Espírito, os batistas, baseados nesse princípio da cooperação voluntária das igrejas, realizam uma obra geral de missões, em que foram pioneiros entre os evangélicos nos tempos modernos; de evangelização, de educação teológica, religiosa e secular; de ação social e de beneficência. Para a execução desses fins, organizam associações regionais e convenções estaduais e nacionais, não tendo estas, no entanto, autoridade sobre as igrejas; devendo suas resoluções ser entendidas como sugestões ou apelos.

Para os batistas, as Escrituras Sagradas, em particular o Novo Testamento, constituem a única regra de fé e conduta, mas, de quando e quando, as circunstâncias exigem que sejam feitas declarações doutrinárias que esclareçam os espíritos, dissipem dúvidas e reafirmem posições. Cremos estar vivendo um momento assim no Brasil, quando uma declaração desse tipo deve ser formulada, com a exigência insubstituível de ser rigorosamente fundamentada na palavra de Deus.

Considerações finais
Assim, Lucas mostra a diferença entre o cristianismo e a estrutura judaica oficial que entrava numa etapa de caducidade. Aqui, entre os cristãos, a organização não reflete poder pessoal, nem burocratismo. Não há como separar a vida e a estrutura da igreja nascente de sua mensagem e de sua missão. Estamos diante de uma totalidade viva, em expansão, cheia de glória e do poder de seu senhor e mestre: Jesus, juiz dos vivos e dos mortos (10:42).

As comunidades cristãs descritas em Atos fornecem elementos concretos e práticos sobre a ação e atuação ideais para a igreja de nossos dias. E essa é a conclusão que desejamos apresentar, conforme os parâmetros tão bem definidos por Scott Horrel em seu trabalho. Lucas fala de um cristianismo de adoração, de aprendizado, de comunhão e de evangelização. São as atividades primordiais de uma igreja habitada pelo Espírito Santo. Esse cristianismo pode ser descrito assim:

(a)  Era uma igreja marcada pelo louvor. E o amor traduzia-se na criatividade das formas de adoração. Assim, ao invés de reduzir a adoração exclusivamente à música e à oração, os primeiros cristãos tinham a liberdade de experimentar formas que criavam condições para a igreja se deleitar no Senhor.

(b)  O aprendizado, que pode ser traduzido em ensino, doutrina e teologia, era considerado fundamental para a vida cristã. Era a porta de entrada para conhecer a palavra de Deus.

(c)  A comunhão era muito mais do que o mero bom relacionamento entre cristãos. A igreja, através da oração e do planejamento, desenvolveu formas de encorajar a comunhão genuína. Afinal, o relacionamento com Deus é medido mais pela comunhão com outros cristãos do que por qualquer outro fator.

(d)  A evangelização era entendida como um ato corporal, não apenas como discurso. Isto porque, ao viverem num clima de adoração, de aprendizado e comunhão, os cristãos exerciam uma poderosa atração sobre aqueles que estavam procurando a verdade.

Dessa maneira, as comunidades cristãs de Atos romperam com a centralização  nacional e geográfica de Israel e iniciaram a construção de uma igreja para todos os povos, em todo o lugar, em cada dia. Hoje, da mesma forma que o cristianismo nascente, a igreja local precisa ter claro sua essência, sua função, seu ponto de equilíbrio, sua forma e estilo. Isso significa que o propósito básico da igreja local é encarnar o corpo de Cristo na terra, fazendo a vontade Deus. Suas atividades primárias devem ser aquelas que caracterizavam a igreja no Novo Testamento e isso deve ser construído de forma equilibrada. Não desenvolvendo apenas uma função, mas todas as quatro. E por fim, deve adaptar sua organização ao povo e às novas gerações.

Existe ainda uma questão fundamental que é a responsabilidade diante da igreja como um todo. É necessário aprender a experimentar comunhão entre as denominações. Existem diferenças e muito possivelmente devem ser mantidas, mas as outras igrejas locais, as outras denominações não são inimigas. Representam grupos de pessoas, com experiências e tradições diferentes das nossas. Rejeitar a comunhão com um irmão é, de fato, rejeitar o corpo de Cristo.

