mercredi 11 juin 2014

Marxismo e socialismo religioso

Para muitos, a concepção materialista da história nega a possibilidade dessa aproximação. Mas se entendemos que em Marx esta concepção de fato não é materialista, mas econômica, conforme afirma Tillich, vemos que ela mostra somente uma relação de causalidade entre fundamento econômico e organização espiritual da cultura.[1] E, ao contrário, tal fundamento dá as ciências do espírito uma possibilidade metodológica fecunda, que não tem nada a ver com ateísmo ou materialismo. As doutrinas de Marx sempre foram discutidas com seriedade como parte da fundamentação teórica do socialismo religioso. E na maioria dos casos, como resultado disso, muitos religiosos rejeitaram o marxismo, enquanto outros o aceitaram parcialmente ou até mesmo transformaram essencialmente as doutrinas de Marx. Mas para Tillich, é importante que a fé enquanto experiência da incondicionalidade apóie a vontade de dar forma ao mundo e a livre do vazio de uma simples tecnificação do mundo. Assim, o espírito religioso estaria vivo no movimento socialista, enquanto vibração religiosa que circula através das comunidades. E essa santificação da vida cultural no socialismo, para o teólogo, é uma herança cristã, que lhe transmite coragem e vida.

Ao buscar as raízes antropológicas do socialismo, Tillich achou um aliado nos textos do jovem Marx, especialmente nos Manuscritos econômico-filosóficos de 1844, publicados por J. P. Mayer e Siegfried Landshut, dois colaboradores do Neue Blätter für den Sozialismus, jornal socialista religioso co-editado por Tillich.[2] Ele descobriu o Marx humanista, que contrasta com o Marx da maturidade, voltado para a leitura econômica da realidade.[3] Porém, resistiu à tendência de lançar um contra o outro, afirmando que o Marx real deve ser visto no contexto de seu próprio desenvolvimento. Mas, há uma razão para se fazer a crítica teológica de Marx, e esta é exatamente a impressionante analogia estrutural existente entre a interpretação profética e a interpretação marxiana da história. Para Tillich, a resistência ao impacto da catástrofe histórica é tarefa profética, que deve elaborar uma mensagem consciente, de esperança. Nesse sentido, o princípio profético envolve um julgamento e relaciona este julgamento com a situação humana inteira, não deixando de lado nenhum aspecto da existência. O espírito crítico da profecia leva, sob o capitalismo, ao princípio da autonomia protestante. O que fica óbvio, em situações-limite, que ameaçam à vida. E porque a situação do proletariado não é algo opcional, que podemos considerar ou não; Tillich diz que devemos nos perguntar, se “o socialismo não representa certo tipo religioso especial, originado no profetismo judaico que transcende o mundo dado e vive na expectativa de uma ‘nova terra’ — simbolizada na sociedade sem classes, numa época de justiça e paz”.[4]

O princípio profético e Marx partem de interpretações capazes de ver sentido na história. Para essas duas leituras da realidade, a história vai na direção de um alvo, cuja realização dará sentido a todos os eventos vividos. E se a história tem um fim, tem também um começo e um centro, onde o sentido da vida se torna visível e possibilita a tarefa de interpretação, tanto do profeta como do militante socialista. Assim, para o profetismo e para o pensamento marxiano, o conteúdo básico da história encontra-se na luta entre o bem e o mal. As forças do mal são identificadas como injustiça, mas podem ser derrotadas. Esta interpretação cria nos dois casos certa atmosfera escatológica, visível na tensão da expectativa e no direcionamento para o futuro, coisa que falta completamente em todos os tipos de religião sacramental[5] e mística. O profetismo e o marxismo atacam a ordem vigente da sociedade e a piedade pessoal como expressões do mal universal num período específico.[6] Ora, há um desafio ético, apaixonado, como afirma Tillich, das formas concretas de injustiça, que levanta um protesto, o punho ameaçador, contra aqueles que são responsáveis por este estado de coisas. Assim, o espírito profético e Marx colocam os grupos governantes sob o julgamento da história e proclamam a destruição desses grupos. Tanto o profetismo como o pensamento marxiano acreditam que a transição do atual estágio da história em direção a uma época de plena realização se dará através de uma série de eventos catastróficos, que culminará com o estabelecimento de um reino de paz e justiça. Dessa maneira, o espírito profético e o marxismo são portadores do destino histórico da humanidade e agem como instrumento desse destino por meio de atos livres, já que a liberdade não contradiz o destino histórico. Mas, a analogia estrutural entre o espírito profético e o pensamento de Marx não se limita à interpretação histórica, mas se estende à própria doutrina do homem. É uma semelhança, inclusive, que vai além de uma cosmovisão profética do homem, que se apresenta como doutrina cristã do homem.

O ser humano, para Marx, não é o que deveria ser, sua existência real contradiz seu ser essencial. Marx nos Manuscritos econômico-filosóficos de 1844 escreve: "quanto mais produz o operário com seu trabalho, mais o mundo objetivo, estranho que ele cria em torno de si, torna-se poderoso, mais ele empobrece, mais pobre torna-se seu mundo interior e menos ele possui de seu". Ao partir de sua preocupação central, o estudo da economia política de seu tempo, Marx diz que "a miséria do operário está em razão inversa do poder e da grandeza de sua produção".[7] Mais produz, maior é a sua miséria. Assim, a produção não faz apenas do ser humano mercadoria (a mercadoria humana), mas o faz também ser espiritual e fisicamente desumanizado... Se o desenvolvimento das forças produtivas ao mesmo tempo em que desenvolve as possibilidades humanas cria a reprodução da desumanidade, evidenciam-se os limites antropológicos e existenciais de tal desenvolvimento, já que toda relação social não se dará apenas através de uma elevação espiritual, mas de movimentos que deixam em aberto as possibilidades para a própria destruição do humano. A idéia da queda está presente no marxismo. Já que se o ser humano não caiu de um estado de bondade original, caiu de um estado de inocência primária. Alienou-se de si mesmo, de sua humanidade. Transformou-se em objeto, instrumento de lucro e quantidade de força de trabalho.

Para o cristianismo, como sabemos, o ser humano alienou-se de seu destino divino, perdeu a dignidade de seu ser, separou-se de seus semelhantes, por causa do orgulho, da desesperança, do poder. O cristianismo e o pensamento marxiano concordam que é inviável determinar a existência humana de cima para baixo, por isso a existência histórica é determinante na construção da antropologia. A analogia entre cristianismo e marxismo vai mais longe ainda. Vêem o ser humano como ser social, e que por isso o bem e o mal praticados não estão separados de sua existência social. O indivíduo não escapa dessa situação. Faz parte do mundo caído, não importando se a queda se expressa em termos religiosos ou sociológicos. Tem a possibilidade de fazer parte do novo mundo, não importando se o concebemos em termos de transformação supra-histórica ou infra-histórica.[8] Dessa maneira, a idéia de verdade tanto no cristianismo como no marxismo vai além da separação entre teoria e prática. Ou seja, a verdade para ser conhecida deve ser feita. Vive-se a verdade. Sem a transformação da realidade não se conhece a realidade. Donde a capacidade de conhecimento depende da situação de conhecimento em que se está. E apoiando-se no apóstolo Paulo, Tillich explica que só o “homem espiritual” consegue julgar todas as coisas, da mesma maneira aquele que participa da luta do “grupo eleito” contra a sociedade de classe consegue entender o verdadeiro caráter do ser. Assim, com a deformação da existência histórica, praticamente em todas as esferas, torna-se muito difícil a percepção da condição humana e do próprio ser, por isso a presença da igreja e do proletariado na luta é o lugar onde a verdade tem mais condições de ser aceita e vivida.

