Prof. Dr. Jorge Pinheiro dos Santos
Falar
da ideologia do ficar rico com Jesus nos leva a falar sobre Mamon e a discutir a vida plena. O sábio do Esclesiastes
disse que compreendeu
que não há nada melhor do que ter prazer naquilo que se faz. Esta é a
recompensa. Pois como é que podemos saber sobre o não-estar? O sábio procurou a
felicidade e a paz. Foi objetivo e prático na avaliação de seu tempo e
constatou que o evento humano está sujeito à lei da alternância, que vai além
da explicação imediata: o humano não tem domínio sobre as dinâmicas que
governam a vida e a morte. E procurou refúgio na sabedoria grega. O texto
hebraico do Eclesiastes, com a presença de palavras aramaicas e persas, sugere
autoria anônima, situada entre 450 e 200 antes de Cristo, mas foi registrado
como texto de um rei antigo, Shlomo.
O estar e o não-estar
O sábio procurou
entender o estar e o não-estar, ou seja, a existência e aquilo que está fora e
além da existência, no jogo de seus movimentos. Percebeu que não tinha controle
sobre o movimento dos fenômenos do universo e viu que era preciso respeitar o
espaço e o tempo para poder existir dentro do ritmo dos eventos.
Mas
ele não foi o único a pensar nessas coisas. A pergunta pelo não-estar, presente
na história do humano desde que ele é sapiens, levou à pergunta pelo
sentido do estar. Qohélet, em português Eclesiastes, e segundo Haroldo de
Campos, O-que-sabe, de forma magnífica, quase à maneira de Nietzsche,
trabalhou o tema da vida e da morte e nos leva a pensar sobre a única realidade
a que de fato temos acesso: a existência -- terreno afetivo e emocional que
produz e repousa sobre a riqueza material das humanidades. O sábio numa
abordagem existencial discute o estar, sua integralidade e potencialidades.
Ele não foi o único a
pensar a existência e a não-existência. Górgias (480-375 a.C.) traduziu no
pensamento pré-socrático a dúvida sobre o não-ser e, por extensão, sobre o ser.
Disse que se houvesse alguma coisa,
seria ser ou não-ser, ou ser e não-ser juntos. E se o não-ser existe,
ele é e não-é ao mesmo tempo. Mas é absurdo dizer que alguma coisa existe e
não-existe ao mesmo tempo. Para
Górgias, o não-ser não existe. Górgias disse mais do que isso, mas essa
constatação, o não-ser não existe, é o que nos interessa nesse momento. Mas como
nossa reflexão é teológica, vamos trabalhar com o conceito de estar, que é
estado da existência, e não de ser que é essência do único que é, o Eterno -- Eu sou o que sou (Êxodo 3.14).
É
interessante que o sábio apresentou o não-estar, aquilo que está fora, além da
existência, de uma maneira que nos lembra Górgias. Disse que ninguém se lembra
do que aconteceu no passado e que até as coisas que acontecerão no futuro
também serão esquecidas. Que ninguém se lembra dos sábios, assim como ninguém
se lembra dos imbecis, pois no futuro todos estaremos esquecidos. Há tempo para
nascer e tempo de morrer, mas todos caminham para um mesmo lugar, pois tudo vem
do pó e tudo volta ao pó.
Disse,
ainda, que felicitava os que já morreram mais do que os que estavam vivos. E
considerou que mais vale o dia da morte do que o dia do nascimento. Ou, mais
vale ir a uma casa em luto do que ir a uma casa em festa. Que ninguém é senhor
do dia da própria morte e que nessa guerra não há trégua. Por isso, um cão vivo
vale mais que um leão morto, já que os vivos sabem que irão morrer; mas os
mortos não sabem de nada e não tem recompensa nenhuma: sua memória já está no
esquecimento. O amor, ódio e ciúmes pereceram com eles. E nunca mais participarão
de qualquer coisa que se faz debaixo do sol.
Mas
é a consciência do não-estar que remete ao sentido do estar. E aqui há uma
diferença básica com Górgias, porque para ele a negação do não-ser é também a
negação do ser e, por isso, fez três afirmações que marcaram o pensamento
lógico-matemático e balizaram o ceticismo: (1) não dá para dizer que algo
existe; (2) se alguma coisa existe não temos como conhecer sua existência; (3) e
se o ser existe não temos como explicar sua existência aos outros.