E por fim, fica a pergunta: o que seria uma igreja sem templo, sem domingo, sem grande programa de culto e sem clero profissional? Aparentemente, poderia não ser o ideal, mas nem por isso deixaria de ser uma igreja local, se mantivesse a proclamação, o ensino e o serviço. Jesus Cristo instituiu a sua igreja (2), tornando-a real e efetiva (3), revestindo-a de condições para receber todos os povos, fazendo-os  família de Deus (4), amando-a e dando-se a si mesmo por ela (5), a fim de torná-la o instrumento perfeito para o testemunho da sua graça e proclamação da sua salvação.

A igreja é uma congregação local, formada por pessoas regeneradas e biblicamente batizadas, após pública profissão de fé, em nome do Pai, do Filho e do Espírito Santo. Ela cumpre os propósitos de Deus no mundo, sob o senhorio de Jesus Cristo, o qual deseja criar um novo homem, segundo a imagem e semelhança do Deus Triúno, e formar uma nova humanidade, um povo para louvor da glória de sua graça, no tempo presente e na eternidade.

A igreja cumpre este propósito através do culto, da edificação dos salvos, da proclamação do evangelho, da ação social e da educação, vivendo em amor. No cumprimento destas funções, a igreja coopera com Deus para a consecução do plano divino de redenção. Baseada no princípio da cooperação voluntária entende a igreja que, juntando seus esforços aos de igrejas co-irmãs, pode realizar a obra comum de missões, educação, formação de ministros e de ação social, com mais eficiência e amplitude. A igreja é autônoma, tem governo democrático, pratica a disciplina e rege-se pela Palavra de Deus em todas as questões espirituais, doutrinárias e éticas, sob a orientação do Espírito Santo.
Sem dúvida, a questão fundamental para nossas igrejas é saber, precisamente, qual a sua razão de ser e como está usando a liberdade que Cristo lhe deu.

Notas
1 P. Benoit, A Bíblia de Jerusalém, Introdução a Atos dos Apóstolos, São Paulo, Ed. Paulinas, 1985, pp. 2041-2045.
2 Fred H. Klooster, Aliança, Igreja e Reino no Novo Testamento, in Vox Scripturae, vol V, no. I, São Paulo, 1995, pp. 289-41.

Referências bibliográficas
Armando Bispo Cruz, Os Dons Espirituais, Despertando o Potencial Divino na Igreja Local, in Ultrapassando Barreiras vol 1, São Paulo, Edições Vida Nova, 1955, 91-108.
Fred H. Klooster, Aliança, Igreja e Reino no Novo Testamento, in Vox Scripturae, vol V, número 1, São Paulo, 1995.
Gene A. Getz, Igreja: Forma e Essência, São Paulo, Ed. Vida Nova, 1994.
Henry H. Halley, Manual Bíblico, São Paulo, Ed. Vida Nova, 1993.
Howard I. Marshall, Atos, Introdução e Comentário, São Paulo, Ed. Vida Nova, 1991.
John Pollock, O Apóstolo, São Paulo, Ed. Vida, 1994.
J. Scott Horrel, A Essência da Igreja, Repensando a Eclesiologia à Luz do Novo Testamento, in Ultrapassando Barreiras vol 1, São Paulo, Edições Vida Nova,1994, pp. 7-28.
J. Sidlow Baxter, Examinai as Escrituras, Período Interbíblico e os Evangelhos, São Paulo, Edições Vida Nova, 1988.
P. Benoit, A Bíblia de Jerusalém, Introdução a Atos dos Apóstolos, São Paulo, Ed. Paulinas, 1985.
Robert H. Gundry, Panorama do Novo Testamento, São Paulo, Ed. Vida Nova, 1991.
Stanley M. Horton, O Livro de Atos, Editora Vida, São Paulo, 1983.



mardi 11 janvier 2011

Ainda que a figueira não floresça

“mesmo assim eu darei graças ao Senhor e louvarei a Deus, o meu Salvador” (Habacuque 3.18).
 
