mercredi 26 juillet 2017

Que diferença faz a presente circunstância?

Identidade e eternidade
Moshe Pinheiro e François Broussais conversam

Jorge Pinheiro


Moshe Pinheiro, rabino italiano, que viveu em Livorno, no século XVII, foi um dos discípulos mais influentes de Shabbetai Zebi, com quem estudou literatura talmúdica e cabalística (1640-1650). Mas não apoiou as reivindicações messiânicas de Shabbetai Zevi, em 1648. Por volta de 1650, deixou Izmir e se estabeleceu em Livorno, onde se tornou um mestre respeitado.

François Joseph Victor Broussais (1772-1838), médico francês, estudou a relação entre fisiologia e patologia e caracterizou toda patologia como inflamação dos tecidos. Sua noção de fisiologia foi utilizada por Augusto Comte na construção da nascente ciências sociais.


(Paris, 30 de maio de 1830) -- Meu caro Moshe, a busca da justiça passa por colocarmos no seu devido lugar a questão da identidade humana. Veja você, será que a existência se reduz a um conjunto de sensações, de emoções? Não podemos admitir a identidade de uma pessoa se ela não puder ser percebida pelos sentidos? Se for assim, o cérebro é a causa da identidade e qualquer outra hipótese é inútil.

Broussais, é gostoso conversar com um gênio da medicina, como você, mas aqui eu fico com algumas informações de seus colegas. Se no corpo humano existem apenas fenômenos sucessivos, sem laço que ligue o passado ao presente, como se explicam o hábito, a associação de idéias e a memória? Ora, é necessário admitir que existe em nós uma realidade que vai além do cérebro e se liga aos atos que praticamos. Esta realidade é a própria identidade que expressa a existência de cada um de nós. E se existe a existência, tenho que perguntar o que ela é.

Tomando como modelo a complexidade do mundo, prefiro dizer que devemos ver que existem duas hipóteses: a existência vai além do corpo ou só existe o corpo e o resto é extensão dele. Mas como combinar uma indigestão com o arrependimento?

Prefiro dizer: somos substância extensa, divisível e palpável, seguimos e vamos além do corpo. A existência é essa extensão e cada pessoa tem uma identidade na existência. Não é uma unidade numérica, mas una por ser simples e indivisível. Mesmo quando a gente envelhece e o corpo muda, a identidade permanece idêntica a si mesma. Somos um ao longo do tempo e é esta imutabilidade na existência que me confere identidade.

Moshe, amigo, você defende o princípio da coexistência. Você está dizendo que eu sou dois. Um pedaço de mim envelhece, se desgasta e o outro não muda. Não concordo com isso!

Eu sei muito bem, porque tenho trabalhado com isso, que o cérebro está ligado à vida mental. Se um paciente sofre uma lesão cefálica é quase certo que vai sofrer algum tipo de dano psicológico. Embora ainda não se saiba como, o funcionamento do cérebro, as emoções e a memória estão relacionados. Embora não possamos correlacionar os estados psicológicos com os estados cerebrais, sabemos que tal correlação existe. Por isso eu digo que a vida mental tem origem no cérebro e que a existência enquanto extensão não existe.

Espera aí, Broussais, me deixa aprofundar os argumentos. A existência está unida ao corpo e participa da vida do corpo, inclusive para realizar as suas operações. Mas, também é independente do corpo nas suas funções intelectuais. Deste modo, a existência pensa e deseja sem a ajuda destes órgãos. Assim, a existência não está imersa no corpo, é independente sob diversos aspectos.

Lembro-me de que Aristóteles dizia que um ser se conhece por suas operações. Ora, de onde vêm as idéias? Ser inteligente, pensar são atividades da pessoa ou da existência? É a existência que trabalha a inteligência. A matéria está presa às leis da matéria, mas a existência por ser extensiva tem maior liberdade diante dos impulsos da sensibilidade. A existência goza de livre arbítrio.

A simplicidade que caracteriza os fenômenos da inteligência impede que afirmemos que o cérebro seja a causa do pensamento. Mas, é verdade, a inteligência precisa para se expressar de um cérebro saudável.

Há uma parte do seu argumento que eu gosto, Moshe, aquela em que você fala da liberdade humana. Só que para falar de livre arbítrio não é necessário falar de existência. Você disse que a existência é extensa, una e indivisível, então como ela pensa, como se relaciona com os cérebros? Além disso, você não explicou o que torna uma existência a mesma ao longo do tempo.

Bem, amigo Broussais, creio que aqui nossos argumentos se esgotam e explicam os diferentes caminhos que buscamos para encontrar a justiça. Aqui está a nossa divergência: para mim, o cérebro é o instrumento de que se vale a existência para expressar os pensamentos extensos. E tomo como ponto de partida Aristóteles, quando disse que pensamos sem órgãos, que o entendimento não está ligado a nenhum órgão, e que pode trabalhar e existir separado do corpo.

Bem, Moshe, já que você citou Aristóteles, quero terminar esta conversa com um exemplo apresentado por John Locke. Ele criou uma parábola: um príncipe interrogou-se sobre como seria viver como um sapateiro. E um sapateiro sonhou em ter uma vida de príncipe. Um dia eles tiveram a oportunidade de trocar todas as características mentais de ambos. O corpo do sapateiro passou a ter a memória, conhecimento e atributos pessoais do príncipe, cujas características mentais migraram para o corpo do sapateiro.

Depois da troca, a pessoa no corpo do sapateiro lembrou-se ter sido um príncipe que desejava experimentar a vida de sapateiro. Ele disse: “Puxa, satisfiz minha curiosidade!” Reconheceu-se como príncipe e não como sapateiro. E vice-versa. Será isso mesmo?

Mas Locke resolveu complicar um pouco mais a questão: disse que o príncipe havia cometido um crime horrível, e para escapar da condenação resolveu recorrer à troca de cérebros. Após a troca, o crime foi descoberto, e os guardas vieram buscar o culpado. Sem saberem o que aconteceu, prenderam a pessoa que está no corpo do príncipe, que começou a gritar se dizendo inocente. A pessoa no corpo do sapateiro, que se reconheceu como o príncipe criminoso, saltou de alegria por ter escapado da condenação. Ora, se foi assim, era uma enorme injustiça, pois quem deveria ser condenado era a pessoa no corpo de sapateiro e não a pessoa no corpo do príncipe.

Com essa parábola, Locke queria mostrar que a nossa identidade obedece à continuidade do meu cérebro. De acordo com a teoria proposta por Locke, uma pessoa no passado permanece idêntica a ela mesma no futuro se forem mantidas a memória e as características individuais dela. A teoria de Locke afirma que o príncipe no corpo do sapateiro é de fato o príncipe e, por isso, aquele corpo do sapateiro é culpado pelos crimes do príncipe, uma vez que lhe é psicologicamente contínuo. E este deveria ser o veredicto correto: o sapateiro com o cérebro do príncipe é quem deveria ser condenado.

