vendredi 12 septembre 2014

Memórias de Santiago

Jorge Pinheiro


O centro de Santiago se transformou num parlamento. Não podíamos ouvir claramente as vozes porque estavam amordaçadas, podíamos ouvir os pensamentos que se debatiam  em meio aos clamores de justiça e liberdade.

 

Cada homem e mulher da Unidade Popular, não importava o matiz político, tinha o coração partido e sentia-se abandonado pelo destino. Ninguém falava, cada um olhava para o outro como se vivesse o momento maior da traição. O terror foi tomando conta dos corpos e mentes.

 

Ali, no minicentro formado por Ahumada com Huérfanos, convertido nos últimos dias na tribuna pública do medo e do silêncio, podíamos ouvir os pensamentos da gente que lutara e morrera na tragédia dos últimos dias.


O cenário de todos esses dias era parecido. Jovens, homens adultos, velhos, desgrenhados, ensangüentados, rasgados, mutilados vagueavam como cadáveres, procurando não chamar a atenção. Ninguém falava alto, ninguém repartia panfletos ou jornais. Não se viam grupos ou círculos. Ninguém escutava argumentos, ninguém polemizava.

Ninguém era partidário. Éramos todos apolíticos, sombras que vagueavam pelo centro.

·               A poucos metros de cada um de nós, sempre em grupos, piquetes de Carabineiros sob comando de oficiais observavam se alguém traspassava a fronteira do bom senso e abria a boca.

Pensamos. Olhamos o companheiro que passava e pensamos. Ele entendia e nos respondia. Todos falávamos, a comunicação era plena e solidária, apesar do medo. Sem som, sem voz, nos comunicávamos.

Eis o espelho do Chile, medo e esperança, dialogavam sem pedir permissão a ninguém, e nós nos aproximamos de um desses grupos e escutamos com atenção.

Preste você também a máxima atenção a esses corações e ouvirá o clamor que não é audível para os assassinos da liberdade. Simplesmente preste atenção.

Ligue seu gravador, de forma dissimulada, para evitar inibições. Venha para esse parlamento de rua, o lugar natural da democracia.

Não se preocupe com os nomes. Aqui ninguém tem títulos, somos todos passantes.



Cena Um
Diálogo Um


Jovem triste, sujo de sangue, tem as mãos quebradas. Fala pausado como se estivesse no meio de um sonho.

- No dia 11 de setembro eu cumpria minhas funções como membro do dispositivo da segurança do presidente Salvador Allende. Esse dia era muito importante para mim, porque era o dia do meu casamento.

Homem baleado no peito à queima roupa. Tem a camisa e a parca verde oliva queimadas.

- Nossos planos em caso de golpe sempre levaram em conta duas variáveis: uma ruim e outra péssima. A péssima era de que o grosso das forças armadas apoiasse o golpe. A ruim era de que o povo tivesse armas e alguns regimentos permanecessem leais ao governo.

Senhora de 55 anos chora o filho desaparecido.

-Digam aos militares que o povo não vive só de pão, queremos nossos filhos...

Moça desgrenhada, enlameada, vestida de noiva, com um buquê na mão...

- Pão nós temos... Eles não vieram para nos dar, mas para tirar o que temos...



Cena Um
Diálogo Dois


Jovem triste...

- Estive de guarda do lado de fora do quarto do Dr. Allende até as duas da manhã. Depois chegou alguém para me render. Lembro-me, ao me deitar, que vi garrafas de Coca-Cola e sanduíches guardados por meus companheiros para a minha despedida de solteiro.

Operário, veste um macacão manchado de graxa e arrasta com dificuldade uma das pernas.

- Eles estão falando em mudanças. Que tipo de mudanças? As poblaciones foram invadidas, estão entrando em tudo que é casa. Prendendo pessoas, desaparecendo com elas. Essa mudança nós não queremos.

Velho, de óculos, é o único que esboça algo parecido com um sorriso.

- Não percam a esperança, a coisa está começando. Muita água ainda vai rolar.

Partidários da Unidade Popular em coro.

- É isso mesmo. Está havendo resistência em tudo que é lado, principalmente nas poblaciones... O que eles dizem não interessa, não podemos fazer o jogo deles.

Homem baleado no peito...

- Faço parte da direção do Grupo de Amigos do Presidente - GAP e sempre defendi a idéia de que em caso de golpe, o presidente deveria criar uma zona liberada, num dos subúrbios operários da cidade. A partir daí, com uma equipe de rádio portátil, organizar a resistência...



Cena Um
Diálogo Três


Um homem destoa do ambiente, está bem vestido e porta com elegância uma bengala trabalhada.

- E se as mudanças forem boas? E se houver mais empregos?

Velho, de óculos...

- Os milicos darem trabalho? Você está louco. Eles vão dar chumbo...

Jovem triste...

- A situação política e militar estava se complicando e eu sabia que meu casamento tinha que acontecer rápido, no máximo em meia hora...

Um homem destoa do ambiente...

- Mas porque o desemprego estava aumentando? Porque ninguém queria investir aqui? Porque não tinha estabilidade. Quem sabe agora, pode haver alguma mudança e o dinheiro de fora começa a entrar?

Velho, de óculos...

