mardi 3 mars 2015

Estudos interreligiosos -- Judaísmo

O TALMUD
História, Ética e Teologia

JORGE PINHEIRO, PhD

Entre os anos que vão da destruição do beit sheni (segundo templo) até a derrota da revolta de bar Cochba (70 a 135), Israel vive um momento muito especial em sua história, que recebe o nome de “período de Yavne”. Esse período caracterizou-se por novas tentativas de reconquistar a independência por meios militares e pela formação de um novo sistema de governo, que permitiu aos judeus sobreviverem sem um Estado.

Um homem, o rabino Yochanan ben Zakai, inicia a reconstrução da vida judaica, não mais em Jerusalém, mas em Yavne. Restabelece as funções do sanhedrin (sinédrio), fixa os meses e os anos bissextos, possibilitando a manutenção das festas judaicas mesmo sem templo. Yavne transforma-se assim num centro da cultura nacional judaica e de sua espiritualidade.

Anos mais tarde, o rabino Gamaliel, filho de um dos líderes da revolta contra Roma, é reconhecido como líder da nação e substitui ben Zakai, tornando-se chefe do sinédrio de Yavne. Tem início uma política de unificação das diferentes seitas judaicas: sacerdotes saem de Yavne em direção aos pontos mais distantes do galut (diáspora), com a finalidade uniformizar doutrinariamente o povo judeu. O contato com os cristãos é proibido e tem início de ambas as partes uma separação histórica entre cristianismo e judaísmo.

Na Academia de Yavne são estabelecidas as características das festas judaicas, agora sem sacrifícios e peregrinações anuais. É realizada uma nova tradução do Tanach para o grego, já que a Septuaginta, muito usada pelos cristãos, não incorporava a visão dos rabinos de Yavne.

Outro nome que se destacará em Yavne é do rabino Akiva ben Yossef. Viaja por quase toda a diáspora,  da Gália, no Ocidente, à Babilônia, no Oriente. Prega a Tanach e transforma-se em um de seus mais importantes intérpretes. Após o fracasso da revolta de bar Cochba, é preso e condenado à morte.

Vencida a última resistência judaica, o imperador romano Adriano toma uma série de medidas que lembram em muito as leis de Antíoco IV Epifanes: proíbe o estudo do Tanach, a prática da circuncisão e a ordenação de novos rabinos. Derrotados e perseguidos, a grande maioria dos judeus deixa a Judéia e refugia-se no Galil (Galiléia), primeiro em Usha e posteriormente nas cidades de Tzipori e Tveria. No Galil será estabelecido o centro da cultura judaica nos séculos II, III e IV.

Nessa época, duas instituições, que já existiam, passam a definir a vida política e religiosa judaica, a nessiut e o sanhedrin. A nessiut era a presidência, e seu ocupante recebia o título de nassi, o patriarca e era o líder máximo do povo judeu. Com pequenas exceções, o cargo de nassi foi ocupado pelos descendentes do rabino Hilel, o sábio, que descendiam, segundo a tradição, da linhagem do rei Davi. O nassi era eleito pelo sanhedrin e o cargo era vitalício. Ao nassi cabia nomear os dirigentes das comunidades do galut e recolher contribuições para a manutenção do governo judaico. Como desde o século I, a lei escolar de Shimon ben Shetach definia a gratuidade e obrigatoriedade da instrução primária para todos os meninos judeus, o nassi era responsável por garantir que em cada cidade houvesse ao menos uma escola. O patriarca também representava o povo junto ao império romano. O cargo de nassi só vai ser extinto em 427.

Enquanto o nassi fazia as vezes de rei, o sanhedrin fazia as vezes de parlamento, combinando os poderes legislativo e judiciário. Nos dois séculos posteriores à derrota de bar Cochba, o sanhedrin reunia os rabinos e principais eruditos da época. Os saduceus, que representavam a aristocracia e a classe alta, já haviam desaparecido da vida judaica. A orientação rabínica tinha o peso hegemônico dos fariseus. Assim, a atividade principal do sanhedrin consistia em discutir as leis da Torah e intepretá-las e adaptá-las à nova realidade. Nesse sentido, o sanhedrin passou a ser um beit midrash, uma casa de estudo. Os rabinos realizavam discussões e debates e seus discípulos acompanhavam com interesse a seqüência das argumentações. Mas nada era anotado. Tudo era guardado de memória. Os rabinos mantinham, também, cursos sobre assuntos de interesse cotidiano, de forma que as salas do sanhedrim estavam sempre cheias de estudantes, futuros rabinos do povo judeu.

Além de funcionar como beit midrash, o sanhedrin era também beit din elion, o supremo tribunal.

E assim, no correr desses anos, vai-se formando um novo corpo de leis, derivadas da Torah, que não se encontram nela, mas que tinham como finalidade dar respostas à nova realidade que surge com o fim na nação judaica geograficamente estabelecida. Como a Torah é sagrada, nada é agregado a ela para evitar que pudesse de alguma forma lhe fazer sombra. Por isso, a nova legislação não é escrita em lugar nenhum.

Com o passar dos anos, esse corpo de leis torna-se tão vasto e as condições da diáspora culturalmente tão complexas, que se tornou necessário escrever o material acumulado até aquele momento. O primeiro texto foi preparado ainda no período de Yavne. Os rabinos Akiva e Meir também redigiram várias leis orais. Temos assim, a mishná (repetição) do rabi Akiva e de outros.
Mas será no final do século II, sob a presidência do nassi rabi Yehudá, da linhagem de Hilel, que foi editada de forma ordenada a primeira Mishná, com a aceitação plena do sanhedrin. Ela incorporou trechos das mishnaiot anteriores.

A Ética dos Pais

A Mishná contém seis partes chamadas shishá sedarim. Cada seder inclui diversas massechtot (tratados) e cada tratado se divide em prakim (capítulos) e perek (parágrafos). Foi redigida em hebraico e contém, ao todo, 63 tratados e 528 capítulos. Os seis livros que formam a Mishná são: Zeraim (sementes), que trata da agricultura e das orações; Moed (festividades), sobre as leis do shabat e dos chaguim; Nashim (mulheres), contém as leis referentes ao casamento, ao divórcio, ao adultério, etc.; Nezikin (prejuízos), sobre a lei civil, criminal, contratos, fraudes, castigos, etc; Kodashim (coisas sagradas), trata da ordem no culto do beit hamikdash e da kasrhrut; Toharot (purificação) sobre o cerimonial da purificação, banho ritual (mikvá), etc.

No tratado Pirkei Avot - Ética dos Pais, por exemplo, temos ensinamentos morais que tratam de boa conduta, estudo, justiça e retidão, sintetizando séculos de cultura judaica:

“Qual o justo caminho que um homem deve escolher para si? Aquele que é uma honra para ele que o pratica e uma honra para ele de parte dos homens. Se tão cuidadoso de um preceito leve quanto de um grave, pois não sabes qual a recompensa dada aos preceitos. Considera a perda de um preceito segundo a sua recompensa e o ganho de uma transgressão de acordo com sua perda. Observa três coisas e não cairás em poder do pecado: sabe que está acima de ti um olho que vê, um ouvido que ouve e que todos os teus feitos estão escritos num livro.” (Rabi Yehudá ha Nassi).

