Diferentes interpretações de um mesmo tema
Pinturas de Gustav
Klimt, pintor simbolista austríaco (1862-1918)
Ai flores, ai, flores do verde pio,
se sabedes novas do meu amigo?
ai, Deus, e u é?
se sabedes novas do meu amigo?
ai, Deus, e u é?
Ai flores, ai flores do verde ramo,
aquel que mentiu do que pôs comigo?
ai, Deus, e u é?
aquel que mentiu do que pôs comigo?
ai, Deus, e u é?
[Julião Bolseiro, Cantiga de amigo, do cancioneiro de Dom Diniz].
O Cântico dos Cânticos é o único
livro da Bíblia que tem o amor como seu tema exclusivo. Seu título poderia ser
traduzido como A mais bela das canções,
o que faz juz a esta que é uma das mais bem escritas estórias de amor de toda a
literatura universal. Ao traduzir a rica imaginação oriental, o texto fala de
amada e amante, interligando os quadros com coros e falas de grupos de
personagens, como as filhas de Jerusalém
e os guardas.
O texto tem forte
conteúdo erótico, parte da realidade vivida por uma jovem camponesa, mostrando
que estamos diante de um exemplar da dramaturgia do período áureo da literatura
poética hebraica. Várias interpretações têm sido apresentadas para O Cântico dos Cânticos.
Aqui, faremos a
leitura do Cântico dos Cânticos partindo de um conselho do intelectual
inglês Daniel de Morley em suas memórias de viagens, no século 12, conforme
citado por Jacques Le Goff (Os intelectuais na idade média, Lisboa,
Editorial Estúdios Cor, 1973, pp. 25-26).
Morley conta que
seguiu “as Artes, que esclarecem as
Escrituras, em vez de as saudar à passagem ou de as evitar, fazendo resumos.
Então, como nos dias de hoje é em Toledo que o ensino dos Árabes, que consiste,
quase exclusivamente nas artes do quadrivium,
é dispensado às multidões, apressei-me a partir, para aí ouvir as lições dos
mais sábios filósofos do mundo. Tendo alguns amigos pedido para eu voltar e
tendo sido convidado a deixar a Espanha, vim para Inglaterra com uma preciosa
quantidade de livros”.
“Que ninguém se indigne se, tratando da criação do mundo, eu invoco o
testemunho não dos Padres da Igreja, mas de filósofos pagãos, porque, ainda que
estes não figurem entre os fiéis, algumas das suas palavras, desde que sejam
cheias de fé, devem ser incorporadas no nosso ensino. Nós que também fomos
misticamente libertados do Egito, o Senhor ordenou-nos que despojássemos os
Egípcios dos seus tesouros, enriquecendo com eles os Hebreus. Despojemos, pois,
conforme o desejo do Senhor, e com a sua ajuda, os filósofos da sua sabedoria e
da sua eloqüência, despojemos esses infiéis de modo a enriquecermo-nos com os
seus despojos na fidelidade”.
As cantigas de amigo
Queremos
aprender com as cantigas de amigo, do medieval ibérico, por terem semelhanças
que podem nos ajudar a entender a poesia de Cantares. As cantigas de
amigo eram de autoria masculina, assim como, possivelmente, Cantares e, também,
apresentavam um eu lírico feminino.
Para entender esta questão do eu lírico feminino, é bom ler Magadelene
Luise Frettloeh, O amor é forte como a morte: uma leitura de Cânticos dos
Cânticos com olhos de mulher (in: Fragmentos de Cultura, Instituto de
Filosofia e Teologia de Goiás, IFITEG, Goiânia, 2002, vol.12, no. 4, pp
.633-642).
Ela explica que é necessário ler Cântico dos Cânticos em
perspectiva de gênero, pois neste livro canta-se o amor espontâneo entre uma
mulher e um homem, um amor que é forte como a morte. E que nos poemas do início
e do final do livro há um protagonismo feminino: “no decorrer da história da interpretação tentou-se soterrar essa
herança; hoje importa redescobri-la".
Encontramos
tanto no Cântico dos Cânticos como
nas Cantigas de Amigo a questão do amante ausente: a amada estava a espera dele
ou tinha sido abandonada. Ambas poéticas traduzem a força do Eros humano. Outra
característica marcada das cantigas de amigo era o fato de estar dirigida às
amigas, a mãe ou irmãs, ou as forças da natureza e, em alguns casos, a Deus. A
ambientação, rural ou urbana, estava sempre distante do castelo do senhor
feudal.