- Diga-me senhor, com toda a sinceridade. Quem produz o desemprego nesse país? É o governo ou los momios, que fecharam fábricas, mandaram suas fortunas para a Suíça e para Miami? A estabilidade que eles querem vai ser construída em cima do seu cadáver.

Velho, de óculos...

- O setor privado chileno está de braço dado com os militares.

Homem baleado no peito...

- Allende preferiu ir para o palácio La Moneda. Isso condicionou nossos planos.

Velho, de óculos...

- E há mais um detalhe. O investimento estrangeiro procura é mão de obra barata, não quer fazer a felicidade de ninguém.



Cena Dois
Diálogo Um


Jovem triste...

- Fui despertado às cinco e meia da manhã. Falam que a Marinha, em Valparaíso, estava rebelada. Preparei-me para o combate e fomos para o Palácio La Moneda. A comitiva especial do GAP, que normalmente era composta por quatro carros foi reforçada, com mais duas camionetas de cabine dupla. Não havia nenhum movimento no centro da cidade. Eram sete da manhã.

Velho, de óculos...

- Minha pergunta é, você é ou não é de esquerda?...

Um homem destoa do ambiente...

- Vou responder com toda a honestidade: não posso dizer que sou dessa esquerda que está aí. Sempre votei nulo.

Velho, de óculos...

- Então, colega, chegou a hora de fazer alguma coisa...

Moça desgrenhada

- As armas falam mais alto que as urnas...

Homem baleado no peito...

- Temos 140 fuzis, com 120 tiros por fuzil. E algumas bazucas, com seis projéteis por bazuca. Não dá para mais de um combate.



Cena Dois
Diálogo Dois


Índio mapuche, forte, troncudo.

- Os militares vão repetir a truculência de Custer e sua tropa. Vão exterminar os mapuches. Para nós não há alternativa. É lutar ou ser escravizado.

Operário, veste um macacão manchado de graxa...

- É, os mapuches não têm opção.

Senhora de 55 anos...

- Temos que pensar em função de nossas crianças. O que elas vão herdar.

Jovem triste...

- Eu e Isabel íamos nos encontrar no cartório às nove e trinta.

Moça desgrenhada...

- Mas o que podemos herdar se anos de democracia, uma tradição chilena, foram queimados com o La Moneda?

Um homem destoa do ambiente...

- E de que valeu votar na Unidade Popular?

Velho, de óculos...

- Valeu votar e eleger Allende. Era a exigência do momento. Não foi errado. Agora, é o momento de usarmos outras armas...

Homem baleado no peito...

- Os trabalhadores estão na periferia da cidade, nos cordões industriais e nas poblaciones. Temos que cobrir Vicuña Mackenna, San Joaquín, Cerrillos, Pan-americana Norte... Conseguir mais munição e avançar sobre o La Moneda.

Operário, veste um macacão manchado de graxa...

- Concordo, só não sei como... Está todo mundo preso. Quem vai liderar a oposição?

Um homem destoa do ambiente...

- Pior ainda, tem gente fugindo como rato. As embaixadas estão cheias. Todos os estrangeiros que estavam aqui para nos ajudar estão fugindo. Inclusive, muita gente da UP...

Operário, veste um macacão manchado de graxa...

- Se ficarmos parados vai ser pior ainda. Eles vão atacar os mapuches, proibir os partidos, fechar os sindicatos, os jornais. Só vai ficar quem disser sim.


 

Cena Dois

Diálogo Três
·                

Homem baleado no peito...

 

- São seis e meia. Nossa central de rádio informa que está havendo um levante militar.


Um homem destoa do ambiente...

- Tudo começou no governo de Frei. A democracia cristã fez o papel de Pilatos, lavou as mãos e entregou a Unidade Popular aos seus algozes.

Índio mapuche, forte, troncudo.

- Companheiro, a luta de classes não começou com Frei. Allende fez o que pode.

Moça desgrenhada...

- Os governos democráticos sempre reprimiram os trabalhadores, mas esses militares nem democráticos são...

Um homem destoa do ambiente...

- É, mas, em agosto a própria Câmara dos Deputados começou a sinalizar a favor de um golpe de estado.

Índio mapuche, forte, troncudo.

- Concordo em parte. Não que a Câmara fosse confiável, mas o que ela estava dizendo é que Allende estava implodindo o estado de direito...

Um homem destoa do ambiente...

- É, a Câmara dizia que Allende violou a garantia constitucional do direito de propriedade, amparou invasões de fazendas, de indústrias, de comércios, e que por essa via pretendia construir a nova área estatal da economia.

Operário, veste um macacão manchado de graxa...

- Que isso aconteceu é verdade, agora se foi da vontade de Allende eu não sei.

Senhora de 55 anos...

- Estou de acordo. A esquerda tentou construir um Chile socialista. Ao menos tentou. Mas e a direita, o que fez em toda a história da República?

Moça desgrenhada...

- Não me interessa o que fez a direita. Ela tem sido minha inimiga. A Unidade Popular pode ser uma mierda, mas é o meu governo.

Homem baleado no peito...

 

- Eu estava em casa dormindo. Dei um longo abraço em minha mulher. Ela foi para seu posto de combate, na central de comunicações do partido socialista e eu para o meu.


Jovem triste...

- Tenho 23 anos e hoje é o dia do meu casamento. Deveria ser o dia mais feliz e importante de minha vida. Estou todo molhado, tive que ajudar a apagar o incêndio do palácio, depois do bombardeio.