“Bom é o estudo da Torah junto com a ocupação no mundo, pois o labor em ambos faz esquecer o pecado e todo estudo da Torah desacompanhado do trabalho resulta em nada e acarreta o pecado. E todos os que se ocupam do trabalho comunitário se ocupem dele por amor do Nome dos céus, pois o mérito dos seus pais os sustenta e sua justiça permanece para sempre. ‘E quanto a vós, disse Deus, vos darei grande recompensa, como se vós mesmos os tivésseis realizado’.” (Rabi Gamaliel, filho de Yehudá ha Nassi).[1]

Após terminarem seus estudos primários, os meninos que desejavam prosseguir seus estudos eram encaminhados para o Sanhedrin. Lá estudavam a Mishná do rabi Yehudá e as compilações de histórias e tradições que formaram o Midrash, a Tossefta e a Baraíta. Os professores, conhecidos como amoraítas, expositores, conforme ensinavam acrescentavam novas interpretações aos textos dos tanaítas, rabinos cujas discussões estão registradas na Mishná. As conclusões dos amoraítas foram consideradas um complemento, Guemará, da Mishná do rabino Yehuda. Temos, então, a partir da união desses tratados, o Talmud da Palestina ou Talmud Yerushalmi.

Derivado de dml (ser instruído), Talmud traduz a idéia de aprendizado ou ensino. Seu ponto de partida, como vimos é a lei oral, que segundo a própria tradição rabínica repousa em Moisés, que teria recebido de Deus duas leis, a escrita e a oral[2]. Ambas se complementam, mas apenas os judeus têm a segunda[3].

No século IV, novos conflitos entre judeus e romanos levam a destruição das cidades de Tzipori, Lud e Tveria. Milhares de judeus são mortos ou vendidos como escravos. Choques políticos e administrativos entre o Sanhedrin e o patriarca e as difíceis condições econômicas levam o centro de Eretz Israel a sucumbir definitvamente. Há uma maciça emigração de religiosos e amoraítas para a Babilônia.

O último patriarca importante será Hilel II, que é também conhecido por ter realizado os cálculos do calendário judaico, utilizado até os dias de hoje.

Na Babilônia, os emigrantes palestinos juntaram-se à comunidade judaica, que desde os tempos das deportações realizadas por assírios e babilônicos, manteve-se nas cidades de Nehardea, Mahoza, Pumbedita e Sura. É interessante notar, que nessas cidades havia uma rede de ensino primário judaico de alto nível, que o melhor do pensamento palestino tinha migrado para elas e que os reis sassânidas, então no auge de seu poder, aceitavam muito bem a presença judaica na Babilônia.

Rav Ashi, líder da academia de Sura, inicia a compilação do material religioso existente, organiza sua exposição e distribui o material conforme os critérios definidos. Anos mais tarde, quando os sacerdotes zoroastristas iniciam uma dura perseguição religiosa aos judeus, Ravina, o último dos amoraítas babilônicos e chefe da academia de Sura, dá seqüência ao trabalho de Rav Ashi. Surge, então, uma obra monumental, o Talmud babilônico.

Temos então dois talmudim, o Talmud Yerushalmi e o Talmud Bavli.

Assim, os sábios cujas discussões estão registradas na Mishná viveram em Eretz Israel na época dos fariseus, entre os anos 100 a.C. e 200 d.C. Após a finalização da Mishná, outros mestres realizaram novos comentários e readaptações da Mishná, dando origem a um complemento, a Guemará. Este segundo trabalho foi realizado simultaneamente em Israel (entre os anos 200 d.C. e 350 d.C.) e na Babilônia (entre os anos 200 d.C. e 500 d.C.). No entanto, a Guemará babilônica é considerada mais importante.

A Teologia do Talmud

Essa obra traduz setecentos anos de trabalho, cita estudos e conclusões de mais de mil rabinos, mas tem por base apenas três fundamentos:

1. Existe apenas um Deus verdadeiro, justo e bom.
2. A Torah, dada por Ele, contém toda a verdade e a justiça.
3. O homem deve fazer o possível para ser verdadeiro, justo e bom. E a melhor maneira de chegar a essas metas é investigar e cumprir a Torah.

Dessa maneira, o Talmud foi um guia para o povo judeu nos terríveis anos do galut e nas perseguições da Idade Média. A lei em seu sentido estrito, mais conhecida como halachá, manteve a coesão do povo. E tudo aquilo que não é lei, ou seja, as histórias, lendas, fábulas, contos, biografias, provérbios, receitas, matemática, astronomia e medicina, a agadá, serviu como fonte inesgotável de inspiração para a cultura e folclore judaicos. Em parte essa tradição de estudo deu ao povo judeu um alto nível cultural, que manteve mesmo nos momentos mais sombrios da história humana.

Os rabinos costumam dizer que para se nadar no mar do Talmud e não se afogar, é necessário saber nadar muito bem, ou seja, conhecer profundamente a Torah. O Talmud é uma imensa enciclopédia onde todos os assuntos se encontram misturados.

O pensamento judaico é oriental, totalmente diferente do pensamento grego. O judeu começa a falar de um assunto, discorre sobre diversos outros, responde a perguntas que não têm nada a ver com o tema central, e no final da conversa volta ao assunto inicial. Isso leva a teologia ocidental, acostumada à lógica aristotélica, a evitar navegar mais profundamente nas águas do Talmud. Além disso, para o leitor comum, o Talmud apresenta outra dificuldade, está escrito em três idiomas: hebraico bíblico nas citações do Tanach, hebraico da Mishná na Mishná e aramaico na Guemará. Para levar o judeu da alta Idade Média a mergulhar com mais confiança no Talmud, o exegeta Rashi (rabino Shlomo Itzhaki), ao redor do ano 1.100, na França, elaborou uma série de comentários que ainda hoje são de grande ajuda para os estudiosos modernos.

Assim, podemos definir a teologia do Talmud através do seguinte conceito: o conhecimento da idéia de Deus entre os judeus viveu uma revelação crescente. Mas na época do beit sheni o conceito de Deus era bem semelhante ao de hoje: um ser infinitamente poderoso, bom, criador dos céus e da terra, e juiz supremo dos homens. No entanto, nenhum homem pode ser julgado pelas suas ações, se dois fatores não foram levados em conta: a liberdade de escolha e a existência de uma lei que diga o que é certo e o que é errado. Para os rabinos do Talmud não adianta a pura vontade de escolher o bem. Por isso, a Torah é um presente de Deus, permitindo ao homem transformar sua boa vontade em práxis.

Acontece que a Torah, afirmam os talmudistas, apesar de sua transcendência e revelação, está histórica e culturalmente situada no momento em que foi escrita. É preciso um midrash (hermenêutica) para que seus ensinamentos e sua ética possam ser compreendidas e utilizadas pelo judeu de outras atualidades. Vejamos, agora, um exemplo da teologia do Talmud, em dois trechos de um midrash do texto de Ex 20:2.