Já
o argumento do sábio, a partir do não-estar, afirma o sentido do estar, único
conhecido. A negação do não-estar do sábio expressa o desejo de estar em
abundância, porque tem por limites as bordas do tempo de ser. O estar existe,
mas tem espaço e tempo – hoje diríamos é existencial e histórico. Por isso, é
melhor o sentido do estar, a intensidade das ações do estar do que ficar na
espera do não-estar. Assim, quando o não-estar sinalizar que está chegando e se
aproximar, teremos o prazer de ter estado plenamente, com intensidade, de forma
abundante.
E, por isso, o sábio nos
aconselha a aproveitar a vida, a ir em frente. A comer com prazer e beber
alegremente o nosso vinho, pois o Eterno já aceitou deliciado o nosso
bem-fazer. Sejamos felizes, diz O-que-sabe. Enquanto vivermos na fumaça
deste mundo, curtamos a vida com a pessoa amada, pois essa é a recompensa pelo
nosso fazer debaixo do sol. E o que tivermos para fazer, façamos ótimo, porque
o não-estar é nada e no nada não se faz, e no não-estar não existe pensamento,
nem conhecimento, nem sabedoria. E depois do estar, vamos repousar no nada.
O fazer da
existência vale a pena. O Eterno aprecia esse bem-fazer humano, que tem seu
próprio tempo, que integra a existência de cada pessoa na história dos fazeres
humanos. É por isso que Bereshit, o primeiro texto na Torah,
apresenta um ponto zero. O tempo zero vai do entardecer à meia-noite. É quando
o sol desilumina o nosso espaço de forma gradual. O tempo do não-estar não é
uma fratura do tempo, é tempo da história. O sábio não contempla a passagem do
tempo, mas a vinda do tempo. O tempo significa nada ou pouco para o Eterno, mas
há um sentido de tempo para o humano. A conclusão do sábio é que temos de estar
no tempo para dar valor à eternidade que brota do nada do não-estar.
Jesus
nos fala do não-estar existencial, daquilo que parece que é, mas, na verdade, é
ilusão, ídolo. E esse não-estar não fez
parte do discurso dele e tem um nome Mamon. O tema lá era o dinheiro, mas aqui é
neoliberalismo evangélico. Mamon foi a expressão utilizada por
Jesus para descrever a cobiça ou a riqueza material, personificada como
divindade, e que em hebraico significava literalmente dinheiro. Representa,
assim, o alvo errado da avareza e da ganância. E na mitologia judaico-cristã transformou-se
num dos sete príncipes do inferno, de aparência nobre, mas deformado, que
carrega um saco de moedas de ouro nas costas e suborna os humanos. Então, o
nosso tema aqui é o não-estar do dinheiro, enquanto deus que estraçalha as vidas
e, por outro lado, a plenitude do estar, consubstanciada no programa de Jesus para
a expansão do reino do Eterno.
Jesus
disse no Sermão do Monte: Se o teu olho direito te faz tropeçar [literalmente, se o teu
olho for mau], arranca-o e lança-o de ti; pois te convém que se perca um dos
teus membros, e não seja todo o teu corpo lançado no inferno. (Mateus
5.29).
Mas, o que
é um “olho mau”? Aparentemente, fora da cultura judaica, soa como algo
esotérico, mas não é isso: em hebraico, possuir um ‘ayin ra‘ah, “olho
mau”, significa ser avarento, ganancioso. E ter um ‘ayin tovah, um “olho
bom”, equivale a ser generoso. Jesus está condenando a avareza, a adoração a Mamon,
e incentivando à generosidade. E é por isso que vai acrescentar: onde
estiver seu tesouro, aí também estará seu coração [...] você não pode
ser escravo de Deus e do dinheiro.
Do estar
em plenitude nasceu o programa de Jesus. Eis o texto.