Cena Três
Diálogo Um


Jovem triste...

 

- O primeiro som de combate foi impressionante. O martelar de uma metralhadora pesada. Eu estava na rua Morandé, 80. Minha missão era cuidar da porta. Quebramos os vidros e respondemos ao fogo. Vimos um tanque e a tropa atrás. Os soldados não queriam avançar, mas os oficiais os obrigavam, sob a ameaça das armas.


Moça desgrenhada...

- Estão falando em milhares de mortos. Em gente boiando no Mapocho?

Senhora de 55 anos...

- Será que pode haver gente tão desalmada assim, a ponto de matar trabalhadores indefesos?

Moça desgrenhada...

- Matam sim e com apoio de gente de fora, com a participação descarada dos Estados Unidos, do financiamento que deram aos camioneiros, aos comerciantes e agora aos militares...

Homem baleado no peito...

 

- Recebi ordens de acompanhar o responsável pelo armamento, para tirar e distribuir as armas que estavam num depósito perto do parque Cormo.


Moça desgrenhada...

- A senhora tem alguma esperança em Pinochet?

Senhora de 55 anos...

- Não falei de Pinochet, falei de gente desalmada...

Moça desgrenhada...

- Mas e Pinochet? Gosta ou não gosta?

Senhora de 55 anos...

- Você está me provocando... Claro que não gosto.

Moça desgrenhada...

- Senhora, não estou lhe acusando. Mas ele assassinou meus sonhos...

Senhora de 55 anos...

- E os meus também...

Jovem triste...

- Só às duas e meia da tarde tomei consciência de que estava vivendo um absurdo. Estava no meio de um combate aberto com os militares, era bala para tudo quanto é lado, e foi aí que resolvi telefonar para Isabel e dizer que nosso casamento deveria ser adiado. Mas que nos veríamos à noite. Eu estava embaixo de uma escrivaninha, com um telefone de um lado e o fuzil de outro.

Operário, veste um macacão manchado de graxa...

- O que você acha de Allende?

Um homem destoa do ambiente...

- Eu que pergunto: em que deu seu governo?

Operário, veste um macacão manchado de graxa...

- Mas por que vocês se juntaram à oposição e à direita?

Um homem destoa do ambiente...

- Eu não me juntei à direita, por isso tenho direito de perguntar: quem derrubou a Unidade Popular? A intolerância dos militares ou Allende e a fome?

Operário, veste um macacão manchado de graxa...

- Allende ia colocar seu cargo a disposição do povo, ia chamar a um plebiscito e por isso as forças armadas deram o golpe de Estado. Essa é a verdade.

Um homem destoa do ambiente...

- Então foram os militares, e eu não tenho nada com isso...

Operário, veste um macacão manchado de graxa...

- Vocês se aliaram à direita civil...

Um homem destoa do ambiente...

- De acordo com sua lógica quem não apóia a UP é de direita. Eu não apoiei a UP e não sou de direita.

Operário, veste um macacão manchado de graxa...

- O único que a democracia cristã fez foi confundir as pessoas. E agora, com quem a democracia cristã pretende governar? Ou vocês ficam com a democracia ou ficam com a ditadura. Não dá para ser Pilatos a vida inteira.

Um homem destoa do ambiente...

- Sabe de uma coisa, o que passou, passou. Temos que construir um novo Chile.

Partidários da Unidade Popular em coro.

-¡Se siente, se siente, Allende está presente!

Jovem triste...

- Isabel mora perto dos Correios, em Puente, e escutou as rajadas de metralhadoras. Sua primeira reação foi dizer que eu ia morrer. Pedi então para falar com seu irmão, um companheiro, um amigo extraordinário.

“Olha, estamos no meio do golpe”.

“Então estamos indo para o La Moneda, com reforços”.

“Não sejam loucos. É impossível, estamos isolados”.

 

Homem baleado no peito...

 

- Além das armas do parque Cormo, temos outros depósitos, o mais importante deles está na rua Chile-Espanha, perto de Irarrázaval.



Cena Três
Diálogo Dois


O jovem triste e o homem baleado contam suas histórias. Todos ouvem em silêncio.

- Ele entendeu. Era uma despedida. Senti novamente o sentido de missão que me levara ao GAP. O combate é uma situação de violência física extrema, todos os sentidos estão dirigidos à luta, você pode morrer a qualquer momento. Não há tempo para pensar no que foi sua vida. Não há tempo.

- Estou no depósito da rua Chile-Espanha faz meia hora. Algo está errado, ainda não chegou a unidade que deveria pegar as armas.

- Às quatro da tarde, subimos para o segundo andar do palácio, porque o primeiro estava em chamas. Aí caímos todos. Quando eu ia ser morto, um sargento disse que ia usar-me como escudo, porque dos prédios muitos companheiros estavam resistindo.

 

- Resolvo eu mesmo carregar uma camioneta. Deixo a casa e vou para Irarrázaval com o responsável pelo depósito. O trânsito está pesado, todo mundo parece querer chegar em casa o mais rápido possível. Vejo uma camioneta parada. Jogo o carro em cima dela, desço, ponho a mauser na cabeça do condutor e dou ordem para que saia da camioneta.

