mardi 3 juin 2014

Escolha e destino

Por uma teologia evangélica da vocação
Jorge Pinheiro

“Pois sabemos que todas as coisas trabalham juntas para o bem daqueles que amam a Deus, daqueles a quem ele chamou de acordo com o seu plano. Porque aqueles que já tinham sido escolhidos por Deus ele também separou a fim de se tornarem parecidos com o seu Filho. Ele fez isso para que o Filho fosse o primeiro entre muitos irmãos. Assim Deus chamou os que havia separado. Não somente os chamou, mas também os aceitou; e não somente os aceitou, mas também repartiu a sua glória com eles”. Romanos 8. 28-30.

Introdução

É difícil entender a profundidade do capítulo oito da epístola de Paulo aos Romanos se não entendemos a religiosidade helênica e seu conceito de destino. 

A antiga religião dos deuses olímpicos, explica Naécia Simões, após a dissolução da pólis, deixou um vazio que as correntes filosóficas do mundo greco-romano procuraram preencher com maior espiritualidade, nos termos de uma necessidade religiosa não racional. Quando apareceu o cristianismo, tornou-se conveniente e necessário à mentalidade pagã “examinar esta fé que reúne adeptos tão fieis, avança por todas as terras e, curiosamente, com recursos intelectuais emprestados à própria tradição clássica, parece aplicar com eficiência as formas necessárias para fazer-se entender por todos, gentios e cristãos”.[1]

Para homens e mulheres da época de Paulo a questão do destino era tema crucial, porque acreditavam que deuses e demônios se divertiam com o sofrimento humano. E esse viver manipulado por deuses e demônios, os gregos e romanos chamavam de destino. Teologicamente, dentro da cosmovisão helênica, destino pode ser definido como potência misteriosa e personificada que rege o devir universal, incluindo o curso da história humana, sem qualquer possibilidade de intervenção da vontade ou da previsão do ser humano. O destino era entendido como uma lei cega, fixada de antemão, que não se conhece e sob a qual todos estão sujeitos e dela não conseguem escapar. Traduzia uma negação, a impossibilidade da liberdade humana. Um bom exemplo é Édipo, o herói da tragédia grega.

A partir do destino demoníaco, o mundo helênico criou uma teologia de culpa e castigo, onde um profundo pessimismo atravessava o pensamento religioso da época, tanto no mitraísmo, quanto nos cultos de mistério. 

O mitraísmo tinha como centro o culto ao deus Mitra, visto como intermediário entre os seres humanos e o Deus supremo. Havia nesta colocação algo similar ao credo cristão, com o qual concorreu, principalmente no terceiro século, ao tempo do Império Romano. Forte concorrente da fé nascente, por suas afinidades, o mitraísmo deixou fortes marcas de sua influência sobre as duas primeiras faces do cristianismo: o romano e o ortodoxo.

As religiões de mistério, místicas e de cultos extáticos, criavam nos seus devotos uma atitude muito propícia para a pregação cristã, porque alertavam para o fato de que por si só nenhuma criatura pode chegar a Deus. Mas esta verdade, sem a componente da graça, desembocava num labirinto: o que fazer? Mas, se por um lado, fatores propícios possibilitaram o diálogo, por outro também deixaram marcas nas correntes místicas do cristianismo medieval e moderno. Muitos teólogos entenderam esse processo. Tillich, por exemplo, em suas reflexões, nunca deixou de lado os aspectos universalizantes do fenômeno místico. “Essa preocupação com o místico aparece também nos textos editados de suas aulas sobre a história do pensamento cristão e dos movimentos teológicos dos últimos dois séculos. Por isso ele ressaltou as religiões de mistério na elaboração da teologia cristã primitiva”.[2]

Ameaçado pelo destino demoníaco, o mundo helênico ansiava por um destino salvador, necessitava graça. E essa é a discussão que Paulo entabula com a religiosidade helênica no capítulo oito de Romanos.

A liberdade do cristão

Em sua carta aos Romanos, Paulo analisa três questões centrais: do capítulo primeiro ao oito fala da justificação pela fé; do capítulo nove ao onze discute a separação temporal dos judeus e a inclusão dos gentios ao povo de Deus, e do capítulo doze ao dezesseis apresenta exortações práticas.

Ao analisar a justificação, Paulo mostra que a libertação humana repousa sobre a fé, proveniente da graça de Cristo e não de aspectos externos, seja a lei de Moisés ou os principados e potestades, o mundo do zodíaco e deuses e demônios da religiosidade helênica. Essa misericórdia de Deus não provém de aspectos externos, estejam eles no céu ou na terra, na vida ou na morte, porque o homem, em sua natureza, não tem como responder às exigências de Deus.

A graça provém de Cristo, que no seu amor e sacrifício, perdoa a alienação humana. A liberdade da vida cristã, que é espontaneidade e criatividade diante da lei, e vitória diante de principados e potestades, do mundo do zodíaco e de deuses e demônios, não depende do próprio homem, nem do que ele possa fazer, mas daquilo que Cristo fez por ele.

Temos no trecho em análise (Rm 8.28-30) dois blocos: um maior, que é o capítulo oito inteiro, cuja temática é a da vida cristã sob a lei do Espírito; e um bloco menor, 28-30, que trata do chamado e vocação do cristão. 

O bloco maior nos dá a linha de pensamento de Paulo: uma seqüência de análises sobre a vida: emancipada (versos 1-11), exaltada (12-17), esperançosa (18-30) e exultante (31-39). Dessa maneira, no capítulo oito, o apóstolo traça o curso da vida cristã, na qual a graça triunfa sobre o destino demoníaco e os crentes experimentam a liberdade cristã.

É interessante notar que o texto de Romanos oito, em grego, começa com dois advérbios intercalados por uma partícula ilativa, que poderíamos traduzir: "Atualmente, por isso, nada em absoluto” pode condenar aqueles que estão em Cristo Jesus. 

Essa partícula ilativa, que é um conectivo, está relacionada ao capítulo sete, onde Paulo mostra que lei e pecado[3] não são sinônimos, e que há uma grande diferença entre a natureza da lei e a natureza humana, entre o que é Espírito e o que é carnal. O corpo, com os membros que o compõem (7.24), interessa a Paulo enquanto instrumento da vida. Submetido à tirania da carne (7.5), à alienação e à morte (6.12+; 7.23), Paulo clama: quem me livrará? E dá "graças a Deus, por Jesus Cristo, nosso Senhor" (7.25). É a partir desse clímax, que o apóstolo dá seqüência ao texto, informando que "por isso", "hoje", "nada em absoluto" pode condenar os que estão em Jesus Cristo.

É a partir desta hermenêutica, delineada nos passos apresentados neste trabalho, que o trecho de Romanos 8.28-30 deve ser interpretado. Teremos, então, uma melhor compreensão daquilo que o apóstolo Paulo chama de "a lei do Espírito da vida em Jesus Cristo" e de sua importância no caminhar do cristão.

A dimensão trinitária

Escolha, chamado, vocação, missão e destino são conceitos cujos conteúdos têm núcleos de compreensão que se cruzam e se completam. Para entender tais conceitos, e em especial o de vocação, que Paulo apresenta em Romanos, vamos partir da relação existente entre a igreja e o relacionamento expresso na Trindade. 

A igreja é unidade, diversidade e comunhão da comunidade cristã que traduz a unidade, diversidade e comunhão do Pai, Filho e Espírito Santo. Nesta linha de raciocínio, o Pai é o horizonte último, o Filho é a exemplaridade definitiva de como corresponder ao Pai, e a vida no Espírito é o ser cristão concreto. 

Nesse sentido, explica Sobrino, a tarefa mais urgente da Cristologia, por causa da declaração doutrinária de que Cristo é o Filho de Deus, “não consiste tanto em re-interpretar in recto o dogma cristológico, o que continua sendo uma tarefa importante, e sim se re-situar o caminho do crente para que sua vida seja pro-seguimento de Jesus e assim ela seja também o processo de sua filiação concreta”.[4]

Por isso, muda também a relacionaridade da igreja com o mundo: a igreja não é mais o lado adulto, completo, da secularidade, mas sinal e instrumento, memorial para a libertação integral de homens e mulheres[5]. A partir desta compreensão devemos entender o sentido eclesial da vocação de pastores, ministros e missionários, e o sentido secular da vocação de trabalhadores, profissionais e empresários, enquanto pessoas chamadas à comunhão com a Santa Trindade de Deus. Cada vocação está ligada ao desígnio do Pai, à missão do Filho e à obra do Espírito Santo.

Esta dimensão trinitária da escolha e chamado mostra a ligação que existe entre a vocação, a vida e a espiritualidade[6]. Escolha e chamado direcionam a um relacionamento pessoal com Deus vivido no interior de uma comunidade concreta. A escolha é psiu de Deus. O chamado inicia um diálogo que pode levar a um encontro com Ele. Mas vocação é uma sedução, uma conquista do coração por parte de Deus, para uma vida de intimidade, de comunhão com Ele. É um casamento.