Então
Jesus, pelo poder do Espírito, voltou para a Galiléia e a sua fama se espalhou
em toda a região. Ensinava nas suas sinagogas, sendo glorificado por todos. Ele
veio a Nazaré, onde tinha sido criado. Entrou, segundo o seu costume, no dia do
sábado na sinagoga, e levantou-se para fazer a leitura. Deram-lhe o livro do
profeta Isaías e, desenrolando-o, encontrou
a passagem onde está escrito: “O Espírito do Senhor está sobre mim,
porque me conferiu a unção [A] para anunciar a boa nova aos
pobres. Enviou-me [B] para proclamar aos cativos a libertação e [C] aos cegos, a recuperação da vista, [D] para despedir os
oprimidos em liberdade, para proclamar um ano de acolhimento da parte do
Senhor”. Enrolou o livro, entregou-o ao servente e se assentou; todos na
sinagoga tinham os olhos fixos nele. Então, ele começou a lhes dizer:
"Hoje, esta escritura se realizou para vós que a ouvis”. Todos lhe
prestavam testemunho, espantavam-se da mensagem da graça que saía de sua boca,
e diziam: "Não é esse o filho de José?” Então ele lhes disse: "Por
certo ireis me citar este provérbio: ‘Médico, cura-te a ti mesmo’. Soubemos de
tudo o que se passou em Cafarnaum, faze, pois, o mesmo aqui em tua
pátria". E acrescentou: "Em verdade, eu vos digo: nenhum profeta é
bem acolhido em sua pátria. É verdade o que vos digo: havia muitas viúvas em
Israel nos dias de Elias, quando o céu ficou fechado três anos e seis meses e
sobreveio uma grande fome sobre a terra toda. No entanto, não foi a nenhuma
delas que foi enviado Elias, mas sim a uma viúva em Sarepta de Sidom. Havia
muitos leprosos em Israel no tempo do profeta Eliseu, no entanto, nenhum deles
foi purificado, mas sim Naamã, o sírio". Todos na sinagoga ficaram tomados
de cólera, ouvindo essas palavras. Eles se levantaram, lançaram-no fora da
cidade, e o conduziram até uma escarpa da colina sobre a qual estava construída
sua cidade, para daí o precipitarem abaixo. Mas Jesus, passando no meio deles,
seguiu seu caminho.
(Lucas 4.14-30).
Esse
estar de Jesus com a vida (Lucas 4.14–9.50) situou-se, em primeiro lugar, na
Galiléia (cf. 23.5; At 10.37). E Lucas, ao contrário de Mateus (15.21; 16.13) e
Marcos (7.24-31; 8.27), abriu a ação de Jesus com o discurso na sinagoga de
Nazaré (4.16-30), onde leu Isaías 61.1-2 e Isaías 58.6, que descortina a seqüência
do evangelho: o anúncio da plenitude fundado sobre as promessas antigas da
tradição judaica.
No
texto, Lucas descreve duas questões centrais para a compreensão do estar em
plenitude: há um programa e há um destinatário da mensagem. Assim, os
versículos 18-19 apresentam o programa e os versículos 23-27 o público, aqueles
que estavam fora da geografia da liberdade.
Segundo
Lucas, Jesus foi marcado, escolhido pelo Eterno, e sob a ação do Espírito, ação
esta que caracteriza o vero profeta, teve como objetivo anunciar a boa notícia
de que chegara o momento de viver o estar em abundância e de libertar aqueles
que estavam dominados pelo não-estar. Seu programa foi estruturado ao redor de quatro
questões: anunciar a boa notícia do estar em abundância aos excluídos da vida;
proclamar a liberdade aos cativos: dar olhos aos cegados pelo não-estar; e libertar
os que, por causa do não-estar, perderam o sentido da vida.
O
programa destaca duas idéias: a de anunciar a boa notícia e a de libertar os
dominados pelo não-estar existencial.
A
idéia de anunciar estava presente na antiga tradição judaica, já que a tarefa
profética era, sobretudo, proclamatória. De Samuel a Jeremias – incluídos nesse
período homens como Samuel, Natã, Gade, Azarias, Elias, Eliseu, Joel, Miquéias,
Micaías, Isaías e Jeremias -- esses anunciadores da palavra do Eterno falaram
aos reis e ao povo. Advertiam e encorajavam. Falavam de juízos e promessas
espetaculares. E assim também foi o último período da profecia hebraica, de
Ezequiel a Malaquias. No período helênico, graças às reuniões nas casas de
oração, sinagogas, a proclamação se generalizou. Os textos antigos eram lidos e
comentados.
João,
o batista, foi um anunciador da chegada do reino. E Jesus, ali na sinagoga de
Nazaré, colocou em seu programa a tarefa do anunciar.
E
o que significa libertar? O conceito de libertação na antiga tradição judaica partiu
da idéia de livramento e de segurança. A pessoa de um libertador traduzia a
imagem do rei-herói, alguém que arrancava o povo da destruição (Jz 18.28). E no testamento cristão, o salvador é aquele
que liberta os escravos do não-estar (At 7.35) e que arranca a nação do estado
da não-vida (Rm 11.26).