 

- Eu e os companheiros, usados como escudos, fomos obrigados a deitar na Morandé. Pensei que fossem nos esmagar com o tanque. Mas, de repente, aparece um jovem oficial, de porte senhoril, de luvas de couro e nos diz: “Senhores, vocês têm feridos? Mandei buscar uma ambulância para retirar seus feridos”.

 

- Meu colega pegou a camioneta e saiu cantando pneus.

- Logo chegou a ambulância. E também um ônibus da Marinha, que nos levou ao regimento Tacna.

 

- Eu fiquei, no meio daquele trânsito congestionado. Enfiei a mão no carro, peguei uma metralhadora AKA e gritei: “Todo mundo no chão”. As pessoas obedeceram. Lançaram-se de cara no chão. Eu estava louco. Usava uma parca verde oliva e estava completamente despenteado.

- Quando desci do ônibus, um oficial me apoiou, segurando meu braço. Depois pegou uma bandagem e vedou o sangramento à bala no braço de um companheiro. Foi o único oficial que nos permitiu ir ao banheiro à noite. Todos os outros nos torturaram.

 

- Depois de carregar a camioneta, fomos para o segundo depósito, na avenida La Feria, perto de San Miguel. Eu de carro, fazendo a escolta da camioneta.

- Fomos colocados em galpões e cavalariças, junto com os membros da presidência da República. Nos deixaram de pernas abertas, mãos na nuca e nos disseram que íamos ser fuzilados à meia-noite. Depois às cinco da manhã.

 

- Às dez e meia, voltei para nosso QG, com todas as armas de quatro depósitos.

- Havia mudança de guarda a cada duas horas. E a cada duas horas éramos surrados.

 

- A comissão política ordenou que déssemos início aos combates. São onze horas e somos 130 pessoas. Estamos diante da alternativa péssima: todas as forças armadas apoiaram o golpe.

Um homem de quarenta anos entra na conversa. Tem as mãos sujas de pólvora. Seu olhar está fixo, em alguma coisa que a gente não vê.

- Eu também combati no palácio La Moneda. Sou do GAP da Regional Santiago Centro.

 

Jovem triste...

- Eu não queria morrer aos 23 anos. E o que mais me incomodava era que eu não tinha filhos. Nem um menino, nem uma menina, que pudesse contar a minha história...

 

Partidários da Unidade Popular em coro.

- Pinochet assassino! Pinochet assassino!

 

Homem baleado no peito...

 

- Fomos para Indumet. Juntos com a direção MIR começamos a programar um ataque conjunto. Chega, então, outro companheiro da direção do GAP e informa que o La Moneda está pedindo ajuda. Temos que romper o cerco do palácio. 

Homem de quarenta anos...

- O presidente foi morto por sete homens, um capitão, um tenente e cinco soldados. Recebeu seis tiros, dois no pescoço e quatro no tórax. Tiros de metralhadora CIC 7.62, norte-americana. Eram quase duas da tarde.

 

Homem baleado no peito...

 

- Carabineiros começam a cercar Indumet. Rubém sai e atira nos carabineiros. Começa o tiroteio.

Homem de quarenta anos...

- Discutimos se devíamos nos render ou não. Eu fiquei e com outros companheiros, pegamos o corpo do presidente, colocamos a faixa presidencial, e ao lado do corpo deixamos o seu fuzil AKM 7.62, presenteado por Fidel Castro.

Partidários da Unidade Popular em coro.

- Pinochet assassino! Pinochet assassino!

 


·                

Cena Três

Diálogo Três



O homem que foi baleado no peito, à queima roupa, que tem a camisa e a parca verde oliva queimadas, continua sua história. Todos ouvem em silêncio.


A rua é sem saída e um ônibus de carabineiros bloqueia a rua. Começam a chegar tanques. Vou tentar romper o cerco pela retaguarda. Explodimos uma parede e saímos por trás. Estamos em San Joaquín, em frente à Coca-Cola.

 

León é metralhado. Companheiros o levam de volta para Indumet. Os carabineiros invadem Indumet e fuzilam León e mais dois operários.

 

Cruzamos San Joaquín e nos enfiamos por uma rua ao lado da Coca-Cola.
 
Nosso comando chegou a La Légua. Um caminhão de carabineiros tentou nos interceptar, mas respondemos com tiros de bazuca. O caminhão incendiou. Pegamos todas as armas deles e fizemos um pequeno discurso exortando a que lutassem ao lado do povo e não contra ele.

Ocupamos a praça de La Légua. Tomamos um caminhão de bombeiros, ligamos a sirene e passamos de población em población chamando a população a resistir e a defender o governo.

Em La Légua deixamos uma companheira que estava ferida no tornozelo. Ficou com alguns moradores de uma población e se salvou.
  
Chegamos a Sumar, que era um dos locais de concentração, segundo nosso plano de resistência. Vários companheiros estavam chegando de Tomás Moro. Um deles com uma camioneta cheia de armas.

O companheiro Lozada, da comissão política, dirigiu nossa reorganização. Tínhamos 200 homens armados.

Somos então atacados por um helicóptero Puma do Exército. Ele desce à altura das copas das árvores e começa a nos metralhar. Uns cem companheiros respondem de imediato. O Puma é atingido e afasta-se rapidamente, mortalmente ferido.