Por ser um relacionamento de intimidade com a Trindade, a vocação implica em santidade, plenitude da vida cristã e perfeição do amor. Vocação é, então, comportar-se como o Pai se comporta. A santidade é uma prerrogativa de Deus. Deus é santo porque é totalmente diferente dos seres humanos e do mundo, porque ama e acolhe as pessoas. 

Somos chamados a participar da santidade divina. A santidade consiste em ser perfeito no amor e o amor é o distintivo dos cristãos. Ser santo significa fazer a diferença, responder aos desafios de cada época num serviço sem medidas. Mas esta mesma santidade é vivida de formas diferentes em razão da diversidade dos dons, dos serviços e dos ministérios.

Quando partirmos de Romanos 8.28, -- “sabemos que todas as coisas trabalham juntas para o bem daqueles que amam a Deus, daqueles a quem ele chamou de acordo com o seu plano” – vemos que em Deus todas as coisas, circunstâncias, projetos e sonhos, trabalham juntas para cumprir um propósito, dentro de um plano de Deus.

Por isso, vocação não é isolamento, mera busca de satisfações ou realização pessoal. Não é apenas construção de projetos pessoais, mas dar a vida pela defesa da vida. Vocação é amar, é servir, é relacionar-se com a Trindade, a partir do encontro, da relação com o próximo. É responder ao chamado inserindo-se na vida da comunidade. É tomar parte ativa na construção do Reino. 

Na vocação somos comunidade, participamos na vida e na missão da igreja. Estes são elementos que não podem ser esquecidos, nesta contemporaneidade marcada pelo individualismo.

Vocação enquanto chamado à comunhão e participação nos leva a descobrir, como elemento essencial do chamamento, a vida de fraternidade. Faz parte da vocação o compromisso de reproduzir na igreja e no mundo o tipo de relacionamento que existe na Trindade de Deus. A participação na comunhão trinitária exige comunhão fraterna entre nós. Não pode ser sincero um relacionamento de comunhão com Deus quando não se traduz no relacionamento com os irmãos. 

Não é autêntica a vocação que não se abre à solidariedade. A Trindade permanece como modelo da comunhão que deve brotar da vivência da nossa vocação. Esta vida de comunhão é o que dá autenticidade a nossa vocação. Ela é o sinal mais claro de que estamos vivendo realmente numa intensa comunicação com a Trindade.

Humanos e cristãos

O capítulo 8.29 de Romanos nos diz que “aqueles que já tinham sido escolhidos por Deus ele também separou a fim de se tornarem parecidos com o seu Filho. Ele fez isso para que o Filho fosse o primeiro entre muitos irmãos”. Ou seja, fomos escolhidos e chamados pela graça para sermos parecidos com seu Filho, realizarmos um serviço, uma missão.

Devemos ser imagem do Pai, imagem do Filho, imagem do Espírito, e é isto que faz com que a vocação seja comunhão com a Trindade, que se traduz na experiência do cristão na igreja e no mundo. Segundo teólogos como Bonhoeffer e Schillebeeckx, a pergunta humana da experiência deve sempre ser posta em correlação com a resposta da fé. Essa correlação só é obtida se a pergunta humana pode ser configurada como pergunta que tenha sentido, a respeito da realidade e da experiência, à qual se segue uma resposta humana que tenta articular um sentido, mas que recebe somente da resposta cristã uma superabundância de sentido, um sentido último e definitivo.[7] Quando falamos de vocação, tal correlação pode ser traduzida em três dimensões, que marcam a vida do vocacionado. Nenhuma destas dimensões subsiste em separado, mas estão correlacionadas.

Para Oliveira[8], a primeira dessas dimensões, a humana, é o chamado a ser pessoa humana. Isto quer dizer que, antes de qualquer coisa, o vocacionado tem que ser gente, com todas aquelas qualidades que caracterizam o ser humano enquanto imagem de Deus. Uma atenção particular deve ser dada à capacidade de relacionar-se bem com as demais pessoas, já que a pessoa humana foi criada por Deus como ser social. Como já vimos acima, a vocação é sempre dialogal. Ela só se concretiza nas relações interpessoais, sejam elas as da família, da amizade, das comunidades pequenas ou grandes de que participa o ser humano. Não é possível falar de vocação, deixando de lado as exigências da natureza humana. 

A segunda dimensão, a cristã, é o chamado a viver a santidade através de uma participação ativa na vida da comunidade. É o viver em comunhão com Cristo na comunhão e cooperação com os demais. Esta dimensão da vocação se traduz numa tríplice missão: profética, sacerdotal e real.[9] Isto leva à dignidade de todas as vocações e de todos os membros do corpo de Cristo. Existe uma variedade de vocações, de dons, mas todos possuem a mesma dignidade. Ninguém é superior a ninguém, ninguém é melhor do que ninguém. Isto mostra que, em Cristo, a partir do serviço e da obediência, todos temos a mesma missão. 

A terceira dimensão, a particular, é toda vocação, que mesmo sendo vivida na comunidade e a serviço da comunidade, é personalizada.[10] Cada cristão responde a escolha e chamado do Pai de acordo com os dons recebidos do Espírito Santo. A vocação particular é a forma concreta que permite a cada cristão dar sua contribuição para a construção do reino de Deus. Esta dimensão particular da vocação remete à singularidade de cada pessoa. Mas há diversidade também de aptidões, de qualidades pessoais, como as circunstâncias diferentes nas quais brotam e se desenvolvem os chamados de Deus. Mas mesmo realizando de forma pessoal a vocação comum, o cristão deve direcioná-la para a comunidade. Se o Espírito Santo distribui os dons a cada um conforme ele quer, Ele o faz para o bem e uso de todos. 

Missão e destino

De volta a Romanos (8.30) vemos que “Deus chamou os que havia separado. Não somente os chamou, mas também os aceitou; e não somente os aceitou, mas também repartiu a sua glória com eles”. Ora, a escolha e chamado do Pai, a aceitação através do sacrifício vicário de Jesus é completada na glória da ação do Espírito Santo sobre nossas vidas.

Por isso, o dinamismo da vocação está ligado à escolha e ao chamado, à missão e ao plano de Deus para cada um de nós. Nesta dinâmica, os dons são diferentes capacitações entregues para a realização de serviços diferentes, a partir de diferentes modos de agir, suscitados pelo Espírito e destinados à edificação da comunidade cristã. Poderíamos dizer então que os dons são capacitações do Espírito que tornam o cristão apto para o exercício da própria vocação em favor de toda a comunidade. 

Os dons são potencialidades para a execução de serviços concretos, atividades concretas, que possibilitam a vivência de uma determinada vocação particular. Existe, pois, pluralidade de dons. Para cada forma de vocação pode existir uma diversidade de dons. Enquanto meios concretos de atuação de uma determinada forma de vocação, os dons não são apenas dons extraordinários concedidos a pessoas extraordinárias. Eles são elementos que fazem parte do cotidiano da comunidade e não apenas privilégio de alguns. 

Dons e vocação não são fins em si mesmos. Existem para a missão. Por isso toda reflexão sobre a vocação requer pensar missão. Dentro de uma teologia evangélica da vocação é preciso destacar a missionariedade da Igreja. Toda a igreja está sujeita à missão. Esta missionariedade deve ser vivida em todos os níveis. Missão não é somente evangelizar, anunciar a salvação, mas viver a boa nova da libertação operada por Cristo dentro da situação atual do mundo, ajudando à humanidade a fazer a história, a contribuir para uma nova criação, construindo no aqui e no agora uma sociedade nova e diferente.

A missão é para o mundo e se desenvolve no mundo, é sempre uma missão de compromisso efetivo com o bem da pessoa humana na sua totalidade. A missão leva o cristão a aproximar-se, com os olhos e com o coração, daqueles que sofrem. Por ser serviço à humanidade, vocação e missão possuem uma dimensão pessoal e uma dimensão comunitária. Pessoal, enquanto cada crente tem o seu jeito de vivenciar a missionariedade da igreja. Comunitária porque esta missionariedade foi confiada à igreja, enquanto comunidade convocada e reunida pela Trindade.

Esta realidade nos obriga a entender que a iniciativa divina do chamado é dirigida à pessoa humana livre. É indispensável por isso entender a questão do destino na sua relação com a dinâmica do chamado do Senhor. 

Dentro da visão paulina, destino, no sentido de que os limites estão dados de antemão, é a correlação entre lei e espontaneidade. Destino traduz uma relação dialética com liberdade: destino e liberdade são polaridades; destino implica que a liberdade está sujeita à lei; destino implica que liberdade e lei são interdependentes e complementares. Para Paul Tillich, liberdade e destino formam uma polaridade ontológica, onde a descrição da estrutura ontológica básica e seus elementos atingem tanto sua realização, quanto seu ponto decisivo: “O homem é homem porque tem liberdade. Mas ele tem liberdade só em interdependência polar com o destino”.[11]

Analisando o conceito cristão palestino de destino, exposto por Paulo, podemos dizer que há uma interdependência entre lei e espontaneidade, de tal forma que destino e liberdade se encontram intrinsecamente entrelaçados. Só quem tem liberdade tem um destino, explica Tillich. “As coisas não têm destino porque não têm liberdade. Deus não tem destino, porque ele é liberdade. A palavra destino aponta para algo que está para acontecer a alguém; ela tem conotação escatológica. Isso a qualifica a estar em polaridade com liberdade. Ela aponta não para o oposto da liberdade, mas para suas condições e limites”.[12]

A certeza de que o destino cristão está prenhe de graça tem um significado realizador e não destruidor e, por isso não é demoníaco, ao contrário, é a peça-chave do pensamento de Paulo, quando coloca Cristo acima do destino. Ao fazer isso, Paulo está dizendo que a compreensão plena do destino não está ao alcance do homem, pois há nele uma componente escatológica que escapa ao conhecimento humano.