Ele é o homem do abraço carinhoso, do coração generoso, que carrega quem sofre no colo. Esse Habacuque procura uma profecia de conforto, que dê ânimo ao povo, como se faz com uma criança que chora. Mas não é isso que acontece.

Habacuque reclama da decadência moral dos judeus e lamenta. E quando o Eterno informa que mobilizará os caldeus para exterminar a apostasia, estarrecido Habacuque diz ao Eterno que os caldeus são piores do que os judeus, que são traiçoeiros, e destroem tudo que encontram pela frente. Idolatram sua própria força e capacidade militar, ao invés de dar glória ao Eterno.

Habacuque, porém, sabe que o Eterno é puro de olhos e, por isso, espera a solução que virá dele. No entanto, está perplexo, a justiça do Eterno para com os inimigos caldeus e os judeus apóstatas não virá como fogo do céu, exclusivamente sobre os pecadores, mas como tsuname que avançará sobre inimigos e apóstatas e sobre todos. E o justo não surfará sobre essa maré de destruição -- deverá repousar apenas na sua fé.

Agradecimento, confiança e oração são as chaves espirituais para desvendar os mistérios do governo do Eterno sobre a terra. O espírito de Habacuque e de seus irmãos vacilam entre o medo e a esperança, mas ao final os julgamentos do Eterno triunfarão alegremente.

Muitas vezes, quando falamos de crise entre as nações, ou de dor e sofrimento entre os cristãos, nos perguntamos se o Eterno está preocupado com essas coisas. A resposta para essas questões estão presentes no rolo de Habacuque. O profeta do primeiro testamento ensina que as nações e os povos são julgadas pelo bem e pelo mal que produzem no mundo. E que esses juízos muitas vezes atingem também os filhos de Deus.

Conhecedor dos pecados de Judá e consciente de que os caldeus invadiriam o país, Habacuque sofre diante do que acontecerá ao seu povo. O profeta ora ao Senhor (3.1-19) e pede que Ele tenha misericórdia no exercício da sua justiça.

E foi assim, num momento extremo de dor, que Habacuque compôs o final do seu livro, o capítulo três, que é um dos poemas mais lindos do primeiro testamento. Nele o profeta mostra que toda a glória e todo o louvor pertencem a Deus.

1. Glória pelo que Ele é: misericordioso. O Eterno não vem só para julgar, mas também para livrar. “Mesmo que estejas irado, tem compaixão de nós” (3.2).

2. Glória por sua majestade. Devemos aceitar a sua justiça, não porque entendemos ou deixamos de entender, mas porque Ele é o Eterno e nós somos pó. “Ele pára e a terra treme. Ele olha para as nações e elas ficam com medo” (3.6).

3. Glória por nos manter firmes na adversidade. Lembre-se: ainda que a figueira não floresça, que não haja uvas nas parreiras, que os campos não produzam alimentos e que o rebanho seja exterminado, Ele está ao seu lado. “O Deus Eterno é a minha força. Ele torna o meu andar firme”. (3.19).

Após as manifestações do Eterno no passado da história do povo, Habacuque canta, agora, a libertação antecipada contra o inimigo, através da interposição da majestade sublime do Eterno, de modo que aquele que crê pode regozijar-se no Eterno da sua salvação. Assim, o capítulo três, um salmo composto para ser cantado e acompanhado por instrumentos, fecha o livro com um lirismo cheio de esperança.

A violência aparentemente bem-sucedida dos caldeus, a apostasia dos judeus, e a maré da justiça de Deus, que varrerá a Palestina, é o pano de fundo para esse profeta de coração generoso falar de esperança e dizer que o justo viverá por sua
 emuná, por seu posicionamento consciente e fiel diante da vontade soberana do Eterno.

Por isso, querido irmão, querida irmã, como Habacuque não se esqueça: quando tudo parece perdido, com o Eterno ainda não está perdido. Quando chegamos ao final de nossos recursos, os recursos do Eterno ainda estão disponíveis. E quando a crise, a dor e o sofrimento nos encurralam, precisamos olhar para o alto, porque é Ele quem torna o teu andar firme como o de uma corça e quem te leva para as montanhas, onde estarás seguro (3.19).