Tentei derrubá-lo com um tiro de bazuca ou de M60, mas já não tínhamos essas armas à mão. No meio dessa confusão, pensei na frase do Che: “Se a revolução é verdadeira, ou se vence ou se morre”.
  
Para não sermos um alvo fácil e concentrado, criamos um comando para juntar-se aos trabalhadores de Mademsa—Madeco. Eu fui com esse comando.

No caminho, por La Légua, fomos atacados por unidades de carabineiros. Como a ordem era chegar a Mademsa—Madeco, um grupo ficou combatendo, enquanto outro, cerca de 50 companheiros, rompeu o cerco e seguiu seu caminho.

Chegamos a nosso destino e aí criamos nossa segunda defesa perimetral, com carros, rádio e o controle de vários quarteirões.

Às três da tarde tive uma reunião com o interventor da fábrica, um companheiro socialista. Conseguimos pão e víveres para os combatentes. Fui então informado pela central de rádio que até aquele momento não havia nenhuma comunicação das regionais.

Os militares tinham ocupado todas as rádios.

O homem de quarenta anos, que tem as mãos sujas de pólvora e o olhar fixo em alguma coisa que a gente não vê, interrompe:

- Às quatro e vinte fugimos pela rua Teatinos.

O operário, que veste um macacão manchado de graxa e arrasta com dificuldade uma das pernas, completa:

- Eis um homem digno.

 

O homem que foi baleado no peito, à queima roupa, que tem a camisa e a parca verde oliva queimadas, termina sua história. Volta-se a fazer silêncio.

 

Às seis da tarde chega minha mulher. Que alegria vê-la viva. Nos abraçamos, nos beijamos, e a coloco para combater ao meu lado.

Saímos com duas camionetas cheia de companheiros para romper o cerco que havia em La Légua e também para aliviar a guerra que acontecia dentro de meu peito. Nesse instante, aviões de reconhecimento voavam baixo sobre La Légua. Fomos metralhados. Não havia como seguir.
  
Esperamos que chegasse a noite para saber o que acontecia em Santiago e no resto do país. Fomos informados que Allende morrera no La Moneda. Não acreditamos. Nossas informações vinham através das rádios controladas pelos militares e não acreditávamos nessas informações.

Falamos por telefone com diferentes regiões de Santiago para ver o que estava acontecendo. Soubemos que os companheiros de La Légua enterraram suas armas e tentam voltar às suas casas. Vão para o sul de Santiago sem armas...  

Está confirmada a morte de Allende. Do comando que partiu de Sumar restam poucos homens...

Partidários da Unidade Popular em coro.

- Pinochet assassino! Pinochet assassino!

A curta distância, mas sem entrar no debate, um casal de jovens de Vitacura comenta em voz baixa: “Deixa que gritem. Durante muito tempo fomos a maioria silenciosa, mas o passado não voltará, caminhamos para o futuro”.



Meu olhar passeia triste pelo microcentro de Santiago. Nem uma viva alma. É um espaço vazio habitado por fantasmas...




lundi 8 septembre 2014

Sarah Aroeste e poesía ladina

Sarah Aroeste vive em Manhattan. Ela é compositora e cantora ladina. É uma moderna feminista do rock ladino. Aroeste nasceu e viveu parte de sua vida em Princeton, New Jersey. Suas raízes familiares de origem pertencem à comunidade judia grega de Salônica, que desapareceram durante o holocausto. Em 1927, sua familia construiu uma sinagoga em Salônica, que ainda hoje existe. A familia emigou da Macedônia e da Grécia para os Estados Unidos no começo do século vinte. Sarah Aroeste estudou canto e música clássica no Westminster Choir College e na Universidade de Yale. Frequentou o Institut de Arte Vocal de Israel em 1997, e fez seus primeiros estudos do canto tradicional ladino com Nico Castel.

A la Una
A la una yo naci
A las dos m’engrandeci
A las tres tomi amante
A las cuatro me cazi
Alma vida y corason.
Dime nina donde vienes
Que te quero conocer;
Si tu no tienes amante
Yo te hare defender
Alma vida y corason.
Yendome para la guerra
Dos bezos al aire di
El uno es para mi madre
Y el otro para ti.
Alma vida y corason.

(Poesía ladina, autor descoñecido)



Adio Querida
Tu madre cuando te pario,
Y te quitou al mundo,
Corason ella no te dio
Para amar segundo.
Adio, Adio querida,
No quero la vida
Me l’amargates tu.
Va, buxcate otro amor,
Aharva otras puertas,
Aspera otro ardor,
Que para mi sos muerta.