Locke foi genial, mas eu pergunto: e se pudéssemos duplicar um cérebro e colocá-lo em corpos diferentes. Esses dois corpos seriam pessoas iguais ou diferentes? E se fossem diferentes, onde estaria a base da identidade da pessoa, o que faria dela uma pessoa diferentes da outra? Logicamente, não o cérebro, mas a existência que cada uma passaria a viver a partir dos cérebros colocados nos corpos. Com isso, quero dizer que a identidade de uma pessoa não reside no cérebro apenas, mas na existência que se vive. Ou seja, é a existência que constrói o nosso cérebro.

É Broussais, talvez aí haja um ponto de contato entre nós. Talvez essa existência seja a nefeche raiá soprada em nossas narinas, que será construção no caminhar de nossas experiências, sentimentos, emoções. E se for assim até mesmo a identidade é uma construção, algo que nos pertence enquanto potência.

A parábola de Lázaro e o homem rico é uma das passagens mais marcantes referente ao estado do ser humano após a morte. Aqui se evoca imagens bem ilustrativas de recompensa e juízo. É interessante notar que o rabino de Nazaré construiu essa parábola para os fariseus e não para os saduceus. Os saduceus não pensavam existir uma vida além-túmulo no sentido de céu e inferno, apoiando-se nos conceitos mais tradicionais do judaísmo do Sheol como o lugar de todos os mortos, sem diferenciação. A parábola, como todo o texto maior do evangelho de Lucas, discípulo do nazareno, desde o capítulo quatorze, parece estar bem dirigida aos fariseus, que tinham expectativas messiânicas e escatológicas desenvolvidas. O ensino, portanto, tem uma audiência específica. Parece que o tratamento do reino dado pelo rabino para os saduceus teria uma ótica e ênfase diferente.

Tem sido comentado que o rabino de Nazaré parece colocar mais ênfase no ensino referente ao inferno do que propriamente no ensino referente ao céu. Deve-se lembrar, porém, que o inferno não é o contraponto ou oposto do céu, mas do reino. Nestes termos, o ensino do rabino é bem dirigido à inclusão dos saduceus. O reinar já chegou e começa no aqui e no agora. Esta vida no reinar é a “vida das eternidades”, que começa aqui e continua para sempre. Como a vida do reino é deixar que o Eterno reine no pessoa e no corpo, o céu é a continuação do reinar do Eterno, mesmo após a morte.

A morte não interfere no reinar, apenas modifica a esfera de sua atuação. O ser humano continua após a morte o seu relacionamento com o Eterno, seja como for o mesmo -- na intimidade do reinar do Eterno ou na separação do Eterno, o inferno.

Para tratar a parábola de Lázaro e o homem rico, é necessário ver alguns assuntos do contexto maior do evangelho do discípulo Lucas, desde o início do capítulo quatorze. Em geral, uma parábola é dirigida a alguém para evocar uma resposta. Assim, é necessário compreender o contexto a quem a parábola estava sendo dirigida e com que motivo foi empregada pelo rabino. Também algumas questões devem ser colocadas de antemão.

O contexto maior começa fazendo uma diferenciação entre a prática dos fariseus e a forma de vida do reinar que o rabino pregava. Desde pelo menos o capítulo quatorze, o rabino lança uma série de críticas aos religiosos do seu dia. Com esta crítica, enfatiza o tipo de vida do reinar de Deus, a vida das eternidades, por sua qualidade.

A crítica do rabino de Nazaré questiona a confiança de quem tem certeza de que estará presente no grande banquete escatológico: são os pobres, os coxos e os cegos que se encaminham ao banquete, porque as pessoas mais óbvias da lista de convidados estão preocupadas com outros assuntos.

Se um louco pudesse ter transplantado o cérebro lesado por um outro que fosse são, com certeza pensaria de modo correto. Isto porque a desordem e a deterioração dos órgãos não lesam a inteligência em si mesma, mas somente a privam das condições e meios requeridos para o seu funcionamento normal. Pode-se dizer, então, que o cérebro é a interface entre o espírito e o mundo material.

Aristóteles, Tomás de Aquino e a maior parte dos espiritualistas não admitem nas pessoas dois princípios de vida, mas afirmam que além da atividade consciente e psicológica, a existência inteligente possui também a faculdade de presidir às funções fisiológicas. Desta maneira, a existência seria o único princípio de toda a atividade vital do homem, da sua vida vegetativa e sensitiva e, também, de sua vida propriamente espiritual.

Já vimos que a correlação íntima que existe entre as diversas operações da existência pensante, sensibilidade, inteligência e vontade, prova a unidade substancial do princípio de onde elas se originam. Esta mesma correlação se verifica entre as operações psicológicas e as funções orgânicas.

Uma comoção violenta da existência faz parar a circulação do sangue, o medo paralisa, e a confiança sustenta as forças físicas, o trabalho intelectual intenso retarda a digestão, poder-se-ia citar fatos que provam a influência do físico no moral, e reciprocamente. Demonstrada a união da existência e do corpo, como se faz esta união? O corpo não existe antes da sua união com a existência. Da existência, o corpo recebe a sua unidade, a organização, a vida e atividades próprias, numa palavra, tudo o que faz dele ser humano.

Assim, o corpo apenas se separa da existência pela morte, quando perde todos estes caracteres, todas as suas determinações específicas, dissolvendo-se nos elementos químicos de que foi formado. Quanto à existência, sem dúvida que existirá separadamente do corpo, vivendo a sua vida espiritual mas, sem o corpo, não mais poderá exercer as faculdades que exigem o concurso dos órgãos corporais, como a sensibilidade, a percepção externa e a imaginação.

Deste modo se conclui, com Aristóteles, que o corpo é a matéria, e a existência é a forma, e que a união do corpo com a existência faz um todo verdadeiro e substancial. É esta união no ser que faz da existência e do corpo um só princípio de ação, que faz com que não haja ação humana na qual o corpo não faça a sua parte, nem ação humana tão humilde e material que não repercuta na existência. É este o princípio que coloca em cheque o racionalismo de Descartes, expresso na frase: penso, logo, existo.

Com a morte, o corpo se dissolve. Acontecerá o mesmo com a existência e morreremos inteiramente? O que é a imortalidade?

A imortalidade consiste na sobrevivência substancial e pessoal do eu, na identidade permanente da existência, que conserva as suas faculdades de conhecer e amar, sem as quais não há felicidade humana. Após a morte, a existência mantém a consciência da sua identidade, com as lembranças e responsabilidades do seu passado, sem as quais não poderia haver nem recompensa nem castigo: em uma palavra, não existiria o princípio da justiça divina. A metafísica afirma que a existência é imortal por sua natureza não corruptível. A razão para a sua sobrevivência após a morte do corpo é demonstrada pelo argumento moral. Que esta sobrevivência é indefinida e ilimitada, prova-o o argumento psicológico.