Eu sou o Senhor teu Deus. Por que os Dez Mandamentos não foram ditos no começo da Torah? Eles fornecem uma parábola. A que isso pode ser comparado? Ao seguinte: Um rei que entrou em uma província disse ao povo: Posso ser vosso rei? Mas o povo lhe disse: Fizeste algo bom para nós para que nos governeis? Que ele fez então? Construiu-lhes a muralha da cidade, introduziu o abastecimento de água para eles, e lutou suas batalhas. Então quando ele lhes disse: Posso ser vosso rei? Eles lhe disseram: Sim, sim. Da mesma maneira, Deus. Ele trouxe os israelitas para fora do Egito, dividiu o mar para eles, fez descer o maná para eles, fez subir um poço para eles, trouxe codornas para eles. Lutou por eles a batalha com Amaleque. Então Ele lhes disse: Eu serei vosso rei. E eles Lhe disseram: Sim, sim. Rabi disse: Isto proclama a excelência de Israel. Pois, quando todos eles estavam diante do Monte Sinai para receber a Torah, todos se decidiram igualmente a aceitar o reinado de Deus alegremente. Além disso, foram garantia um para o outro. E não foi somente no que diz respeito a atos públicos de Deus, revelando-Se-lhes, desejou fazer Seu pacto com eles, mas também no que diz respeito a atos secretos, como está dito: As coisas encobertas são para o Senhor nosso Deus e as reveladas...” (Dt 29:28). Mas eles Lhe disseram: No que se refere a atos públicos, estamos prontos a fazer um pacto contigo, mas não faremos um pacto contigo com referência atos secretos, para que nenhum de nós cometa um pecado secretamente e a comunidade inteira seja considerada responsável por ele”.
(...)
“Outra interpretação: Eu sou o Senhor teu Deus. Quando o Santíssimo, louvado seja, levantou-se e disse: Eu sou o Senhor teu Deus, a terra tremeu, como está dito: “Ó Senhor, saindo Tu de Seir, caminhando Tu desde o campo de Edom, a terra estremeceu” (Jz 5:4). E continuou a dizer: “Os montes vacilaram diante do Senhor” (v.5). E também diz: “A voz do Senhor é poderosa. A voz do Senhor é cheia de majestade” (Sl 29:4) até “E no seu Templo cada um diz: Glória!” (v. 9). E até suas casas estavam plenas do esplendor da Shekiná. Naquele tempo todos os reis das nações do mundo se reuniram e vieram a Balaam, filho de Beor. Eles lhe disseram: talvez Deus esteja para destruir Seu mundo com um dilúvio. Ele lhes disse: Sois uns tolos! Há muito tempo Deus jurou a Noé que não mais traria um dilúvio sobre o mundo, como está dito: Porque isto será para mim como as águas de Noé, pois jurei que as águas de Noé não inundariam mais a terra”(Is 54:9). Então eles lhe disseram: Talvez Ele não traga um dilúvio de água, mas Ele pode trazer um dilúvio de fogo. Porém ele lhes: Ele não vem trazer um dilúvio de água nem um dilúvio de fogo. Simplesmente o Santíssimo, louvado seja, vem dar a Torá ao Seu povo. Pois está dito: “O Senhor dará força ao Seu povo...” (Sl 29:11). Logo que ouviram isto dele, todos voltaram as costas e cada um foi para o seu lugar. E assim todas as nações do mundo foram convidadas a aceitar a Torah, a fim de que não tivessem escusa para dizer: Se nos houvessem convidado, teríamos aceitado. Pois, veja, elas foram convidadas e se recusaram a aceitar a Torah. (...)”.[4]

Bibliografia Mínima Recomendada

Guinsburg, J., Do Estudo e da Oração, São Paulo, Editora Perspectiva, 1968.
Gundry, Robert H., Panorama do Novo Testamento, São Paulo, Edições Vida Nova, 1991.
Berezin, Rifka, Caminhos do Povo Judeu, vol II, São Paulo, Fed. Israelita do Est. de SP, 1988.
Scholem, Gershom, A Mística Judaica, São Paulo, Editora Perspectiva, 1972.



[1] Pirkei Avot (A Ética dos Pais), Capítulo II in J. Guinsburg, Do Estudo e da Oração, São Paulo, Editora Perspectiva, pp. 170.
[2] “Moisés recebeu a Torah do Sinai e transmitiu-a a Josué e Josué aos anciãos e os anciãos aos profetas e os profetas transmitiram-na aos homens da Grande Sinagoga. Esses disseram três coisas: ‘Sede ponderados nos vossos julgamentos, formai muitos discípulos e levantai uma cerca em volta da Torah”. Pirkei Avot (A Ética dos Pais), Capítulo Primeiro in J. Guinsburg, Do Estudo e da Oração, São Paulo, Editora Perspectiva, p. 168.
[3] “Asseverando que as leis orais remontavam ao tempo de Moisés, no Monte Sinai, os rabinos elevaram suas contraditórias interpretações do Antigo Testamento a uma posição de maior importância que o próprio Antigo Testamento”. Robert H. Gundry, Panorama do Novo Testamento, São Paulo, Edições Vida Nova, 1991, pp. 52.
[4] Mekhilta, cap. 5, “O Senhor Teu Deus, in J. Guinsburg, Do Estudo e da Oração, São Paulo, Editora Perspectiva, pp. 194-196.

lundi 2 mars 2015

Escolha e destino

ESCOLHA E DESTINO
Por uma teologia evangélica da vocação
Jorge Pinheiro

“Pois sabemos que todas as coisas trabalham juntas para o bem daqueles que amam a Deus, daqueles a quem ele chamou de acordo com o seu plano. Porque aqueles que já tinham sido escolhidos por Deus ele também separou a fim de se tornarem parecidos com o seu Filho. Ele fez isso para que o Filho fosse o primeiro entre muitos irmãos. Assim Deus chamou os que havia separado. Não somente os chamou, mas também os aceitou; e não somente os aceitou, mas também repartiu a sua glória com eles”. Romanos 8. 28-30.

Introdução

É difícil entender a profundidade do capítulo oito da epístola de Paulo aos Romanos se não entendemos a religiosidade helênica e seu conceito de destino.

A antiga religião dos deuses olímpicos, explica Naécia Simões, após a dissolução da pólis, deixou um vazio que as correntes filosóficas do mundo greco-romano procuraram preencher com maior espiritualidade, nos termos de uma necessidade religiosa não racional. Quando apareceu o cristianismo, tornou-se conveniente e necessário à mentalidade pagã “examinar esta fé que reúne adeptos tão fieis, avança por todas as terras e, curiosamente, com recursos intelectuais emprestados à própria tradição clássica, parece aplicar com eficiência as formas necessárias para fazer-se entender por todos, gentios e cristãos”.[1]

Para homens e mulheres da época de Paulo a questão do destino era tema crucial, porque acreditavam que deuses e demônios se divertiam com o sofrimento humano. E esse viver manipulado por deuses e demônios, os gregos e romanos chamavam de destino. Teologicamente, dentro da cosmovisão helênica, destino pode ser definido como potência  misteriosa e personificada que rege o devir universal, incluindo o curso da história humana, sem qualquer possibilidade de intervenção da vontade ou da previsão do ser humano. O destino era entendido como uma lei cega, fixada de antemão, que não se conhece e sob a qual todos estão sujeitos e dela não conseguem escapar. Traduzia uma negação, a impossibilidade da liberdade humana. Um bom exemplo é Édipo, o herói da tragédia grega.