(Poesía ladina, autor descoñecido)




Dous poemas de cantigas tradicionais (preto do séc. XV) en Ladino, a lingua franca dos xudeus ibéricos - considerada de raíz "Ibero-Romance", o Ladino é unha mestura de español e portugués medievais con hebraico. Coa expulsión dos xudeus españois en 1492, o Ladino acompañou o proceso da diáspora e hoxe pode ser atopado mentres lingua viva entre algunhas comunidades xudaicas de Turquía, Marrocos, Grecia, Túnez, Croacia, Bulgaria, Bosnia, Estados Unidos e Israel. En tempos a máis falada das linguas dos xudeus sefarditas, estímase que preto de 160 mil persoas en todo o mundo falen aínda Ladino. 










jeudi 4 septembre 2014

Pede-se ser levantado

Jorge Pinheiro

“Você está falando de bens materiais, de coisa frágil. Se você tem certeza de que esses bens ficarão sempre com você, fique com eles sem partilhar com ninguém. Mas se você não é o senhor absoluto deles, se tudo que você tem depende mais da sorte do que de você mesmo, por que este apego a eles?”. [1]

Fuks conta que Freud, um dia depois do sepultamento do pai, sonhou com um cartaz onde estava escrito: “Pede-se fechar os olhos”. Mais tarde, em carta a Fliess, o pai da psicanálise falou dos sentidos subjetivos da frase: “era parte da minha auto-análise, minha reação diante da morte de meu pai, vale dizer, diante da perda mais terrível na vida de um homem”. [2]

Não vou entrar nos detalhes das leituras que o próprio Freud fez da frase que apareceu em seu sonho. Diria ao leitor que vale a pena ler Freud e a Judeidade. Pretendo aqui levantar uma proposta de Fuks: “há que ler o desejo: sem terra, sem pátria e sem objeto, ele vaga por um deserto, cujas trilhas conduzem o leitor à experiência limite mais-além do que aparece na imagem”. É a partir dessa hermenêutica, que vamos ler trechos do final da primeira carta de Paulo aos Coríntios.



“... Foi sepultado e foi despertado do sono no terceiro dia, de acordo com o escrito”.

A frase acima, e a continuação do texto, é uma das mais importantes sobre a egeiro e anástasis, duas expressões gregas não substancialmente diferentes, que sintetizam a teologia da anástase dos cristãos do primeiro século. As traduções posteriores, e creio que dificilmente poderiam ser diferentes, criaram um padrão de imagem que dificultam a experiência do ir além. Por isso, fomos obrigados antes da tradução transversa fazer a desconstrução histórico-filosófica da anástase.

As leituras da anástasis e egeiró remontam a Homero e ao grego antigo e com seus sentidos correlatosaxanástasis, anhistémi e anazaó, que podem ser traduzidas por “ficar de pé”, “ser levantado” e “voltar à vida”, foram fundamentais para a construção do conceito anástase, amplamente utilizado pelas ciências do espírito. Mas é com Platão, na literatura filosófica, que vamos encontrar um debate fundamental para a teologia da anástase, quando apresenta a alma enquanto semelhança do divino e o corpo enquanto semelhança do que é físico e temporário.

Platão, em Fédon [3], num diálogo entre Sócrates e seus amigos defendeu a idéia da imortalidade da alma. Sócrates foi condenado à morte por envenenamento, mas não teve medo, por crer ser a alma imortal. Para Platão, as almas possuem semelhanças com as formas, que são realidades eternas por trás do mundo físico, natural. Nesse sentido, para Platão, o corpo morre, mas a alma não. Ele parte do padrão cíclico da natureza, frio/ quente/ frio, noite/ dia/ noite. Assim, os mortos despertam numa nova vida depois da morte: caso contrário, a vida desapareceria.

E dirá através de Sócrates em Fédon: “(...) perguntemos a nós mesmos se acreditamos que a morte seja alguma coisa? (...) Que não será senão a separação entre a alma e o corpo? Morrer, então, consistirá em apartar-se da alma o corpo, ficando este reduzido a si mesmo e, por outro lado, em libertar-se do corpo a alma e isolar-se em si mesma? Ou será a morte outra coisa? (...) Considera agora, meu caro, se pensas como eu. Estou certo de que desse modo ficaremos conhecendo melhor o que nos propomos investigar. És de opinião que seja próprio do filósofo esforçar-se para a aquisição dos pretensos prazeres, tal como comer e beber?”

Paulo conhecia a discussão filosófica grega acerca da anástase, já que isso se evidencia em seus escritos, principalmente no trecho que estamos analisando, mas é certo que construiu seu conceito também levando em conta a tradição judaica, acrescentando novidades ao debate teológico. Existem referências ao ser trazido de volta à vida nas escrituras hebraico-judaicas. Mas a preocupação judaica era existencial, como vimos em Qohélet. Mais do que remeter a um futuro distante, embora tais leituras estejam presentes na teologia de alguns profetas, as histórias de anástase relacionadas aos profetas Elias e Eliseu falam do aqui e agora. Aliás, este último, mesmo de depois de morto, trouxe à vida um defunto que foi jogado sobre sua ossada. Ao tocar os ossos de Eliseu, o morto ficou vivo de novo e se levantou. Esse caminho será a novidade da compreensão cristã/ helênica da anástase.

“Somos arautos de que o ungido foi levantado do meio dos mortos: como alguns podem dizer que não há o ser erguido dos mortos? E, se não há o despertar do sono da morte, também o ungido não foi levantado. E se o ungido não foi levantado, é inútil o que falamos e também inútil a nossa crença. Somos então testemunhas falsas, porque anunciamos que Deus ergueu o ungido. Mas se ele não foi levantado, os mortos também não são erguidos. E se os mortos não são erguidos, o ungido também não o foi. E, se o ungido não foi erguido, a nossa crença é inútil e vocês continuam a vagar sem destino. E os que foram colocados para dormir no ungido estão destruídos”.

