lundi 5 janvier 2015

Politica e protestantismo

... hoje, no Brasil
Jorge Pinheiro

Diante da vergonha de evangélicos corruptos, de votos mercadejados no púlpito, da Palavra deturpada e enlameada por lobos travestidos de cordeiros, faço uma pergunta -- afinal, que relação existe entre o presente e o espírito crítico e transformador do protestantismo?

E exorto homens e mulheres de boa vontade a uma reflexão sobre o que significa o presente enquanto desafio político para os protestantes brasileiros.

Bem, falar do presente, em primeiro lugar, significa dizer que vamos de uma contingência a algo diferente, que pode ser inferior ou superior, mas nunca igual.

O presente é sempre parte de uma situação mais geral e está enquadrado no caminhar de um processo. E para fazer a leitura do presente pode-se recorrer à análise histórica, à avaliação crítica ou à construção filosófica. Algumas vezes, porém, algum desses elementos falha. Por isso, não basta observar o presente. Estamos excessivamente ligados a ele, o que pode nos levar a escorregar num julgamento do aqui e agora e esquecer que devemos estar voltados para o futuro.

O momento é importante, mas transformar o exame do presente em apreciação subjetiva é realizar uma redução, é ver a situação como totalidade e permanência. Olhando assim colocamos a situação num patamar muito elevado e a perspectiva que temos se torna global, apesar de seu caráter individual e limitado.

Tal análise do presente pode levar a uma ampla aprovação e tocar emocionalmente setores expressivos de comunidades inteiras. Esta é uma maneira de ver, mas é irresponsável, mesmo quando apresenta análises de conjuntura e perspectivas para o futuro. E por que irresponsável? Por não aceitar suas responsabilidades. Por não reconhecer os limites daquele que observa, assim como de seu próprio horizonte.

Mas se existe um nível mais amplo do que este analisado, somos levados a falar da situação do presente como possibilidade. Mas é possível chegar a tal patamar de observação? Caso exista um ponto de vista mais amplo, a partir do qual se posicione um observador do presente, ele precisa estar livre das amarras do historicismo.

Busque a justiça
Voltem para Deus todos os humildes deste país, todos os que obedecem às leis de Deus. Façam o que é direito e sejam humildes. Talvez assim vocês escapem do castigo no Dia da ira do SENHOR. (Sofonias 2.3). 

Pode-se dizer que pessoas, militantes e revolucionários, souberam interpretar uma época dada. Eis aqui o ponto de intersecção entre o presente e o espírito crítico e transformador do protestantismo. Seguindo a trilha aberta, é possível afirmar que o protestantismo radical traduz inquietude e descontentamento em relação aos acontecimentos sociais concretos.

Há uma busca ética de respostas entre o protestantismo radical e a ação consciente do intelectual orgânico. Ambos representam determinada comunidade, têm função superestrutural e, apesar de sua organicidade, precisam exercer autonomia em relação às pressões sociais que sofrem. É dessa postura que nasce a força crítica e a compreensão de que diante da realidade há alternativas diferentes daquelas expressas pelo poder.

O protestantismo radical diante do presente não pode ser apreendido a partir da leitura do apresentado no passado, porque procura uma compreensão que não possa ser abalada. E essa interpretação não pode estar pousada sobre experiência própria e nem mesmo sobre a história da Igreja.

Pratique a justiça
O SENHOR já nos mostrou o que é bom, ele já disse o que exige de nós. O que ele quer é que façamos o que é direito,  amemos uns aos outros com dedicação e vivamos em humilde obediência ao nosso Deus. (Miquéias 6.8). 

Mas um terceiro elemento deve ser levado em conta: a tendência dialética do protestantismo radical, que se expressa de forma paradoxal, ao fazer a crítica de pontos de vista estabelecidos.

Quando analisamos o protestantismo a partir desta problemática, vamos constatar que ele não testemunha em benefício do presente, mas profere um não ao presente. Um não amplo, já que não critica cada detalhe do presente, e também por não discordar inteiramente do presente. Ao renunciar a um não de cada detalhe do presente, apresenta um sim às conquistas e vitórias obtidas no processo.

O individualismo e o criticismo se transformaram, quando analisamos o presente, em movimentos reacionários. Mas estão, muitas vezes, sob a proteção de religiosidades cujas essências e mensagens consistem em declarar um não para tudo que está no presente.