A partir do destino demoníaco, o mundo helênico criou uma teologia de culpa e castigo, onde um profundo pessimismo atravessava o pensamento religioso da época, tanto no mitraísmo, quanto nos cultos de mistério.

O mitraísmo tinha como centro o culto ao deus Mitra, visto como intermediário entre os seres humanos e o Deus supremo. Havia nesta colocação algo similar ao credo cristão, com o qual concorreu, principalmente no terceiro século, ao tempo do Império Romano. Forte concorrente da fé nascente, por suas afinidades, o mitraísmo deixou fortes marcas de sua influência sobre as duas primeiras faces do cristianismo: o romano e o ortodoxo.

As religiões de mistério, místicas e de cultos extáticos, criavam nos seus devotos uma atitude muito propícia para a pregação cristã, porque alertavam para o fato de que por si só nenhuma criatura pode chegar a Deus. Mas esta verdade, sem a componente da graça, desembocava num labirinto: o que fazer? Mas, se por um lado, fatores propícios possibilitaram o diálogo, por outro também deixaram marcas nas correntes místicas do cristianismo medieval e moderno. Muitos teólogos entenderam esse processo. Tillich, por exemplo, em suas reflexões, nunca deixou de lado os aspectos universalizantes do fenômeno místico. “Essa preocupação com o místico aparece também nos textos editados de suas aulas sobre a história do pensamento cristão e dos movimentos teológicos dos últimos dois séculos. Por isso ele ressaltou as religiões de mistério na elaboração da teologia cristã primitiva”.[2]

Ameaçado pelo destino demoníaco, o mundo helênico ansiava por um destino salvador, necessitava graça. E essa é a discussão que Paulo entabula com a religiosidade helênica no capítulo oito de Romanos.

A liberdade do cristão


Em sua carta aos Romanos, Paulo analisa três questões centrais: do capítulo primeiro ao oito fala da justificação pela fé; do capítulo nove ao onze discute a separação temporal dos judeus e a inclusão dos gentios ao povo de Deus, e do capítulo doze ao dezesseis apresenta exortações práticas.

Ao analisar a justificação, Paulo mostra que a libertação humana repousa sobre a fé, proveniente da graça de Cristo e não de aspectos externos, seja a lei de Moisés ou os principados e potestades, o mundo do zodíaco e deuses e demônios da religiosidade helênica. Essa misericórdia de Deus não provém de aspectos externos, estejam eles no céu ou na terra, na vida ou na morte, porque o homem, em sua natureza, não tem como responder às exigências de Deus.

A graça provém de Cristo, que no seu amor e sacrifício, perdoa a alienação humana. A liberdade da vida cristã, que é espontaneidade e criatividade diante da lei, e vitória diante de principados e potestades, do mundo do zodíaco e de deuses e demônios, não depende do próprio homem, nem do que ele possa fazer, mas daquilo que Cristo fez por ele.

Temos no trecho em análise (Rm 8.28-30) dois blocos: um maior, que é o capítulo oito inteiro, cuja temática é a da vida cristã sob a lei do Espírito; e um bloco menor, 28-30, que trata do chamado e vocação do cristão.


O bloco maior nos dá a linha de pensamento de Paulo: uma seqüência de análises sobre a vida: emancipada (versos 1-11), exaltada (12-17), esperançosa (18-30) e exultante (31-39). Dessa maneira, no capítulo oito, o apóstolo traça o curso da vida cristã, na qual a graça triunfa sobre o destino demoníaco e os crentes experimentam a liberdade cristã.

É interessante notar que o texto de Romanos oito, em grego, começa com dois advérbios intercalados por uma partícula ilativa, que poderíamos traduzir: "Atualmente, por isso, nada em absoluto” pode condenar aqueles que estão em Cristo Jesus.

Essa partícula ilativa, que é um conectivo, está relacionada ao capítulo sete, onde Paulo mostra que lei e pecado[3] não são sinônimos, e que há uma grande diferença entre a natureza da lei e a natureza humana, entre o que é Espírito e o que é carnal. O corpo, com os membros que o compõem (7.24), interessa a Paulo enquanto instrumento da vida. Submetido à tirania da carne (7.5), à alienação e à morte (6.12+; 7.23), Paulo clama: quem me livrará? E dá "graças a Deus, por Jesus Cristo, nosso Senhor" (7.25). É a partir desse clímax, que o apóstolo dá seqüência ao texto, informando que "por isso", "hoje", "nada em absoluto" pode condenar os que estão em Jesus Cristo.

 

É a partir desta hermenêutica, delineada nos passos apresentados neste trabalho, que o trecho de Romanos 8.28-30 deve ser interpretado. Teremos, então, uma melhor compreensão daquilo que o apóstolo Paulo chama de "a lei do Espírito da vida em Jesus Cristo" e de sua importância no caminhar do cristão.

 

A dimensão trinitária


Escolha, chamado, vocação, missão e destino são conceitos cujos conteúdos têm núcleos de compreensão que se cruzam e se completam. Para entender tais conceitos, e em especial o de vocação, que Paulo apresenta em Romanos, vamos partir da relação existente entre a igreja e o relacionamento expresso na Trindade.

A igreja é unidade, diversidade e comunhão da comunidade cristã que traduz a unidade, diversidade e comunhão do Pai, Filho e Espírito Santo. Nesta linha de raciocínio, o Pai é o horizonte último, o Filho é a exemplaridade definitiva de como corresponder ao Pai, e a vida no Espírito é o ser cristão concreto.

Nesse sentido, explica Sobrino, a tarefa mais urgente da Cristologia, por causa da declaração doutrinária de que Cristo é o Filho de Deus, “não consiste tanto em re-interpretar in recto o dogma cristológico, o que continua sendo uma tarefa importante, e sim se re-situar o caminho do crente para que sua vida seja pro-seguimento de Jesus e assim ela seja também o processo de sua filiação concreta”.[4]

Por isso, muda também a relacionaridade da igreja com o mundo: a igreja não é mais o lado adulto, completo, da secularidade, mas sinal e instrumento, memorial para a libertação integral de homens e mulheres[5]. A partir desta compreensão devemos entender o sentido eclesial da vocação de pastores, ministros e missionários, e o sentido secular da vocação de trabalhadores, profissionais e empresários, enquanto pessoas chamadas à comunhão com a Santa Trindade de Deus. Cada vocação está ligada ao desígnio do Pai, à missão do Filho e à obra do Espírito Santo.