Que a fé de Habacuque sirva de exemplo para você e para mim. Do seu pastor e amigo, Jorge Pinheiro.

A teologia da esperança versus o teísmo aberto

A teologia da esperança versus o teísmo aberto
Jorge Pinheiro

Introdução 


Vamos analisar uma pequena teologia que, às vezes, transita na internet, entre colegas, mas principalmente estudantes de teologia. Como premissa quero me reportar a uma frase do Apocalipse que diz que Jesus, a Palavra que reina, estar chegando (22.20). O texto usa ercomai tacu (ercomai táxi), algo como Ele já saiu, está chegando rapidamente e não vai atrasar. Por isso, a esperança é possível e qualquer momento da vida, por mais estranho que pareça, está debaixo da Sua graça e soberania.

Bem, agora vamos pensar um pouco o teísmo aberto. Numa rápida pesquisa na internet, mais especificamente no Wikipedia (http://pt.wikipedia.org/wiki/Te%C3%ADsmo_aberto), lemos que 

“O teísmo aberto é uma teologia que parte de uma reavaliação do conceito da onisciência de Deus. Considera que Deus não conhece o futuro completamente e pode mudar de idéia conforme as circunstâncias. Afirma também que o termo “todo-poderoso” não pode ser extraído do contexto bíblico, pois a idéia original da palavra se perdeu ao longo dos séculos. Assim, o teísmo aberto diz que Deus se relaciona com o ser humano, conhece o futuro, mas não todo ele, pois esse futuro ainda não teria existência na presença de Deus, devido ao livre arbítrio concedido por Deus ao ser humano. Para o teísmo aberto, Deus é todo-poderoso por seu despojamento, visto que mesmo tendo total controle sobre as escolhas humanas, é capaz de governar o futuro prometido. Ou seja, porque Deus não se preocupa em estar no controle de suas criaturas é que ele demonstra realmente estar no controle. O teísmo aberto tem origem na teologia do processo. Surgido na década de 30 do século passado, a teologia do processo teve como principais representantes Charles Hartshorne, Alfred North Whitehead e John Cobb. Trouxe para a teologia o panenteísmo, que faz a aproximação dos pensamentos teísta e panteísta. O termo teísmo foi cunhado pelo adventista Richard Rice em 1979, quando publicou pela Review and Herald Publishing, o livro "A Abertura de Deus: a Relação entre a Presciência Divina e o Livre-arbítrio" (The Openness of God: The Relationship of Divine Foreknowledge and Human Free Will). John MacArthur, no ensaio Megamudança Evangélica diz que o ensino teve origem com Robert Brow, em suas preleções em praça pública. Apesar das origens na teologia do processo e das afirmações de John MacArthur, em 1990, essa leitura teológica divulgou-se meio evangélico a partir de 1986, através de Clark Pinnock, num ensaio denominado "Deus Limita seu Conhecimento" [God Limits His Knowledge]. Clark Pinnock e John Sanders tornaram-se os mais conhecidos defensores dessa leitura teológica”. 

Partindo da constatação de Luiz Sayão (vide texto do Wikipedia), eu diria que essa apologética do teísmo aberto, de teólogos norte-americanos cheios de sentimentos de culpa pelos erros da política externa dos EUA, procura livrar Deus de qualquer responsabilidade diante das maldades do Império. É uma teologia pragmática, que acaba por desconhecer a própria teologia, em especial o trabalho gigantesco de Jürgen Moltmann.

Moltmann e os teólogos da esperança, ao contrário dos teístas abertos, afirmam que Deus está fora do tempo e do espaço, acima de toda materialidade, e se revela ao humano vindo do futuro escatológico. Por isso, não há como Deus desconhecer aquilo que se dá no mundo material.

Critérios metodológicos

Quer queiramos ou não há princípios que norteiam a pesquisa teológica cristã. E estes princípios estão presentes em nossos estudos mesmo quando os desconhecemos. O primeiro deles é o princípio arquitetônico, ou seja, a revelação enquanto fonte e fundamento de qualquer estudo da teologia. Nesse sentido, a revelação, ou seja, os dois testamentos que compõem as Escrituras Sagradas cristãs são a base e o eixo da teologia. Podemos chamar a revelação também de fé objetiva, pois deve nortear a vida cristã em matéria de doutrina e fé subjetiva.