O corpo se desagrega e se dissolve logo que se separa do seu princípio de unidade, da sua forma substancial que é a existência. A existência ao ser como é, simples e espiritual, não pode decompor-se nem se desagregar -- não morre, pois, com o corpo. Este é o argumento metafísico da imortalidade da existência.

Se há o Eterno e lei moral, a justiça exige absolutamente que o crime seja punido e a virtude seja recompensada. Neste mundo, nem a natureza, nem a sociedade, nem a própria consciência dispõem de sanções suficientes para recompensar plenamente a virtude ou punir adequadamente o vício; é necessário, portanto, que haja outra vida onde a justiça seja plenamente satisfeita, e a ordem seja estabelecida. Este é o argumento moral, que demonstra a sobrevivência da existência, mas não prova que esta existência seja ilimitada na sua duração.

O argumento psicológico, que prova a perseverança da existência humana depois da morte, assenta sobre o princípio de que o Eterno não se contradiz, por isso ao dar um fim a um ser, lhe dá também os meios de o atingir. Tudo na natureza do humano aponta para o fato de que é criado para atingir a felicidade. Mas, se não pode alcançá-la neste mundo, deve haver outra realidade onde tal projeto se concretize. E como felicidade pressupõe expansão sem limites, segue-se que a realidade futura teria esta qualidade.

O ser humano aspira a um objeto infinito, a uma verdade, beleza e bondade absolutas, cuja posse nos deve fazer felizes. Nossas faculdades superiores possuem capacidade ilimitada, que não se pode satisfazer fora deste bem infinito, que não é outro senão o próprio Eterno.

Mas, o que encontramos neste mundo que apague esta sede de felicidade humana, que preencha o vazio do coração criado para o infinito? A natureza é tão limitada e o mundo tão pequeno; esta vida é tão curta e a realidade tão imperfeita! Queremos amar, queremos viver o mais possível, mas encontramos decepção, dor e morte. Assim, é evidente a desproporção entre os nossos meios e as nossas necessidades.

O conceito hades é a expressão grega utilizada na Bíblia dos setenta para traduzir o termo hebraico sheol, lugar de continuidade daqueles que deixaram o mundo dos vivos. Na Torá, sheol é uma expressão de origem incerta, mas que aparece 65 vezes no testamento hebraico-judaico. O conceito sofreu mudanças ao longo da história da religião judaica. No rolo de Eclesiastes, por exemplo, nem entra em cogitação a possibilidade de uma vida além-túmulo. Quando, porém, surge na religião de Israel a construção do conceito de vida além-túmulo, surge como lugar de silêncio. O termo sheol, aparece, no entanto, ao lado de outros, como abadon, cujo primeiro significado é destruição, mas vai ser lido também como reino dos mortos. As duas expressões, porém, são imprecisas e estão muito vinculadas ao contexto em que estão inseridas. A idéia geral mais ampla seria de lugar dos que dormem. No rolo do patriarca Jó, abadon é a personificação do lugar de destruição. E o tehom, que pode ser traduzido por profundezas, abismo e, inclusive, pela idéia de deserto são símbolos da religião antiga de Israel para o mundo dos mortos. E uma das passagens mais ilustrativas do conceito de sheol está no rolo do profeta Isaías.

“O sheol desde o profundo se turbou por ti, para sair ao teu encontro na tua vinda; ele despertou por ti os mortos, todos os que eram príncipes da terra, e fez levantar dos seus tronos todos os que eram reis das nações. Estes todos responderão, e te dirão: Tu também estás fraco como nós, e te tornaste semelhante a nós. Está derrubada até o sheol a tua pompa, o som dos teus alaúdes; os bichinhos debaixo de ti se estendem e os bichos te cobrem. Como caíste do céu, ó estrela da manhã, filha da alva! Como foste lançado por terra tu que prostravas as nações! E tu dizias no teu coração: Eu subirei ao céu; acima das estrelas do Eterno exaltarei o meu trono; e no monte da congregação me assentarei, nas extremidades do norte; subirei acima das alturas das nuvens, e serei semelhante ao Altíssimo. Contudo levado serás ao sheol, ao mais profundo abismo.”

O contraste entre o desespero que se agarrava às existências dos homens no sheol, e a esperança que surgia pela esperança da ressurreição, está expressa no apocalipse do profeta Isaías. Ele diz com respeito aos ímpios: “Os falecidos não tornarão a viver; os mortos não ressuscitarão; por isso os visitastes e destruístes, e fizeste perecer toda a sua memória”. E tomado pela esperança declara que “os teus mortos viverão, os seus corpos ressuscitarão. Despertai e exultai, vós que habitais no pó, porque o teu orvalho é orvalho de luz”. O ser levantado para a vida é realidade do Eterno e do coração reto humano diante do Eterno. No texto cristão do Apocalipse, a morte e o hades são jogados no lago de fogo e sua força sobre a existência é aniquilada, de forma que tais poderes ficam sob o domínio do Eterno.

Ao retratar o conceito de inferno, com o emprego de termos como sheol e hades, os limites dos conceitos estão determinados pelas conotações das cosmologias antigas. Na cosmovisão hebraica de universo, o sheol fazia parte do mundo subterrâneo. O rabino de Nawaré trabalha a partir dessa cosmovisão, mas sua intenção na parábola não é realçar a dimensão espacial, mas a realidade relacional. Por isso, inferno não é tanto dimensão espaço-temporal, mas estado de solidão, separação, do Adon da vida. A leitura hebraico-judaica realçava o conceito normativo de retribuição. O justo recebia recompensa material, e o injusto carecia de bens, prazeres e saúde. Ricos eram naturalmente abençoados pelo Eterno e dignos do reino messiânico. Mas o rabino de Nazaré desconstrói essa normatização e nomeia o mendigo. É interessante notar que o pobre tem nome, é Lázaro, mas o rico não.

Lázaro é Eliezer, aquele a quem o Eterno ajuda. É grego transliterado. Ter nome compõe identidade, nomeia o quem é quem. Há aí distinção entre o valor da vida do pobre em relação ao rico. Naquela sociedade o rico tinha destaque, e atuava com desprezo frente ao mendigo. O Eterno, porém, o socorre. O rabino de Nazaré faz, assim, críticas às práticas dos fariseus: a negligência para com os despossuídos de bens e direitos, o fazer bem aos que podem retribuir, o orgulho e a infidelidade à lei, que exige amor ao próximo. O ensino do rabino nos últimos capítulos do evangelho do discípulo São Lucas está resumido nesta parábola.

O rabino de Nazaré fala da vida e embora trabalhe dentro da cosmologia hebraica antiga, levanta algumas questões que direcionam o pensar além-túmulo: há consciência do estado, memória, juízo imediato, mesmo que intermediário, o que implica em alguma forma de retribuição. Há conforto para os justos oprimidos, não há mudanças no juízo, e a informação para receber o descanso está na lei e nos profetas. Assim, o Eterno se preocupa com aqueles descartados pela sociedade. Não há retorno para esta vida terrestre após a morte. A confiança no Eterno é o único mérito de Lázaro, que se expressa no nome que tem. A vida neste mundo é de pouca valia quando se passa à dimensão além-túmulo.