Esta dimensão trinitária da escolha e chamado mostra a ligação que existe entre a vocação, a vida e a espiritualidade[6]. Escolha e chamado direcionam a um relacionamento pessoal com Deus vivido no interior de uma comunidade concreta. A escolha é psiu de Deus. O chamado inicia um diálogo que pode levar a um encontro com Ele. Mas vocação é uma sedução, uma conquista do coração por parte de Deus, para uma vida de intimidade, de comunhão com Ele. É um casamento.

Por ser um relacionamento de intimidade com a Trindade, a vocação implica em santidade, plenitude da vida cristã e perfeição do amor. Vocação é, então, comportar-se como o Pai se comporta. A santidade é uma prerrogativa de Deus. Deus é santo porque é totalmente diferente dos seres humanos e do mundo, porque ama e acolhe as pessoas.

Somos chamados a participar da santidade divina. A santidade consiste em ser perfeito no amor e o amor é o distintivo dos cristãos. Ser santo significa fazer a diferença, responder aos desafios de cada época num serviço sem medidas. Mas esta mesma santidade é vivida de formas diferentes em razão da diversidade dos dons, dos serviços e dos ministérios.

Quando partirmos de Romanos 8.28, -- sabemos que todas as coisas trabalham juntas para o bem daqueles que amam a Deus, daqueles a quem ele chamou de acordo com o seu plano– vemos que em Deus todas as coisas, circunstâncias, projetos e sonhos, trabalham juntas para cumprir um propósito, dentro de um plano de Deus.

Por isso, vocação não é isolamento, mera busca de satisfações ou realização pessoal. Não é apenas construção de projetos pessoais, mas dar a vida pela defesa da vida. Vocação é amar, é servir, é relacionar-se com a Trindade, a partir do encontro, da relação com o próximo. É responder ao chamado inserindo-se na vida da comunidade. É tomar parte ativa na construção do Reino.

Na vocação somos comunidade, participamos na vida e na missão da igreja. Estes são elementos que não podem ser esquecidos, nesta contemporaneidade marcada pelo individualismo.

Vocação enquanto chamado à comunhão e participação nos leva a descobrir, como elemento essencial do chamamento, a vida de fraternidade. Faz parte da vocação o compromisso de reproduzir na igreja e no mundo o tipo de relacionamento que existe na Trindade de Deus. A participação na comunhão trinitária exige comunhão fraterna entre nós. Não pode ser sincero um relacionamento de comunhão com Deus quando não se traduz no relacionamento com os irmãos.

Não é autêntica a vocação que não se abre à solidariedade. A Trindade permanece como modelo da comunhão que deve brotar da vivência da nossa vocação. Esta vida de comunhão é o que dá autenticidade a nossa vocação. Ela é o sinal mais claro de que estamos vivendo realmente numa intensa comunicação com a Trindade.

Humanos e cristãos


O capítulo 8.29 de Romanos nos diz que “aqueles que já tinham sido escolhidos por Deus ele também separou a fim de se tornarem parecidos com o seu Filho. Ele fez isso para que o Filho fosse o primeiro entre muitos irmãos”. Ou seja, fomos escolhidos e chamados pela graça para sermos parecidos com seu Filho, realizarmos um serviço, uma missão.

Devemos ser imagem do Pai, imagem do Filho, imagem do Espírito, e é isto que faz com que a vocação seja comunhão com a Trindade, que se traduz na experiência do cristão na igreja e no mundo. Segundo teólogos como Bonhoeffer e Schillebeeckx, a pergunta humana da experiência deve sempre ser posta em correlação com a resposta da fé. Essa correlação só é obtida se a pergunta humana pode ser configurada como pergunta que tenha sentido, a respeito da realidade e da experiência, à qual se segue uma resposta humana que tenta articular um sentido, mas que recebe somente da resposta cristã uma superabundância de sentido, um sentido último e definitivo.[7] Quando falamos de vocação, tal correlação pode ser traduzida em três dimensões, que marcam a vida do vocacionado. Nenhuma destas dimensões subsiste em separado, mas estão correlacionadas.

Para Oliveira[8], a primeira dessas dimensões, a humana, é o chamado a ser pessoa humana. Isto quer dizer que, antes de qualquer coisa, o vocacionado tem que ser gente, com todas aquelas qualidades que caracterizam o ser humano enquanto imagem de Deus. Uma atenção particular deve ser dada à capacidade de relacionar-se bem com as demais pessoas, já que a pessoa humana foi criada por Deus como ser social. Como já vimos acima, a vocação é sempre dialogal. Ela só se concretiza nas relações interpessoais, sejam elas as da família, da amizade, das comunidades pequenas ou grandes de que participa o ser humano. Não é possível falar de vocação, deixando de lado as exigências da natureza humana.

A segunda dimensão, a cristã, é o chamado a viver a santidade através de uma participação ativa na vida da comunidade. É o viver em comunhão com Cristo na comunhão e cooperação com os demais. Esta dimensão da vocação se traduz numa tríplice missão: profética, sacerdotal e real.[9] Isto leva à dignidade de todas as vocações e de todos os membros do corpo de Cristo. Existe uma variedade de vocações, de dons, mas todos possuem a mesma dignidade. Ninguém é superior a ninguém, ninguém é melhor do que ninguém. Isto mostra que, em Cristo, a partir do serviço e da obediência, todos temos a mesma missão. 

A terceira dimensão, a particular, é toda vocação, que mesmo sendo vivida na comunidade e a serviço da comunidade, é personalizada.[10] Cada cristão responde a escolha e chamado do Pai de acordo com os dons recebidos do Espírito Santo. A vocação particular é a forma concreta que permite a cada cristão dar sua contribuição para a construção do reino de Deus. Esta dimensão particular da vocação remete à singularidade de cada pessoa. Mas há diversidade também de aptidões, de qualidades pessoais, como as circunstâncias diferentes nas quais brotam e se desenvolvem os chamados de Deus. Mas mesmo realizando de forma pessoal a vocação comum, o cristão deve direcioná-la para a comunidade. Se o Espírito Santo distribui os dons a cada um conforme ele quer, Ele o faz para o bem e uso de todos.

Missão e destino


De volta a Romanos (8.30) vemos que Deus chamou os que havia separado. Não somente os chamou, mas também os aceitou; e não somente os aceitou, mas também repartiu a sua glória com eles”. Ora, a escolha e chamado do Pai, a aceitação através do sacrifício vicário de Jesus é completada na glória da ação do Espírito Santo sobre nossas vidas.

Por isso, o dinamismo da vocação está ligado à escolha e ao chamado, à missão e ao plano de Deus para cada um de nós. Nesta dinâmica, os dons são diferentes capacitações entregues para a realização de serviços diferentes, a partir de diferentes modos de agir, suscitados pelo Espírito e destinados à edificação da comunidade cristã. Poderíamos dizer então que os dons são capacitações do Espírito que tornam o cristão apto para o exercício da própria vocação em favor de toda a comunidade.