A verdade incondicional de Deus não está ao nosso alcance. Em nós humanos há sempre um elemento de aventura e risco em cada enunciado da verdade. Mas mesmo assim, podemos e devemos correr este risco, sabendo que este é o único modo em que a verdade pode ser revelada aos seres finitos e históricos.

Quando mantemos uma relação com o Cristo eterno e deixamos de temer a ameaça do destino demoníaco, aceitamos o lugar que cabe ao destino em nossa vocação. Podemos reconhecer que desde o princípio nossa vocação esteve submetida ao destino e que muitas vezes desejou livrar-se dele, mas nunca conseguiu.

Na análise cristã do destino, Cristo e o tempo de Deus estão relacionados. Cristo leva ao tempo de Deus. Cristo envolve e domina os valores universais, a plenitude do tempo, a verdade e o destino da existência. Na vida do cristão a separação entre Cristo e a existência chegou ao fim. Cristo alcançou a existência, penetrou no tempo e no destino. E isso aconteceu não como algo extrínseco ao Cristo, mas porque é a expressão de seu próprio caráter, de sua liberdade.

É necessário, porém, entender que tanto existência quanto conhecimento humano estão submetidos ao destino e que o eterno reino da verdade só é acessível ao conhecimento que transcende o destino: a revelação. 

Dessa maneira, ao contrário do que pensavam os gregos, todo ser humano possui potencialidades, enquanto ser, para realizar seu destino. Quanto maiores as potencialidades do ser, que crescem à medida que é envolvido e controlado pelo Cristo, mais profundamente está implicado seu conhecimento no destino.

Partindo da liberdade que nos foi dada, enquanto imago Dei, nosso destino, que deve ser entendido como manifestação do desígnio do Pai, da missão do Cristo e da obra do Espírito Santo, é o projeto de Deus para nossa vida. Destino é servir à Trindade, num tempo novo, que emerge das crises e desafios de nossos dias. Quanto mais nos aproximamos da compreensão de nosso destino, no sentido de estar colocado, de ser proposto, tanto mais seremos livres. Então, nosso trabalho, nossa vocação será plena de força e verdade.

O projeto de Deus para uma pessoa não é algo estático, mas um chamado que é feito através de mediações concretas. Deste modo a pessoa pode dizer sim, fazendo acontecer a história da libertação, ou dizer não, distanciando-se da missão e do destino que nasceram do projeto de amor do Pai, do Filho e do Espírito.

Igreja e vocações

No que tange às vocações particulares, convém observar que a vocação do cristão é a vocação comum da qual dependem as vocações ministeriais e seculares. Tal vocação de vida consagrada se fará antes de tudo a partir da dimensão simbólica da mesma: somos chamados a contextualizar o significado do ser cristão na vida da comunidade onde vivemos e dentro da qual nos relacionamos. A questão da especificidade de vocação, na igreja e na sociedade, passa por ser seguidor radical de Jesus, profeta e sinal visível da radicalidade do Evangelho. 

A vocação de pastores, ministros e missionários, e de trabalhadores, profissionais e empresários deve determinar o específico destes ministérios. Por exemplo, ainda é forte o monopólio por parte de pastores, ministros e missionários. A teologia deve contribuir para a superação da visão privatista presente na formação ministerial. Da mesma maneira, a vocação secular de trabalhadores, profissionais e empresários deve ser entendida como aquela de serviço à unidade da comunidade. Embora a vocação particular do ministério pastoral seja a presidência da igreja.

As dificuldades, no que respeita às vocações, estão ligadas a uma compreensão insuficiente do que é igreja. Por isso, é indispensável uma reflexão sobre o que é igreja.

Devemos começar por uma pergunta: qual o modelo de igreja ao qual nos referimos quando falamos em vocação? Aqui voltamos ao início do texto, onde entendemos igreja como corpo reunido na unidade do Pai, do Filho e do Espírito Santo. Tal visão de igreja contribui para que todos os seus membros vivam em estado de vocação e de missão, sentindo-se convocados pelo Pai para o serviço ao Reino.

Somente uma igreja que é imagem da Trindade pode tomar-se espaço para o surgimento e desenvolvimento de vocações. Isto porque nela os crentes constituem um só corpo em Cristo, com dignidade e variedade de funções, com espaço para a comunhão e participação. Numa igreja assim existe a presença de instrumentos e de organismos que permitem o engajamento dos crentes e abrem caminho para o surgimento das vocações. Aqui os jovens encontram um terreno eficaz para o amadurecimento humano, cristão e apostólico.

Tal igreja é mãe das vocações. Sente-se chamada e ao mesmo tempo convocada a chamar. Tem consciência de ser uma comunidade de pessoas chamadas que, por sua vez, torna-se apelo vivo da Trindade. Este modelo de igreja que comunga e participa se identifica com as vocações de que é constituída. Nela os crentes recebem o chamamento ao sacerdócio universal e à santidade. Nela surgem, por dom do Espírito Santo, os chamamentos especiais para os ministérios e profissões, para a consagração eclesial e secular, e para a vida missionária. Ela é a reunião de todos quantos, em comunhão com o seu pastor e entre si, são chamados pelo Pai a seguirem o Senhor Jesus, de acordo com os dons do Espírito. E porque há identificação, todos se sentem responsáveis pelas vocações.

A igreja onde as vocações podem brotar escuta o clamor da comunidade e vive em processo de renovação. Não reclama privilégios, mas vive na sociedade a sua missão profética, denunciando as injustiças e anunciando o kairós evangélico de uma sociedade nova, humana e fraterna. Tal igreja é capaz de dialogar com a sociedade pluralista, sem abandonar sua doutrina e propósitos. É uma igreja servidora, ministerial (minus stare), onde todos são chamados a servir

Uma igreja onde os crentes descobrem a realidade em que vivem, os chamados aos ministérios eclesiais (pastores, ministros, missionários) e o sentido das vocações seculares (trabalhadores, profissionais, empresários) de que a comunidade tem necessidade, faz-se igreja necessária. E os compromissos de hoje podem se tornar prelúdio de uma consagração definitiva. Na igreja que está voltada para sua comunidade, os jovens e adultos não são crentes passivos, mas agentes, participantes e responsáveis, protagonistas, de acordo com os dons e as possibilidades de cada um.

Por uma teologia evangélica da vocação

A partir do que vimos vale a pena analisar alguns elementos que podem balizar a construção de uma teologia evangélica da vocação.

Em primeiro lugar, deve ficar claro que as experiências humana e cristã são realidades correlatas ao chamado para as vocações particulares. Por isso, a vocação de pastores, ministros, missionários e de trabalhadores, profissionais e empresários, enquanto chamado de Deus que se realiza na igreja e na comunidade, deve fundar-se numa teologia evangélica e numa práxis em sintonia com nossos princípios e doutrinas.

Partindo desta avaliação é preciso entender que partimos do Deus triúno e da teologia do amor que tal comunhão implica: vocação é relacionamento, o que implica em dar valor à experiência humana e à espiritualidade cristã, mas também dar atenção à questão da inculturação e aos desafios da contemporaneidade. Vivemos um tempo de transição, caracterizado por atitudes ambivalentes. As transformações da sociedade revelam a inadaptação de muitas igrejas, presas à tradição, e a necessidade de novos projetos de existência humana.

E por fim, é preciso definir o específico de cada vocação, dando valor à participação de toda a igreja enquanto corpo de Cristo. Isto traduz a necessidade de se encontrar uma metodologia adequada para cada situação, lugar e grupo de pessoas. 

Considerações finais

O cristianismo é a vitória sobre a cosmovisão da religiosidade helênica de que estamos debaixo das forças de deuses e demônios, traduz a idéia de que o mundo é uma criação divina. 

É a negação radical do caráter demoníaco da existência em si. Dá à existência um valor essencialmente positivo e valoriza os acontecimentos da ordem temporal. Com o cristianismo, a ordem do tempo não leva apenas ao transitório e perecível, mas também à possibilidade de algo totalmente novo, um propósito e um fim que dá pleno significado à vida humana.

No cristianismo o tempo triunfa sobre o espaço. O caráter irreversível do tempo bom substitui o tempo cíclico, transitório e perecível do pensamento helênico. A partir desse kairós, a presença de Cristo entre nós, destino outorga graça, que traz libertação no tempo e na história. O mundo helênico e sua interpretação da vida foram superados e com eles o pessimismo da religiosidade helênica.