Uma pergunta que provém do estudo da parábola pode bem ajudar a redefinir as prioridades do quotidiano. Que diferença faz a presente circunstância ou forma de atuar em termos de vida daqui a dez mil anos? Em certo sentido, é esta a pergunta do rabino aos fariseus através desta e outras palavras de ensino. Em outra passagem se registra as palavras do rabino em reação à preocupação de ter um corpo inteiro na ressurreição -- para tal queriam guardar qualquer parte do corpo que fosse amputado para ser incluído com o resto do corpo no sepultamento. Nesse contexto, o rabino de Nazaré diz que é melhor arrancar e jogar o olho fora se fizer a diferença no ingressar no reinar de Deus. Muito melhor viver no reino coxo, cego, ou aleijado do que perder o reino por completo.

Logo, se há um Eterno sábio e justo, esta contradição não pode ser definitiva; deve haver outra vida onde se restabeleça o equilíbrio entre o que desejamos e o que podemos, uma vida em que sejamos perfeitamente felizes. A duração ilimitada da imortalidade constitui o elemento essencial da felicidade completa; não se pode gozar plenamente um bem quando receamos perdê-lo. A incerteza dói tanto mais quanto maior é o bem possuído.

Logo, a vida futura da existência, a imortalidade, não tem fim, é infinita e ilimitada, e a sua tendência natural é a prática da virtude, em conformidade com os desígnios do seu criador, o Eterno.







dimanche 23 juillet 2017

O futuro de Israel

Israel e o futuro

Em 1995 (20/11) escrevi artigo para a Folha de S. Paulo intitulado Aliança e Fundamentalismo em Israel. Embora o artigo não tenha sido publicado, acho que nos dá algumas diretrizes para a discussão sobre o moderno Estado de Israel e o futuro. Por isso, vamos partir dele.

Aliança e Fundamentalismo Em Israel

Em entrevista a Folha de S. Paulo, falando sobre a Palestina, o filósofo francês André Glucksmann, que é judeu, afirmou que o fascismo está de volta. Declaração inquietante, pois para ele o Hamas, Movimento de Resistência Islâmico, e o partido Kach, que defende a existência de Israel como estado teocrático, são cara e coroa dessa moeda fascista emergente.

É certa que para a vítima de qualquer atentado, não importa muito de onde vem a bala, se do Hamas ou do Kach. Porém, é necessário ir além das aparências. Definições apressadas impedem a compreensão do que está acontecendo com a oposição em Israel.

Ela tem um amplo espectro, que vai do Likud ao partido Kach. A política do Likud, para os territórios ocupados, é a da autonomia limitada, enquanto a política do Kach, elimina qualquer possibilidade de negociação com árabes e palestinos. Por ser considerado “racista e antidemocrático”, o partido Kach foi colocado à margem do processo eleitoral, pela Corte Suprema israelense, em outubro de 1988. Dois anos depois, seu líder, o rabino Meir Kahane, foi assassinado em Nova York.

Apesar as aparentes diferenças, há uma questão teológica que unifica o pensamento religioso em Israel: é a questão da aliança. O conceito de aliança é o centro da teologia judaica. É anterior à própria legislação recebida por Moisés no Sinai, pois, acreditam os judeus religiosos, foi feita com Abraão, 400 anos antes da saída do Egito. Segundo o rabino-chefe de Israel, Israel Meir Lau, em entrevista ao correspondente desta Folha, Otávio Dias, os judeus religiosos se opõem à paz ‘porque seguem a Torá, a Bíblia, que descreve as fronteiras prometidas por Deus a Abraão, Isaque e Jacó’. Nessa aliança conforme descrito no capítulo 15 de Gênesis, Deus promete entregar à descendência de Abraão uma terra que vai do rio do Egito (leia-se Nilo) até o Eufrates. Essa é a terra da promessa, Eretz Israel, para os judeus religiosos em todo o mundo.

Para nós, ocidentais, é difícil entender a centralidade da terra de Israel na fé judaica. Nos últimos dois mil anos de diáspora, os judeus expressaram a fé nessa aliança com uma frase: “O ano que vem, em Jerusalém”. Por essa Eretz Israel lutou uma galeria de homens, a começar por aqueles descritos na Bíblia, passando por heróis nacionais, como o rabino Matatias e seus filhos Macabeus, até os guerrilheiros judeus durante a ocupação britânica. Todos esses homens estavam imbuídos do conceito de aliança. Muitos deles seriam hoje chamados, no mínimo, de fundamentalistas.

O que une a oposição israelense é esse conceito, que faz parte da história do judaísmo: uma terra, prometida por Deus, que não se limita as atuais fronteiras, mas está em expansão. Para milhares de judeus, que pensam como o rabino Kahane, a entrega da faixa de Gaza, Jericó e Jenin aos palestinos, a devolução das terras no sul do Líbano, e das colinas sírias do Golã levarão Israel à derrota frente a seus inimigos. Por isso, para os religiosos judeus, Israel só tem sentido enquanto Estado teocrático, segundo a aliança e regido pelas leis de Moisés. Para os crentes nessa visão, a coalizão dirigida por Yitzhak Rabin [assassinato posteriormente] representa os inimigos de Deus dentro de Israel.

O pensamento religioso é a fonte da existência de Israel. Rabin representou, e sua coalizão representa, o ideal ocidental para a Palestina, pressionado por Washington desde a época em que James Baker era secretário de estado, no governo de George Bush. É interessante lembrar que em maio de 1989, Baker em discurso perante a Comissão Americano-Israelense de Assuntos Públicos afirmou que o governo de coalizão do Likud com os trabalhistas deveria abandonar a política de um Grande Israel, interromper a instalação de colônias nos territórios ocupados e negociar a paz com os palestinos. O que acabou levando a coalizão a uma séria crise.

Historicamente, uma experiência parecida, de forte pressão política externa, a da helenização, explodiu na guerra dos macabeus, que teve início no ano 166 a.C., e que levou Israel a vitória e a um expansionismo inédito. Outra experiência, a ocupação romana, teve resultado inverso: acabou com Israel enquanto nação.

É cedo para definir os caminhos da iniciante pacificação palestina. Mas, sem dúvida, olhando a história judaica, é muito difícil imaginar uma Eretz Israel distante do nacionalismo teocrático.

Uma viagem pelo Israel bíblico

Deus prometeu uma terra a Abraão, fazer dele uma grande nação e através dele abençoar todas as famílias da terra. Prometeu a Abraão um herdeiro, gerado por ele, uma descendência como as estrelas do céu e uma terra que iria do Nilo ao Eufrates. Sim, foram cumpridas literalmente: primeiro durante o reinado de Davi e Salomão (1 Rs 4:21), quando o seu poderio político, diplomático e militar estendeu a presença hebréia a toda a Palestina. E depois durante o auge da dominação dos hasmoneus.

