vendredi 7 octobre 2022

Afrobrasilidade e princípio protestante

Afrobrasilidade e Princípio Protestante: 
Exclusão, Criatividade e Transcendência 

Prof. Dr. Jorge Pinheiro dos Santos 


Tu és o louco da imortal loucura, 
O louco da loucura mais suprema. 
A Terra é sempre a tua negra algema, 
Prende-te nela a extrema Desventura. 
Mas essa mesma algema de amargura, 
Mas essa mesma Desventura extrema 
Faz que tu'alma suplicando gema 
E rebente em estrelas de ternura. 
“O assinalado”, Cruz e Souza (primeira e segunda estrofes). 

Introdução 

Ao percorrer os caminhos da afrobrasilidade ao longo dos últimos três séculos encontramos as raízes que explicam a miséria da nação. As bandeiras da emancipação, da democracia e da justiça social continuam urgentes hoje tanto quanto em épocas passadas. Essas bandeiras, sociais e políticas, traduzem a fragilidade do protestantismo evangélico no Brasil, que, no correr das últimas décadas, parece ter crescido muito, mas pouco tem feito em relação aos excluídos. Embora o princípio da liberdade religiosa tenha sido parte integrante da vida e fé dos primeiros batistas ingleses e a luta pela liberdade vista como um direito humano, é importante lembrar que o protestantismo histórico brasileiro, herdeiro das tradições sulistas norte-americanas, se não foi abertamente escravista, foi condescendente e omitiu-se diante da exclusão forçada dos afrobrasileiros. E a história batista no Brasil confirma isso. 

“A Denominação Batista também foi atingida pelo divisionismo ocasionado pelas atitudes frente à escravidão. Em 1845, os batistas norte-americanos separaram-se conforme o posicionamento contra a escravidão. Organizou-se a Convenção Batista do sul para abrigar as igrejas que admitiam o trabalho escravo, representando delegações de oito estados do sul escravista. Foi a Convenção Batista do Sul dos EUA que estabeleceu a Denominação Batista em solo brasileiro. (...) A guerra de Secessão, na década de 1860, concretamente demonstrou a divisão vigente na sociedade e no protestantismo norte-americano. "Nos Estados Livres, a ascensão dos evangélicos de mentalidade reformista tinha dado um novo sentido de direção e de propósito moral a uma classe média ascendente tentando se adaptar a uma nova economia de mercado. O Sul com seus degredados trabalhadores cativos e seus brancos pobres e preguiçosos - parecia estar, para a maioria dos nortistas, num processo de violação flagrante da ética trabalhista protestante e do ideal da concorrência aberta". 

Após a derrota do sul dos Estados Unidos, muitos confederados, inclusive ex-combatentes, vieram tentar a sorte no Brasil, especialmente em São Paulo. A relação entre o protestantismo e a vida política, para os agentes da imigração norte-americana para o Brasil era olhada de forma maneira bastante estreita, já que parte deles, pastores protestantes, a exemplo do Rev. B. Dunn, via o país como uma nova Canaã, a terra prometida onde os confederados derrotados poderiam reconstruir suas vidas, seus lares e suas propriedades, incluindo a mão-de-obra escrava. Em seu livro Brazil, The Home for Southieners, Dunn apresentou o país dessa maneira, o que ajudou os sulistas olharem o Brasil como uma alternativa segura. O médico M. F. Gaston, por exemplo, veterano do Exército Confederado e originário da Carolina do Sul, que escreveu Hunting a Home in Brazil, faz no livro um relato minucioso das vantagens que os sulistas encontrariam aqui. O sudeste brasileiro, com terras quase virgens, era apresentado como possibilidade para bons empreendimentos. Ele disse, após ter visitado as terras da região de Campinas, que “as vantagens para o cultivo do algodão nessa região dão-lhe primazia sobre a parte meridional dos Estados Unidos. O elemento adicional do trabalho escravo está aqui apto a trazer resultados que não podem ser assegurados pelo trabalho assalariado nos Estados Sulistas; e tão logo os negros se tenham familiarizado com o modo adequado de trabalhar o algodão, poderemos antecipar uma produção excedendo a qualquer uma que já tenha sido realizada nos Estados Unidos”. 

A propaganda desses agentes da imigração surtiu efeito: cerca de dois mil e quinhentos sulistas se deslocaram para São Paulo. A esperança de encontrar terras em abundância com mão-de-obra escrava mobilizou famílias inteiras. E assim chegaram as primeiras famílias batistas à colônia de Santa Bárbara D’Oeste. Porém, nem todos os batistas aqui chegados eram favoráveis à escravidão. Na verdade, os batistas tiveram duas atitudes frente à ela: os primeiros colonos eram favoráveis e foram proprietários de escravos. Já os missionários e os batistas brasileiros em geral, após a abolição, em 1888, condenaram o escravismo como incompatível com a fé cristã. Essas diferentes atitudes demonstram as dificuldades que tinham para tratar do assunto. Em Santa Bárbara D’Oeste, primeiro núcleo batista, o trabalho escravo existiu como mão-de-obra usada na agricultura e em tarefas domésticas. Os colonos batistas eram senhores de escravos, a exemplo da senhora Ellis, dona de um sítio e que providenciara hospedagem nos primeiros meses ao casal de missionários W. Bagby, fundador da Primeira Igreja Batista do Brasil. Conforme o diário da senhora Bagby, “depois de dormir uma noite na capital paulista, os missionários tomaram o trem para Santa Bárbara, onde chegaram sob forte aguaceiro. Na estação os aguardavam os enviados da senhora Ellis, com dois cavalos e um escravo, para carregar a bagagem. A estrada até o sítio estava bem lamacenta mas ao chegar, foram carinhosamente recebidos”. 