Para
o judeu, no momento de Jesus, o ato característico de liberdade ocorrera sob a
liderança de Moisés, quando o Eterno salvou seu povo do estado de escravidão sob
os egípcios e o pousou no deserto do
Sinai (Ex 12.31—14. 31).
É
fundamental entender que a libertação do domínio egípcio definiu para os judeus
do período helênico o paradigma da liberdade como ato do Eterno, que não visava
apenas o alívio de uma situação desastrosa, mas estar em abundância. Aí estava
a chave do conceito de aliança, livres pora adorar. Essa idéia fundamentou o
conceito de aliança e da espiritualidade judaica até o primeiro século.
A
partir do programa de Jesus entendemos o estar existencial como sentido pleno
de vida, liberdade no Espírito, gerador de alegria, justiça e paz, pessoal e
comunitária. E não-estar existencial como exclusão de bens e possibilidades,
escravidão sob as suas mais diferentes formas e cegueira espiritual, que geram
perda do sentido de vida.
A
liberdade radical
O uso que o homem de Nazaré fez de termos políticos,
como reino e evangelho, mostram que tinha o objetivo de falar de uma promessa existencial
de intervenção alternativa àquelas dos poderes presentes na época. Quando lemos
o texto apresentado por Jesus, numa perspectiva rabínica, estamos diante de uma
recorrência às promessas do jubileu, quando a não-vida deveria ser banida. A
fala daquele homem de identidade questionada não afirmava que a Palestina seria
resgatada de imediato na escala da geografia e do tempo, mas que deveria entrar
no estar palestino o impacto solidário do ano sabático.
Da mesma maneira, o reino surgiria enquanto
compreensão do ano sabático. Nesse sentido, o sábado da semana ampliava-se no
sábado dos anos, onde o sétimo deveria ser de alegria, justiça e paz, já que
restauraria o que fora exaurido, natureza e pessoas. Essa coleção de propostas
radicais presente em Levítico 25.1-26.2 concernia ao direito de propriedade da
posse da terra e de pessoas, que constituíam a base da riqueza. O objetivo era
fixar limites ao direito de posse, já que toda propriedade, natureza e pessoas,
pertenceria a Deus. Assim, ninguém poderia possuir a natureza e as pessoas,
pois tal direito pertencia a Deus. E o ciclo de sete anos sabáticos desagüava
no qüinquagésimo ano, o jubileu messiânico (Levítico 25.8-24), que aparecer
também em Números 36.4. Também Jeremias, 34.8-17, falou de uma reforma social
na Jerusalém sitiada, quando Zedequias proclamou a liberdade dos escravos
hebreus. Da mesma maneira, em Isaías 58.6-12 a liberdade radical como parte da
visão profética. Mas, existem outros textos sobre o ano sabático, como Êxodo
23.10 e Neemias 10.32. Nesse sentido, o jubileu apontava para a reestruturação do
estar pleno nas relações entre os povos da Palestina.
Flávio Josefo afirmou, depois da presença de Jesus em
Nazaré, que não existe um único hebreu
que, mesmo hoje em dia, não obedeça à legislação referente ao ano sabático como
se Moisés estivesse presente para puni-lo por infrações, e isso mesmo em casos
que uma violação passaria despercerbida.[1]
Apesar da afirmação de Josefo, sabemos que o
enquadramento do estra pleno a partir das disposições de Levítico 25, que
incluía inclusive a reforma agrária, nunca foi de fato vivido entre os judeus.
Por isso, coube a um sem-terra-santa levantar o discurso do ano da liberdade
frente à escravidão do não-estar.
O jubileu, dessa
maneira, se insere na antiga tradição dos judeus. E através da tradição
rabínica, essa tradição foi adaptada às novas situações enfrentadas pelos
judeus na diáspora. Mas, esses novos aspectos do jubileu e seu desenvolvimento
na tradição judaica partem do texto de Levítico 25.10.
A teologia da
vida, em Lucas, subentendida a partir do discurso de Jesus em Nazaré, está
ligada, como vimos, ao sábado e ao ano sabático, que se situa em Levítico 25.2,
no leque dos sete anos, assim como o dia de sábado se situa na semana. Para os
rabinos da diáspora existe um sábado desde o começo e um sábado da terra, da
mesma forma como na sexta-feira à tarde o trabalho cotidiano era interrompido
pela adoração ao Eterno. Assim em Israel, e acreditavam que apenas em Israel, o
povo judeu tinha a obrigação de restituir a terra ao Eterno, já que em Israel a
terra pertencia ao Eterno.