O auto-engano e a produção de ideologias surge como inevitáveis em nossas sociedades carentes de sentido, a não ser naqueles pequenos grupos que enfrentam suprema angústia, desespero e falta de sentido. A verdade então aparece e pode ser vivida, porque os véus ideológicos foram rasgados. Mas, alerta Tillich, a verdade pode se transformar num instrumento de orgulho religioso ou de vontade de poder político. Em tudo isso o cristianismo e o marxismo estão juntos em oposição ao otimismo pelagiano ou de harmonia em relação à natureza humana.[9]

Segundo Tillich, não podemos ver o pensamento de Marx como se fosse uma coisa do passado, quando aceitamos o espírito profético enquanto socialistas religiosos. O socialismo religioso se quiser continuar a ter sentido não pode se transformar numa justificativa ideológica das atuais democracias, nem num idealismo progressivo ou num sistema de harmonia autônoma. O socialismo religioso dentro do espírito do profetismo e com os métodos do marxismo é capaz de entender e transcender o mundo atual.[10] Mas até que ponto a metodologia marxiana e uma hipotética conquista do poder político poderiam dar sentido à vida? Na verdade, por ser marxista, tal metodologia não entende que a corrupção também está localizada nas profundezas do coração humano. Por isso, o alerta de Tillich, sobre as diferenças entre espírito profético e marxismo, cresce em importância e deve ser ressaltado.[11]

O socialismo religioso, diz Tillich, sempre entendeu que as forças demoníacas da injustiça e da vontade de poder jamais serão plenamente erradicadas da cena histórica. O socialismo religioso acredita que a corrupção da situação humana tem raízes mais profundas do que as meras estruturas históricas e sociológicas. Estão encravadas nas profundezas do coração humano.[12] “Como Kierkegaard, Marx fala da situação alienada do homem na estrutura social da sociedade burguesa. Empregava a palavra alienação (entfremdung) não do ponto de vista individual, mas social. Segundo Hegel essa alienação significa a incursão do Espírito absoluto na natureza, distanciando-se de si mesmo. Para Kierkegaard era a queda do homem, a transição, por meio de um salto, da inocência para o conhecimento e para a tragédia. Para Marx era a estrutura da sociedade capitalista”.[13] Por isso, considera que a regeneração da humanidade não é possível apenas mediante mudanças políticas, mas requer mudanças na atitude das pessoas em favor da vida. Assim, para o socialismo religioso[14], o momento decisivo da história não é o surgimento do proletariado, mas o aparecimento do novo sentido da vida na automanifestação divina. Essa diferença tem extrema importância, mas de nenhuma maneira – pensa o teólogo -- impede a inclusão de elementos básicos da doutrina marxista da história e do ser humano no cristianismo profético.

Quanto às organizações socialistas, é necessário ver que têm uma atitude em relação ao cristianismo e uma outra em relação às estruturas hierárquicas da Igreja.[15] A história da Igreja tanto no passado, como no presente, é passível de muitas críticas. Suas opções e alianças fizeram como que se afastasse e dificultasse seu relacionamento com parte da população excluída de bens e possibilidades. Tal situação facilita e potencializa a pregação do ateísmo e do materialismo. Mas, ao contrário do que pode parecer, não podemos dizer que o ateísmo materialista seja um fenômeno constitutivo do socialismo. Para Tillich, é uma herança da cultura burguesa, crítica e cética.[16] Essa herança foi adotada pelo socialismo sob a crença de que ajudaria a extirpar a idéia de opressão e abriria o caminho para a construção de um novo mundo, mais justo e digno.

Notas

[1] Paul Tillich, “Christianisme et Socialisme I”, op.cit., p. 6. 
[2] Franklin Sherman, “Tillich’s Social Thought: New Perspectives”, Christian Century, 25.02.1976, pp. 168-172. 
[3] Paul Tillich, Aux frontières, Esquisse autobiographique (1936), Entre l´idéalisme et le marxisme, op.cit., p. 56. 
[4] Paul Tillich, A Era Protestante, op. cit., p. 194. 
[5] Ikonga Wetshay, “Théorie de la religion, théorie sociale et théorie de la culture: une homologie de structure chez Paul Tillich”, in Marc Boss, Doris Law, Jean Richard (ed.), Mutations religieuses de la modernité, Actes du XIVe. Colloque International Paul Tillich, Marselha, 2001, Hamburgo, Londres, LIT, 2002, p. 199. 
[6] Paul Tillich, A Era Protestante, op. cit., p. 268. 
[7] Karl Marx, Manuscritos econômico-filosóficos de 1844, in Economia, Política e Filosofia, Rio de Janeiro: Melso, 1963. 
[8] Paul Tillich, A Era Protestante, op. cit., p. 269. 
[9] Paul Tillich, A Era Protestante, op. cit., p. 269. 
[10] Paul Tillich, A Era Protestante, op. cit., p. 274. 
[11] Paul Tillich, “La lutte des classes et le socialisme religieux” in Christianisme et Socialisme, Écrits socialistes allemands (1919-1931), Paris, Genebra, Québec: Les Éditions du Cerf, Éditions Labor et Fides, Les Presses de l’Université Laval, 1992, pp. 382-385. “ Klassenkampf und religioser Sozialismus”, Christentum und soziale Gestaltung, Gesammelte Werke II, EvangelischesVerlagswerk Stuttgart, 1962, pp. 175-192. Trad. fr. Nicole Grondin e Lucien Pelletier. 
[12] Paul Tillich, A Era Protestante, op. cit., p. 271. 
[13] Paul Tillich, Perspectivas da Teologia Protestante nos séculos XIX e XX, São Paulo, ASTE, 1999, p. 193. Perspectives on 19th and 20th century protestant theology, Ed. Carl E. Braaten, Nova York, Harper and Row Publishers, Inc., 1967. Tradução de Jaci Maraschin. 
[14] “Sob todos os aspectos, o socialismo religioso quer aprofundar a crítica, trazer à tona as questões últimas e decisivas; ele se faz mais radical e mais revolucionário que o socialismo, porque vê a krisis do ponto de vista do incondicionado”. Paul Tillich, “Kairos I”, Christianisme et Socialisme, Écrits socialistes allemands (1919-1931), op. cit., p. 159. 
[15] Paul Tillich, “Christianisme et Socialisme I”, op.cit., p.6. 
[16] Paul Tillich, “Christianisme et Socialisme I”, op. cit., p.7.