Um dos maiores
cancioneiros do medieval ibérico foi Julião Bolseiro e um de seus poemas, que
intercala este artigo, expressa esse eu lírico feminino, que se lamenta porque
o amante desapareceu e ela não sabe onde se encontra.
O amor entre os dois,
diferentemente do amor cortês, vigiado, expressa a força do natural e
espontâneo no amor humano, pois a cantiga parece insinuar que houve um
relacionamento físico entre os amantes.
Nesta cantiga de
amigo, a ambientação é rural, e não somente distante do castelo do senhor
feudal, mas com presença marcante da natureza.
Se sabedes novas do meu amado
aquel que mentiu do que mi á jurado?
ai, Deus, e u é?
aquel que mentiu do que mi á jurado?
ai, Deus, e u é?
Vós me preguntades polo voss' amigo?
E eu ben vos digo que é são e vivo:
ai, Deus, e u é?
E eu ben vos digo que é são e vivo:
ai, Deus, e u é?
Salomão, o herói
Uma interpretação,
quase unânime entre antigos rabinos e os pais da Igreja, considera o rei
Salomão o herói da estória. Dentro desta perspectiva, o roteiro seria mais ou
menos assim: o rei possuía um vinhedo na região de Efraim, 80 quilômetros ao
norte de Jerusalém (8:11). Essas terras estavam arrendadas (8:11) a uma viúva e
seus quatro filhos (dois rapazes e duas moças, cf. 6:13, 1:5 e 6). A Sulamita,
a mais bonita das filhas, era responsável pela casa e também cuidava dos
rebanhos (1:8).
Certo dia, o rei,
disfarçado para não ser reconhecido, visitou o vinhedo e ficou impressionado
com a beleza da moça. Ela tomou Salomão por um pastor de ovelhas e este lhe
dirigiu palavras de amor, prometendo voltar no futuro e lhe trazer presentes
(1:8-11). À noite, a moça sonhava com a volta do amado, chegando mesmo, em
determinado momento a pensar que ele estava chegando (3:1). Mais tarde, ele
volta. Mas, agora, não como camponês e sim como rei de Israel (3:6 e 7).
Segue-se, então, o casamento e seus desdobramentos.
Partindo desse roteiro
temos cinco poemas
Título e prólogo -
Cap. 1:1-4
1. O desejo e a
satisfação da jovem camponesa - Caps. 1:5-2:7
2. A visita do amado e
o sonho da moça - Caps. 2:8-3:5
3. A festa de
casamento e as canções do rei - Caps. 3:6-5:1
4. A tardia recepção
da amada e sua busca prolongada - Caps. 5:2-6:3
5. Sulamita e seu
amado conversam - Caps. 6:4-8:4.
Epílogo e últimas
adições - Cap. 8:5-8:14.
Para o teólogo chileno Samuel Fernández Eysaguirre. A manifestis,
ad occulta, Las realidades visibles como único camino hacia las invisibles en
el comentario al Cantar de los Cantares de Orígenes (in:
Anales de la Facultad de Teología. Universidad Católica, Campus Oriente, Santiago, 2000, vol. 51, no. 2, pp.135-159)
a leitura literalista levou os teólogos da Igreja antiga a um beco sem saída:
"Una lectura meramente literal del Cantar de los Cantares presentaba
graves dificultades a la sensibilidad religiosa de la antigüedad. El libro
exalta, al menos en su sentido inmediato, el amor humano y abunda, como pocos
textos bíblicos, en descripciones de los miembros del cuerpo. Y por otra parte,
el Cantar no menciona
explícitamente a Dios. El sentido literal del texto no parecía edificar
moralmente a sus lectores. Era posible preguntarse ¿qué hace en las Escrituras
un libro que no habla de Dios? Las serias dificultades que presentaba su
lectura literal, sumadas al carácter poético del Cantar, favorecían fuertemente una interpretación de tipo
simbólica, interpretación que se impuso tanto en el ámbito judío como
cristiano. Las dificultades recién descritas llevaron a algunos rabinos a dudar
de la canonicidad del Cantar...".
Vós me preguntades polo voss' amado?
E eu ben vos digo que é viv' e são:
ai, Deus, e u é?