Daí, o tríplice
imperativo do estar cotidiano, da existência no jubileu: a liberdade da terra, a
liberdade das dívidas e a liberdade dos excluídos. Na teologia da vida,
presente no evangelho de Lucas, implícita nas palavras de Jesus, o jubileu
concentra uma temática existencial que repousava sobre a expansão do estar.
Uma primeira constatação era a
impossibilidade de que qualquer escravidão da terra fosse permanente. Ao
cumprir o sábado, o proprietário estava impedido de possuir a natureza além de
um certo tempo. O sábado do jubileu levava o proprietário a uma relação de
submissão, que o impedia de reduzir a natureza a objeto de dominação. A
soberania do eterno era, então, compreendida como a afirmação de que Ele era o
senhor e criador da natureza. Donde se deduz que o ser humano não pode se colocar
na posição de dono, como esclarece Levítico 25.23. Ou seja, na terra onde o
Eterno é proprietário, o ser humano é hóspede. A gratuidade leva, então, à afirmação de que o ser humano
vive em terra que não é sua propriedade, onde é objeto da gratuidade, conforme
Levítico 25.19-21.
E a justiça para com os
semelhantes, que devem usufruir das benesses, mostrava que a natureza era presente do Eterno para suprir as
necessidades humanas. E apresentava a natureza como de todos e para todos.
Assim, o monopólio que impossibilita este destino universal é um erro de alvo
diante do Eterno do próximo. Dessa maneira, a justiça, tão presente na teologia
da vida em Lucas, nasce da mensagem profética, presente no discurso de Jesus, e
consiste em reconhecer o amor gratuito do Eterno na Palestina, e,
posteriormente, no mundo. Por isso, o discurso de Jesus é o discurso da alegria
e da justiça, destas duas ações que remetem à paz.
Mas, se o
discurso da alegria e da justiça é a afirmação de que a natureza pertence ao Eterno
e que o domínio sobre o próximo deve desaparecer, outra constatação teológica
do jubileu é a remissão da culpa, que parte da reforma radical da existência em
direção à reconciliação de pessoas e povos, no caso do discurso de Jesus,
palestinos. Assim, o jubileu possibilita um novo começo, pois não rompe apenas
com o não-estar existencial, mas elimina a culpa.
Se o discurso de Jesus
apresentou um alcance palestino imediato, a partir da própria realidade vivida
pelo nazareno, tal discurso remete à globalidade da esperança de restauração do
mundo. Ou seja, tal
discurso, visto sob a ótica teológica, fala do fim dos sofrimentos e da
violência.
Assim, a teologia
da vida reconhece o jubileu judaico e sua realização nas palavras e atos de
Jesus na Galiléia, mas remete às ações jubilares da igreja cristã na reforma do
mundo. Podemos, dessa maneira, falar numa volta à espiritualidade do jubileu,
como forma de enfrentar a secularização escravizante, a apropriação injusta de
recursos e a generalização da violência. E preconizar os direitos das minorias
e o respeito pela vida.
E a partir da
teologia da vida, lida neste discurso de Jesus em Nazaré, podemos compreender
que os bens naturais foram confiados pelo Eterno aos seres humanos e que a
salvação é liberdade no estar existencial, mas também alegria, justiça e paz.
O jubileu é
reforma radical e a proposta do Jesus marginal foi a anunciação da possibilidade
de uma era nova, caso os ouvintes aceitassem a notícia. Não estava a se referir
a um evento imediato, histórico, mas reafirmava uma esperança conhecida de seus
ouvintes: a da reforma existencial que deveria mudar as relações entre os
povos.
E aquele homem de genealogia desconhecida e geografia
marginal colocou a centralidade da reforma sobre ele próprio ao afirmar que
naquele momento, na sinagoga de Nazaré, a esperança se cumpria. E é isso que Lucas
vai mostrar na sequência do seu evangelho da vida: o reformador marginal era o
Cristo universalmente prometido.
As caras do não-estar
Ao
partir da compreensão de que o programa de Jesus estava dirigido às pessoas que
enfrentavam a ameaça do não-estar, começamos a pensar o destino existencial dessa
humanidade brasileira. E vimos que o não-estar existencial tem muitas faces,
que pode ser cultural, social, mas também espiritual.