Fonte
Jorge Pinheiro. Teologia e Política, Paul Tillich, Enrique Dussel e a Experiência Brasileira,  São Paulo, Fonte Editorial, 2006, pp. 54-60.

mardi 3 juin 2014

Escolha e destino

Por uma teologia evangélica da vocação
Jorge Pinheiro

“Pois sabemos que todas as coisas trabalham juntas para o bem daqueles que amam a Deus, daqueles a quem ele chamou de acordo com o seu plano. Porque aqueles que já tinham sido escolhidos por Deus ele também separou a fim de se tornarem parecidos com o seu Filho. Ele fez isso para que o Filho fosse o primeiro entre muitos irmãos. Assim Deus chamou os que havia separado. Não somente os chamou, mas também os aceitou; e não somente os aceitou, mas também repartiu a sua glória com eles”. Romanos 8. 28-30.

Introdução

É difícil entender a profundidade do capítulo oito da epístola de Paulo aos Romanos se não entendemos a religiosidade helênica e seu conceito de destino. 

A antiga religião dos deuses olímpicos, explica Naécia Simões, após a dissolução da pólis, deixou um vazio que as correntes filosóficas do mundo greco-romano procuraram preencher com maior espiritualidade, nos termos de uma necessidade religiosa não racional. Quando apareceu o cristianismo, tornou-se conveniente e necessário à mentalidade pagã “examinar esta fé que reúne adeptos tão fieis, avança por todas as terras e, curiosamente, com recursos intelectuais emprestados à própria tradição clássica, parece aplicar com eficiência as formas necessárias para fazer-se entender por todos, gentios e cristãos”.[1]

Para homens e mulheres da época de Paulo a questão do destino era tema crucial, porque acreditavam que deuses e demônios se divertiam com o sofrimento humano. E esse viver manipulado por deuses e demônios, os gregos e romanos chamavam de destino. Teologicamente, dentro da cosmovisão helênica, destino pode ser definido como potência misteriosa e personificada que rege o devir universal, incluindo o curso da história humana, sem qualquer possibilidade de intervenção da vontade ou da previsão do ser humano. O destino era entendido como uma lei cega, fixada de antemão, que não se conhece e sob a qual todos estão sujeitos e dela não conseguem escapar. Traduzia uma negação, a impossibilidade da liberdade humana. Um bom exemplo é Édipo, o herói da tragédia grega.

A partir do destino demoníaco, o mundo helênico criou uma teologia de culpa e castigo, onde um profundo pessimismo atravessava o pensamento religioso da época, tanto no mitraísmo, quanto nos cultos de mistério. 

O mitraísmo tinha como centro o culto ao deus Mitra, visto como intermediário entre os seres humanos e o Deus supremo. Havia nesta colocação algo similar ao credo cristão, com o qual concorreu, principalmente no terceiro século, ao tempo do Império Romano. Forte concorrente da fé nascente, por suas afinidades, o mitraísmo deixou fortes marcas de sua influência sobre as duas primeiras faces do cristianismo: o romano e o ortodoxo.

As religiões de mistério, místicas e de cultos extáticos, criavam nos seus devotos uma atitude muito propícia para a pregação cristã, porque alertavam para o fato de que por si só nenhuma criatura pode chegar a Deus. Mas esta verdade, sem a componente da graça, desembocava num labirinto: o que fazer? Mas, se por um lado, fatores propícios possibilitaram o diálogo, por outro também deixaram marcas nas correntes místicas do cristianismo medieval e moderno. Muitos teólogos entenderam esse processo. Tillich, por exemplo, em suas reflexões, nunca deixou de lado os aspectos universalizantes do fenômeno místico. “Essa preocupação com o místico aparece também nos textos editados de suas aulas sobre a história do pensamento cristão e dos movimentos teológicos dos últimos dois séculos. Por isso ele ressaltou as religiões de mistério na elaboração da teologia cristã primitiva”.[2]

Ameaçado pelo destino demoníaco, o mundo helênico ansiava por um destino salvador, necessitava graça. E essa é a discussão que Paulo entabula com a religiosidade helênica no capítulo oito de Romanos.

A liberdade do cristão

Em sua carta aos Romanos, Paulo analisa três questões centrais: do capítulo primeiro ao oito fala da justificação pela fé; do capítulo nove ao onze discute a separação temporal dos judeus e a inclusão dos gentios ao povo de Deus, e do capítulo doze ao dezesseis apresenta exortações práticas.

Ao analisar a justificação, Paulo mostra que a libertação humana repousa sobre a fé, proveniente da graça de Cristo e não de aspectos externos, seja a lei de Moisés ou os principados e potestades, o mundo do zodíaco e deuses e demônios da religiosidade helênica. Essa misericórdia de Deus não provém de aspectos externos, estejam eles no céu ou na terra, na vida ou na morte, porque o homem, em sua natureza, não tem como responder às exigências de Deus.

A graça provém de Cristo, que no seu amor e sacrifício, perdoa a alienação humana. A liberdade da vida cristã, que é espontaneidade e criatividade diante da lei, e vitória diante de principados e potestades, do mundo do zodíaco e de deuses e demônios, não depende do próprio homem, nem do que ele possa fazer, mas daquilo que Cristo fez por ele.

Temos no trecho em análise (Rm 8.28-30) dois blocos: um maior, que é o capítulo oito inteiro, cuja temática é a da vida cristã sob a lei do Espírito; e um bloco menor, 28-30, que trata do chamado e vocação do cristão. 

O bloco maior nos dá a linha de pensamento de Paulo: uma seqüência de análises sobre a vida: emancipada (versos 1-11), exaltada (12-17), esperançosa (18-30) e exultante (31-39). Dessa maneira, no capítulo oito, o apóstolo traça o curso da vida cristã, na qual a graça triunfa sobre o destino demoníaco e os crentes experimentam a liberdade cristã.

É interessante notar que o texto de Romanos oito, em grego, começa com dois advérbios intercalados por uma partícula ilativa, que poderíamos traduzir: "Atualmente, por isso, nada em absoluto” pode condenar aqueles que estão em Cristo Jesus. 

Essa partícula ilativa, que é um conectivo, está relacionada ao capítulo sete, onde Paulo mostra que lei e pecado[3] não são sinônimos, e que há uma grande diferença entre a natureza da lei e a natureza humana, entre o que é Espírito e o que é carnal. O corpo, com os membros que o compõem (7.24), interessa a Paulo enquanto instrumento da vida. Submetido à tirania da carne (7.5), à alienação e à morte (6.12+; 7.23), Paulo clama: quem me livrará? E dá "graças a Deus, por Jesus Cristo, nosso Senhor" (7.25). É a partir desse clímax, que o apóstolo dá seqüência ao texto, informando que "por isso", "hoje", "nada em absoluto" pode condenar os que estão em Jesus Cristo.

É a partir desta hermenêutica, delineada nos passos apresentados neste trabalho, que o trecho de Romanos 8.28-30 deve ser interpretado. Teremos, então, uma melhor compreensão daquilo que o apóstolo Paulo chama de "a lei do Espírito da vida em Jesus Cristo" e de sua importância no caminhar do cristão.