Os dons são potencialidades para a execução de serviços concretos, atividades concretas, que possibilitam a vivência de uma determinada vocação particular. Existe, pois, pluralidade de dons. Para cada forma de vocação pode existir uma diversidade de dons. Enquanto meios concretos de atuação de uma determinada forma de vocação, os dons não são apenas dons extraordinários concedidos a pessoas extraordinárias. Eles são elementos que fazem parte do cotidiano da comunidade e não apenas privilégio de alguns.

Dons e vocação não são fins em si mesmos. Existem para a missão. Por isso toda reflexão sobre a vocação requer pensar missão. Dentro de uma teologia evangélica da vocação é preciso destacar a missionariedade da Igreja. Toda a igreja está sujeita à missão. Esta missionariedade deve ser vivida em todos os níveis. Missão não é somente evangelizar, anunciar a salvação, mas viver a boa nova da libertação operada por Cristo dentro da situação atual do mundo, ajudando à humanidade a fazer a história, a contribuir para uma nova criação, construindo no aqui e no agora uma sociedade nova e diferente.

A missão é para o mundo e se desenvolve no mundo, é sempre uma missão de compromisso efetivo com o bem da pessoa humana na sua totalidade. A missão leva o cristão a aproximar-se, com os olhos e com o coração, daqueles que sofrem. Por ser serviço à humanidade, vocação e missão possuem uma dimensão pessoal e uma dimensão comunitária. Pessoal, enquanto cada crente tem o seu jeito de vivenciar a missionariedade da igreja. Comunitária porque esta missionariedade foi confiada à igreja, enquanto comunidade convocada e reunida pela Trindade.

Esta realidade nos obriga a entender que a iniciativa divina do chamado é dirigida à pessoa humana livre. É indispensável por isso entender a questão do destino na sua relação com a dinâmica do chamado do Senhor.

Dentro da visão paulina, destino, no sentido de que os limites estão dados de antemão, é a correlação entre lei e espontaneidade. Destino traduz uma relação dialética com liberdade: destino e liberdade são polaridades; destino implica que a liberdade está sujeita à lei; destino implica que liberdade e lei são interdependentes e complementares. Para Paul Tillich, liberdade e destino formam uma polaridade ontológica, onde a descrição da estrutura ontológica básica e seus elementos atingem tanto sua realização, quanto seu ponto decisivo: “O homem é homem porque tem liberdade. Mas ele tem liberdade só em interdependência polar com o destino”.[11]

Analisando o conceito cristão palestino de destino, exposto por Paulo, podemos dizer que há uma interdependência entre lei e espontaneidade, de tal forma que destino e liberdade se encontram intrinsecamente entrelaçados. Só quem tem liberdade tem um destino, explica Tillich. “As coisas não têm destino porque não têm liberdade. Deus não tem destino, porque ele é liberdade. A palavra destino aponta para algo que está para acontecer a alguém; ela tem conotação escatológica. Isso a qualifica a estar em polaridade com liberdade. Ela aponta não para o oposto da liberdade, mas para suas condições e limites”.[12]

A certeza de que o destino cristão está prenhe de graça tem um significado realizador e não destruidor e, por isso não é demoníaco, ao contrário, é a peça-chave do pensamento de Paulo, quando coloca Cristo acima do destino. Ao fazer isso, Paulo está dizendo que a compreensão plena do destino não está ao alcance do homem, pois há nele uma componente escatológica que escapa ao conhecimento humano.

A verdade incondicional de Deus não está ao nosso alcance. Em nós humanos há sempre um elemento de aventura e risco em cada enunciado da verdade. Mas mesmo assim, podemos e devemos correr este risco, sabendo que este é o único modo em que a verdade pode ser revelada aos seres finitos e históricos.

Quando mantemos uma relação com o Cristo eterno e deixamos de temer a ameaça do destino demoníaco, aceitamos o lugar que cabe ao destino em nossa vocação. Podemos reconhecer que desde o princípio nossa vocação esteve submetida ao destino e que muitas vezes desejou livrar-se dele, mas nunca conseguiu.

Na análise cristã do destino, Cristo e o tempo de Deus estão relacionados. Cristo leva ao tempo de Deus. Cristo envolve e domina os valores universais, a plenitude do tempo, a verdade e o destino da existência. Na vida do cristão a separação entre Cristo e a existência chegou ao fim. Cristo alcançou a existência, penetrou no tempo e no destino. E isso aconteceu não como algo extrínseco ao Cristo, mas porque é a expressão de seu próprio caráter, de sua liberdade.

É necessário, porém, entender que tanto existência quanto conhecimento humano estão submetidos ao destino e que o eterno reino da verdade só é acessível ao conhecimento que transcende o destino: a revelação.     

Dessa maneira, ao contrário do que pensavam os gregos, todo ser humano possui potencialidades, enquanto ser, para realizar seu destino. Quanto maiores as potencialidades do ser, que crescem à medida que é envolvido e controlado pelo Cristo, mais profundamente está implicado seu conhecimento do destino.

Partindo da liberdade que nos foi dada, enquanto imago Dei, nosso destino, que deve ser entendido como manifestação do desígnio do Pai, da missão do Cristo e da obra do Espírito Santo, é o projeto de Deus para nossa vida. Destino é servir à Trindade, num tempo novo, que emerge das crises e desafios de nossos dias. Quanto mais nos aproximamos da compreensão de nosso destino, no sentido de estar colocado, de ser proposto, tanto mais seremos livres. Então, nosso trabalho, nossa vocação será plena de força e verdade.

O projeto de Deus para uma pessoa não é algo estático, mas um chamado que é feito através de mediações concretas. Deste modo a pessoa pode dizer sim, fazendo acontecer a história da libertação, ou dizer não, distanciando-se da missão e do destino que nasceram do projeto de amor do Pai, do Filho e do Espírito.

Igreja e vocações


No que tange às vocações particulares, convém observar que a vocação do cristão é a vocação comum da qual dependem as vocações ministeriais e seculares. Tal vocação de vida consagrada se fará antes de tudo a partir da dimensão simbólica da mesma: somos chamados a contextualizar o significado do ser cristão na vida da comunidade onde vivemos e dentro da qual nos relacionamos. A questão da especificidade de vocação, na igreja e na sociedade, passa por ser seguidor radical de Jesus, profeta e sinal visível da radicalidade do Evangelho.

A vocação de pastores, ministros e missionários, e de trabalhadores, profissionais e empresários deve determinar o específico destes ministérios. Por exemplo, ainda é forte o monopólio por parte de pastores, ministros e missionários. A teologia deve contribuir para a superação da visão privatista presente na formação ministerial. Da mesma maneira, a vocação secular de trabalhadores, profissionais e empresários deve ser entendida como aquela de serviço à unidade da comunidade. Embora a vocação particular do ministério pastoral seja a presidência da igreja.

As dificuldades, no que respeita às vocações, estão ligadas a uma compreensão insuficiente do que é igreja. Por isso, é indispensável uma reflexão sobre o que é igreja.

Devemos começar por uma pergunta: qual o modelo de igreja ao qual nos referimos quando falamos em vocação? Aqui voltamos ao início do texto, onde entendemos igreja como corpo reunido na unidade do Pai, do Filho e do Espírito Santo. Tal visão de igreja contribui para que todos os seus membros vivam em estado de vocação e de missão, sentindo-se convocados pelo Pai para o serviço ao Reino.