Hoje entendemos que a não-vida não acontece por acaso, mas
é fruto das lógicas culturais, sociais e, por isso, também religiosas. Esta primeira compreensão do não-estar, do repousar sobre a
morte, que não é fruto apenas de opções individuais separadas da comunidade e
da história, nos levou à teologia da vida, que consiste em ver a necessidade de
uma ação radical, que atue de conjunto sobre os diferentes fatores que alienam
e matam a fé, a esperança e o amor. Por isso, dizemos, que o não-estar existencial
é um fenômeno de massa gerado por fatores culturais e sociais, entre os quais
estão as igrejas que servem a Mamon.
Por isso, a teologia da vida confronta a realidade
cultural, econômica, política, social e religiosa. Vimos, numa leitura
contextualizada do programa de Jesus, que a morte é parte integrante de um
sistema de não-vida e que, embora seja apresentado como gerador de felicidade e
riqueza, de fato, é gerador de vítimas lançadas fora da estrada.
Os
problemas humanos, focados pelo sábio do Eclesiastes, reproduzem padrões que
repousam sobre o não-estar existencial. Hoje, um quinto da humanidade não têm
condições mínimas de estar com plenitude: não têm onde morar, não têm água
limpa, não têm cuidados médicos, não têm oportunidades na área de educação e
emprego e estão condenadas à não-existência, sem qualquer possibilidade de
promoção pessoal para si próprias e para suas famílias. Todas essas situações têm
suas raízes no errar o alvo e exige uma radical resposta de amor. Somente o
evangelho pode transformar o coração humano. Mas não podemos nos restringir à
proclamação. É necessário criar as condições para que a liberdade gere alegria,
justiça e paz.
Embora a reconciliação do humano com o humano, de um povo
com outro povo, não seja reconciliação com o Eterno, nem a ação social
evangelização, nem a libertação política salvação, boas notícias de vida plena
e envolvimento existencial são parte da reforma radical proposta pelo homem de
Nazaré.
A
mensagem de liberdade é também uma mensagem de juízo sobre toda forma de
alienação, de opressão e de discriminação, e não devemos ter medo de denunciar
o mal e a injustiça. Quando alguém recebe a Cristo, nasce de novo no seu reino
e, conseqüentemente, buscará não somente divulgar como também manifestar a justiça.
A liberdade que temos deve transformar responsabilidades pessoais e sociais.
Por
isso, o protestantismo evangélico deve viver uma mudança radical: não se perder
na ideologia do enriquecer com Jesus, nem adorar a Mamon, mas fluir para
o exercício da alegria, justiça e paz.
Isto
porque o não-estar, denunciado pelo sábio no Eclesiastes, existe como cultura
da morte.
E o que agrava a questão é o distanciamento das igrejas evangélicas do programa
da vida proposto por Jesus, que leva à omissão e à insensibilidade. O não-estar
da população brasileira não é visto, então, como problema, quando muito como
objeto de caridade.
Essa
não-existência imersa no sem-sentido deveria catalisar os diálogos entre as confissões
do protestantismo evangélico. Qualquer crise do evangelicalismo pode ser
superada na medida em que assumamos os problemas da humanidade brasileira como
objeto de proclamação e salvação.
A
insensibilidade evangélica não pode ser explicada apenas pela decadência
religiosa. Pois esta insensibilidade não é exclusividade das pessoas que,
momentaneamente, estão fora da geografia da salvação. Mesmo pessoas sensíveis,
piedosas, compartilham a atmosfera da insensibilidade em relação aos problemas existenciais
dos que não conhecem as possibilidades da vida em abrndância.
Para uma
aproximação a este problema, vamos focar a ideologia do enriquecer com Jesus.
Tal ideologia, conceito aqui entendido como consciência alienada, surgiu como idéia
evangélica de emancipação da pobreza e da promessa de retribuição do Eterno. Mas
a ideologia do enriquecer com Jesus não escapou aos paradoxos culturais. Como foi
baseada numa leitura primitiva da seleção dos escolhidos por seus desempenhos pessoais,
esta ideologia funcional se converteu em idolatria do enriquecimento.
Tal
ideologia, aumentada pela presença do neoliberalismo, é um engodo porque afirma
para milhões de pessoas que o evangelho de Cristo descarta a lei da alternância.
Por essa lógica, o fracasso ou o sucesso das pessoas são vistos como
diretamente proporcionais às habilidades, aos talentos e à fé-esforço de cada
um, independentemente do contexto.