O espírito crítico e transformador do protestantismo radical está envolvido no presente concreto, tem a coragem de decidir e colocar-se sob julgamento, ao nível do particular. E é a partir dessa compreensão do que significa o espírito crítico e transformador no tempo, que nos remetemos às três posições que definem diferentes compreensões do presente. Primeiro, vamos analisar duas: a concepção conservadora e a concepção progressista, que se apresentam com variáveis e modulações.

A concepção conservadora admite o surgimento do criativo e da novidade no tempo, mas considera que isso aconteceu no passado. Por essa razão nega toda mudança, presente ou futura. A força dessa concepção repousa no fato de que considera o criativo e a novidade como dados e não como resultados da ação cultural e social do ser humano.

A concepção conservadora também reconhece necessidade e transformação como componentes do presente, mas também os situa no passado. Desconsidera que se aconteceu no passado, necessidade e transformação se revelam em todas as positividades e negatividades do passado, do presente e futuro. Sob tal visão repousam os conservadorismos. Perderam o sentido de necessidade e transformação.

Faça o bem, repreenda o opressor
Aprendam a fazer o que é bom. Tratem os outros com justiça; socorram os que são explorados, defendam os direitos dos órfãos e protejam as viúvas. (Isaías 1.17).

A concepção progressista considera necessidade e transformação alvos a serem projetados no futuro, existentes em cada época, mas que não se apresentam enquanto irrupção no presente. Assim, os tempos tornam-se vazios, sem decisão, sem responsabilidade. Na concepção progressista existe uma tensão diante do que foi. Mas a consciência de que o alvo é inacessível aqui e agora a debilita e produz um compromisso continuado com o passado. A concepção progressista não oferece nenhuma opção ao que está dado. Transforma-se em progresso mitigado, em crítica pontual desprovida de tensão, onde não há nenhuma responsabilidade definitiva. 

Este progressismo mitigado é a atitude característica da sociedade burguesa. É um perigo que ameaça constantemente, é a supressão do não e do sim incondicional às questões concretas. É o adversário do protestantismo radical.

Conservadorismo e progressismo, reação e progresso, estão entrelaçados na consciência do presente que surge enquanto necessidade e transformação. E é esse entrelaçamento que leva a um terceiro caminho.

E o terceiro caminho é a utopia. Sem o espírito utópico não há protesto, nem crítica radical. A utopia quer responder às necessidades e transformar o tempo, mas esquece que criatividade e novidade não abalam todos os tempos e todos seus conteúdos. É por isso que a utopia leva, necessariamente, à decepção. Assim, o resultado da utopia desencantada é o deslumbramento sem compromissos.

Mas a idéia de necessidade e transformação nasce da discussão com a utopia. Necessidade e transformação clamam pela irrupção de criatividade e novidade no tempo, cujo caráter é decisivo no instante histórico enquanto destino. Mas, com a irrupção da criatividade e novidade que respondem às necessidades e transformam o tempo concreto, é preciso ter consciência de que não existe um estado de perfeição no tempo, a consciência de que o ideal e perfeito nunca se fixam num presente eterno.

Assim, toda mudança, toda transformação exige uma compreensão do momento vivido que vá além do meramente histórico, do aqui e agora. Deve projetar-se no futuro, deve entender que há na busca permanente da justiça um choque entre necessidade/ transformação e criatividade/ novidade. Tal desafio não pode ser resolvido por uma pessoa, por mais protestante e radical que seja. O sujeito da transformação será, em última instância, o sujeito social, as massas em mobilização. Mas o protestantismo radical, assim como a intelectualidade orgânica têm aí um importante papel a cumprir, serem voz e ação críticas para que o sonho de Amós aconteça no presente concreto: que o juízo corra como as águas e a justiça como ribeiro perene.




mardi 30 décembre 2014

O ministério Dilma - dez. 2014 (ultima parte)



[Este texto é bem maior e melhor desenvolvido no livro Teologia e Política, Fonte Editorial, 2006. Mas fiz questão de publicá-lo aqui, mesmo incompleto, para que possamos pensar melhor o texto de Ronaldo Almeida, sobre o gabinete da presidente Dilma para seu próximo mandato. As notas de rodapé e as fontes citadas você encontra no livro. É um bom presente de ano novo. Compre e leia. JP].