A dimensão trinitária

Escolha, chamado, vocação, missão e destino são conceitos cujos conteúdos têm núcleos de compreensão que se cruzam e se completam. Para entender tais conceitos, e em especial o de vocação, que Paulo apresenta em Romanos, vamos partir da relação existente entre a igreja e o relacionamento expresso na Trindade. 

A igreja é unidade, diversidade e comunhão da comunidade cristã que traduz a unidade, diversidade e comunhão do Pai, Filho e Espírito Santo. Nesta linha de raciocínio, o Pai é o horizonte último, o Filho é a exemplaridade definitiva de como corresponder ao Pai, e a vida no Espírito é o ser cristão concreto. 

Nesse sentido, explica Sobrino, a tarefa mais urgente da Cristologia, por causa da declaração doutrinária de que Cristo é o Filho de Deus, “não consiste tanto em re-interpretar in recto o dogma cristológico, o que continua sendo uma tarefa importante, e sim se re-situar o caminho do crente para que sua vida seja pro-seguimento de Jesus e assim ela seja também o processo de sua filiação concreta”.[4]

Por isso, muda também a relacionaridade da igreja com o mundo: a igreja não é mais o lado adulto, completo, da secularidade, mas sinal e instrumento, memorial para a libertação integral de homens e mulheres[5]. A partir desta compreensão devemos entender o sentido eclesial da vocação de pastores, ministros e missionários, e o sentido secular da vocação de trabalhadores, profissionais e empresários, enquanto pessoas chamadas à comunhão com a Santa Trindade de Deus. Cada vocação está ligada ao desígnio do Pai, à missão do Filho e à obra do Espírito Santo.

Esta dimensão trinitária da escolha e chamado mostra a ligação que existe entre a vocação, a vida e a espiritualidade[6]. Escolha e chamado direcionam a um relacionamento pessoal com Deus vivido no interior de uma comunidade concreta. A escolha é psiu de Deus. O chamado inicia um diálogo que pode levar a um encontro com Ele. Mas vocação é uma sedução, uma conquista do coração por parte de Deus, para uma vida de intimidade, de comunhão com Ele. É um casamento.

Por ser um relacionamento de intimidade com a Trindade, a vocação implica em santidade, plenitude da vida cristã e perfeição do amor. Vocação é, então, comportar-se como o Pai se comporta. A santidade é uma prerrogativa de Deus. Deus é santo porque é totalmente diferente dos seres humanos e do mundo, porque ama e acolhe as pessoas. 

Somos chamados a participar da santidade divina. A santidade consiste em ser perfeito no amor e o amor é o distintivo dos cristãos. Ser santo significa fazer a diferença, responder aos desafios de cada época num serviço sem medidas. Mas esta mesma santidade é vivida de formas diferentes em razão da diversidade dos dons, dos serviços e dos ministérios.

Quando partirmos de Romanos 8.28, -- “sabemos que todas as coisas trabalham juntas para o bem daqueles que amam a Deus, daqueles a quem ele chamou de acordo com o seu plano” – vemos que em Deus todas as coisas, circunstâncias, projetos e sonhos, trabalham juntas para cumprir um propósito, dentro de um plano de Deus.

Por isso, vocação não é isolamento, mera busca de satisfações ou realização pessoal. Não é apenas construção de projetos pessoais, mas dar a vida pela defesa da vida. Vocação é amar, é servir, é relacionar-se com a Trindade, a partir do encontro, da relação com o próximo. É responder ao chamado inserindo-se na vida da comunidade. É tomar parte ativa na construção do Reino. 

Na vocação somos comunidade, participamos na vida e na missão da igreja. Estes são elementos que não podem ser esquecidos, nesta contemporaneidade marcada pelo individualismo.

Vocação enquanto chamado à comunhão e participação nos leva a descobrir, como elemento essencial do chamamento, a vida de fraternidade. Faz parte da vocação o compromisso de reproduzir na igreja e no mundo o tipo de relacionamento que existe na Trindade de Deus. A participação na comunhão trinitária exige comunhão fraterna entre nós. Não pode ser sincero um relacionamento de comunhão com Deus quando não se traduz no relacionamento com os irmãos. 

Não é autêntica a vocação que não se abre à solidariedade. A Trindade permanece como modelo da comunhão que deve brotar da vivência da nossa vocação. Esta vida de comunhão é o que dá autenticidade a nossa vocação. Ela é o sinal mais claro de que estamos vivendo realmente numa intensa comunicação com a Trindade.

Humanos e cristãos

O capítulo 8.29 de Romanos nos diz que “aqueles que já tinham sido escolhidos por Deus ele também separou a fim de se tornarem parecidos com o seu Filho. Ele fez isso para que o Filho fosse o primeiro entre muitos irmãos”. Ou seja, fomos escolhidos e chamados pela graça para sermos parecidos com seu Filho, realizarmos um serviço, uma missão.

Devemos ser imagem do Pai, imagem do Filho, imagem do Espírito, e é isto que faz com que a vocação seja comunhão com a Trindade, que se traduz na experiência do cristão na igreja e no mundo. Segundo teólogos como Bonhoeffer e Schillebeeckx, a pergunta humana da experiência deve sempre ser posta em correlação com a resposta da fé. Essa correlação só é obtida se a pergunta humana pode ser configurada como pergunta que tenha sentido, a respeito da realidade e da experiência, à qual se segue uma resposta humana que tenta articular um sentido, mas que recebe somente da resposta cristã uma superabundância de sentido, um sentido último e definitivo.[7] Quando falamos de vocação, tal correlação pode ser traduzida em três dimensões, que marcam a vida do vocacionado. Nenhuma destas dimensões subsiste em separado, mas estão correlacionadas.

Para Oliveira[8], a primeira dessas dimensões, a humana, é o chamado a ser pessoa humana. Isto quer dizer que, antes de qualquer coisa, o vocacionado tem que ser gente, com todas aquelas qualidades que caracterizam o ser humano enquanto imagem de Deus. Uma atenção particular deve ser dada à capacidade de relacionar-se bem com as demais pessoas, já que a pessoa humana foi criada por Deus como ser social. Como já vimos acima, a vocação é sempre dialogal. Ela só se concretiza nas relações interpessoais, sejam elas as da família, da amizade, das comunidades pequenas ou grandes de que participa o ser humano. Não é possível falar de vocação, deixando de lado as exigências da natureza humana. 

A segunda dimensão, a cristã, é o chamado a viver a santidade através de uma participação ativa na vida da comunidade. É o viver em comunhão com Cristo na comunhão e cooperação com os demais. Esta dimensão da vocação se traduz numa tríplice missão: profética, sacerdotal e real.[9] Isto leva à dignidade de todas as vocações e de todos os membros do corpo de Cristo. Existe uma variedade de vocações, de dons, mas todos possuem a mesma dignidade. Ninguém é superior a ninguém, ninguém é melhor do que ninguém. Isto mostra que, em Cristo, a partir do serviço e da obediência, todos temos a mesma missão. 