Somente uma igreja que é imagem da Trindade pode tomar-se espaço para o surgimento e desenvolvimento de vocações. Isto porque nela os crentes constituem um só corpo em Cristo, com dignidade e variedade de funções, com espaço para a comunhão e participação. Numa igreja assim existe a presença de instrumentos e de organismos que permitem o engajamento dos crentes e abrem caminho para o surgimento das vocações. Aqui os jovens encontram um terreno eficaz para o amadurecimento humano, cristão e apostólico.

Tal igreja é mãe das vocações. Sente-se chamada e ao mesmo tempo convocada a chamar. Tem consciência de ser uma comunidade de pessoas chamadas que, por sua vez, torna-se apelo vivo da Trindade. Este modelo de igreja que comunga e participa se identifica com as vocações de que é constituída. Nela os crentes recebem o chamamento ao sacerdócio universal e à santidade. Nela surgem, por dom do Espírito Santo, os chamamentos especiais para os ministérios e profissões, para a consagração eclesial e secular, e para a vida missionária. Ela é a reunião de todos quantos, em comunhão com o seu pastor e entre si, são chamados pelo Pai a seguirem o Senhor Jesus, de acordo com os dons do Espírito. E porque há identificação, todos se sentem responsáveis pelas vocações.

A igreja onde as vocações podem brotar escuta o clamor da comunidade e vive em processo de renovação. Não reclama privilégios, mas vive na sociedade a sua missão profética, denunciando as injustiças e anunciando o kairós evangélico de uma sociedade nova, humana e fraterna. Tal igreja é capaz de dialogar com a sociedade pluralista, sem abandonar sua doutrina e propósitos. É uma igreja servidora, ministerial (minus stare), onde todos são chamados a servir.

Uma igreja onde os crentes descobrem a realidade em que vivem, os chamados aos ministérios eclesiais (pastores, ministros, missionários) e o sentido das vocações seculares (trabalhadores, profissionais, empresários) de que a comunidade tem necessidade, faz-se igreja necessária. E os compromissos de hoje podem se tornar prelúdio de uma consagração definitiva. Na igreja que está voltada para sua comunidade, os jovens e adultos não são crentes passivos, mas agentes, participantes e responsáveis, protagonistas, de acordo com os dons e as possibilidades de cada um.

Por uma teologia evangélica da vocação

A partir do que vimos vale a pena analisar alguns elementos que podem balizar a construção de uma teologia evangélica da vocação.

Em primeiro lugar, deve ficar claro que as experiências humana e cristã são realidades correlatas ao chamado para as vocações particulares. Por isso, a vocação de pastores, ministros, missionários e de trabalhadores, profissionais e empresários, enquanto chamado de Deus que se realiza na igreja e na comunidade, deve fundar-se numa teologia evangélica e numa práxis em sintonia com nossos princípios e doutrinas.

Partindo desta avaliação é preciso entender que partimos do Deus triúno e da teologia do amor que tal comunhão implica: vocação é relacionamento, o que implica em dar valor à experiência humana e à espiritualidade cristã, mas também dar atenção à questão da inculturação e aos desafios da contemporaneidade. Vivemos um tempo de transição, caracterizado por atitudes ambivalentes. As transformações da sociedade revelam a inadaptação de muitas igrejas, presas à tradição, e a necessidade de novos projetos de existência humana.

E por fim, é preciso definir o específico de cada vocação, dando valor à participação de toda a igreja enquanto corpo de Cristo. Isto traduz a necessidade de se encontrar uma metodologia adequada para cada situação, lugar e grupo de pessoas.

Considerações finais

O cristianismo é a vitória sobre a cosmovisão da religiosidade helênica de que estamos debaixo das forças de deuses e demônios, traduz a idéia de que o mundo é uma criação divina.

É a negação radical do caráter demoníaco da existência em si. Dá à existência um valor essencialmente positivo e valoriza os acontecimentos da ordem temporal. Com o cristianismo, a ordem do tempo não leva apenas ao transitório e perecível, mas também à possibilidade de algo totalmente novo, um propósito e um fim que dá pleno significado à vida humana.

No cristianismo o tempo triunfa sobre o espaço. O caráter irreversível do tempo bom substitui o tempo cíclico, transitório e perecível do pensamento helênico. A partir desse kairós, a presença de Cristo entre nós, destino outorga graça, que traz libertação no tempo e na história. O mundo helênico e sua interpretação da vida foram superados e com eles o pessimismo da religiosidade helênica.

Agora depositamos nossa certeza nas palavras de Paulo em Romanos 11.29, quando diz que “Deus não muda de idéia a respeito de quem ele escolhe e abençoa”. E a partir do chamado e vocação entregues por Deus a nós, realizemos nossa missão, destino glorioso que traduz o desígnio do Pai, a missão do Filho e a obra do Espírito Santo nas nossas vidas, e através delas, na igreja e na sociedade.

Bibliografia recomendada


BRUCE, F.F. Romanos, introdução e comentário. Odayr Olivetti, trad., São Paulo, Vida Nova e Mundo Cristão, 1991.
CULLMANN, Oscar. A formação do Novo Testamento, 5a. ed., Bertoldo Weber, trad., São Leopoldo, Sinodal, 1990.
FRANZMANN, Martin H. Carta aos Romanos, Mário e Gládis Rehfeldt, trads., Porto Alegre, Concórdia, 1972.
LAFON, Guy, Saint Paul, épitre aux romains, Les Editions du Cerf, 1953 e 1973, Paris, GF-Flammarion, 1987.
LEENHARDT, Franz J. Epístola aos Romanos, Waldyr Carvalho Luz, trad., São Paulo, ASTE, 1969.
OLIVEIRA, José Lisboa Moreira de, Nossa Resposta ao amor, teologia das vocações específicas, São Paulo, Editora Loyola.
TENNEY, Merril C. O Novo Testamento sua origem e análise, 2. ed., São Paulo, Vida Nova, 1972.
TILLICH, Paul, La dimension religieuse de la culture, Paris, Genebra, Québec, Les Editions du Cerf, Editions Labor et Fides, Presses de l´Université Laval, 1990.
____________, L´Etre nouveau, tradução de J. M. Saint, Planète, Paris, 1969, do texto original: The New Being, Charles Scribner's Sons, 1955.
____________, Teologia Sistemática, São Leopoldo, São Paulo, Editora Sinodal, Edições Paulinas, 1984.