O segundo princípio é o hermenêutico e se refere aqueles instrumentos de interpretação que utilizamos para compreender os aspectos históricos da salvação, ou seja, os fundamentos culturais, religiosos, sociais e lingüísticos que subjazem no texto, já que se por um lado o texto é cem por cento revelado, e nesse sentido divino, por outro lado é cem por cento humano. Isso quer dizer que o texto expressa também todas as limitações de uma produção humana, no que tange conteúdos culturais, econômicos, religiosos, sociais e lingüísticos. Assim, o princípio hermenêutico é produto da razão humana. E por se produto da razão a instrumentalidade da hermenêutica através da história cristã sempre expressou a universalidade do senso comum, ou seja, nossa maneira fenomenológica de ver o mundo, de entendê-lo no dia a dia a partir da aparência dos fenômenos. E assim dizemos que o dia nasce às cinco horas, mas é certo que o dia não nasce, nem se põe. Ou, teologicamente, dizemos que uma pessoa quando morre vai para o céu, embora saibamos que o reino escatológico de Deus não se localiza nem na atmosfera, nem na estratosfera e nem mesmo em nenhum lugar do universo visível. Mas o senso comum faz parte da linguagem humana, e cada cultura faz suas construções simbólicas, que não traduzem a realidade da natureza. Por isso, a hermenêutica procurou a razão científica, aquela que baseada nas ciências, sejam elas humanas ou técnicas, possibilitam entender melhor a profundidade do texto bíblico. E foi dessa maneira que introduzimos em nossos estudos a lingüística, com o estudo dos idiomas em que os textos foram escritos, a história, a geografia, a sociologia, o direito, etc. E assim a razão científica conquistou um lugar na hermenêutica acadêmica que estuda a teologia. Mas, se os cristãos sempre utilizaram o senso comum, se a academia trouxe os conhecimentos da ciência, a filosofia, desde o início da história da teologia cristã, foi um elemento fundamental na ordenação do pensamento. Na verdade, o mundo ocidental aprendeu a pensar de forma ordenada com os filósofos gregos, já que eles foram aqueles que formataram ainda no início de nossa civilização as bases do pensamento científico. Por isso, quer queiramos ou não, a filosofia é formadora do pensamento cristão e as filosofias em suas diversidades de abordagens e métodos sempre ofereceram ao teólogo instrumental hermenêutico valioso.

Assim podemos dizer que o princípio hermenêutico sempre se utilizou do senso comum e da razão filosófica e, na modernidade, agregou ao seu instrumental também a razão científica. Mas, não podemos nos esquecer que a utilização de tais princípios possibilita diferentes avaliações da revelação. Por que? Porque o princípio arquitetônico depende do que colocamos como base da estruturação geral de nossa metodologia de pesquisa: pode ser a graça e a fé, como no caso de Lutero; a soberania de Deus, como no caso de Calvino; ou o amor, a justiça e o poder, como no caso de um célebre texto de Paul Tillich. E também porque o princípio hermenêutico depende do uso de uma ou de várias das múltiplas abordagens filosóficas e científicas que podem ser utilizadas como instrumento de interpretação da história da salvação. É por isso que se diz que a ideologia define a hermenêutica.

Aqui reside a dificuldade do fazer teológico: a revelação é universal e plena, mas toda teologia é transitória, pois reflete um momento de compreensão da revelação e da história da salvação. 