Assim, antigas bandeiras foram pousadas no chão. Uma delas a velha luta anti-imperialista, tão cara aos socialistas brasileiros. E outro intelectual, Arruda, escreveu ao próprio Lula traduzindo em carta toda sua frustração.

“Dirceu e Lula, eu percebo e concordo que o PT como partido neste momento precisa tornar viável a vitória eleitoral. É preciso negociar com todos os atores, e ter uma estratégia clara para lidar com cada um. (...) Mas não parece ser isto que estão fazendo, pelo menos a partir do que experimentamos na Plenária e do que nos chega pela imprensa. Francisco Campos afirmou na FSP, e não pela primeira vez, que o PT não é contra o livre comércio, mas contra a forma como a ALCA está sendo implementada. 

Coube ao candidato do PSTU, José Maria de Almeida, dizer, na mesma reportagem, o que o PT devia estar dizendo: Alcântara e ALCA "estão dentro do questionamento sobre a soberania nacional. São duas vertentes de um mesmo tema. Mas se o livre comércio e o mercado auto-regulado são a velha enganação do capitalismo clássico, o de colocar raposa e galinhas dentro do galinheiro continental e dar a todos os mesmos direitos!... (...) A ALCA, conforme dissemos na Declaração de Quito que lhe mandei, é uma das três pinças da estratégia de dominação dos EUA sobre o continente, e talvez seja hoje, no reino do G. W. Bush, o menos crucial para o projeto imperial”. 

E aqui vale a pena voltar ao mito. Garcia conta que quando Lula, numa de suas andanças pelo Brasil, foi perguntado se era comunista ou social-democrata, teria respondido que era um “torneiro-mecânico”. Tal colocação expressa a indefinição petista. Hoje, passados anos de história petista, talvez seja o momento de lhe propor uma réplica: qual torneiro-mecânico, o socialista ou o social-democrata? 

E Furtado, já se perguntava em 1996 sobre como as disputas ideológicas dentro do PT dificultavam a definição de sua identidade. Partido socialista ou social-democrata? Ou seja, era um partido para a classe trabalhadora, para a classe média, para ambas ou para quem? E concluía que ainda era cedo para afirmações categóricas. Mas apesar da indefinição, que em última instância traduzia uma práxis partidária, não podemos esquecer a crescente importância do Partido dos Trabalhadores para a sociedade brasileira. Em termos sociais, o PT surgiu enquanto organização ligada às classes trabalhadoras urbanas, polarizando a política nacional. Um exemplo disso é que depois, já com bases no campo e mesmo na classe média, atuou sobre setores sociais modificando padrões anteriormente estabelecidos. 

Assim, sua inserção nos grotões, através da presença cristã, modificou o perfil do voto conservador e de direita dessas áreas. Ora, essa importância social nos leva à questão política. Sem mistificar os limites da presença do PT no cenário nacional, podemos dizer que construiu lideranças e desenvolveu uma maneira de fazer política, de diálogo com os setores excluídos e marginalizados da sociedade, senão inédita, ao menos resgatada, já que estava esquecida desde os governos de Vargas e João Goulart. Mas essa constatação não é unânime. Segundo Guimarães, “o PT apresenta uma série de elementos ideológicos (diluição de sua feição socialista), políticos (incompletitude programática e estratégica), organizativos (uma certa adaptação naturalista de sua estrutura, combinada com pressões de institucionalização) que dificultam a construção de um projeto alternativo à ordem capitalista. 

Estes elementos tendenciais, em sua projeção, se não alterados, poderão cristalizar uma cultura partidária que bloqueie o potencial transformador dos trabalhadores. O termo ´passivo´ que acompanha a caracterização vale exatamente para caracterizar a modalidade negativa da integração burguesa. Assim, afirmou que na cultura do PT, o enigma dos elos entre tradição e ruptura é conscientemente incorporado e sua resolução sempre projetada para o futuro. Ou seja, no confronto com as utopias socialistas, o PT é um enigma espelhado em outro enigma: refletido, mas não revelado. Souza, porém, considerou que o Partido dos Trabalhadores constituiu, de fato, algo novo no cenário social e político brasileiro, mas uma novidade permeada de tradições e permanências legadas pelo passado.