Jorge Pinheiro é professor da Faculdade Teológica Batista de São Paulo. É Pós-Doutor pela Universidade Metodista de São Paulo e pela Universidade Presbiteriana Mackenzie, Doutor e Mestre pela Universidade Metodista de São Paulo e Graduado em Teologia pela Faculdade Teológica Batista de São Paulo É pastor na Igreja Batista em Perdizes.
[1] Gilda Naécia Simões, “Cristianismo Primitivo e Paidéia Grega”, jornal O Estado de S. Paulo, 21/9/1975. In Seminário Internacional Cristianismo, Filosofia, Educação e Arte, FEUSP, setembro 2001.
[2] Leonildo Silveira Campos, “Os Novos Movimentos Religiosos no Brasil Analisados a Partir da Perspectiva da Teologia de Paul Tillich”, revista eletrônica Correlatio, no. 3.
[3] “O regime da lei no Antigo Testamento era bom, mas temporário (Gn. 3.24, 4.1+), e foi planejado para o mundo da carne e o pecado. Com a morte e a ressurreição de Jesus o regime da lei foi superado. O cristão está livre da lei, assim como Cristo que teve seu corpo carnal feito corpo espiritual (Rm 7.4-6, cf. 1Co 15.45). O cristão não está mais debaixo da lei, mas debaixo da graça (Rm 6.14). E a graça é grátis (Gl 5.1, 13). Na medida em que se é cristão, filho de Deus guiado pelo Espírito (Rm 8.14), a única lei que lhe convém é aquela que Paulo chama de a lei do Espírito (Rm 8.2), não só dada pelo Espírito, mas vivida no crente através do Espírito, que segundo Tomás de Aquino, não é simples norma externa, mas princípio de ação, atividade do Espírito no cristão”. Guy Lafon, Epitre aux Romains, Flammarion, Paris, 1987, p. 59.  
[4] J. Sobrino, Cristologia desde América Latina, Esbozo a partir del seguimiento del Jesús histórico, México DF, CRT, 1976 (2a. ed. ver. 1977), p. 91.
[5] I. Ellacuría, Conversión de la iglesia al Reino de Dios para anunciarlo y realizarlo em la historia, Santander, Sal Terrae, 1985, pp. 179-261.
[6] José Lisboa Moreira de Oliveira, “Teologia e Eclesiologia da Vocação”, revista Espírito no. 65, (jan/mar 1996, pp. 22-31).
[7] E. Schillebeeckx, L`intelligenza della fede: interpretazione e critica (1972), Roma, Paoline, 1975, p. 102.
[8] José Lisboa Moreira de Oliveira, op. cit., pp. 22-31.
[9] Idem op. cit., pp. 22-31.
[10] Ibidem, op. cit., pp. 22-31.
[11] Paul Tillich, Teologia Sistemática, Editora Sinodal, Edições Paulinas, São Leopoldo, São Paulo, 1984, p. 156.
[12] Paul Tillich, idem, op. cit., p. 158.

lundi 23 février 2015

Halakha humana

Halakha humana – uma leitura judaica
Jorge Pinheiro

Théodore Monod disse que não somos meio termo, mas complemento. Não somos cinza, mas preto e branco. Na verdade, os escritos judaicos da Era Comum nos dizem que o Eterno construiu o ser humano e, em seguida, retirou-se para que este humano pudesse ocupar com liberdade o seu lugar. Dessa forma, o ser humano é autônomo por natureza, tem livre-arbítrio e, portanto, responsabilidade. 

Os escritos judaicos, entregues no caminhar da diáspora, entendem que o Eterno aposta na perfectibilidade do ser humano. A criação, vista dessa forma, não está completa, o ser humano continua a criação. Por isso, a construção da espiritualidade é a chave para o futuro humano. É o que leva à criação perfeita. Textos, como os da Cabala, quando falam do acesso ao mundo do Espírito, perguntam: "Você se tornou o que você é?" 

O ser humano é criador de si mesmo. Sua vida é uma viagem com a finalidade do tornar-se. Ele deve saltar do "conhece a ti mesmo" para "tornar-se quem ele é" e "descobrir para que serve". É a viagem que leva à perfeição, e a liberdade é uma viagem dentro de si mesmo, que deve ser realizada através do corte da pedra, símbolo do ser humano, do material em direção ao espiritual. 

O caminho religioso não pode estar separado da revolução permanente do espírito humano, já que o sentido do renascimento promissor e a revolução permanente do espírito são desafios universais. Ambos negam todo dogmatismo totalitário que confronta o pensamento livre. 

Duas noções fundamentais, a do ser e a do devir, estão intimamente ligadas às ideias de caminho religioso e revolução permanente do espírito. Só o Eterno é único. Na tradição judaica, quando falamos "Ser" estamos a falar do Eterno. Mas os humanos caminham no sentido de se tornarem ser. Precisam caminhar sua viagem, simbólica, do material e religioso em direção ao espiritual, a fim de integrar, interiorizar a simplicidade sublime do Ser Eterno. É nesse sentido que o caminhar deve gerar harmonia, paz que leva à coexistência de progresso e tradição. 

Nesse sentido, a comunidade religiosa, enquanto associação de grupo, não deve ser obstáculo para o caminho espiritual, ao contrário, compreendido o conceito de comunidade, de estar junto para repartir o pão, tal comunhão não deve desenvolver ambição, orgulho ou reflexo xenófobo, mas abertura para o mundo. Seu significado não é excluir a fraternidade, mas estendê-la da comunidade em direção a todos os humanos. O objetivo é difícil, mas não há esperança se não perseveramos em direção ao sucesso.
 
Aprender a liberdade é o primeiro momento dessa construção, comemorada na Páscoa, enquanto caminhar em esperança. Caminhamos em direção ao outro e para cima. Esta tradição foi transmitida aos judeus pela Torá, e está presente nos 613 mandamentos, em que se baseiam a coesão da comunidade judaica. 

O caminhar associado a revolução permanente do espírito deve levar a uma espiritualidade sem dogmas. É um caminhar baseado na fraternidade universal. Donde, tradição e progresso pode fazer sentido na existência do humano, enquanto elo da cadeia da vida. 

Nesse caminhar descobrimos, conforme nos foi revelado, que o Eterno é  impensável, incognoscível, impenetrável, mas presente no universo em todos os seus planos. O Eterno não pode ser nomeado. A única designação autêntica é precisamente a rejeição de qualquer definição é "ein Sof", aquele que não tem fim, Eterno. O Espírito absoluto é essência por si só. O Eterno é o único, única manifestação visível do invisível. Mas a harmonia universal resulta da complementaridade dos opostos. A vida é um ponto na eternidade. 

Devemos ser, todos nós humanos, aqueles que esperam pelo mundo do Espírito. E o amor é a chave para a vida. Pois, amar uns aos outros é reconhecer a centelha divina dentro do outro, e ajudá-lo a entender e a exaltar o sentido pleno da vida. 

Nesse sentido, o amor permite reconhecer a dignidade do trabalho. Semeia as sementes da revolta contra a injustiça e a opressão, inclusive religiosa. Reconhece o fato de que o sofrimento é um desequilíbrio do mundo. Mas, temos consciência, de que o amor não pode ser rebaixado, enquanto concepção que degrada a dignidade do ser humano. Ou seja, amar uns aos outros, não é fé, não é destino, é ato de encontrar o entusiasmo da partilha com todos e todas.

É isso aí. O judaísmo permanece presente na construção do pensamento ocidental, leigo e religioso. Boa discussão.