Agora depositamos nossa certeza nas palavras de Paulo em Romanos 11.29, quando diz que “Deus não muda de idéia a respeito de quem ele escolhe e abençoa”. E a partir do chamado e vocação entregues por Deus a nós, realizemos nossa missão, destino glorioso que traduz o desígnio do Pai, a missão do Filho e a obra do Espírito Santo nas nossas vidas, e através delas, na igreja e na sociedade.

Bibliografia recomendada

BRUCE, F.F. Romanos, introdução e comentário. Odayr Olivetti, trad., São Paulo, Vida Nova e Mundo Cristão, 1991.
CULLMANN, Oscar. A formação do Novo Testamento, 5a. ed., Bertoldo Weber, trad., São Leopoldo, Sinodal, 1990.
FRANZMANN, Martin H. Carta aos Romanos, Mário e Gládis Rehfeldt, trads., Porto Alegre, Concórdia, 1972. 
LAFON, Guy, Saint Paul, épitre aux romains, Les Editions du Cerf, 1953 e 1973, Paris, GF-Flammarion, 1987.
LEENHARDT, Franz J. Epístola aos Romanos, Waldyr Carvalho Luz, trad., São Paulo, ASTE, 1969.
OLIVEIRA, José Lisboa Moreira de, Nossa Resposta ao amor, teologia das vocações específicas, São Paulo, Editora Loyola.
TENNEY, Merril C. O Novo Testamento sua origem e análise, 2. ed., São Paulo, Vida Nova, 1972.
TILLICH, Paul, La dimension religieuse de la culture, Paris, Genebra, Québec, Les Editions du Cerf, Editions Labor et Fides, Presses de l´Université Laval, 1990.
____________, L´Etre nouveau, tradução de J. M. Saint, Planète, Paris, 1969, do texto original: The New Being, Charles Scribner's Sons, 1955. 
____________, Teologia Sistemática, São Leopoldo, São Paulo, Editora Sinodal, Edições Paulinas, 1984.

Notas

[1] Gilda Naécia Simões, “Cristianismo Primitivo e Paidéia Grega”, jornal O Estado de S. Paulo, 21/9/1975. In Seminário Internacional Cristianismo, Filosofia, Educação e Arte, FEUSP, setembro 2001. 
[2] Leonildo Silveira Campos, “Os Novos Movimentos Religiosos no Brasil Analisados a Partir da Perspectiva da Teologia de Paul Tillich”, revista eletrônica Correlatio, no. 3. 
[3] “O regime da lei no Antigo Testamento era bom, mas temporário (Gn. 3.24, 4.1+), e foi planejado para o mundo da carne e o pecado. Com a morte e a ressurreição de Jesus o regime da lei foi superado. O cristão está livre da lei, assim como Cristo que teve seu corpo carnal feito corpo espiritual (Rm 7.4-6, cf. 1Co 15.45). O cristão não está mais debaixo da lei, mas debaixo da graça (Rm 6.14). E a graça é grátis (Gl 5.1, 13). Na medida em que se é cristão, filho de Deus guiado pelo Espírito (Rm 8.14), a única lei que lhe convém é aquela que Paulo chama de a lei do Espírito (Rm 8.2), não só dada pelo Espírito, mas vivida no crente através do Espírito, que segundo Tomás de Aquino, não é simples norma externa, mas princípio de ação, atividade do Espírito no cristão”. Guy Lafon, Epitre aux Romains, Flammarion, Paris, 1987, p. 59. 
[4] J. Sobrino, Cristologia desde América Latina, Esbozo a partir del seguimiento del Jesús histórico, México DF, CRT, 1976 (2a. ed. ver. 1977), p. 91. 
[5] I. Ellacuría, Conversión de la iglesia al Reino de Dios para anunciarlo y realizarlo em la historia, Santander, Sal Terrae, 1985, pp. 179-261. 
[6] José Lisboa Moreira de Oliveira, “Teologia e Eclesiologia da Vocação”, revista Espírito no. 65, (jan/mar 1996, pp. 22-31). 
[7] E. Schillebeeckx, L`intelligenza della fede: interpretazione e critica (1972), Roma, Paoline, 1975, p. 102. 
[8] José Lisboa Moreira de Oliveira, op. cit., pp. 22-31. 
[9] Idem op. cit., pp. 22-31. 
[10] Ibidem, op. cit., pp. 22-31. 
[11] Paul Tillich, Teologia Sistemática, Editora Sinodal, Edições Paulinas, São Leopoldo, São Paulo, 1984, p. 156. 
[12] Paul Tillich, idem, op. cit., p. 158.

mercredi 28 mai 2014

Neném Prancha, gênio

Ele foi um ícone da minha juventude carioca. Neném iniciou sua carreira no futebol como jogador, num time pequeno, o Carioca. Mas não fez sucesso. Então, vejam só, abriu uma escolinha de futebol para crianças nas areias de Copacabana, bairro onde eu morava. Eu era e sou Flamengo! Já Neném foi trabalhar também no time do seu coração, o Botafogo. Foi roupeiro, massagista, olheiro... e João Saldanha, botafoguense roxo, outro ícone da minha geração, foi fã incondicional do Neném.




O nome de batismo de Neném Prancha era Antonio Franco de Oliveira. Ele nasceu em Resende, estado do Rio de Janeiro, em 1906 e morreu setenta anos depois. Ganhou o apelido de Neném Prancha porque tinha mãos e pés enormes. Suas mãos mediam cada uma 23 centímetros de comprimento, e os pés eram tamanho 44. Talvez por isso andasse sempre de chinelos.

Frases de gênio

"Jogador de futebol vai na bola com a mesma fome que num prato de comida".
"Se macumba adiantasse, campeonato baiano terminava empatado."
“Uma coisa é uma coisa e outra coisa é outra coisa.”
"Jogador bom é que nem sorveteria, tem várias qualidades".
"Bola tem que ser rasteira, porque o couro vem da vaca e a vaca gosta de grama."
"Joga a bola pra cima, enquanto estiver no alto não tem perigo de gol".
"Jogador é o Didi, que joga bola como quem chupa laranja".
"O goleiro dorme com a bola. Se for casado, dorme com as duas".
"Pênalti é tão importante, que quem devia bater é o presidente do clube".
"Se concentração ganhasse jogo, o time do presídio não perdia uma partida."
"O importante é o principal, o resto é secundário".
"Quem pede tem preferência, quem se desloca recebe".
"Futebol é muito simples: quem tem a bola ataca; quem não tem defende".


Um filósofo entre nós
Filho de Zeferino, biscateiro, e dona Julia, empregada doméstica.
Aos 11 anos, foi pro Rio. 

Fontes

Pedro Zamara, Assim Falou Neném Prancha, Editora Crítica, Rio de Janeiro, 1975.

Internet

O jogo da educação, por Neném Prancha, revistaeducacao.uol.com.br
Maior filósofo do futebol brasileiro, Neném Prancha foi imortalizado por suas pérolas sobre o esporte – ainda que muitas delas não tenham sido de sua autoria, revistatrip.uol.com.br 
O filósofo do futebol, mantofootball.com
Curiosidades do Botafogo – Neném Prancha, revistadobotafogo.com.br 

samedi 24 mai 2014

A alegria é a prova dos nove

Ou, no colo da cunhã, rede e sexo
Jorge Pinheiro 

“Tupi or not tupi that is the question”. (Oswald de Andrade, Manifesto antropófago).

[Paris] – Você já parou para pensar que em menos de cinco anos, entre 1555 e 1560, cerca de quatrocentos franceses emprenharam mulheres tupinambás e tiveram mais de mil filhos, segundo alguns, na verdade, dois mil brasileirinhos. Bem, talvez você não saiba porque a história é sempre situada, espacial e ideologicamente.

Quando se faz uma pesquisa na área acadêmica, geralmente, há um subproduto que não utilizamos, porque não está diretamente ligado ao nosso objeto, embora seja cientificamente interessante. É o caso desse artigo: surgiu a partir de elementos da pesquisa que desenvolvo na Europa, mas especificamente em Montpellier e Paris, sobre os huguenotes, protestantes franceses que estiveram no Rio de Janeiro, em 1557.

Neste artigo sobre o início da presença francesa no Brasil e dos relacionamentos entre franceses e tupinambás utilizo o caminho da correlação, como forma de aproximação de um fato histórico fundante. O método da correlação relaciona polos, o discurso eurocêntrico, no caso, e a interpretação desse discurso, que deve levar em conta a situação daqueles a quem ela se destina. Situação, aqui, são as formas políticas e sociais através das quais os franceses exprimiram as suas interpretações da existência tupinambá, geradora do mito do bom selvagem. Nesse sentido, o método da correlação possibilita que perguntas venham à tona, que haja individuação das respostas, permitindo travessias correlatas às perguntas colocadas pela própria existência dos brasis e seus costumes.