A nova esquerda traz em seu âmago – ora negando, ora afirmando – a velha esquerda, já que os agentes da renovação história têm como paradigma os agentes da conservação histórica, seja para negá-los abertamente ou para incorporá-los implicitamente. 

Talvez por isso, as palavras do presidente Lula soam como esse enigma não revelado e pareçam vir de um passado distante, de uma época em que lá na Vila Euclides os jovens, operários, estudantes e intelectuais, sonhavam com um Brasil socialista:

“Continuaremos a ter atuação decidida no sentido de unir as diversas forças políticas e sociais para construir uma nação que beneficie o conjunto do povo. Vamos promover um Pacto Nacional pelo Brasil, formalizar o Conselho de Desenvolvimento Econômico e Social, e escolher os melhores quadros do Brasil para fazer parte de um governo amplo, que permita iniciar o resgate das dívidas sociais seculares. Isso não se fará sem a ativa participação de todas as forças vivas do Brasil, trabalhadores e empresários, homens e mulheres de bem. Meu coração bate forte. Sei que estou sintonizado com a esperança de milhões e milhões de outros corações. Estou otimista. Sinto que um novo Brasil está nascendo”. 

Desencantada a utopia socialista, a esperança foi-se esfumando e com ela também o programa da revolução democrática. Chegamos, então, a um momento onde cabe a pergunta: aonde leva este espectro do vermelho? Fantasma que, à época de Marx assombrava a Europa, agora no Brasil se degrada em tonalidades esmaecidas e traz de volta a questão colocada por utópicos desencantados nos anos 1970: o sonho acabou? Diante do questionamento, colocamos a discussão sob perspectiva teológica: a partir da relação política e religião e de suas implicações com o poder, com os conflitos da situação proletária e do papel que pode ser cumprido pelo cristianismo social.


dimanche 28 décembre 2014

O ministério Dilma -- Dez. 2014 (terceira parte)

Jorge Pinheiro

A dimensão social como foi entendida pelo Programa da Revolução Democrática deveria partir de mudanças na economia que enfrentassem o capital financeiro nacional e internacional, assim como as pressões internacionais e os mecanismos de intervenção externa na economia. Temia a possibilidade de confronto, mas garantia que tal opção política não levaria ao populismo.

As novas prioridades provocarão enfrentamentos com os interesses do capital financeiro nacional e internacional que condicionam hoje as grandes decisões econômicas nacionais. Inverter prioridades não significa opção populista. Uma política de distribuição de renda exige um ambicioso projeto de desenvolvimento e a definição de suas condições de financiamento. Um país como o Brasil permite (e exige) uma nova política econômica, mesmo levando em conta os graves constrangimentos internacionais atuais.[1]

Acontece que antes, ao fazer a crítica da economia capitalista, a utopia socialista ressaltava o potencial transformador das culturas e a importância da criação de espaços plurais de formas de propriedade social. Por isso, criticava as sociedades fundadas no socialismo real por não terem se comprometido com a liberdade, nem se preocupado em estabelecer pontes com o ser humano enquanto pessoa, por terem desvinculado participação política e regulação da vida econômica. Eram tempos em que a utopia socialista no PT aproximava-se do cristianismo social. Até aquele momento, podemos dizer que a utopia socialista tinha uma compreensão cristã da vida e norteara politicamente o PT, mas agora, no final dos anos 1990, a nova agenda democrática estava sendo convertida em liberalismo radical.

É importante dizer, que muitas das bandeiras levantadas pelo Programa da Revolução Democrática sempre fizeram parte do ideário petista e que eram entendidas por suas bases como necessárias. Dessa maneira, o programa afirmava a necessidade de um modelo econômico estruturado em torno da construção de um mercado interno de bens de consumo de massa, capaz de “alimentar, vestir, dar moradia e transporte, aos milhões de brasileiros marginalizados ou empobrecidos”.[2] O que exigiria uma reforma agrária, que garantisse terra, emprego e financiamento para os trabalhadores rurais, cobrando assim significado social e político e importância econômica, já que a agricultura familiar era entendida como componente de um projeto de desenvolvimento sustentado. A bandeira da reforma agrária é cara à esquerda brasileira. Mobilizou a intelectualidade progressista no fim do Império, camponeses no início da década de 1960 e nos anos 1980 levou à criação do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra – MST. Donde a questão não é deixar de levantar a necessidade da reforma agrária, mas o fato de que, com o passar dos anos, o PT foi afunilando sua política partidária no caminho da democracia representativa. 