A terceira dimensão, a particular, é toda vocação, que mesmo sendo vivida na comunidade e a serviço da comunidade, é personalizada.[10] Cada cristão responde a escolha e chamado do Pai de acordo com os dons recebidos do Espírito Santo. A vocação particular é a forma concreta que permite a cada cristão dar sua contribuição para a construção do reino de Deus. Esta dimensão particular da vocação remete à singularidade de cada pessoa. Mas há diversidade também de aptidões, de qualidades pessoais, como as circunstâncias diferentes nas quais brotam e se desenvolvem os chamados de Deus. Mas mesmo realizando de forma pessoal a vocação comum, o cristão deve direcioná-la para a comunidade. Se o Espírito Santo distribui os dons a cada um conforme ele quer, Ele o faz para o bem e uso de todos. 

Missão e destino

De volta a Romanos (8.30) vemos que “Deus chamou os que havia separado. Não somente os chamou, mas também os aceitou; e não somente os aceitou, mas também repartiu a sua glória com eles”. Ora, a escolha e chamado do Pai, a aceitação através do sacrifício vicário de Jesus é completada na glória da ação do Espírito Santo sobre nossas vidas.

Por isso, o dinamismo da vocação está ligado à escolha e ao chamado, à missão e ao plano de Deus para cada um de nós. Nesta dinâmica, os dons são diferentes capacitações entregues para a realização de serviços diferentes, a partir de diferentes modos de agir, suscitados pelo Espírito e destinados à edificação da comunidade cristã. Poderíamos dizer então que os dons são capacitações do Espírito que tornam o cristão apto para o exercício da própria vocação em favor de toda a comunidade. 

Os dons são potencialidades para a execução de serviços concretos, atividades concretas, que possibilitam a vivência de uma determinada vocação particular. Existe, pois, pluralidade de dons. Para cada forma de vocação pode existir uma diversidade de dons. Enquanto meios concretos de atuação de uma determinada forma de vocação, os dons não são apenas dons extraordinários concedidos a pessoas extraordinárias. Eles são elementos que fazem parte do cotidiano da comunidade e não apenas privilégio de alguns. 

Dons e vocação não são fins em si mesmos. Existem para a missão. Por isso toda reflexão sobre a vocação requer pensar missão. Dentro de uma teologia evangélica da vocação é preciso destacar a missionariedade da Igreja. Toda a igreja está sujeita à missão. Esta missionariedade deve ser vivida em todos os níveis. Missão não é somente evangelizar, anunciar a salvação, mas viver a boa nova da libertação operada por Cristo dentro da situação atual do mundo, ajudando à humanidade a fazer a história, a contribuir para uma nova criação, construindo no aqui e no agora uma sociedade nova e diferente.

A missão é para o mundo e se desenvolve no mundo, é sempre uma missão de compromisso efetivo com o bem da pessoa humana na sua totalidade. A missão leva o cristão a aproximar-se, com os olhos e com o coração, daqueles que sofrem. Por ser serviço à humanidade, vocação e missão possuem uma dimensão pessoal e uma dimensão comunitária. Pessoal, enquanto cada crente tem o seu jeito de vivenciar a missionariedade da igreja. Comunitária porque esta missionariedade foi confiada à igreja, enquanto comunidade convocada e reunida pela Trindade.

Esta realidade nos obriga a entender que a iniciativa divina do chamado é dirigida à pessoa humana livre. É indispensável por isso entender a questão do destino na sua relação com a dinâmica do chamado do Senhor. 

Dentro da visão paulina, destino, no sentido de que os limites estão dados de antemão, é a correlação entre lei e espontaneidade. Destino traduz uma relação dialética com liberdade: destino e liberdade são polaridades; destino implica que a liberdade está sujeita à lei; destino implica que liberdade e lei são interdependentes e complementares. Para Paul Tillich, liberdade e destino formam uma polaridade ontológica, onde a descrição da estrutura ontológica básica e seus elementos atingem tanto sua realização, quanto seu ponto decisivo: “O homem é homem porque tem liberdade. Mas ele tem liberdade só em interdependência polar com o destino”.[11]

Analisando o conceito cristão palestino de destino, exposto por Paulo, podemos dizer que há uma interdependência entre lei e espontaneidade, de tal forma que destino e liberdade se encontram intrinsecamente entrelaçados. Só quem tem liberdade tem um destino, explica Tillich. “As coisas não têm destino porque não têm liberdade. Deus não tem destino, porque ele é liberdade. A palavra destino aponta para algo que está para acontecer a alguém; ela tem conotação escatológica. Isso a qualifica a estar em polaridade com liberdade. Ela aponta não para o oposto da liberdade, mas para suas condições e limites”.[12]

A certeza de que o destino cristão está prenhe de graça tem um significado realizador e não destruidor e, por isso não é demoníaco, ao contrário, é a peça-chave do pensamento de Paulo, quando coloca Cristo acima do destino. Ao fazer isso, Paulo está dizendo que a compreensão plena do destino não está ao alcance do homem, pois há nele uma componente escatológica que escapa ao conhecimento humano.

A verdade incondicional de Deus não está ao nosso alcance. Em nós humanos há sempre um elemento de aventura e risco em cada enunciado da verdade. Mas mesmo assim, podemos e devemos correr este risco, sabendo que este é o único modo em que a verdade pode ser revelada aos seres finitos e históricos.

Quando mantemos uma relação com o Cristo eterno e deixamos de temer a ameaça do destino demoníaco, aceitamos o lugar que cabe ao destino em nossa vocação. Podemos reconhecer que desde o princípio nossa vocação esteve submetida ao destino e que muitas vezes desejou livrar-se dele, mas nunca conseguiu.

Na análise cristã do destino, Cristo e o tempo de Deus estão relacionados. Cristo leva ao tempo de Deus. Cristo envolve e domina os valores universais, a plenitude do tempo, a verdade e o destino da existência. Na vida do cristão a separação entre Cristo e a existência chegou ao fim. Cristo alcançou a existência, penetrou no tempo e no destino. E isso aconteceu não como algo extrínseco ao Cristo, mas porque é a expressão de seu próprio caráter, de sua liberdade.

É necessário, porém, entender que tanto existência quanto conhecimento humano estão submetidos ao destino e que o eterno reino da verdade só é acessível ao conhecimento que transcende o destino: a revelação. 

Dessa maneira, ao contrário do que pensavam os gregos, todo ser humano possui potencialidades, enquanto ser, para realizar seu destino. Quanto maiores as potencialidades do ser, que crescem à medida que é envolvido e controlado pelo Cristo, mais profundamente está implicado seu conhecimento no destino.

Partindo da liberdade que nos foi dada, enquanto imago Dei, nosso destino, que deve ser entendido como manifestação do desígnio do Pai, da missão do Cristo e da obra do Espírito Santo, é o projeto de Deus para nossa vida. Destino é servir à Trindade, num tempo novo, que emerge das crises e desafios de nossos dias. Quanto mais nos aproximamos da compreensão de nosso destino, no sentido de estar colocado, de ser proposto, tanto mais seremos livres. Então, nosso trabalho, nossa vocação será plena de força e verdade.