Nicolau Durand de Villegagnon (1510-1571) foi colega de João Calvino durante seus estudos em Paris. Junto com os Cavaleiros de Malta, a partir de 1531, participou das expedições militares de Carlos V contra Argel. Mas ficou conhecido como navegador. Vice-almirante da Bretanha, sua aventura mais empolgante e polêmica foi a fundação, em 1555, de um projeto de colonização que ficou conhecido como França Antártica, na baia de Guanabara. Para desenvolver tal projeto recebeu o apoio do almirante Gaspard de Coligny, homem de confiança do rei e militar de importante presença protestante, e dez mil libras para financiar a empreitada.

A intenção francesa era fundar uma colônia no Brasil, a fim de fazer frente a expansão espanhola e portuguesa nas Índias Ocidentais e no Novo Mundo, onde calvinistas pudessem praticar o seu catolicismo reformado e evangelizar os brasis. Três navios partiram de Le Havre, com mais de quatrocentos colonos, a maioria ex-presidiários indultados por se juntarem à aventura de Villegagnon. E assim chegaram ao Brasil em novembro de 1555. Villegagnon construiu, então, o forte Coligny em uma ilha na baía de Guanabara e passou a usar o título de vice-rei da França Antártica.

As relações com os brasis da região se mostraram tão boas, que Villegagnon e os colonos passaram a frequentar as festas, travaram contato com o comunismo libertário dos brasis, e muitos colonos acabaram por optar por essa nova forma de vida.

A França Antártica a princípio foi tolerante com os costumes dos brasis e as opções dos colonos, mas, com o tempo, Villegagnon percebeu que estava a perder seus homens. Estes passaram a ter companheiras tupinambás, a viver nas aldeias e adotavam a cultura dos brasis. Foi, então, que Villegagnon, por razões militares e de ocupação do território, proibiu todo comércio com os brasis, os acasalamentos e exigiu que seus colonos abandonassem as aldeias e voltassem ao forte. Ora, exigência quase impossível de ser respeitada, afinal aqueles homens tinham sido libertos das prisões franceses com a proposta de viajar para um novo mundo de aventuras inimagináveis. E tinham encontrado esse mundo, com espaços sem fim, mulheres brasis e sexo sem constrangimentos. Tinham descoberto que a alegria é a prova dos nove.

Uma das dimensões importantes da cultura tupinambá era o cunhadismo. Este elemento fundante da cultura dos brasis no litoral do Rio de Janeiro é uma hipótese fundante para se compreender a construção das ótimas relações que tupinambás e franceses construíram entre si. Os franceses se uniram sexual e matrimonialmente com as mulheres brasis, e assim se inseriram na estrutura social tupinambá, como genros ou cunhados. Pesquisas acadêmicas mostram que muitos europeus, e aí se incluem os franceses, e não apenas portugueses, se adaptaram com facilidade aos costumes brasis, a ponto de alguns tornarem-se lideranças expressivas entre os tupinambás.

Darcy Ribeiro considerou o cunhadismo a instituição social que possibilitou a formação do povo brasileiro. O cunhadismo estruturava as relações de parentesco entre os tupinambás ao incorporar pessoas estranhas à comunidade. O homem agregado à tribo recebia uma moça tupinambá como cunhã, ou seja, esposa. E quando a assumia, estabelecia laços de parentesco com todos os membros da comunidade.

“Já tínhamos o comunismo. Já tínhamos a língua surrealista. A idade de ouro”. 
(Oswald de Andrade, Manifesto antropófago).

O cunhadismo, enquanto sistema de parentesco relacionava um brasil ou agregado com os outros e, por extensão, com todos os membros da tribo. Assim, ao receber a cunhã, o francês passava a ter nela sua temericó e nos parentes da geração dos pais, outros pais ou sogros. O mesmo ocorria em sua própria geração, em que todos passavam a ser irmãos ou cunhados. Na geração inferior eram todos seus filhos ou genros. Esses termos de afinidade classificavam o grupo com quem podia ou não manter relações sexuais. Com os sogros e sogras devia evitar relações, mas podia manter relações abertas com os cunhados e cunhadas, assim como com genros e noras.

Segundo Ribeiro, os franceses fundaram criatórios na baía de Guanabara com base no cunhadismo. E citou Capistrano de Abreu, quando este afirmou que por muito tempo não se sabia se o Brasil seria francês ou português, tal a força da presença e o poder da influência francesa junto aos brasis do litoral do Rio de Janeiro. Ainda segundo Ribeiro, mais de mil brasileiros, no caso franco-brasis, foram gerados como fruto do cunhadismo, quando franceses, tamoios e tupinambás viviam ao longo dos rios que deságuam na baía, inclusive na ilha do Governador, onde deveria ser implantada a França Antártica.


Moças brasis para os colonizadores franceses, eis o cunhadismo franco-brasil

Assim, fruto da boa vida no paraíso dos brasis, os colonos não concordaram com seu vice-rei, se revoltaram, e aliados aos brasis, agora seus parentes, passaram a tramar o assassinato de Villegagnon. Diante de guerrilha que se avizinhava, o vice-rei recorreu ao amigo Calvino que, por esses tempos, exilara-se em Genebra, e pediu para mandar reforço religioso a fim de restaurar a moral e os bons costumes. E, em setembro de 1556, quatorze huguenotes, entre os quais dois pastores, Chartier e Richer, e um jovem muito promissor, Jean de Léry, deixaram a Suíça, embarcaram em Honfleur, sob a liderança de Du Pont de Corguilleray, e chegaram ao forte de Coligny em março 1557. Mas essa já é outra história.

“Contra a realidade social, vestida e opressora, cadastrada por Freud – a realidade sem complexos, sem loucura, sem prostituições e sem penitenciárias do matriarcado de Pindorama”.(Oswald de Andrade, Manifesto antropófago).







vendredi 16 mai 2014

Toada para bailar a ceia de Jesus

Jorge Pinheiro, com a participação especial do Profeta Gentileza


Gente tem três pilares, vamos cantar um
O Espírito e seu baile
Alheação fica fora, sem debrum
Gente é feliz na roda, marchetada de riso
Exaltada, de curso traçado

Eterna é ceia de Jesus, de ressurreição cheia
Gente cresce no presente cheia de semelhança
Comer o pão, coração repica a alegria do outro,
Comunidade afeto efetivo, machucado a gente cura.
Jesus olhou, repicou a dor da gente,
VVamos toar e bailar a Ceia de Jesus.

Bem querer é para quem baila
O Espírito da vida é toada liberta do destino
Do alheação e do acabamento.
O Eterno voou com seu Jesus, gente igual
Destino novo, a gente dança a contradança do Espírito.

Querência boa é toada e baile, fazer o bem bom,
O Eterno não gosta de toada sem nota certa
Jesus se acaba quando a gente dorme e acorda na alheação.
Querência toada e baile fala com retirantes
Jesus não quis refastelar, querência toada e baile é para quem caminha,
Não pesa a mão, quer gente novinha em folha.
Sigam os pés, ensaiem do jeito, querência toada e baile faz rima com errante
Vão dormir folgados. É isso mesmo, Jesus não vive no rabo de arraia,
Na sapiência é mestre sim, de gentileza.

Olha o trilho, igual na esquerda e na direita com certeza,
Exclusão não, toada de gente,
Olha o trilho, igual na esquerda e na direita, para ir ir além
Repousa com certeza, presente de Jesus.
Repica a dor do andarilho, não depende do escrito,
Gente não tem como responder às exigências do escrito,
O Eterno está do outro lado.
Presente chega chega nos braços, dor e prazer, indulto das alheações.
Livres do escrito, gente é gente pra lá de gente.
Ir além, toar e bailar...

Toada linda é animação, não pisa a cana,
Apanhado com a faca na mão, no momento vil,
Gente desarma, não esquece a querência boa, toada e baile no Espírito.
Ajuda e obedece a lei do baile.
Desobriga porque está desobrigado.
Desobrigação é a toada mais linda cantada no baile,
Esquecer o dinheiro levado é difícil, o Eterno faz assim.
E vamos para rede, na varanda, no fresco da tarde.
É gozo, desobrigação.
Comunidade é certeza, acende o farol alto e mostra à gente que a rede é possível,
mesmo quando o mar não está para peixe.

Jesus está livre, certeza não basta, permanecer é preciso.
Continuar na certeza, gente é pra lá de gente não faz cera.
Constância consta, olha o axioma!
Dormir, comer sal juntos, descobrir, inteirar.
Gente caminha pra liberdade.
Vida dribla a azáfama da alheação.

Eterno acorda e dorme no partir do pão.
Gente é parecença, experiência, comunidade com certeza.
Bebe e come bênçãos celebrando,
Gente convive na consistência.

Livre para ir para a cama sem a faina da alheação,
Da amarração que impede o movimento.
Descobrir toada e baile, conhecer e ficar na celebração de Jesus
Axioma e livramento da azáfama da alheação, de escombros e acabamento.

O espectro do vermelho

Uma leitura teológica do socialismo no Partido dos Trabalhadores, a partir de Paul Tillich e Enrique Dussel 

[Apresentação da tese de doutoramento defendida em janeiro de 2006 por Jorge Pinheiro dos Santos].