Assim, a utopia tornou-se “informulada”.[3] E, porque os desafios da prática distanciaram-se da espera/esperança do socialismo, o PT não conseguiu formular como sua utopia deveria transformar o Brasil. E ao fixar os olhos na questão nacional, viu um gigante difícil de ser vencido: um Estado vergado sob uma crescente dívida financeira, um Congresso de tradição coronelista e reacionária, os meios de comunicação concentrados e controlados por poucas famílias, os estados nas mãos de partidos mantidos por acordos com grupos econômicos e financeiros, e a conjuntura internacional sob domínio do poder militar, apoiado pelos grandes organismos financeiros, econômicos e culturais. Tal situação congelou a utopia e levou o partido a defender a necessidade de uma longa transição democrática, porque o discurso socialista carecia de fundamentos. 


[1] “O programa da revolução democrática”, op. cit., p. 39.
[2] “O programa da revolução democrática”, op. cit., p. 39.
[3] Juarez Guimarães, “A sólida necessidade da utopia”, artigo citado.

samedi 27 décembre 2014

O ministério Dilma -- Dezembro 2014 (segunda parte)

Jorge Pinheiro, PhD

O Programa da Revolução Democrática foi aprovado no II Congresso Nacional do Partido dos Trabalhadores, realizado em Belo Horizonte, entre os dias 24 e 28 de novembro de 1999, e apresentou propostas para transformar a sociedade brasileira a partir de três eixos: o social, o democrático e o nacional. O II Congresso do Partido dos Trabalhadores aconteceu em um momento especial da história, que coincidiu com a proximidade do quinto centenário do processo colonizador português em terras brasileiras e a entrada do novo milênio. Diante das discussões dos problemas estruturais da sociedade, que remetem às propostas das reformas de base do governo João Goulart, já naquela época com raízes históricas decorrentes da ação de uma elite predatória, o PT considerou que só sua presença enquanto partido poderia viabilizar transformações reais. 

No final do segundo milênio, a conjuntura internacional mostrava-se incerta, e a partir da hegemonia político-militar dos Estados Unidos, que “fere a soberania de nações e povos e tende a cristalizar uma ordem internacional desigual, injusta e autoritária”,[1] o PT considerava que tal situação internacional ameaçava a economia global, em particular os países da periferia, como o Brasil. Afirmava que as experiências neoliberais e a mundialização econômica e financeira chegavam a seus limites, que o anunciado “fim da História” não havia chegado, e que o “pensamento único” revelara-se enganoso. Fazia a crítica do Fundo Monetário Internacional, ao afirmar que suas políticas e ajustes liberais contribuíram para aumentar a miséria pelo mundo afora. Afirmava ainda que a terceira via de Tony Blair e Bill Clinton eram operações de maquiagem do neoliberalismo na qual o governo de Fernando Henrique Cardoso “tentará pegar carona”.

Essa postura conformista e conservadora parte da falsa premissa de que não é mais possível impulsionar políticas de crescimento com inclusão social e pleno emprego. Seus partidários no mundo desenvolvido, a partir do colapso da URSS e dos regimes do leste, pretendem justificar o abandono das políticas de bem-estar que a social-democracia adotou no pós-guerra. As esquerdas, inclusive setores da social-democracia, hoje denunciam e rejeitam essas teses. No Brasil, onde a exclusão social foi e é a regra, a Terceira Via aparece em sua face mais grotesca. O novo quadro mundial cria condições para a construção de novos projetos nacionais e internacionais. Para tanto, são necessárias transformações radicais que somente grandes maiorias poderão realizar. Essas transformações requerem visão e propostas de caráter estratégico.[2]