O projeto de Deus para uma pessoa não é algo estático, mas um chamado que é feito através de mediações concretas. Deste modo a pessoa pode dizer sim, fazendo acontecer a história da libertação, ou dizer não, distanciando-se da missão e do destino que nasceram do projeto de amor do Pai, do Filho e do Espírito.

Igreja e vocações

No que tange às vocações particulares, convém observar que a vocação do cristão é a vocação comum da qual dependem as vocações ministeriais e seculares. Tal vocação de vida consagrada se fará antes de tudo a partir da dimensão simbólica da mesma: somos chamados a contextualizar o significado do ser cristão na vida da comunidade onde vivemos e dentro da qual nos relacionamos. A questão da especificidade de vocação, na igreja e na sociedade, passa por ser seguidor radical de Jesus, profeta e sinal visível da radicalidade do Evangelho. 

A vocação de pastores, ministros e missionários, e de trabalhadores, profissionais e empresários deve determinar o específico destes ministérios. Por exemplo, ainda é forte o monopólio por parte de pastores, ministros e missionários. A teologia deve contribuir para a superação da visão privatista presente na formação ministerial. Da mesma maneira, a vocação secular de trabalhadores, profissionais e empresários deve ser entendida como aquela de serviço à unidade da comunidade. Embora a vocação particular do ministério pastoral seja a presidência da igreja.

As dificuldades, no que respeita às vocações, estão ligadas a uma compreensão insuficiente do que é igreja. Por isso, é indispensável uma reflexão sobre o que é igreja.

Devemos começar por uma pergunta: qual o modelo de igreja ao qual nos referimos quando falamos em vocação? Aqui voltamos ao início do texto, onde entendemos igreja como corpo reunido na unidade do Pai, do Filho e do Espírito Santo. Tal visão de igreja contribui para que todos os seus membros vivam em estado de vocação e de missão, sentindo-se convocados pelo Pai para o serviço ao Reino.

Somente uma igreja que é imagem da Trindade pode tomar-se espaço para o surgimento e desenvolvimento de vocações. Isto porque nela os crentes constituem um só corpo em Cristo, com dignidade e variedade de funções, com espaço para a comunhão e participação. Numa igreja assim existe a presença de instrumentos e de organismos que permitem o engajamento dos crentes e abrem caminho para o surgimento das vocações. Aqui os jovens encontram um terreno eficaz para o amadurecimento humano, cristão e apostólico.

Tal igreja é mãe das vocações. Sente-se chamada e ao mesmo tempo convocada a chamar. Tem consciência de ser uma comunidade de pessoas chamadas que, por sua vez, torna-se apelo vivo da Trindade. Este modelo de igreja que comunga e participa se identifica com as vocações de que é constituída. Nela os crentes recebem o chamamento ao sacerdócio universal e à santidade. Nela surgem, por dom do Espírito Santo, os chamamentos especiais para os ministérios e profissões, para a consagração eclesial e secular, e para a vida missionária. Ela é a reunião de todos quantos, em comunhão com o seu pastor e entre si, são chamados pelo Pai a seguirem o Senhor Jesus, de acordo com os dons do Espírito. E porque há identificação, todos se sentem responsáveis pelas vocações.

A igreja onde as vocações podem brotar escuta o clamor da comunidade e vive em processo de renovação. Não reclama privilégios, mas vive na sociedade a sua missão profética, denunciando as injustiças e anunciando o kairós evangélico de uma sociedade nova, humana e fraterna. Tal igreja é capaz de dialogar com a sociedade pluralista, sem abandonar sua doutrina e propósitos. É uma igreja servidora, ministerial (minus stare), onde todos são chamados a servir

Uma igreja onde os crentes descobrem a realidade em que vivem, os chamados aos ministérios eclesiais (pastores, ministros, missionários) e o sentido das vocações seculares (trabalhadores, profissionais, empresários) de que a comunidade tem necessidade, faz-se igreja necessária. E os compromissos de hoje podem se tornar prelúdio de uma consagração definitiva. Na igreja que está voltada para sua comunidade, os jovens e adultos não são crentes passivos, mas agentes, participantes e responsáveis, protagonistas, de acordo com os dons e as possibilidades de cada um.

Por uma teologia evangélica da vocação

A partir do que vimos vale a pena analisar alguns elementos que podem balizar a construção de uma teologia evangélica da vocação.

Em primeiro lugar, deve ficar claro que as experiências humana e cristã são realidades correlatas ao chamado para as vocações particulares. Por isso, a vocação de pastores, ministros, missionários e de trabalhadores, profissionais e empresários, enquanto chamado de Deus que se realiza na igreja e na comunidade, deve fundar-se numa teologia evangélica e numa práxis em sintonia com nossos princípios e doutrinas.

Partindo desta avaliação é preciso entender que partimos do Deus triúno e da teologia do amor que tal comunhão implica: vocação é relacionamento, o que implica em dar valor à experiência humana e à espiritualidade cristã, mas também dar atenção à questão da inculturação e aos desafios da contemporaneidade. Vivemos um tempo de transição, caracterizado por atitudes ambivalentes. As transformações da sociedade revelam a inadaptação de muitas igrejas, presas à tradição, e a necessidade de novos projetos de existência humana.

E por fim, é preciso definir o específico de cada vocação, dando valor à participação de toda a igreja enquanto corpo de Cristo. Isto traduz a necessidade de se encontrar uma metodologia adequada para cada situação, lugar e grupo de pessoas. 

Considerações finais

O cristianismo é a vitória sobre a cosmovisão da religiosidade helênica de que estamos debaixo das forças de deuses e demônios, traduz a idéia de que o mundo é uma criação divina. 

É a negação radical do caráter demoníaco da existência em si. Dá à existência um valor essencialmente positivo e valoriza os acontecimentos da ordem temporal. Com o cristianismo, a ordem do tempo não leva apenas ao transitório e perecível, mas também à possibilidade de algo totalmente novo, um propósito e um fim que dá pleno significado à vida humana.

No cristianismo o tempo triunfa sobre o espaço. O caráter irreversível do tempo bom substitui o tempo cíclico, transitório e perecível do pensamento helênico. A partir desse kairós, a presença de Cristo entre nós, destino outorga graça, que traz libertação no tempo e na história. O mundo helênico e sua interpretação da vida foram superados e com eles o pessimismo da religiosidade helênica.

Agora depositamos nossa certeza nas palavras de Paulo em Romanos 11.29, quando diz que “Deus não muda de idéia a respeito de quem ele escolhe e abençoa”. E a partir do chamado e vocação entregues por Deus a nós, realizemos nossa missão, destino glorioso que traduz o desígnio do Pai, a missão do Filho e a obra do Espírito Santo nas nossas vidas, e através delas, na igreja e na sociedade.