Desde a primeira República com a chegada dos imigrantes europeus, em especial espanhóis e italianos, surgiram tentativas de construção de um partido operário que tivesse condições de ação político-eleitoral. Mas todas essas tentativas fracassaram. Até mesmo o Partido Comunista, fundado em 1922, por seu posicionamento ambíguo em relação à democracia e por traduzir, durante a longa presença de Josef Stálin na liderança da União Soviética, uma política ditada por interesses externos, mais precisamente do Cominter, não conseguiu ser este partido. Com o final do Estado Novo surgiu o Partido Trabalhista Brasileiro como organização populista, que combinava uma liderança burguesa e pelego-sindical com base eleitoral popular e de trabalhadores urbanos. Mas também não foi o partido operário sonhado pelos militantes socialistas da primeira República. Outra experiência que vale a pena ressaltar foi a do Partido Socialista Brasileiro, fundado por intelectuais e políticos socialistas-democráticos em 1947. Tendo que enfrentar, à esquerda, o Partido Comunista Brasileiro, marxista-leninista, e à direita, o Partido Trabalhista Brasileiro, burguês, o Partido Socialista Brasileiro também não conseguiu construir o sonhado partido operário de massas, com inserção sindical e expressão político-eleitoral.

Por esses motivos, quando no final dos anos 1970 surgiu o Partido dos Trabalhadores, que nucleou amplos setores sindicais e de trabalhadores fabris em todo o país, a esquerda brasileira, com raras exceções, começou a olhar tal fenômeno como algo novo na história brasileira. O sonho tornava-se realidade. Passados 25 anos da fundação do PT, algumas questões são levantadas, todas girando ao redor da pergunta: que partido é esse? É marxista-leninista? É social-democrata? E se é socialista, que socialismo é esse? 

Por isso, as dissertações de mestrado e as teses de doutorado produzidas nos últimos anos sobre o Partido dos Trabalhadores traduziram a preocupação de analisá-lo a partir de leituras sociológicas e históricas. Aqui tivemos outro tipo de preocupação. Todas as dissertações e teses se perguntaram se com o PT estávamos diante de um socialismo de novo tipo. Discutiram o que acontecia no interior mesmo do socialismo, comparando tendências e correntes, ou analisando a importância do sindicalismo na formação desse novo partido. Dessa maneira, nos últimos anos, a academia brasileira produziu excelentes estudos sobre o Partido dos Trabalhadores e suas relações com a esquerda brasileira e o socialismo. Estes trabalhos efetuaram análise qualitativa do papel desempenhado pelos diferentes agrupamentos políticos da esquerda na formação do Partido dos Trabalhadores, abrindo caminho para a compreensão do socialismo e da formação do PT para a história das idéias socialistas no Brasil. 

Mas no conjunto dos estudos acadêmicos ainda são poucas as dissertações ou teses que trabalham a análise do Partido dos Trabalhadores a partir da Teologia. Tal carência na pesquisa acadêmica chamou nossa atenção, pois é fato notório que a Teologia da Libertação e as Comunidades Eclesiais de Base estiveram presentes na formação do PT, quer fornecendo reflexão teórica, quer participando com militantes e ativistas. Era de se perguntar, então, porque tão pouco esforço nesse sentido. E por extensão se era possível compreender o pensamento e a história do PT sem correlacionar suas propostas sociais com a religião e o cristianismo. Por isso fizemos a pergunta se havia uma correlação entre cristianismo e socialismo, onde estariam presentes esses elementos religiosos no socialismo petista e em que sentido dariam um caráter especial ao socialismo proposto? Cremos que a tese ora defendida respondeu tais questões, confirmando esta presença cristã no PT, mas também analisando como influenciou o conjunto da esquerda não-comunista no Brasil. 

Fez parte dos objetivos do trabalho, a partir da história da formação do Partido dos Trabalhadores mostrar como ele surgiu de amálgama de socialismos, soldados ao redor de uma corrente sindical, com apoio de um setor da Igreja católica, em especial das Comunidades Eclesiais de Base. E também foi objetivo da pesquisa analisar como depois da queda do muro de Berlim e da crise do comunismo no bloco soviético, o Partido dos Trabalhadores procurou definir um socialismo petista com cara brasileira. E que nesse trânsito entre socialismo como mito fundante, socialismo real e cristianismo social, o Partido dos Trabalhadores acabou por afirmar a democracia enquanto projeto político central. E assim constatamos que tais mudanças, que levaram à democracia enquanto realpolitik, acabaram por afastar o PT de sua utopia original e, inclusive, da revolução democrática. Assim, a tese ora apresentada procurou preencher a lacuna existente na pesquisa acadêmica referente à construção do pensamento socialista e democrático no Partido dos Trabalhadores.

A justificativa da pesquisa confirmou-se através da utilização de uma documentação oficial que incluiu as resoluções de onze encontros nacionais, dois encontros nacionais extraordinários e dois congressos nacionais. Partimos, então, dessa documentação oficial e da revista trimestral “Teoria e Debate”, que cobrem a história e a produção teórica do partido. A pesquisa explorou também a bibliografia existente em livros, teses, artigos de jornais e revistas, e memórias, enquanto informações e testemunhos que confrontamos com a documentação oficial analisada. Utilizamos, dessa maneira, um farto material para a compreensão do pensamento e ideário do PT como um todo e do pensamento socialista em particular. O desvelamento teológico do ideário do Partido dos Trabalhadores através da leitura dessa literatura nos permitiu uma nova visão acerca do passado, possibilitando entender melhor os envolvimentos presentes. 

Mas além da justificativa científica, foi importante constatar a importância do Partido dos Trabalhadores para a sociedade brasileira, assim como para a política nacional. Em termos sociais, o PT surgiu enquanto organização ligada às classes trabalhadoras da cidade e do campo, polarizando, inevitavelmente, a política nacional. A importância social da tese mostrou tal relevância, ao analisar o papel da religião no próprio crescimento eleitoral do PT.

Um exemplo disso, que na tese foi analisado, é o fato de que o PT atuou sobre o conjunto da sociedade brasileira modificando padrões sociais anteriormente estabelecidos, como, por exemplo, sua inserção nos grotões, através da presença cristã, o que modificou o perfil do voto conservador e de direita dessas áreas. Ora, essa importância social nos direcionou à questão política. Sem mistificar os limites da presença do PT no cenário nacional, vimos que construiu lideranças e desenvolveu nova maneira de fazer política: de diálogo com os setores excluídos e marginalizados da sociedade, em parte esquecida desde os governos de Getúlio Vargas e João Goulart.

A pesquisa qualitativa possibilitou, também, o equacionamento de uma das questões que levantamos: a presença de uma religiosidade cristã invisível que se fez presente no processo de construção do pensamento socialista do Partido dos Trabalhadores e que foi encontrada nos textos oficiais e nos pronunciamentos dos líderes petistas, não enquanto discurso cristão propriamente, mas enquanto consciência religiosa. Tais constatações da pesquisa confirmaram as hipóteses de que o socialismo do Partido dos Trabalhadores tem profundas imbricações com a religião. Ou seja, o desenvolvimento do pensamento socialista dentro do Partido dos Trabalhadores, sem dúvida, pode e deve ter uma leitura teológica. 

Assim, vimos que a Teologia, enquanto hermenêutica dos universos simbólicos, permite uma abordagem do problema do poder, principalmente quando partimos de duas perspectivas fundamentais nessa leitura teológica: a antropológica política, que percebe o simbólico como fundante da vida social, e a ética que, ao dar ênfase às instituições, pensa a relação entre instituições e estruturas políticas. 

Vimos que para Paul Tillich, a distância que separa o ser e a consciência é necessária para que o ser se eleve à consciência. Por isso, consciência supõe não somente uma ligação ao ser, mas também um distanciamento que permita reflexão. Assim, aquele que é confrontado em sua ligação original com um grupo ou com uma classe é chamado a dar consciência a outra classe que não é a sua. E toma como exemplo Marx, que não era proletário, mas rompeu com sua classe de origem e se colocou a serviço de outra. Marx mostrou que a relação entre a situação social e o pensamento político deve se elevar da esfera biográfica para aquela das relações funcionais. Tal realidade leva a palavra princípio a caracterizar de maneira global os grupos políticos, pois deixa de lado a esfera biográfica e permite ao pensamento extrair a multiplicidade de fenômenos que constitui a característica comum a todos os indivíduos.