Outras fontes de Paulo foram o profeta Daniel e outras literaturas intertestamentárias, que trabalharam com a idéia de “despertar subitamente do sono”. Chifflot e De Vaux [3] situam o livro de Daniel no período helênico por entender que é uma edição de antigos fragmentos do período babilônico, compilados, organizados e contextualizados ao momento histórico descrito no capítulo onze. Nesse capítulo, as guerras entre lágidas e selêucidas, assim como as investidas de Antíoco IV Epífanes contra Jerusalém e o templo são narradas com riquezas de detalhes. Ao contrário do que acontece nos livros proféticos anteriores, aqui o autor cita fatos aparentemente insignificantes, querendo demonstrar que é uma testemunha ocular da história. Dessa maneira, a edição que conhecemos do livro de Daniel deve ser situada no período da grande perseguição de Antíoco IV Epífanes, possivelmente entre os anos de 167 e 164 a.C., segundo Chifflot e De Vaux, já citados. A partir desse enquadramento, os capítulos 7 a 12 de Daniel, enquanto edição são chamados de “vaticinia ex eventu”, dado que o texto é contemporâneo aos acontecimentos descritos. Esses capítulos expressam a reação contra a helenização da Judéia e das perseguições em curso, mas, paradoxalmente, uma forma de pensamento afetado pela civilização helênica.

A partir da segunda metade do livro, o autor trabalha sobre dois temas registrados na primeira metade: que o judeu deve ser fiel a Deus em meio à tentação e à provação; e que Deus defende o servo leal que prefere morrer a violar os mandamentos. Nos seis capítulos finais, o sábio (ou grupo de sábios, cujos escritos foram compilados por um redator) retoma o conteúdo das visões que teve em relação à profanação do templo, em 167 a.C., e o erguimento da “abominação desoladora”.

Durante o período helênico idéias novas afloraram em meio à vida judaica, entre elas a esperança da recompensa escatolõgica apresentada pelas profecias apocalípticas, como em 2Macabeus 7, Daniel 12:2-3 e o Escrito de Damasco 4:4, que se traduzem concretamente na anástase.

Assim, os elementos novos da compreensão paulina da anástase já aparecem delineados no profeta Daniel: “Muitos dos que dormem no pó da terra despertarão, uns para a vida eterna, e outros para vergonha e horror eterno. Os que forem sábios, pois, resplandecerão como o fulgor do firmamento; e os que a muitos conduzirem à justiça, como as estrelas, sempre e eternamente”. Paulo, porém, somará um componente existencial à compreensão de Daniel, dirá que a morte, o maior de todos os odiados pela espécie humana, será privada de força.

“Caso o ungido só sirva para esta vida, somos as pessoas mais dignas de lástima. Mas o ungido foi levantado dentre os mortos e foi o primeiro fruto dos que foram colocados para dormir. Porque se a morte chegou pela humanidade, também o ungido dará à luz nova vida. Como morre a espécie, noungido ela recebe vida. E isso acontece numa ordem: o ungido é o primeiro fruto, depois os que pertencem ao ungido, quando ele aparecer. E veremos o limite, quando o ungido entregar o reino a Deus e Pai, e tornar inoperante o império, os poderes e os exércitos. Convém que seja rei até derrubar os odiados por terra. O último odiado a ser privado de força é a morte, porque o resto já foi colocado debaixo de seus pés”.

É interessante que Paulo em seu texto sobre a anástase cita o dramaturgo, filósofo e poeta grego Menandro (342-291 a.C.), que num verso disse: “as más companhias corrompem os bons costumes”. E voltando ao Misantropo: “insisto que, enquanto você é dono deles, você deve usá-los como um homem de bem, ajudando os outros, fazendo felizes tantas pessoas quantas você puder! Isto é que não morre, e se um dia você for golpeado pela má sorte você receberá de volta o mesmo que tiver dado. Um amigo certo é muito melhor que riquezas incertas, que você mantém enterradas”. Tudo indica que Paulo gostava de teatro e de comédias.

Que Paulo recorreu à tradição profética fica claro quando cita o profeta Oséias literalmente: “eu os remirei do poder do inferno e os resgatarei da morte? Onde estão ó morte as tuas pragas? Onde está ó morte a tua destruição?”. Mas há uma correlação entre Platão e a tradição hebraico-judaica, que pode ser lida nesta carta de Paulo. Isto porque, como afirma Fuks, o leitor desconstrói, pois ler não é repetir o texto: é um modo de criação e de transformação. Por isso, digo que ler é um ato de anástase. E Paulo trabalhou de forma brilhante o termo, tanto nas suas leituras e estudos, como na reconstrução do próprio conceito.

“Que farão os que se batizam pelos mortos, se os mortos não são chamados de volta à vida? Por que se batizam então pelos mortos? Por que estamos a cada hora em perigo? Protesto contra a morte de cadadia. Eu me glorio por vocês, no ungido Iesous a quem pertencemos. Combati em Éfeso contra animais ferozes, mas o que significa isso, se os mortos não podem ressurgir? Comamos e bebamos, porque amanhã morreremos. Mas não vamos nos enganar: as más companhias corrompem os bons costumes”.

Na sequência da tradição hebraico-judaica, ou como diz Fuks, “os antigos hebreus não estavam trabalhados, como nós, pela necessidade de abstração, de síntese e de precisão na análise conceitual do real, herança dos gregos”, Paulo está preocupado com o corpo, com a vida.