A benção que Abraão representaria para os povos é o Messias. Jesus, o Cristo, trouxe a salvação para todos os povos. E os filhos de Abraão, filhos da fé em Cristo, são como as estrelas do céu.

A aliança que Deus fez com Abraão é eterna, porque Deus quer que um remanescente de Israel aceite o Messias e seja salvo. Assim, a centralidade da terra de Israel estava dentro dos planos de Deus no Antigo Testamento, era a concretização da aliança feita com Abraão. Enquanto a antiga aliança vigeu, a promessa e seu cumprimento estiveram diante de Israel. No entanto, há uma condicionante, não da parte de Deus, mas da parte de Israel (Ex. 19:5-6). As promessas de reconstrução, como Amós 9:11-15, Zc 8:2-3; 9:9-10 referem-se ao tempo do Messias, quando Jerusalém e o templo exultaram com a presença do filho de Deus.

A promessa a Abraão foi incondicional, mas já se cumpriu. Incondicional é diferente de contínua. A promessa tinha um objetivo, uma finalidade, preparar o caminho para o Messias e a redenção da humanidade. As maldições da lei mosaica não entram em choque com a promessa, apenas mostram que Deus é justo e que o pecado poderia afastar Israel das bênçãos da promessa. E que a alienação dos judeus da terra que Deus lhes deu é uma conseqüência da condicionalidade das bênçãos.

É fundamental entender que a nova aliança é firmada com a casa de Israel. Essa nova aliança não tem mais como centralidade uma geografia específica, um lugar definido no planeta. Ela é cósmica, e está escrita no coração. Dentro dessa perspectiva é que devemos ler Ez 37:15-28. É uma promessa escatológica, para o Israel espiritual, que reúne a igreja e os remanescentes do Israel físico. Sem dúvida, a posteridade de Davi durará para sempre. Quer através dos remanescentes, quer através dos filhos espirituais de Abraão. Na verdade, conforme vemos em Hebreus 8:8-12 a velha aliança desapareceu. Vivemos uma nova aliança, que é não somente eterna, mas permanente, contínua.

Foi prometido que viria um rei, um descendente de Davi, que teria seu reino estabelecido pelo próprio Deus. Viria como criança, mas é maravilhoso conselheiro, Deus forte, Pai eterno, Príncipe da paz, terá o espírito de Iaveh, sábio, inteligente, julgará com justiça, desprezado, homem de dores, ferido, humilhado, etc.

Assim há dois momentos do ministério do Filho do Homem: o primeiro de Servo Sofredor, Cordeiro de Deus, ferido e morto para salvação de todo aquele que nele crê; e Filho do Deus Altíssimo, aquele que virá para julgar e reinar para sempre.

Os discípulos queriam saber se era aquele momento em que o Cristo haveria de restaurar a realeza em Israel. No capítulo 11 de Romanos há dois conceitos paulinos que devem nortear nossa análise: o endurecimento por parte de Israel e a plenitude (pleroma) dos gentios. A relação dialética desses dois conceitos leva a uma síntese...”e assim todo Israel será salvo” (v. 26). Em que sentido Paulo está utilizando a expressão todo? No versículo 32, ele usa todos no sentido de israelitas incrédulos, que encontram a salvação através do arrependimento e da fé.

Em relação ao versículo 26 podemos optar por três variáveis: Paulo está falando do Israel espiritual; pode estar falando do Israel racial ou ainda de um remanescente do Israel histórico. Dificilmente, poderíamos aceitar que todo Israel significa a salvação universal de homens e mulheres israelitas devido sua origem genética, já que tal idéia entra em choque com o que Paulo ensina (2:28-29).

Por isso, o mais lógico, se aceitamos que o texto fala mesmo do Israel racial é considerar que esse todo refere-se a aqueles que, pela fé, aceitam a Jesus como seu salvador pessoal. A crescente conversão de judeus mostra que a noção daquilo que sobrou, resto ou remanescente realiza-se plenamente no conceito assim todo Israel será salvo. Se entendermos assim, fica claro que a graça fundamenta a eleição. Ou seja, o que esteve separado - antes eram oliveiras diferentes - já não será assim. Agora, são uma só.

O centro nevrálgico do livro de Jeremias é Jr 31:31-34. Depois do fracasso da antiga aliança (cf. versículo 32 e Ez 16:59) a vontade de Iaveh aparece sob nova luz. Depois de uma catástrofe (cf. Is 4:3; 6:13; 7:3; 10:19-21; 28:5-6; 37:4; 37:31-32; Am 3:12; 5:15; 9:8-10; Mq 4:7; 5:2; Sf 2:7-9; 3:12; Jr 3:14; 5:18; Ez 5:3.) sobrará apenas um resto. Se tomarmos a profecia como já realizada, após a catástrofe de 587 surge uma nova idéia: o resto encontrar-se-á entre os deportados (Ez 12:16). No exílio este resto se converterá (Ez 6:8-10 cf. Dt. 30:1-2) e Iaveh reunirá esse remanescente para a restauração messiânica (cf. Is 11: 11-16; Jr 23:3; 31:7, 50:20; Ez 20:37; Mq 2:12-13). Mas, após o regresso da diáspora babilônica, aqueles que sobraram, de novo se afastam da vontade de Deus e se colocam debaixo de sua ira (Zc 1:3; 8:11; Ag 1:12).

Mas Cristo é e será o verdadeiro rebento do novo e santificado Israel. É interessante notar que, ao contrário de Israel, as nações pagãs não terão um remanescente (Is 14:22-30; 15:9; 16:14; Ez 21:37; Am 1:8). Como nos dias de Noé, uma aliança eterna foi firmada através de um acordo inteiramente novo (Is 54: 9-10). As alianças antigas caducam por três razões: a iniciativa de Iaveh de perdão dos pecados (Jr 31:34, Ez 36:25, 29; Sl 51:3-4, 9); a responsabilidade e a retribuição pessoal (Jr 31:29; Ez 14:12 e ss.); e a interiorização da religião.

Assim, a Lei não é mais uma carta externa, mas uma inspiração que atinge o coração (Jr 31:33; 24:7; 32:39). Através do Espírito de Iaveh o judeu ganha um coração novo (Ez 36:26-27, Sl 51:12; cf. Jr 4:4 e ss.) e é capaz de conhecer a Deus (Os 2:22 e ss.). Esta aliança eterna e nova, proclamada por Ezequiel (Ez 36:25-28), está nos últimos capítulos de Isaías (Is 55:3; 59:21; 61:8) e expressa no Sl 51, será inaugurada pelo sacrifício de Cristo (Mt 26:28) e sua realização será anunciada por Paulo (2Co 3:6; Rm 11:27) pelo escritor de Hebreus (8:6-13; 9:15 e ss.) e por João (I,5:20).