Normalmente, esta tarefa se cumpre com ajuda do conceito de essência, pois a relação entre essência e fenômeno domina a teoria do conhecimento. Porém a lógica da essência não é suficiente para explicar as realidades históricas. A essência de um fenômeno histórico, como constata Tillich, é uma abstração vazia, de onde se expulsou a força viva da história. Isso leva Tillich a buscar a essência do socialismo na própria história e nos mitos que lhe deram origem, afirmando que o socialismo é um movimento de oposição, um movimento de oposição à sociedade burguesa, mas enquanto mediação uniu-se à sociedade burguesa na oposição às formas feudais e patriarcais de sociedade. Entender esta raiz do socialismo ajudaria a entender as raízes do pensamento político que lhe deu origem. Tillich parte de uma teologia política onde seu referencial primeiro é o ser. Mas para ele, não se pode entender o socialismo caso não se experimente a exigência de sua justiça como uma necessidade incondicional, pois quem não é desafiado pelo socialismo não pode falar do socialismo, a não de forma superficial. Não pode falar dele porque é contrário àquilo que ele defende. É por isso que a leitura teológica de Tillich sobre política e socialismo rompe as bases preconceituosas sobre tal debate e nos possibilitou abordar o assunto, a partir da correlação, sem estigmatizar grupos e movimentos. Logicamente, por olhar a realidade a partir de um momento específico da história, que se dá na Europa, entre as duas guerras mundiais, faltaria nesta abordagem teológica de Paul Tillich o olhar latino-americano que, mesmo reconhecendo as estruturas comuns à história do pensamento político, indicassem novos aspectos e movimentos, entre os quais a presença cristã institucional e invisível na sociedade brasileira. 

Enrique Dussel complementa Paul Tillich através de uma teologia latino-americana que é um pensar sobre Deus, mas um Deus que se revela na história, que se revela através do Outro, que é o mistério incompreensível de nossa liberdade. Para Dussel, crer na revelação de Deus é compreender o sentido da história, que ele nos apresenta através do Outro. Tal compreensão da teologia permite a Dussel analisar como cristianismo e socialismo se relacionaram na história recente da América Latina e do Brasil. Para ele, a relação cristianismo-socialismo começou a ser colocada nos grupos estudantis cristãos, principalmente a partir de 1959 pela revolução cubana, e que o antecedente mais distante aconteceu no Brasil, na época da Juventude Universitária Católica. Segundo Dussel, o pensamento do padre Cardonnel e principalmente de Henrique de Lima Vaz foram adotados como ‘compromisso político’ pela Ação Popular, cujo Documento de Base admitiu a ação revolucionária. Assim, em junho de 1968, o Congresso Nacional da Juventude Operária Católica e da Ação Católica Operária condenou o capitalismo e defendeu a luta de classes, admitindo a análise marxista da realidade social. A partir desse momento, dezenas de grupos cristãos na América Latina aceitaram a estratégia revolucionária dos focos de Che Guevara, como a guerrilha de Teoponte de Nestor Paz Samora, em 1970, na Bolívia. Mas o caso mais conhecido foi o do padre Camilo Torres, morto em 15 de fevereiro de 1966. Com o fracasso da teoria dos focos, a Unidade Popular chilena constituiu-se em novo modelo de transição ao socialismo. E, assim, o cristianismo social ocupou um espaço político até então inédito na história latino-americana e brasileira. 

Os estudos desenvolvidos por Paul Tillich, assim como por Enrique Dussel, nos deram instrumentos para uma compreensão teológica da realidade política brasileira, quer a partir da leitura das raízes antropológicas, no caso de Paul Tillich, quer ética, no caso de Enrique Dussel. E foi a partir das justificativas expostas, e definido o campo motivacional dos autores, que nos armamos de razões instrumentais e referenciais para desenvolver o trabalho ora apresentado. E mais do que isso, levamos em conta a riqueza do momento histórico, tanto em relação à consolidação democrática, quanto em relação às perspectivas de construção do futuro, apesar de ser este um momento de crise ética, que ameaça, sobretudo, a esperança.

A metodologia da tese teve por base uma extensa pesquisa bibliográfica do socialismo brasileiro no período do pós-guerra até a formação do Partido dos Trabalhadores, assim como das correntes socialistas que se fizeram presentes no partido. A metodologia procurou através da pesquisa bibliográfica trazer informações sobre a presença da ética cristã no PT, quer através das correntes católicas ligadas à Teologia da Libertação, quer de grupos evangélicos. Também foi nossa intenção compreender a relação que Tillich e Dussel construíram entre religião, cristianismo e socialismo, e como tais correlações se apresentaram na formação e construção do Partido dos Trabalhadores. Por isso, a metodologia teve por base os escritos socialistas de Tillich, amparados em conceitos que foram por ele construídos no correr de sua vida. A idéia-chave para o trabalho foi o argumento tillichiano de que o socialismo traduz a exigência incondicional de justiça e por isso não pode ser entendido quando separado da ética cristã que lhe deu origem. 

Da mesma maneira, a metodologia reportou a Dussel e seu conceito de religião enquanto infraestrutura, ou seja, enquanto estrutura crítica da totalidade do sistema que oprime, o que dá à religião função histórica essencial. E também ao conceito de analética, que é a afirmação da exterioridade, não somente como negação da negação do sistema desde a afirmação da totalidade, mas como superação da totalidade a partir da transcendentalidade interna ou da exterioridade daquele que nunca esteve dentro. A analética é crítica por isso, é a superação do método dialético negativo, mas não o nega, simplesmente o assume e completa. Para Dussel afirmar a exterioridade é realizar o impossível para o sistema, é descobrir aquilo que surge a partir da liberdade não condicionada, revolucionária e inovadora. Por isso, só através da analética é possível comprometer-se com o outro, a ponto de arriscar a vida na luta pela libertação desse outro, além do que possibilita a justiça do sistema.

Dessa maneira, a partir da metodologia descrita, analisamos a relação entre teologia e socialismo em Tillich e Dussel, focalizando questões como socialismo, democracia e justiça. Tal análise teológica proposta partiu, assim, do universo simbólico cristão e socialista como fundante do pensamento político e da vida militante dentro do Partido dos Trabalhadores, com abordagens do problema do poder em suas relações com estes universos simbólicos. Dessa maneira, a proposta da tese cumpriu seu objetivo ao analisar a relação do cristianismo com a política brasileira através de seus conteúdos simbólicos. 

Nossa hipótese central foi demonstrada: a religião e o cristianismo social foram componentes fundamentais na formação do pensamento socialista no Partido dos Trabalhadores. Essa hipótese -- que teve dois desdobramentos, ao perguntar: qual é o sentido teológico de um partido socialista que se forma desta maneira? E se é possível, teologicamente, demonstrar a importância disso? -- também foi respondida. Pois ficou evidente que um tipo de socialismo religioso teve presença marcante no conjunto do pensamento petista, ao levantar a bandeira da expansão da democracia de participação e a solução de problemas brasileiros historicamente pendentes, como a questão da terra, do trabalho e da liberdade cidadã. Assim, cremos que respondemos através da tese “O espectro do vermelho: uma leitura teológica do socialismo no Partido dos Trabalhadores, a partir de Paul Tillich e Enrique Dussel” aos questionamentos propostos.



O Caminho e o sentido da vida no judaísmo

O sentido da vida e neste sentido o conceito de caminho constitui um questionamento teológico acerca do significado da existência. E vamos fazer uma leitura a partir do pensamento judaico, que consiste na observância das leis divinas e na reverência perante Deus e sua vontade. Para isso apresentaremos um texto do rabino Haym Halevi Doni

Aunque se ha hecho un esfuerzo para resumir algunas de las ideas en las que los judíos siempre creyeron profundamente y que constituyen los principios básicos de fe que han caracterizado al judaísmo a través de las épocas, no me he empeñado en sondear profundamente en la teología judía o en explicar las consideraciones filosofico-religiosas sobre la naturaleza del hombre, de la vida, del bien y del mal, que emanan de las enseñanzas judías y que impregnan su concepción total del mundo. Haber hecho eso hubiera significado ir mas allá del alcance y del objetivo de este libro. Sin embargo, la razón principal por la cual evitare aquí ahondar profundamente en teología es la resumida perfectamente en las palabras de Samuel Belkin, Presidente de la Universidad Ieshivá:

"...Se han hecho muchos esfuerzos para formular un enfoque coherente y sistemático de la teología judía. Sin embargo, todos esos esfuerzos se han revelado infructuosos porque el judaísmo nunca se preocupo demasiado de doctrinas lógicas. Su deseo fue mas bien desarrollar un conjunto de practicas, un código de actos religiosos, que pudiera establecer un modo de vida religioso. Es verdad, que esos actos y practicas emanan de conceptos básicos teológicos y morales, pero tiene gran significado el hecho de que esas teorías teológicas y morales, pero tiene gran significado el hecho de que esas teorías teológicas del judaísmo permanezcan siempre invisibles, que puedan aprehenderse solamente por medio de las practicas religiosas a las que dan nacimiento. Grandes filósofos eruditos rabínicos encontraron de esa manera una mayor medida de acuerdo entre ellos en el minian hamitzvot, (clasificación de los 613 preceptos religiosos que la Torá impone del judío), que en su empeño de presentar el dogma básico judío en formas de artículos de fe... En el judaísmo los artículos de fe y las teorías religiosas no pueden divorciarse de las practicas particulares... La teología del judaísmo esta contenida en gran parte en la Halajá, el sistema jurídico judío que no se ocupa de la teoría sino principalmente de la práctica... (Si pudiera decirse que el judaísmo reposa sobre dos principios gemelos: la soberanía de D’s y el carácter sagrado del individuo... esta filosofía (así como todos sus fundamentos filosóficos) se refleja claramente en la Halajá...."