A esperança enquanto paradigma

Depois de fazermos uma ruptura criativa com a modernidade, enquanto pensamento, tradição e história – e fizemos isso ao mostrar as limitações da hermenêutica iluminista --, é necessário sentir de novo a alegria da esperança escatológica, para compreender a natureza do terreno sobre o qual a teologia pisa. Há um momento de cisão no qual se modificou de modo essencial a concepção do que significa a teologia. Esse momento foi assinalado a partir dos anos 60 do século XX com a teologia da esperança de Jürgen Moltmann. E são os trabalhos dele que utilizaremos aqui para fazer a crítica do teísmo aberto. O pensamento de Moltmann é uma reflexão prodigiosamente profética, pois enunciou não somente a queda do muro de Berlim, mas o processo de aglutinação vivido por alemães, em primeiro lugar, por europeus, na seqüência, e agora muito possivelmente por parte da humanidade. É sem dúvida, uma das elaborações mais impressionantes, se entendermos sua abordagem epistemológica teológica. Para esclarecer, entendemos a epistemologia utilizada no campo teológico como os métodos dos diferentes ramos do saber teológico -- Ontologia, Cristologia, Pneumatologia, etc. -- e de suas práticas eclesiológicas, avaliadas a partir de sua validade cognitiva, seus paradigmas estruturais e suas relações com a sociedade e a história. Haveria assim uma teoria geral da teologia enquanto gnosiologia e ciência normativa, que nas últimas décadas, através de comunidades e movimentos, abriram aguerridamente, a golpes de machado, a senda da alta modernidade.

A expressão abordagem epistemológica não é exagerada. Conforme Bachelard, 

"Os filósofos justamente conscientes do poder de coordenação das funções espirituais consideram suficiente uma mediação deste pensamento coordenado, sem se preocupar muito com o pluralismo e a variedade dos fatos. Não se é filósofo se não se tomar consciência, num determinado momento da reflexão, da coerência e da unidade do pensamento, se não se formularem as condições de síntese do saber. E é sempre em função desta unidade, desta síntese, que o filósofo coloca o problema geral do conhecimento". [G. Bachelard, Filosofia do Novo Espírito Científico, Lisboa, Presença, 1972, pp. 8-9]. 

Assim, abordagem epistemológica, aqui utilizada, refere-se ao projeto teológico, de herdadas estruturas hegelianas e marxistas, relidas e traduzidas por ele e Ernest Bloch. É sobre a questão da identidade histórica, entendida como processo a realizar-se, que recai a crítica da teologia realizada por Moltmann. Usando a leitura de Machado, diríamos com ele que 

"A história arqueológica nem é evolutiva, nem retrospectiva, nem mesmo recorrente; ela é epistêmica; nem postula a existência de um progresso contínuo, nem de um progresso descontínuo; pensa a descontinuidade neutralizando a questão do progresso, o que é possível na medida em que abole a atualidade da ciência como critério de um saber do passado". [Roberto Machado, Ciência e saber. A trajetória arqueológica de Foucault, Rio de Janeiro, Graal, 1982, p. 152]. 

É justamente a experiência de viver, enquanto comunidade que se realiza no futuro, que é realçada por Moltmann. No nível antropológico, trabalha os elementos dessa esperança, a partir da qual se produz saber e práxis cristã. Suas heranças são translúcidas: 

"Por meio de subverter e demolir todas as barreiras -- sejam da religião, da raça, da educação, ou da classe -- a comunidade dos cristãos comprova que é a comunidade de Cristo. Esta, na realidade, poderia tornar-se a nova marca identificadora da igreja no mundo, por ser composta, não de homens iguais e de mentalidade igual, mas, sim, de homens dessemelhantes, e, na realidade, daqueles que tinham sido inimigos. O caminho para este alvo de uma nova comunidade humanista que envolve todas as nações e línguas é, porém, um caminho revolucionário". [Jürgen Moltmann, "God in Revolution", in Religion, Revolution and the Future, New York, Scribner, 1969, p. 141]. 

Como num laboratório, o teólogo da esperança extrai o fato teológico de sua contingência histórica, tratada sob condições de extrema pureza escatológica. Muito claramente afirma a escatologia como essência da história da redenção e leva à conclusão de que essa mesma essência seja a expressão maior da ressurreição, enquanto metáfora da cruz de Cristo. Essa cruz repousa sobre o esvaziamento da desesperança, enquanto praesumptio e desperatio, na relação que mantém com o mundo. 