Há um grande equívoco na formatação do conceito Israel histórico no período de pós-plenitude dos gentios: é a equalização entre a existência de um remanescente e a existência de um Estado judeu que por razões escatológicas seria restaurado enquanto Estado nacional. Se tomarmos Ef 2:11-22 vemos que Cristo, o Homem Novo, protótipo da humanidade restaurada pelo sangue da cruz, aniquila o primeiro Adão, eliminando as divisões entre os homens (Cl 3:10-11; Gl 3:27-28).

Os sacerdotes que aceitaram a Jesus, como o Messias prometido, sofreram vários tipos de pressões: econômicas, pois perderam seus direitos em relação ao ofício no templo, sociais, familiares e físicas. Logicamente, viram-se tentados a voltar ao antigo ofício e abandonar o Caminho. O escritor de Hebreus, no entanto, mostra que Cristo sintetiza toda a religião judaica a um nível superior: está acima dos anjos, é um sumo-sacerdote fiel e misericordioso, tem o único e verdadeiro sacerdócio, é anterior e está acima dos sacerdotes levitas, sua mediação e sacrifícios são eternos.

Vejamos Êxodo 19 com atenção. O povo hebreu estava próximo de Horebe, mas não podia subir ao monte com Moisés. Mas agora a igreja surge sobre a própria rocha (Mt 21:42, Sl 118:22) e os crentes podem se aproximar de Cristo. O novo sacrifício, de Cristo, sobrepõe-se aos antigos sacrifícios. Rejeitando as boas novas em Cristo, os judeus perderam suas prerrogativas, agora transferidas para a igreja (I Pe 3:9; At 28:26-28; cf. Jo 12:40). Logicamente essa afirmação completa-se com Rm 11:32 e 1Tm 2:4, entre outros, porque não podemos declarar que haja uma rejeição escatológica do remanescente.

A dialética do Israel histórico

Unidade e diversidade expressam-se na história do povo de Deus. Em relação aos judeus podemos citar Joiachim Heinrich Biesenthal (1800-1886), Jehiel Zvi Lichtenstein (1827-1912), e nesse século, Victor Buksbazen, Charles Lee Feinberg, Moshe Immanuel Ben-Maeir, Louis Goldberg, Arnold Fruchtenbaumm e David Stern, entre outros, como grandes comentaristas e teólogos dos Evangelhos e Novo Testamento. Sem dúvida, a igreja cristã tem muito a aprender com eles.

Mas fora da área acadêmica, nossos irmãos judeus, que aceitaram a Yeshua como seu Mashiach, cumpriram no passado remoto, recentemente e hoje um papel fundamental na pregação da Palavra, tanto na Palestina como no resto do mundo. Um nome que gostaria de citar é o ex-rabi-chefe da Bulgária, Daniel Zion, que teve seu encontro com Mashiach numa situação muito parecida com o apóstolo Paulo. Estava orando o Shacharit quanto Yeshua lhe apareceu. A visão repetiu várias vezes e Yeshua disse-lhe que era o Mashiach de Israel. Daniel Zion foi rabino-chefe na Bulgária de 1928 a 1948. Aceitou Yeshua o Mashiach em 1930. Escreveu mais de 20 livros. Quando Hitler invadiu a Bulgária e quis enviar milhares de judeus para os campos de concentração poloneses, Rav Daniel intercedeu junto ao rei Bóris II para que ele não o permitisse. Dessa maneira, conseguiu salvar 50 mil judeus dos campos de concentração. Depois da guerra foi para Israel, tornando-se rabino numa sinagoga de Yaffa. Nos sábados de manhã conduzia os serviços normais da sinagoga e à tarde dava aulas de Novo Testamento às suas ovelhas. Proclamou abertamente sua fé em Yeshua e sempre foi respeitado, tanto pela comunidade judia búlgara em Israel como pelas autoridades israelenses. Morreu em 1979 e hoje é considerado um herói do judaísmo e da resistência antifascista. E, logicamente da igreja cristã, também. Isto, ao meu ver, é unidade e diversidade, hoje, no relacionamento entre judeus e a igreja cristã.

Outro exemplo. Meu irmão de longas lutas de evangelização de judeus, o rabino Mário Najmanovich. Rabino messiânico, os ofícios da sinagoga de Najmanovich são acompanhadas com música e danças hebraicas, na mais pura tradição revivalista. Aqui, mais uma vez, vemos unidade e diversidade na relação entre o remanescente judaico e a igreja: os ofícios da sinagoga acontecem aos sábados, são realizados em hebraico e português, com folclore, danças, Torah e todos os elementos de vestuário e paramentos que caracterizam o culto da sinagoga. E aos domingos temos o culto cristão. Cristo é adorado, assim, num só espaço, por culturas diferentes, seguindo tradições diferentes.

O capítulo 14 de Zacarias anuncia que a adoração de Iaveh se estenderá por todo o cosmo, unificando os tempos (o dia único), transformando os lugares (nivelamento de Jerusalém), fazendo desaparecer as ocasiões e mesmo as lembranças de idolatria. Os movimentos do combate escatológico combinam-se com as descrições da criação das coisas novas. Traduz a riqueza da topologia escatológica, que vemos nos textos do AT que se referem ao monte Sião e à Jerusalém.

Ezequiel 40-48 apresenta um plano da reconstrução religiosa e política de Israel na Palestina. É um debruçar-se sobre o passado para ver o futuro. É o texto de um reformador e organizador da nova comunidade. Nesse sentido ele apresenta ao judaísmo diretrizes que deverão balizar todo o movimento reformador judaico de Esdras até a nascente igreja cristã, servindo, sem dúvida, de base de apoio para o texto inspirado de João no Apocalipse. Aqui encontramos o ideal de santidade e da presença de Deus, que terá sua tradução no culto racional dos cristãos.

Assim, Israel tem um lugar especial na história humana e na história da redenção. Sua reconstrução, enquanto nação, exercerá uma influência cada vez maior sobre a igreja. Essa influência durante centenas de anos coube a Roma, o centro da fé cristã antes da Reforma. Com a Reforma o conceito de centro geográfico do cristianismo sofreu um esfacelamento e muitas correntes cristãs passaram a sentir-se órfãs por falta desse elemento balizador.

Atualmente, com a existência do Estado de Israel, há um movimento crescente que considera Jerusalém cidade santa do cristianismo e Israel a terra da promessa. Tudo indica que começamos a viver um momento de inversão na história do cristianismo, um contra fluxo na teologia paulina, onde o judaísmo tende a penetrar forte com tradições, costumes e liturgia dentro do culto cristão.

Logicamente, esta tendência não se dá apenas ao nível da forma, mas da exegese e da hermenêutica. Se esse movimento é positivo, no sentido que cria as bases para uma síntese judaico-cristã, onde os galhos se unem para formar uma só oliveira; ou negativo, já que quebra a liberdade cristã e nos leva de volta à lei e à morte, não podemos dizer. Um dado, porém, deve ser levado em conta: o surgimento do Estado de Israel possibilita a evangelização em massa dos judeus. A volta a Israel é um movimento crescente, porque cada vez mais rabinos pregam que os Estados Unidos serão destruídos por um ataque nuclear e que o lugar menos seguro para um judeu viver será na América.