Bibliografia recomendada

BRUCE, F.F. Romanos, introdução e comentário. Odayr Olivetti, trad., São Paulo, Vida Nova e Mundo Cristão, 1991.
CULLMANN, Oscar. A formação do Novo Testamento, 5a. ed., Bertoldo Weber, trad., São Leopoldo, Sinodal, 1990.
FRANZMANN, Martin H. Carta aos Romanos, Mário e Gládis Rehfeldt, trads., Porto Alegre, Concórdia, 1972. 
LAFON, Guy, Saint Paul, épitre aux romains, Les Editions du Cerf, 1953 e 1973, Paris, GF-Flammarion, 1987.
LEENHARDT, Franz J. Epístola aos Romanos, Waldyr Carvalho Luz, trad., São Paulo, ASTE, 1969.
OLIVEIRA, José Lisboa Moreira de, Nossa Resposta ao amor, teologia das vocações específicas, São Paulo, Editora Loyola.
TENNEY, Merril C. O Novo Testamento sua origem e análise, 2. ed., São Paulo, Vida Nova, 1972.
TILLICH, Paul, La dimension religieuse de la culture, Paris, Genebra, Québec, Les Editions du Cerf, Editions Labor et Fides, Presses de l´Université Laval, 1990.
____________, L´Etre nouveau, tradução de J. M. Saint, Planète, Paris, 1969, do texto original: The New Being, Charles Scribner's Sons, 1955. 
____________, Teologia Sistemática, São Leopoldo, São Paulo, Editora Sinodal, Edições Paulinas, 1984.

Notas

[1] Gilda Naécia Simões, “Cristianismo Primitivo e Paidéia Grega”, jornal O Estado de S. Paulo, 21/9/1975. In Seminário Internacional Cristianismo, Filosofia, Educação e Arte, FEUSP, setembro 2001. 
[2] Leonildo Silveira Campos, “Os Novos Movimentos Religiosos no Brasil Analisados a Partir da Perspectiva da Teologia de Paul Tillich”, revista eletrônica Correlatio, no. 3. 
[3] “O regime da lei no Antigo Testamento era bom, mas temporário (Gn. 3.24, 4.1+), e foi planejado para o mundo da carne e o pecado. Com a morte e a ressurreição de Jesus o regime da lei foi superado. O cristão está livre da lei, assim como Cristo que teve seu corpo carnal feito corpo espiritual (Rm 7.4-6, cf. 1Co 15.45). O cristão não está mais debaixo da lei, mas debaixo da graça (Rm 6.14). E a graça é grátis (Gl 5.1, 13). Na medida em que se é cristão, filho de Deus guiado pelo Espírito (Rm 8.14), a única lei que lhe convém é aquela que Paulo chama de a lei do Espírito (Rm 8.2), não só dada pelo Espírito, mas vivida no crente através do Espírito, que segundo Tomás de Aquino, não é simples norma externa, mas princípio de ação, atividade do Espírito no cristão”. Guy Lafon, Epitre aux Romains, Flammarion, Paris, 1987, p. 59. 
[4] J. Sobrino, Cristologia desde América Latina, Esbozo a partir del seguimiento del Jesús histórico, México DF, CRT, 1976 (2a. ed. ver. 1977), p. 91. 
[5] I. Ellacuría, Conversión de la iglesia al Reino de Dios para anunciarlo y realizarlo em la historia, Santander, Sal Terrae, 1985, pp. 179-261. 
[6] José Lisboa Moreira de Oliveira, “Teologia e Eclesiologia da Vocação”, revista Espírito no. 65, (jan/mar 1996, pp. 22-31). 
[7] E. Schillebeeckx, L`intelligenza della fede: interpretazione e critica (1972), Roma, Paoline, 1975, p. 102. 
[8] José Lisboa Moreira de Oliveira, op. cit., pp. 22-31. 
[9] Idem op. cit., pp. 22-31. 
[10] Ibidem, op. cit., pp. 22-31. 
[11] Paul Tillich, Teologia Sistemática, Editora Sinodal, Edições Paulinas, São Leopoldo, São Paulo, 1984, p. 156. 
[12] Paul Tillich, idem, op. cit., p. 158.

mercredi 28 mai 2014

Neném Prancha, gênio

Ele foi um ícone da minha juventude carioca. Neném iniciou sua carreira no futebol como jogador, num time pequeno, o Carioca. Mas não fez sucesso. Então, vejam só, abriu uma escolinha de futebol para crianças nas areias de Copacabana, bairro onde eu morava. Eu era e sou Flamengo! Já Neném foi trabalhar também no time do seu coração, o Botafogo. Foi roupeiro, massagista, olheiro... e João Saldanha, botafoguense roxo, outro ícone da minha geração, foi fã incondicional do Neném.




O nome de batismo de Neném Prancha era Antonio Franco de Oliveira. Ele nasceu em Resende, estado do Rio de Janeiro, em 1906 e morreu setenta anos depois. Ganhou o apelido de Neném Prancha porque tinha mãos e pés enormes. Suas mãos mediam cada uma 23 centímetros de comprimento, e os pés eram tamanho 44. Talvez por isso andasse sempre de chinelos.

Frases de gênio

"Jogador de futebol vai na bola com a mesma fome que num prato de comida".
"Se macumba adiantasse, campeonato baiano terminava empatado."
“Uma coisa é uma coisa e outra coisa é outra coisa.”
"Jogador bom é que nem sorveteria, tem várias qualidades".
"Bola tem que ser rasteira, porque o couro vem da vaca e a vaca gosta de grama."
"Joga a bola pra cima, enquanto estiver no alto não tem perigo de gol".
"Jogador é o Didi, que joga bola como quem chupa laranja".
"O goleiro dorme com a bola. Se for casado, dorme com as duas".
"Pênalti é tão importante, que quem devia bater é o presidente do clube".
"Se concentração ganhasse jogo, o time do presídio não perdia uma partida."
"O importante é o principal, o resto é secundário".
"Quem pede tem preferência, quem se desloca recebe".
"Futebol é muito simples: quem tem a bola ataca; quem não tem defende".


Um filósofo entre nós
Filho de Zeferino, biscateiro, e dona Julia, empregada doméstica.
Aos 11 anos, foi pro Rio. 

Fontes

Pedro Zamara, Assim Falou Neném Prancha, Editora Crítica, Rio de Janeiro, 1975.

Internet

O jogo da educação, por Neném Prancha, revistaeducacao.uol.com.br
Maior filósofo do futebol brasileiro, Neném Prancha foi imortalizado por suas pérolas sobre o esporte – ainda que muitas delas não tenham sido de sua autoria, revistatrip.uol.com.br 
O filósofo do futebol, mantofootball.com
Curiosidades do Botafogo – Neném Prancha, revistadobotafogo.com.br 

samedi 24 mai 2014

A alegria é a prova dos nove

Ou, no colo da cunhã, rede e sexo
Jorge Pinheiro 

“Tupi or not tupi that is the question”. (Oswald de Andrade, Manifesto antropófago).

[Paris] – Você já parou para pensar que em menos de cinco anos, entre 1555 e 1560, cerca de quatrocentos franceses emprenharam mulheres tupinambás e tiveram mais de mil filhos, segundo alguns, na verdade, dois mil brasileirinhos. Bem, talvez você não saiba porque a história é sempre situada, espacial e ideologicamente.