A teologia, vida cristã em movimento, numa permanente autoformação, advém das pulsações criadoras da própria esperança, cujo sentido volta-se para ela própria. Essa construção, que se nos apresenta como caleidoscópio, belo, mas aparentemente ilógico, traz em si a força combinatória do devir cristão. Assim, a teologia de Moltmann quebra os grilhões do presente eterno da neo-ortodoxia, e nos oferece um conceito realista da história, que tem por base um futuro real, lançando dessa maneira as bases para uma teologia que responda às reais necessidades do homem pós-moderno. 

"O passado e o futuro não estão dissolvidos num presente eterno. A realidade contém mais do que o presente. Ao desenvolver sua teologia futurista, Moltmann realmente tem o peso considerável da história bíblica do lado dele, e faz bom uso dela. Ao enfatizar o futuro, desenvolveu um pensamento bíblico legítimo que jazia profundamente enterrado na teologia ética e existencial dos séculos XIX e XX". [Stanley Gundry, Teologia Contemporânea, São Paulo, Mundo Cristão, 1987, p.167].

A teologia de Moltmann nasce enquanto reação ao existencialismo e absorção do revisionismo de Bloch. A descontrução do marxismo, realizada por aquele filósofo, não agradou ao mundo comunista, mas estabeleceu uma ponte, diferente daquela da teologia da libertação, entre o hegelianismo de esquerda e o cristianismo. Substituiu a dialética pelo ainda-não, enquanto espaço que não está fechado diante de nós, e definiu uma antropologia que não mais está calcada no império dos fenômenos econômicos, mas na esperança. 

Os escritos filosóficos do jovem Marx serviram de ponto de partida para o vôo de Bloch. A alienação da pessoa é um fato inquestionável, não como determinação econômica, mas enquanto determinação ontológica. Afinal, o universo em que vive é essencialmente incompleto. Mas a importância do incompleto é que é susceptível de complemento. Por isso, o possível, o ainda-não, o futuro traduz de fato a realidade. 

Nesse processo estão presentes a subjetividade humana e sua potência inacabada e permanente em busca de solução e a mutabilidade do mundo no quadro de suas leis. Dessa maneira, o ainda-não do subjetivo e do objetivo é a matriz da esperança e da utopia. A esperança traduz a certeza da busca e a utopia nos dá as figuras concretas desse possível. Para Bloch, o homem é impelido, assim, ao esforço permanente de transcender a alienação presente, em busca de uma “pátria de identidade”. É no “vermelho quente” do futuro que está a razão fundamental da existência humana. Nenhum marxista chegou tão próximo da escatologia cristã! 

"Deus -- enquanto problema do radicalmente novo, do absoluto libertador, do fenômeno da nossa liberdade e do nosso verdadeiro conteúdo -- torna-se-nos presente somente como um evento opaco, não objetivo, somente como conjunto da obscuridade do momento vivido e do símbolo não acabado da questão suprema. O que significa que o Deus supremo, verdadeiro, desconhecido, superior a todas as outras divindades, revelador de todo o nosso ser, ‘vive' desde já, embora ainda não coroado, ainda não objetivado. Aparece claro e seguro agora que a esperança é exatamente aquilo em que o elemento obscuro vem à luz. Ela também imerge no elemento obscuro e participa da sua invisibilidade. E como o obscuro e o misterioso estão sempre unidos, a esperança ameaça desaparecer quando alguém se avizinha muito dela ou põe em discussão, de modo muito presunçoso, este elemento obscuro". [Ernst Bloch, Geist der Utopie, Franckfurt, 1964, p. 254 apud Battista Mondin, Curso de Filosofia, São Paulo, Paulinas, 1987, vl. 3, pp. 246-7]. 

Bloch realiza uma penetrante releitura da cosmovisão judaico-cristã. Entende o clamor profético do mundo bíblico e da proclamação cristã não como alienação e ópio, mas como fermentos explosivos de esperança, protestos contra o presente em nome da realidade futuro, a utopia. Talvez por isso possamos dizer que nos anos 60, os caminhos de Moltmann e Bloch não apenas cruzaram-se na Universidade de Tübingen, mas abriram espaço para o mais enriquecedor diálogo cristão-marxista que conhecemos. 