Assim,
não há razão para a proclamação e a liberdade dos que estão caídos. A ideologia
do enriquecer com Jesus é expressão dessa leitura primitiva da retribuição do
Eterno, que tem como fim fazer de cada fiel uma pessoa rica. O dinheiro e a
quantidade dele passam a ser o padrão para a avaliação da própria
espiritualidade.
Nesta
versão neoliberal da retribuição, o Eterno distribui as rendas das pessoas
conforme suas capacidades e fé-esforço. Mas, quando o poder econômico se torna
critério da dignidade humana, a busca pelo dinheiro torna-se finalidade última
da vida. Estamos então idolatrando um dos príncipes do inferno: Mamon.
E
o mais interessante é que os que conquistam o poder e dinheiro não necessariamente
sabem o que fazer com isso, donde Mamon leva o cativo do não-estar a
outro demônio –ao ídolo do consumo. Dessa maneira, a obsessão pelo dinheiro tem
um espelhismo com a obsessão pelo consumo como fim em si, independente da
utilidade da mercadoria.
Ora,
se o consumo se transformou em medida, nenhuma quantidade de aquisições tem a
possibilidade de trazer satisfação real, pois não há padrões a se manter: as
metas permanecem distantes, mesmo quando se corre para alcançá-las. E o nome
certo para isso, conforme nos diz Jesus, é ganância, pois o seu olho se fez
mau, e toda sua vida está imersa na malignidade.
Servir
a Mamon, um dos príncipes do inferno presente nas igrejas evangélicas e
adorado publicamente, é correr sem destino, buscar objetos de desejo que mudam
rapidamente. Consome-se para sentir-se vivo, mas a vida é um permanente
não-estar. Os objetos de desejo deixam rapidamente de ser portadores de
reconhecimento. A busca recomeça quando se consegue adquirir o objeto do
desejo. A utilidade dos produtos e o usufruir as suas qualidades não são
importantes. O importante é consumir mercadorias, bens materiais ou simbólicos,
que causem inveja nos outros.
A
ideologia do enriquecer com Jesus leva as pessoas a não verem o não-estar como
problema existencial, não deixa as pessoas enxergarem que o não-estar existe, é
morte.
A
cegueira espiritual
Mas
a cegueira frente ao não-estar é cegueira do mundo: leva a não enxergar o
sentido existencial das vidas. Podem as igrejas evangélicas superar tal
cegueira espiritual? Podem olhar, ver a realidade, e dar uma contribuição
relevante para a libertação das pessoas? Os líderes das igrejas evangélicas que
buscam poder, e oferecem a promessa do ficar rico com Jesus aprofundam a cegueira.
Estão no vazio espiritual, imersos na cultura do dinheiro, do consumo e do
mercado.
Diante
de nós se abrem dois caminhos, um caminho de vida e um caminho de morte, um
caminho de igualdade e um caminho de dominação, um caminho de justiça coletiva
e um caminho de tirania disfarçada, um caminho de sustento global e um caminho
de suicídio global. O caminho da morte é o sistema econômico predominante,
construído sobre o cinismo e o desejo da destruição, satisfeito em desfrutar o
poder e a afluência às custas do Terceiro Mundo e das gerações futuras. O
caminho da vida exige conversão, mudança de direção, escolha de novas opções,
como ocorreu para aqueles que ouviram os pregadores deuteronomistas. Naquele
tempo era o futuro de Israel que estava em jogo, agora é o futuro da humanidade
e do planeta.[2]
Como
ouvir o clamor dos caídos à beira do caminho nessa gritaria neoliberal que
reduziu tudo ao discurso do mercado transcendentalizado? Precisamos voltar ao
discurso profético, bem ao estilo do homem de Nazaré, o discurso do pensamento
divergente, criativo e dinâmico.
A
teologia da vida, expressa no programa de Jesus, tem força e direção moral para
a caminhada pastoral das comunidades de fé. Clama na perspectiva global da reforma
radical.
E
uma das constatações é que essa igreja evangélica rica, espelho de Laodicéia, carece
ela própria ser libertada pelo Espírito da liberdade em Cristo Jesus, fonte de
sentido. Aos olhos da fé cristã, que o sentido da vida se perca é dramático,
mas resta uma esperança, ainda que extrema, a escatológica. Mas que a ação e
proclamação de Jesus desapareçam é muito pior: é trágico. Quando não se
responde à pergunta “para que sou evangélico?", o próprio viver cristão é
posto em xeque e, faltando-lhe a esperança, perde sua força.