Quando se faz uma pesquisa na área acadêmica, geralmente, há um subproduto que não utilizamos, porque não está diretamente ligado ao nosso objeto, embora seja cientificamente interessante. É o caso desse artigo: surgiu a partir de elementos da pesquisa que desenvolvo na Europa, mas especificamente em Montpellier e Paris, sobre os huguenotes, protestantes franceses que estiveram no Rio de Janeiro, em 1557.

Neste artigo sobre o início da presença francesa no Brasil e dos relacionamentos entre franceses e tupinambás utilizo o caminho da correlação, como forma de aproximação de um fato histórico fundante. O método da correlação relaciona polos, o discurso eurocêntrico, no caso, e a interpretação desse discurso, que deve levar em conta a situação daqueles a quem ela se destina. Situação, aqui, são as formas políticas e sociais através das quais os franceses exprimiram as suas interpretações da existência tupinambá, geradora do mito do bom selvagem. Nesse sentido, o método da correlação possibilita que perguntas venham à tona, que haja individuação das respostas, permitindo travessias correlatas às perguntas colocadas pela própria existência dos brasis e seus costumes.

Nicolau Durand de Villegagnon (1510-1571) foi colega de João Calvino durante seus estudos em Paris. Junto com os Cavaleiros de Malta, a partir de 1531, participou das expedições militares de Carlos V contra Argel. Mas ficou conhecido como navegador. Vice-almirante da Bretanha, sua aventura mais empolgante e polêmica foi a fundação, em 1555, de um projeto de colonização que ficou conhecido como França Antártica, na baia de Guanabara. Para desenvolver tal projeto recebeu o apoio do almirante Gaspard de Coligny, homem de confiança do rei e militar de importante presença protestante, e dez mil libras para financiar a empreitada.

A intenção francesa era fundar uma colônia no Brasil, a fim de fazer frente a expansão espanhola e portuguesa nas Índias Ocidentais e no Novo Mundo, onde calvinistas pudessem praticar o seu catolicismo reformado e evangelizar os brasis. Três navios partiram de Le Havre, com mais de quatrocentos colonos, a maioria ex-presidiários indultados por se juntarem à aventura de Villegagnon. E assim chegaram ao Brasil em novembro de 1555. Villegagnon construiu, então, o forte Coligny em uma ilha na baía de Guanabara e passou a usar o título de vice-rei da França Antártica.

As relações com os brasis da região se mostraram tão boas, que Villegagnon e os colonos passaram a frequentar as festas, travaram contato com o comunismo libertário dos brasis, e muitos colonos acabaram por optar por essa nova forma de vida.

A França Antártica a princípio foi tolerante com os costumes dos brasis e as opções dos colonos, mas, com o tempo, Villegagnon percebeu que estava a perder seus homens. Estes passaram a ter companheiras tupinambás, a viver nas aldeias e adotavam a cultura dos brasis. Foi, então, que Villegagnon, por razões militares e de ocupação do território, proibiu todo comércio com os brasis, os acasalamentos e exigiu que seus colonos abandonassem as aldeias e voltassem ao forte. Ora, exigência quase impossível de ser respeitada, afinal aqueles homens tinham sido libertos das prisões franceses com a proposta de viajar para um novo mundo de aventuras inimagináveis. E tinham encontrado esse mundo, com espaços sem fim, mulheres brasis e sexo sem constrangimentos. Tinham descoberto que a alegria é a prova dos nove.

Uma das dimensões importantes da cultura tupinambá era o cunhadismo. Este elemento fundante da cultura dos brasis no litoral do Rio de Janeiro é uma hipótese fundante para se compreender a construção das ótimas relações que tupinambás e franceses construíram entre si. Os franceses se uniram sexual e matrimonialmente com as mulheres brasis, e assim se inseriram na estrutura social tupinambá, como genros ou cunhados. Pesquisas acadêmicas mostram que muitos europeus, e aí se incluem os franceses, e não apenas portugueses, se adaptaram com facilidade aos costumes brasis, a ponto de alguns tornarem-se lideranças expressivas entre os tupinambás.

Darcy Ribeiro considerou o cunhadismo a instituição social que possibilitou a formação do povo brasileiro. O cunhadismo estruturava as relações de parentesco entre os tupinambás ao incorporar pessoas estranhas à comunidade. O homem agregado à tribo recebia uma moça tupinambá como cunhã, ou seja, esposa. E quando a assumia, estabelecia laços de parentesco com todos os membros da comunidade.

“Já tínhamos o comunismo. Já tínhamos a língua surrealista. A idade de ouro”. 
(Oswald de Andrade, Manifesto antropófago).

O cunhadismo, enquanto sistema de parentesco relacionava um brasil ou agregado com os outros e, por extensão, com todos os membros da tribo. Assim, ao receber a cunhã, o francês passava a ter nela sua temericó e nos parentes da geração dos pais, outros pais ou sogros. O mesmo ocorria em sua própria geração, em que todos passavam a ser irmãos ou cunhados. Na geração inferior eram todos seus filhos ou genros. Esses termos de afinidade classificavam o grupo com quem podia ou não manter relações sexuais. Com os sogros e sogras devia evitar relações, mas podia manter relações abertas com os cunhados e cunhadas, assim como com genros e noras.

Segundo Ribeiro, os franceses fundaram criatórios na baía de Guanabara com base no cunhadismo. E citou Capistrano de Abreu, quando este afirmou que por muito tempo não se sabia se o Brasil seria francês ou português, tal a força da presença e o poder da influência francesa junto aos brasis do litoral do Rio de Janeiro. Ainda segundo Ribeiro, mais de mil brasileiros, no caso franco-brasis, foram gerados como fruto do cunhadismo, quando franceses, tamoios e tupinambás viviam ao longo dos rios que deságuam na baía, inclusive na ilha do Governador, onde deveria ser implantada a França Antártica.


Moças brasis para os colonizadores franceses, eis o cunhadismo franco-brasil

Assim, fruto da boa vida no paraíso dos brasis, os colonos não concordaram com seu vice-rei, se revoltaram, e aliados aos brasis, agora seus parentes, passaram a tramar o assassinato de Villegagnon. Diante de guerrilha que se avizinhava, o vice-rei recorreu ao amigo Calvino que, por esses tempos, exilara-se em Genebra, e pediu para mandar reforço religioso a fim de restaurar a moral e os bons costumes. E, em setembro de 1556, quatorze huguenotes, entre os quais dois pastores, Chartier e Richer, e um jovem muito promissor, Jean de Léry, deixaram a Suíça, embarcaram em Honfleur, sob a liderança de Du Pont de Corguilleray, e chegaram ao forte de Coligny em março 1557. Mas essa já é outra história.

“Contra a realidade social, vestida e opressora, cadastrada por Freud – a realidade sem complexos, sem loucura, sem prostituições e sem penitenciárias do matriarcado de Pindorama”.(Oswald de Andrade, Manifesto antropófago).