É interessante lembrar que em 1968, quando manifestações estudantis varriam Tübingen, Heidelberg, Münster e Berlim Ocidental, grande parte dos líderes estudantis eram oriundos das faculdades de teologia. Sua Theologie der Hoffnung (Jürgen Moltmann, Teologia della Speranza, Queriniana, Bréscia, 1969), publicada no início da década na Alemanha, estava na oitava edição e, no ano seguinte, ele lançaria Religion, Revolution and the Future nos Estados Unidos. 

Agora, a partir da escatologia da esperança de Moltmann vejamos algumas considerações que têm por base o texto de Apocalipse 22.6-21. 

Algumas conclusões

No Apocalipse, o futuro define o presente. Ou seja, Moltmann não está errado ao entender que o futuro define o presente. E que a cruz de Cristo veio do futuro em direção ao presente histórico da humanidade. Foi plantada num momento de nossa história, porque o sacrifício foi realizado na eternidade, fora do tempo, no que a partir do senso comum chamamos de futuro, e a partir da razão filosófica chamados de futuro escatológico. E exatamente porque Deus a partir da eternidade criou as materialidades do universo e do humano, ele conhece porque parte do todo, da eternidade, em direção ao contingente, ao universo e a historicidade humana. 

O Apocalipse inverte a nossa noção de tempo. O futuro escatológico modela e estrutura o presente. Saber como a história termina nos ajuda a entender como devemos nos encaixar nela, agora. Por isso, já estamos vivendo os últimos dias. As visões de João mostram a realidade do juízo divino, quando cada um de nós dará conta de sua existência diante de Deus. Deus recompensará aqueles que, às vezes, ao custo de sua própria vida "guardaram as palavras da profecia deste livro". Não podemos esquecer que profecia é proclamação da Palavra de Deus. E no Novo Testamento é proclamação das boas novas. 

Podemos dividir o texto escolhido em três blocos. O primeiro bloco (vv 6 e 7) nos diz que a esperança escatológica é fiel e verdadeira. Ou seja, as palavras proferidas, profetizadas, proclamadas são leais, não contrariam a confiança depositada no Senhor que as decretou. E estão em conformidade com a realidade escatológica. 

O segundo bloco (vv. 10-12) diz para não fecharmos o livro, porque o futuro é hoje. E é esse futuro escatológico que deve definir o que você faz. E você dará conta do hoje e receberá a justa recompensa. Ora, fechar o livro é abandonar a esperança. É achar que o seu presente você mesmo traça, sem entender que o contingente é sempre um possível dentro de um sistema hipotético dedutível. Dedutível por Deus por conhecer todas as hipóteses, o fundo da alma humana e cada uma das possibilidades da história. É não entender que Deus está fora do tempo e da materialidade e exatamente por isso ao abrir a gaveta de nossa historicidade conhece todas as possibilidades do espaço, os movimentos e o tempo.

O terceiro bloco (vv 18-19) é um chamado aos leitores a viver a esperança escatológica. Alertando que a praesumptio e o desperatio subvertem a esperança e por isso não podem ser acrescentadas. Acrescentá-las geram conseqüências, a alienação do futuro escatológico e a morte. Mas também nada pode ser tirado: a cruz, o sofrimento e a dor, incompreensíveis, que fazem parte da materialidade, enquanto espaço/ tempo não completado, e da humanidade, enquanto existência não essencializada, não podem ser arrancadas da vida na esperança escatológica. Tirá-las significa ficar fora do futuro que chegou, que veio da eternidade e nos trouxe o acesso à árvore da vida. Tirá-las é ficar fora da cidade santa e abandonar a esperança.

A Palavra é fiel (v. 20). Jesus, a Palavra que reina, garante: Ele está chegando! E aqui o texto fala ercomai tacu (ercomai táxi). Ele já saiu nesta sua volta, está chegando rapidamente e não vai atrasar. Por isso, a esperança é possível e qualquer momento da minha vida, por mais estranho que pareça, está debaixo de Sua graça e soberania.

Fonte
Site: Teologica
WEB: www.teologica.br/theo_new/files/TeismoAberto_JPinheiro.pdf


Jürgen Moltmann, Youtube