A
igreja tem pela frente não só a questão da miséria material, mas também a da
miséria existencial. Ela não é só chamada a ser profética, mas também
kerigmática. As demandas que lhe são dirigidas não são apenas por pão, mas
também por sentido. A isso a Jesus chama palavra e diz que disso também
vivem os humanos!
Isso
significa que a igreja é chamada não só a ser libertadora, mas a afirmar sua
específica teologicidade. São suas bases que devem ser renovadas e de novo
garantidas. A tradição da fé não acontece por vias da tradição cultural. O
mundo não é apenas injusto, mas também sem-sentido. Em nome de que mudar as
estruturas, se a vida não vale a pena? A fé cristã nunca foi totalmente
funcional a qualquer cultura ou sociedade. A fé é essencialmente crítica já ao
nível antropológico e existencial, justamente porque põe em xeque o destino do
humano, confrontando-o com o mistério transcendente. Por isso será, em
princípio, disfuncional ao sistema do mundo. Mas na sociedade secularizada, a
criticidade intrínseca da fé se duplica em criticidade cultural e histórica. E
o clamor se desloca da libertação cultural e social para o sentido espiritual
da vida. E isso não apenas para as pessoas, mas para as próprias comunidades de
fé.
Sob
as asas do Espírito
A
busca de sentido é a da fome e sede do Espírito. Partindo dessa perspectiva teológica,
a questão do sentido da vida, colocada pelo sábio de Eclesiastes, não é típica
das classes privilegiadas, nem exclusiva delas. Mas envolve a todos.
E
aqui entra a dimensão existencial da questão. Os que estão à margem, caídos no
não-estar, são gente. E é porque são gente que, mesmo quando pelo viés da resposta
às necessidades imediatas, buscam as igrejas de milagres para a solução de seus
problemas.
Mas,
então, sob as asas do Espírito, fica superada dimensão existencial da questão? Claro
que não, pois a fé enfatiza com vigor a liberdade específica. Em relação aos
novos desafios, o importante é discernir. Para isso, cumpre manter um
pensamento forte frente às convicções, ao que se refere à identidade,
consciente de que a tentação da igreja é capitular aos deuses do mercado.
Sem
dúvida, vivemos num mundo de desolação, mas diante disso é o caso de perguntar:
que desafios o programa de Jesus coloca. Os filósofos choram as dores do mundo,
como Schopenhauer, porém a igreja é chamada a analisar a realidade e a viver o
clamor profético. Por isso, o Espírito é vida na igreja herdeira do profetismo
bíblico, que clama nos momentos de desolação e levanta a esperança
escatológica.
E
a esperança não é mero desejo, parte do conhecimento da realidade, da
compreensão dos movimentos a favor da vida que, ainda minoritários num
determinado momento, se levantam. A esperança coloca-se acima do momento
presente.
Movido
pelo Espírito da vida, Lucas destacou que o ano do Senhor teve início naquele kairós
pronunciado na sinagoga de Nazaré. O kairós de Jesus significa o
nascimento de uma nova época, um tempo que se caracteriza pelo anúncio de uma boa
notícia. Mas como anunciar esta novidade quando, aparentemente, fazemos parte
de uma geração alienada e apática?
Quando
comparamos o texto analisado com dois outros de Lucas (At. 2.42-47 e 4.32-35),
vemos que a comunidade de Jerusalém entendia que a ecclesia devia ser
construída sob uma ordem de convivência que possibilitasse vida plena a todos.
É
aqui que as águas se dividem: o culto a Mamon, príncipe do inferno, congela
os corações e paralisa as ações, mas homens e mulheres têm a urgência de um
recém-nascido, clamam por vida em abundância. Somos chamados a nos deixar
despertar pelo choro e pelo grito dos que não-estão, excluídos e oprimidos pelo
mundo, pela carne e pelo diabo.
É tempo
de levar a boa notícia aos que existencialmente não-estão: Jesus integra os excluídos
(Ef 1.3-14), liberta os subjugados (Gl 5.1), dá olhos aos cegos (8.12) e
sentido aos angustiados (Mt 11.29-30; 1Pe 5.7).
Naquele
sábado, na sinagoga de Nazaré, Jesus expôs o programa do seu estar entre nós. A
graça do Senhor deve ser noticiada aos que não-estão. A ressurreição deu o imprimatur
do Eterno àquele programa e à igreja cabe, sob as asas do Espírito, levá-lo às
gentes.
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