“Mas alguém pode perguntar: como os mortos são trazidos à vida? E com que corpo? Estúpido! O que se semeia não tem vida, está morto. E, quando se semeia, não é semeado o corpo que há de nascer, mas o grão, como de trigo ou qualquer outra semente. Deus dá o corpo como quiser, e a cada semente o corpo que deve ter. Nem toda a carne é uma mesma carne, há carne humana, de animais terrestres, de peixes, de aves. E há corpos celestes e corpos terrestres, uma é a dignidade dos celestes e outra a dos terrestres. Diferente é o esplendor do sol do esplendor da lua e das estrelas. Porque uma estrela difere em brilho de outra estrela. Assim também o ser levantado dentre os mortos. Semeia-se o corpo perecível; levantará sem corrupção. Semeia-se na desgraça, será levantado em excelência. Semeia-se em debilidade, será erguido vigoroso. Semeia-se corpo controlado pela psiquê, ressuscitará corpo espiritual. Se há corpo controlado pela psiquê , também há corpo espiritual”.

Para Paulo, anástase leva à uma teologia da vida que nasce do corpo. Mas, não é simplesmente ter de volta a vida do corpo material, tanto que em certo momento Paulus diz que “deveremos ser a imagem do homem do céu”.

“Assim também está escrito: o primeiro ser humano, terrestre, foi feito ser-que-deseja, o futuro humano será um espírito-cheio-de-vida. Mas o que não é espiritual vem primeiro, é o natural, depois vem o espiritual. O primeiro ser humano, da terra, é terreno; o segundo humano, a quem pertencemos, é celestial. Como é o da terra, assim são os terrestres. E como é o celeste, assim são os celestiais. E, como somos a imagem do terreno, assim seremos também a imagem do celestial”.

O pensamento grego, platônico, está presente na anástase paulina, já que a eternidade não é construída em cima da carne e do sangue. Vemos aqui a dualidade entre a realidade física e o mundo das formas. O dualismo metafísico de Paulo admite aqui duas substâncias que regem o ser humano, no mundo natural, a psiquê, e no mundo pós-anástase, o pneuma. E dois princípios, nesse sentido bem próximo a Platão, o bem e o mal.

“E agora digo que a carne e o sangue não podem herdar o reino de Deus, nem a corrupção herdar a eternidade. Digo um mistério: nem todos vamos adormecer, mas seremos transformados. Num momento, num abrir e fechar de olhos, ante a última trombeta, porque a trombeta soará, os mortos serão levantados incorruptíveis, e seremos transformados. Convém que o corrompido seja tornado eterno, e o que é mortal seja tornado imortal. E, quando o que é corruptível se vestir de eternidade, e o que é mortal for transformado em imortal, então será cumprida a palavra que está escrita: a morte foi conquistada definitivamente. Onde está, ó morte, a tua picada? Onde está, ó inferno, a tua vitória? Ora, a picada da morte é o desviar-se do caminho da honra e da justiça, e a força do erro é a lei. Mas a alegria que Deus dá é a vitória por Iesous, o ungido, a quem pertencemos. Sejam firmes e persistentes, abundantes no serviço daquele a quem pertencemos, conscientes de que o trabalho árduo e duro não é desprezado por aquele a quem pertencemos”.

Caso voltemos à análise do conceito anástase no capítulo 15 da primeira carta aos Coríntios, tomando como ponto de partida o desafio de Fuks: “há que ler o desejo: sem terra, sem pátria e sem objeto, ele vaga por um deserto, cujas trilhas conduzem o leitor à experiência limite mais-além do que aparece na imagem”, vemos que Paulo traduziu para as novas gerações o desejo judaico-helênico, humano, da anástase: “Pede-se ser levantado”.


Bibliografia recomendada

Adylson Valdez, O livro do Apocalipse, uma interpretação conforme a história e o simbolismo bíblico, São Paulo, Fonte Editorial, 2009.
Andrés Torres Queiruga, Repensar a ressurreição, São Paulo, Paulinas 2010.
Jonas Machado, Morte e ressurreição de Jesus, São Paulo, Paulinas, 2009.
___________, O misticismo apocalíptico do apóstolo Paulo, São Paulo, Paulus, 2009.
Marko Ivan Rupnik, Ainda que Tenha Morrido, Viverá/ Ensaio Sobre a Ressurreição dos Corpos, São Paulo, Paulinas, 2010.
Renold J. Blank, Escatologia da pessoa, vida, morte e ressurreição, São Paulo, Paulus, 2000.
____________, Escatologia do mundo, projeto cósmico de Deus, São Paulo, Paulus, s/d.



Notas de rodapé

[1] MENANDRO, O Misantropo. Site: Oficina de teatro. WEB: www.oficinadeteatro.com
[2] FUKS, Betty, Freud e a Judeidade, a vocação do exílio, Rio de Janeiro, Jorge Zahar Editor, 2000, pp. 127-133.
[3] PLATÃO, Fédon, Coleção Os Pensadores, São Paulo, Nova Cultural, 1987.
[4] CHIFFLOT, Th.-G e DE VAUX, R., La Sainte Bible, Les Editions Du Cerf, Paris, 1973. Tradução: A Bíblia de Jerusalém, Ed. Paulinas, São Paulo, 1985, p. 1347.