Esta é a posição de judeus como Tom Hess, e cristãos como Charles Parham e David Wilkerson. Diante do temor de outro holocausto e de uma crise econômica ao estilo de 1929, milhares de judeus passaram a aplicar parte de suas posses em Israel. Esse movimento de volta a Israel, que chamamos aliyah foi fomentado por pessoas influentes, como o ex-prefeito de Jerusalém Teddy Kollek, pelo primeiro-ministro Yitzhak Shamir e pelo rabino ortodoxo Menachem M. Shneerson, líder falecido do movimento Lubavitch, entre outros.

A presença do Estado de Israel no cenário político internacional não aconteceu por acaso. Até agora, os cristãos mantiveram Israel, através de apoio militar, financeiro, político e diplomático. Para os cristãos e para a política ocidental, Israel sempre foi visto como um aliado estratégico no Oriente Médio. Mas prefiro olhar meus irmãos judeus como irmãos que precisam de Cristo. Diante disso, a tarefa cristã é a pregação do evangelho aos judeus. Talvez para isso Deus tenha reconstruído a nação judaica. Por amor. Para que um remanescente conheça seu Messias e o dia do Senhor se realize.

A propósito do Milênio
e do papel escatológico do Estado de Israel

Falar sobre a história da Igreja nos leva a falar sobre o Estado de Israel, em especial por causa da utilização que setores da igreja fazem das Escrituras, impossibilitando uma clara pregação neotestamentária do Evangelho aos judeus, já que idolatram a velha aliança. Quando partimos de uma postura teológica cristocêntrica, encontramos sérias dificuldades em aceitar exposições em voga, quanto ao milênio e ao papel futuro do Israel histórico.

Sem dúvida, a apocalíptica, diferente da profecia clássica, tem três objetivos: falar de eventos futuros (cf. Ap 1:3; 22:7 e 10); revelar fatos ocultos no momento presente (Lc 1:67-79; At 13:6-12); e ministrar consolo e exortação, geralmente em linguagem de alto impacto (At 15:32; I Co 14:3, 4 e 31).

Nossa primeira pergunta é se os princípios hermenêuticos utilizados na apocalíptica devem ser os mesmos que se aplicam aos outros gêneros literários encontrados no texto sagrado, ou se necessitamos de um método hermenêutico especial. Os procedimentos tradicionais para a profecia clássica são as análises contextual, histórico-cultural, léxico-gramatical e teológica.

Mas o grande problema é saber quando devemos interpretar o texto literalmente e quando deve ser analisado simbolicamente ou analogicamente. É o caso a expressão “besta que sai do mar” (Ap 13:1). Esta expressão, besta que sai do mar, não pode ser encarada como uma expressão literal. É uma pessoa, é uma cidade, é um poder? Assim, o problema não está em antepormos um método literalista a outro estritamente simbólico. Um recurso pode ser o método analógico, que toma as declarações literalmente, mas depois as contextualizam.

Outro problema é se a linguagem apocalíptica tem universalidade ou se uma mesma palavra pode ter significados diferentes. Como é o caso dos números, das cores e de conceitos.

Mas o maior problema da hermenêutica apocalíptica, no meu entender, é definir se o texto reflete uma contração profética, tem cumprimento evolutivo ou cada passagem tem uma única realização intencional.

Devido a essas dificuldades, opto pela seguinte hermenêutica em relação à literatura apocalíptica: análise histórica e cultural para definir um que condições o texto foi produzido, e checar se a profecia foi cumprida ou não; análise léxica e sintática, a fim de determinar que palavras foram utilizadas em sentido simbólico ou analógico; análise teológica para determinar se há passagens paralelas ou ciclos que se repetem dentro da mesma profecia.

Logicamente, não posso perder de vista de que estou diante de um texto figurativo e, por isso, com forte conteúdo simbólico e analógico.

Em relação ao livro do Apocalipse minha posição aproxima-se ao paralelismo progressivo de Hendriksen , defendido por Hoekema , que considera a existência de sete seções paralelas, que descrevem num crescendo a relação entre a igreja e o mundo, desde o primeiro século até o retorno de Cristo.

Teríamos assim um primeiro bloco nos capítulos 1 a 3, que é a visão do Cristo glorificado, formando uma unidade com as cartas e as igrejas. Um segundo bloco nos capítulos 4 a 7, que é o da igreja sofrendo perseguições, tendo ao fundo o Cordeiro vitorioso.

O terceiro bloco, que vai dos capítulos 8 a 11, mostra a igreja vingada, protegida e vitoriosa. No quarto bloco, dos capítulos 12 a 14, temos a visão de dois auxiliares de Satanás, que fazem oposição à igreja.

O quinto bloco, nos capítulos 15 e 16, mostra a visitação final da ira de Deus sobre os impenitentes. No sexto bloco, nos capítulos 17 a 19, temos a queda das forças do secularismo e da impiedade que se opõem ao reino de Deus.

E por fim, no último bloco do livro, temos a derrota de Satanás, o juízo e o triunfo final de Cristo e de sua igreja, e o universo restaurado.

Sem dúvida, nessas sete seções há uma progressão escatológica, que nos fornecem a cada passo maiores informações sobre a luta de Cristo e sua igreja com Satanás e as forças da impiedade.

Esta é a única passagem da Bíblia que fala claramente de um reino de mil anos. É uma passagem que divide-se em duas partes: a primeira que fala do acorrentamento de Satanás (1 a 3) e a segunda do reinado de mil anos com Cristo.

Como acredito e expus, os capítulos 20 a 22 não descrevem o que se segue à volta de Cristo, mas o versículo 20:1 nos leva, de novo, ao princípio da era cristã.

A derrota de Satanás começou com a primeira vinda de Cristo (cf. 12:7-9), logicamente o reinado de mil anos de Ap 20:4-6 acontece antes da volta de Cristo, porque depois (Mt 16:27; 25:31-32; Jd 14-15, 2 Ts 1:7-10) temos o juízo final. E como este juízo está ligado à volta do Rei Jesus, Senhor dos senhores, parece-me claro que o reinado deve acontecer antes e não depois do retorno de Cristo.

Particularmente, dentro da tradição judaica, mil é todo o número que não se conseguia contar. É um período completo, mas de extensão indeterminada. Estamos vivendo a era do Evangelho. Satanás está acorrentado pela verdade da proclamação do Evangelho (Mt 28:19), por isso, e graças a Deus por isso, podemos pregar o Evangelho e fazer discípulos de todas as nações.

É claro que ele pode operar ainda, fazer o mal, mas não pode enganar as nações a ponto de impedi-las de ouvir e aprender a verdade de Deus (Jo 12:31-32). Podemos definir esta situação em duas conclusões: o acorrentamento de Satanás na era do Evangelho significa que ele não pode impedir o crescimento do Evangelho (Mt 13:24-30; 47-50); (b) e que ele não pode reunir todos os inimigos de Cristo para atacarem a igreja.