Halajá es el termino general para la ley judía; también se refiere a la decisión definitiva y autorizada sobre cualquier tema especifico. Esta basada primordial y fundamentalmente en las ordenanzas bíblicas y en los mandamientos de la Torá escrita y oral, como también en toda la legislación y disposiciones rabínicas, incluyendo las decisiones juridico-religiosas transmitidas a través de las épocas en formas de respuestas y comentarios de grandes e importantes sabios rabínicos. Todo este conjunto sirve de base autorizada y proporciona los antecedentes legales para el proceso interrumpido de la adopción de decisiones legales-religiosas hasta nuestros mismos días. La palabra Halajá en si, significa: "el camino por el cual uno marcha". La Halajá es practica, no teórica. La Halajá es legalista, no filosófica. Aunque la fe es la base a partir de la cual la Halajá se desarrolla, coloca su mayor énfasis en los actos. La Halajá se ocupa de la aplicación adecuada de los preceptos (mitzvot) en toda situación y circunstancia. (Los preceptos de origen bíblico no pueden ser modificados en esencia, aquellos de origen rabínico pueden ser modificados en ciertas circunstancias y condiciones por estudiosos competentes y autorizados). La Halajá exige un compromiso en la conducta. Ella trata con obligaciones éticas y deberes religiosos.

En su carácter de sistema jurídico judío, la Halajá cubre todos los aspectos y relaciones de vida del mismo, tanto entre el hombre y su semejante como entre el hombre y D’s. De esa manera, la Halajá se ocupa no solo de aquellas áreas consideradas generalmente como pertenecientes a la esfera del ritual y de la religión, sino también de aquellas que, generalmente los sabios no judíos asignan a las esferas de la moral o de la ética o a la ley civil o criminal.

Así como la Halajá lo abarca todo, puede afirmarse también que la religión judía lo abarca todo. No existe ningún área en la esfera de la conducta humana de la cual no trate o no ofrezca guía. Si se da por entendido que cada aspecto de la vida es considerado sujeto a las directivas establecidas por la Halajá, no puede considerarse entonces, que la religión judía –cuando sea observada correctamente- llene solo alguno de los múltiples aspectos de la vida, o que sea distinta y este separada de otras áreas de la misma existencia y preocupaciones del hombre. Los hábitos alimenticios de una persona, su vida sexual, su ética comercial, sus actividades sociales, sus diversiones, sus manifestaciones artísticas, todo esto se encuentra bajo la cobertura de la ley religiosa de los valores religiosos y de las directivas espirituales del judaísmo. La religión judía no se disocia de ningún aspecto de la vida y no limita su preocupación solamente a los actos rituales que tienen un significado místico en un mundo sobrenatural. Observada con plenitud y correctamente, la religión judía es en si la vida misma y provee de valores para guiar toda la existencia.

Esta es la naturaleza de la tradición religiosa transmitida al judío. Por eso es que los Profetas de Israel predicaron y lucharon con tanto fervor en pro de la justicia social y por la eliminación de la pobreza como por la santidad del Shabat y la abolición de la idolatría. Es verdad, todos los libros sobre el judaísmo enfatizan el hecho de que el judaísmo es una forma de vida; que es acción, no solamente un culto. Aunque no se minimiza el papel central que desempeña la doctrina, sin lugar a dudas, el énfasis es puesto sobre los actos. La esencia de la fe judía no se ha cultivado sobre hipótesis doctrinales o declaraciones dogmáticas, sino en la aplicación practica de la Torá, mitzvot maasiot (preceptos prácticos).

"...Las verdades conceptuales del judaísmo y sus valores significan muy poco si no se las traduce en una forma de vida. La Halajá es el medio por el cual los conceptos y los valores se aplican a la vida cotidiana. La Halajá señala los métodos para la concretización de la teoría, de los principios, del credo..."

La Halajá, enfocada en la ejecución y cumplimiento de los preceptos (mitzvot) sirve para concretizar lo que, de otra manera, yacería en la esfera de la abstracción, a la vez que sirve para santificar lo que de otra manera quedaría en la esfera de lo mundano.

Ernst Simon, de la Universidad Hebrea de Jerusalem, ofrece una explicación equilibrada del por que de la observancia de la Halajá por el judío moderno. Dice que:

"...Existe una relativa identidad entre la fe y el pueblo, y esta identidad relativa solo puede establecerse y mantenerse por medio de una forma de vida santificada. La Halajá es nuestro único medio para establecer y mantener esta forma de vida santificada...2

Sobre todo, dice Simon:

"... La Halajá puede tener una profunda pertinencia para el judío moderno porque formula y representa una actitud hacia la vida que enfatiza la necesidad de restituir el intelecto a una sociedad que es en parte anti-intelectual, de disciplinar a un mundo entregado en parte al libre albedrío, de orientar y dar un sentido de dirección a un caos de excesiva información y de una religión nacional frente a las incursiones del misticismo y el oscurantismo..."

Tal como lo afirma Louis Ginzberg:

"Solamente en la Halajá se encuentra expresada exacta y adecuadamente el pensamiento y el carácter del pueblo judío".

Seymour Siegal lo expresa muy bien:

"No seguimos siendo judíos solo porque seamos miembros de una sociedad filosófica con elevados principios (aunque es un motivo de orgullo y un reto, perpetuar y profundizar el legado de ideas y de conceptos que hemos heredado). Seguimos siendo judíos porque somos parte de la comunidad de Israel, que ha aceptado vivir su vida como una comunidad separada, por siempre, obedeciendo a D’s. Sin lugar a dudas algunas ideas derivan de esta premisa. Mas nuestra existencia esta definida por el hecho del Pacto (con su necesaria implicación de la Torá y la Halajá, o la Ley); noesta definida únicamente por ideas.

Algunos círculos expresan el temor de que la estricta adhesión a la Halajá, sin que este acompañada por una profunda fe y sentimientos espirituales, quede reducida a una forma de behaviorismo desprovista de toda dimensión y calidad espiritual. Sin embargo, ese temor no justifica que se disminuya la obligación de la Halajá ; por el contrario, enfatiza la necesidad de acentuar la calidad espiritual de todos los actos. Desde hace mucho tiempo los rabinos reconocieron el problema y trataron de solucionarlo cuando enseñaron, por ejemplo, que : "no hagas rutina de tus plegarias..." (Pirkei Avot 2 :18). El hecho de que un acto pueda culminar en un extremismo indeseable, no justifica la anulación del mismo. Debe controlarse el abuso sin eliminar la esencia del acto.

Incluso Abraham Joshua Heschel, un notable exponente del punto de vista que destaca el espíritu interior del hombre (al que él llama la esfera de la Agadá), se opone enérgicamente a todos aquellos que confinan al judaísmo exclusivamente a la Halajá, insistiendo en que :

De hecho, la forma mas segura para abandonar la Agada (fe, interiorización) es abolir la Halajá. Sin la Halajá, la Agada pierde su sustancia, su carácter, su fuente de inspiración, su defensa contra el peligro de la secularización. Por medio de la interiorización solamente no nos acercamos a D’s. Las mas puras intenciones, la devoción mas profunda, las mas nobles aspiraciones espirituales, son vanas cuando no se realizan en la acción.

Al igual que todos los sistemas legales basados en una "constitución" o en algún otro código de leyes, también la Halajá permite a menudo diferencias de opiniones y diferencia de comportamiento, particularmente en las áreas que no afectan la esfera de la Ley Divina de la Torá. Pero todos los diferentes dictámenes de carácter religioso adoptados por estudiosos competentes, deben ser susceptibles de justificarse y defenderse de acuerdo a las reglas de interpretación de la Halajá. Deben basarse en la mas pura enseñanza religiosa. De estas diferencias de opinión, dicen nuestras fuentes religiosas que "las unas y las otras son las palabras del D’s viviente", porque ambas emergen de la fe en ese D’s y del sincero deseo de cumplir la voluntad de ese D’s. Existe una gran diferencia entre el estar en desacuerdo sobre lo que la Torá y la tradición requieren de nosotros cuando se deben resolver problemas, y el franco abandono de la autoridad y la jurisdicción de la Torá y de la Halajá. Esta ultima actitud aleja a una persona de los limites legítimos del judaísmo.

La Halajá es el camino judío para asegurar y perpetuar la forma de vida judía. Si se abandona o se rechaza la Halajá, desaparece también lentamente esa forma de vida y con esa desaparición se desvanecen los valores característicos y apreciados por el judaísmo. Esto no ocurre de inmediato, toma de una a dos generaciones, pero ocurre. Es el proceso conocido como la asimilación. Comienza cuando los judíos rechazan el carácter obligatorio de la Halajá y finaliza con la desaparición del judaísmo. Esto no es especulación o polémica sino un hecho histórico que, por desgracia, se repitió una y otra vez en muchas condiciones y circunstancias diferentes. Donde las observancias distintivas del judaísmo desaparecían, solo una amenazante crisis de antisemitismo constituía el único factor que retardaba la total asimilación física del pueblo judío.

Rabbi Haym Halevi Donin

To Be A Jew: A Guide To Jewish Observance In Contemporary Life [Paperback].