E eu ben vos digo que é viv' e são:
ai, Deus, e u é?
E eu ben vos digo que é são e vivo
e seerá vosc' ant' o prazo saido:
ai, Deus, e u é?
e seerá vosc' ant' o prazo saido:
ai, Deus, e u é?
E eu ben vos digo que é viv' e são
e s[e]erá vosc' ant' o prazo passado:
ai, Deus, e u é?
e s[e]erá vosc' ant' o prazo passado:
ai, Deus, e u é?
Salomão, o vilão
Outra interpretação,
formulada pelo teólogo Heinrich Ewald, no século XIX, vê no amante um pastor de
quem a jovem estava noiva, antes de ser capturada e levada para o harém de
Salomão, por um de seus servos. Depois de ter resistido com sucesso a todas as
tentativas do rei para conquistar sua afeição, ela é libertada e se reúne a seu
amado, com quem aparece na cena final.
A jovem relembra o
amado (1:2-3). Pede que ele a leve de volta logo, pois o rei a introduziu nas
seduções da corte (1:4). Suas recordações do amado a perturbam (1:7). O rei
tenta seduzi-la com jóias (1:11) e perfumes (1:12), mas ela prefere o cheiro do
campo que lembra o corpo do amado (1:13-14). A moça se recorda de uma visita
feita por ele e de um sonho que se seguiu (2:8-3:5). Depois disso, ela é
novamente visitada e louvada por Salomão (3:6-4:7). Diante da persistente
ofensiva do rei, antecipa seu casamento com o jovem camponês (4:8-5:1). Sua
vida e seus sonhos estão impregnados com as lembranças do amado (5:2-6:3).
Salomão mais uma vez tenta conquistar Sulamita (6:4-7:9). Ela, no entanto,
mantém sua fidelidade ao pastor e resiste às tentativas do rei (7:10-8:3).
Diante disso, Salomão a liberta, verificando que é impossível conquistar a
moça.
Dentro desta perspectiva, é interessante ler Cântico dos Cânticos, O
fogo e a ternura de Ney Brasil Pereira e Pablo Andiñach, (Col. Comentário
Bíblico, Petrópolis/São Leopoldo, Ed. Vozes/Ed. Sinodal, 1998, 128p.,
in: Estudos Bíblicos. Ed. Vozes, Petrópolis/RJ, Brasil, 2000. no. 65,
p9.81-84).
Para os dois teólogos, os poemas do Cântico foram redigidos, em sua
redação final, por uma mulher. Seria, portanto, o único livro bíblico de uma
autora. Isso dá ao comentário um cunho especial, uma vez que se assume que ela,
a autora, tenha deixado nos poemas sua marca feminina e seu modo peculiar de
viver a sexualidade e a vida. Ao mesmo tempo, a autora teria feito uma crítica
sutil, mas firme, ao modelo salomônico de sexualidade, marcado pela frivolidade
e a poligamia.
A partir dessa interpretação
temos outro roteiro
1. No palácio, a moça relembra
o amado e é assediada por Salomão - Caps. 1:1-2:7
2. Lembra-se de uma
visita do jovem e de um sonho - Caps. 2:8-3:5
3. Sulamita mais uma
vez é visitada e elogiada por Salomão - Caps. 3:6-4:7
4. Resiste às
investidas do rei e antecipa seu casamento - Caps. 4:8-5:1
5. A moça relata outro
sonho e descreve seu amado - Caps. 5:2-6:3
6. Salomão mais uma
vez tenta conquistar Sulamita - Caps. 6:4-7:9
7. Saudosa e fiel, a
moça anseia a companhia do amado - Caps. 7:10-8:3
8. Enfim, recebe alforria,
e retorna para casa com seu esposo - Cap. 8:4-8:14.
O amor é mais forte
Em meio às várias interpretações, é bom relembrar, como diz Isidoro
Mazzarolo, Cântico dos Cânticos, Uma leitura política do amor (1a.
ed., Mazzarolo Editor, Rio de Janeiro, 2002. 249 p.), que "o livro dos Cânticos está entre as grandes obras da sabedoria bíblica ao
propor uma visão do ser humano, homem e mulher, como duas criaturas colocadas
no universo e dotadas de liberdade e dignidade".
Assim, a mensagem de amor permanece. E talvez possamos dizer, como nos
lembram as Cantigas de Amigo, que esta é a grande mensagem do livro.