A segunda parte do texto mantém o mesmo período de tempo, mas muda de perspectiva. Se nos versículos 1-3 a ação acontecia na terra, agora João vê o que está acontecendo nos céus. Vê os mártires e todos aqueles que resistiram aos poderes da impiedade e já morreram.

Só há uma ressurreição física (Jo 5:28-29; At 24:15). “Viveram e reinaram com Cristo durante mil anos” fala daqueles que estão com Cristo (Fp 1:23; 2 Co 5:8; Ap 3:21), hoje, sentados em tronos, na glória, participando do reinado de Cristo.

Assim como não temos indicações de que João esteja falando de um reino de mil anos, literais, aqui na terra, também não temos nenhuma indicação de que o centro desse reino será a Palestina ou Jerusalém histórica.

samedi 22 juillet 2017

Adão e Eva

Metáforas de nossa existência
na antiga leitura da tradição judaica


Para os relatos das origens nos textos antigos da tradição judaica, o humano, construído à imagem e semelhança do eterno é síntese e projeção das forças da criação. E ao ter livre-arbítrio, um atributo da eternidade, tal imagem e semelhança se apresenta enquanto arquétipo conceitual e faz dele humano primordial.

hadam kadmon é uma expressão que traduz a idéia de humano primordial. Faz parte da compreensão de que aquele hadam era matrix, e nele estavam presentes os moveres originais da criação. Assim, hadam kadmon é diferente do hadam ha-rishon, o primeiro. Em hadam kadmon estava a consciência, a-vida, presente a partir daí na espécie. Estes moveres originais de hadam kadmon são os atributos ostensivos que a eternidade deu ao humano, ser coroa da criação, ter vontade específica e atuar no plano da criação a fim de construir seu destino.

A leitura dos textos antigos da tradição judaica não tem como função ou meta a compreensão científica do mundo físico, mas a construção da consciência. Dessa maneira, a revelação do Eterno ao ser humano, através dos textos antigos da tradição judaica, não é de como funciona o mundo e sua realidade, mas como devemos, enquanto pessoas e comunidades, colocar-nos sob missão do Eterno.

Os códigos culturais e de linguagem hoje são diferentes daqueles das épocas onde os relatos das origens surgiram. Assim, a melhor aproximação é  analisarmos os relatos das origens nos textos antigos da tradição judaica em comparação com os relatos e tradições presentes nas culturas antigas das épocas referidas.

Existe uma leitura humana de seus relatos arquetípicos, onde se considera as metáforas das suas tradições religiosas como fatos. E como os relatos arquetípicos fundamentam a cultura e a linguagem, passamos a ter então culturas e linguagens que demonizam e segregam pessoas, grupos de pessoas, segundo a origem nacional, raça-etnia, religião e sexo, entre outros características.

Uma dessas grandes metáforas é a de hawa. E a metáfora hawa traduz os encontros e desencontros de hebreus e povos palestinos nos séculos que antecederam à era comum. E mais tarde, os primeiros cristãos deram sequência a este movimento quando viveram, eles também, encontros e desencontros com as religiões de mistério do mundo greco-romana, com seus cultos à mãe-terra, à deusa-mãe.

O primeiro cristianismo, que surgiu como facção do judaísmo, por questões de inserção e sobrevivência absorveu elementos da cultura e linguagem do mundo helênico. Estes cultos greco-romanos se inseriam em contextos religiosos e sociais muito antigos e, entre outros elementos, exprimiam a veneração da cor vermelha associada ao sangue menstrual. Na mitologia grega, a mãe dos deuses, Reia, Cibele para os romanos, traduzia a veneração ao próprio conceito de reia, que significa terra ou fluxo. Assim, dentro desta compreensão arquetípica, o humano fora formado a partir do barro vermelho.

A identidade da religião com a mãe-terra, a fertilidade, a origem da vida, aparece enquanto santidade da terra, que é o corpo da deusa. Assim, ao formar o humano, nas leituras sincréticas cristãs a eternidade parte do vermelho da terra e sopra a vida no corpo formado. A eternidade não é corpo, não está presente na forma, mas a mãe-terra está dentro e, também, na totalidade do mundo existente. O corpo de cada um, de cada uma, então, seria feito do corpo dela. Nessas leituras arquetípicas dá-se o reconhecimento da identidade universal de todos humanos.

No capítulo um do livro das origens, macho e fêmea são criados à imagem do Eterno. Algumas interpretações rabínicas consideram esta primeira criação um andrógino, porque a eternidade criou o humano à sua imagem, macho e fêmea. Na maioria das traduções ocidentais lemos que "o Eterno criou o homem à sua imagem, à imagem do Eterno o criou; ele criou homem e mulher (Gênesis 1:27). De fato, no texto hebraico a passagem está no plural: o Eterno criou da-terra à sua imagem, no sentido genérico de humano. Em seguida, o texto diz macho e fêmea foram criados. Não temos aí os pronomes próprios Adão e Eva, mas macho e fêmea.

Só no texto seguinte, no segundo capítulo do livro das origens, outro relato da criação, é que hawa, que tem vida, aparece. E a metáfora se fez relato factual, histórico, que ganhou força no judaísmo e, posteriormente, entre cristãos e muçulmanos. Assim, a metáfora arquetípica, lida a partir de hermenêuticas patriarcais, no correr dos últimos dois mil anos transformou-se em fato fundante das culturas monoteistas. E hawa passou a ser um pedaço de hadam.

Então o Senhor Deus fez cair um sono pesado sobre Adão, e este adormeceu; e tomou uma das suas costelas, e cerrou a carne em seu lugar; E da costela que o Senhor Deus tomou do homem, formou uma mulher, e trouxe-a a Adão. E disse Adão: Esta é agora osso dos meus ossos, e carne da minha carne; esta será chamada mulher, porquanto do homem foi tomada. Portanto deixará o homem o seu pai e a sua mãe, e apegar-se-á à sua mulher, e serão ambos uma só carne”. (Gênesis 2: 21-24).

Os estudos da psique, desenvolvidos a partir do século vinte, trabalham com a idéia de que a humanidade, em certa medida, guarda em seu psiquismo os arquétipos das origens enquanto espécie. E as metáforas das origens e de seus desdobramentos calam fundo nas emoções e percepções humanas de forma aparentemente instintiva. E todos entendemos o recado, o ser humano paga um preço ao optar por construir sua liberdade. Nesse sentido, hadam e hawa representam a condição humana, são arquétipos de nossa força e fraqueza enquanto humanos, seduzidos sempre por fatores aparentemente externos, como o desejo da conquista do mundo, do poder e do sexo, que nos seduzem de forma paradoxal, tanto para a expansão de limites, o que seria um bem, como para a limitação de nossas possibilidades, o que seria um mal.