Para a elaboração de seu Programa da Revolução Democrática, o PT partiu de sua própria história: havia nascido em meio à crise dos paradigmas da esquerda e do colapso do modelo nacional-desenvolvimentista no país. E, por isso, se definiu como “um partido pós-comunista e pós-socialdemocrata”, que não buscava o “assalto ao poder” por meio de uma revolução, nem tinha como objetivo conquistar o governo para amenizar o capitalismo. Mas via a necessidade de uma revolução democrática, capaz de construir um Brasil livre, igual e solidário, que socializasse a riqueza, o poder e o conhecimento. E agregava: “a revolução democrática é um longo processo. Ela não será resultado de teorias pré-elaboradas, nem de vanguardas auto-proclamadas, mas da ação de amplas maiorias conscientes de seus objetivos”.[3] E por isso, considerou, baseando em considerações do 5o. Encontro Nacional,[4] de 1987, que havia a necessidade de desenvolver uma política de acumulação de forças, pois seria através desse processo que se alterariam as relações de poder e o partido poderia construir uma nova hegemonia, criando as condições para a transformação da sociedade brasileira. 

Tal acumulação de forças se daria através de movimentos que articulariam as lutas sociais com as transformações institucionais. E explicitava essa política: “sabemos que é importante combinar as ocupações de terra, as lutas no chão de fábrica, as greves e as mobilizações da sociedade em busca de novos direitos sociais e políticos com a ação nos parlamentos e nos governos municipais e estaduais”.[5] Dessa maneira, o PT propôs-se formular um programa alternativo das esquerdas para o Brasil, construído a partir dos eixos social, democrático e nacional, que deviam ser traduzidos em reformas econômicas e políticas e apoiados por uma coalizão de forças sociais e políticas. Essas reformas teriam um efeito “desestabilizador sobre o capitalismo[6] e desencadeariam uma ofensiva reformuladora que necessitaria de uma nova correlação de forças na sociedade, condição para que as esquerdas chegassem ao governo e enfrentassem o problema do poder.

Anteriormente, quando elaborou o documento “O socialismo petista”, o campo da relação do PT com a utopia estabelecia um diálogo entre o socialismo que desejava alcançar e a experiência de transformar o mundo. Era uma novidade no campo da esquerda brasileira, que remetia aos primeiros tempos do Partido Socialista Brasileiro, já que fazia a defesa do pluralismo como princípio da democracia socialista e defendia a idéia de que o PT era uma síntese aberta de culturas libertárias, entre elas, o cristianismo. Ou seja, a utopia não estava dada, mas poderia “ser formulada através de ordenações capazes de indicar um princípio civilizatório alternativo ao mundo do liberalismo”,[7] e se constituir em princípio de orientação da prática partidária: esse seria o caminho da utopia socialista. 

E, como conseqüência, embora os trabalhadores continuassem a ser a base referencial do partido, a construção da utopia não estaria concebida como expressão do desenvolvimento da consciência dessa classe. Donde, a identidade socialista não seria auto-referida. Mas aqui surgiu um problema: se a utopia socialista não fosse vivida através do diálogo com a experiência das classes trabalhadores e dos excluídos, sobre que bases se haveria de construir o campo da experiência partidária? Ao não responder a essa questão e diluir o campo da experiência partidária na construção de um hipotético bloco hegemônico, acabou por incluir todos os setores sociais e econômicos descontentes com o governo Fernando Henrique Cardoso nesse bloco. Assim, a utopia foi desencantada e o PT abriu caminho para alianças com setores adversários do socialismo.



[1] “O programa da revolução democrática”, II Congresso Nacional, Belo Horizonte, 24-28.11.1999, in O PT faz história, São Paulo, Fundação Perseu Abramo, 2001, p. 37.
[2] “O programa da revolução democrática”, op. cit., p. 37.
[3] “O programa da revolução democrática”, op. cit., p. 38.
[4] “Uma política de acúmulo de forças”, 5o. Encontro Nacional, 4-6.12.1987, Brasília-DF, in Resoluções de Encontros e Congressos, 1979-1998, Partido dos Trabalhadores, São Paulo, Fundação Perseu Abramo, 1999, p. 321.
[5] “O programa da revolução democrática”, op. cit., p. 38.
[6] “O programa da revolução democrática”, op. cit., p. 39.
[7] Juarez Guimarães, “A sólida necessidade da utopia”, São Paulo, Periscópio, no. 42, dez 2004/jan 2005, Fundação Perseu Abramo. Site: www.fpa.org.br/periscopio/. (Acesso em 02.12.2005).