Conforme conta Crabtree, a Junta de Richmond, nos EUA, ao avaliar, em 1859, as possibilidades de envio de missionários para o Brasil, admitiu que havia similaridades entre os dois países e uma vantagem que deixaria os missionários norte-americanos bem aclimatados em terras brasileiras, o fato de, em ambos os países, haver escravidão: “o Brasil era como os Estados Unidos, tem escravos e os missionários enviados pela Convenção Batista do Sul não podiam sentir-se constrangidos a combater a escravatura e assim envolver-se na política do país”. 

E o missiólogo batista Donaldo Price confirma as razões de tal escolha: “Os primeiros batistas que aqui chegaram, chegaram como imigrantes, não como missionários. Chegaram depois da derrota sulista na guerra entre os estados, ou a guerra civil norte americana. E queriam vir para uma nação que ainda tivesse escravatura, assim escolheram o Brasil”. 

Passados quase 120 anos do decreto que reconheceu o direito do povo negro à liberdade, a ideologia do ocultamento ainda domina o pensamento protestante. Assim, Elisabete Aparecida Pinto e Ivan Antonio de Almeida denunciam que na organização do IV Ciclo de Reflexão e Debates do Núcleo de Estudos e Pesquisas em Gênero, Etnicidade e Saúde da FALA PRETA!, em 1998, que teve como tema Religiões e a Inclusão/Exclusão de Pobres, Negros, Mulheres no Mundo Globalizado, “esta dificuldade foi percebida pela ausência (...) das Igrejas Pentecostais, Neopentecostais e Batistas. Essas instituições aceitaram o convite, confirmaram presença, porém no dia e hora marcados não se sentiram preparadas para a natureza do debate”. 

Em razão da ideologia do ocultamento, é necessário entender que as bandeiras emancipatórias são indissociáveis da pregação das boas novas, e precisam ser vividas como tradução do cristianismo que professamos. Assim, ética cristã e democracia não podem ser olhadas como excludentes. Ao contrário, se complementam e precisam ser vivenciadas na Igreja e além-muros, se desejamos fazer com que o significado histórico do projeto protestante evangélico marque nossa presença no futuro da nação. 

2. Uma Hipótese de Esperança: O Princípio Protestante 

A partir dos clamores éticos da profecia bíblica, lida através da cosmovisão luterana da Reforma protestante, Paul Tillich apresentou uma compreensão da práxis cristã que ele chamou de princípio protestante. Assim, o princípio central do protestantismo seria a doutrina da justificação pela graça apenas, significando que nenhuma pessoa ou comunidade humana pode reivindicar para si a dignidade divina em consequência de conquistas morais, de poder sacramental, de sua santidade ou de sua doutrina. Consequentemente, a autonomia profética precisa sempre criticar, condenar e transformar o status quo ou os sistemas morais, políticos e sociais que se consideram sagrados. Cada protestante tem que decidir por si próprio se determinada conjuntura, doutrina ou sistema social é verdadeiro ou falso, se os profetas existentes em seu meio são verdadeiros ou falsos e se o poder estabelecido é divino ou demoníaco. Para os protestantes a decisão será sempre pessoal. 

Tal protestantismo entendido como expressão crítica e autônoma existe onde quer que se proclame o poder do novo ser e onde se denuncie situações-limite que ameacem o sentido da vida. É aí que se encontra o protestantismo e em nenhum outro lugar. É possível que o protestantismo sobreviva nas religiões organizadas, mas não depende delas, talvez por isso a maioria das pessoas experimente o sentido da situação-limite fora das igrejas, já que o princípio protestante pode ser proclamado por movimentos pertencentes tanto ao domínio secular, sem qualquer filiação eclesiástica, assim como por pessoas e grupos que por meio de símbolos protestantes expressam a situação humana em face do incondicional. Se nessas situações proclama-se com mais autoridade o princípio protestante do que nas igrejas, então é aí e não nas igrejas que o protestantismo se torna vivo e atual. Tomando-se por base tal compreensão, entendemos a luta histórica do povo negro e de seus descendentes no Brasil como um clamor permanente contra situações-limites a que estiveram e estão expostos. 

A chamada a um posicionamento transcendente, de resistência ao impacto da herança de exclusão deveria levar a Igreja protestante a elaborar uma mensagem para o mundo afrobrasileiro. Mensagem de esperança. Mas a igreja que não aprendeu a protestar é sempre tentada a emancipar o afrodescendente através da submissão à hierarquia e à tradição, esquecendo-se que ele já experimentou a autonomia e que esta é uma experiência transformadora. 

O conceito de situação-limite traduz aquela ameaça a tudo que dá sentido final à existência, e este o diferencial do protestantismo. Esta expressão, como vimos, nasceu em torno da justificação pela graça, através fé, já que a vida em liberdade significa a aceitação da exigência incondicional de se realizar a verdade e se fazer o bem. Assim, o reconhecimento da existência da situação-limite traduz-se em juízo e transformação, realça a diferença entre a religiosidade que faz a defesa da hierarquia e da tradição e o princípio protestante. A justificação pela fé é, então, entendida a partir da situação-limite. Por isso, sem uma relação universal com o mundo ético a noção de autonomia da pessoa não basta para construir uma ética. Ou seja, não se funda uma ética protestante apenas sobre o terreno da pessoalidade. Mas é importante entender que não existe uma interpretação absoluta da essência, fonte da ética, já que essa essência não é uma grandeza estática, mas se realiza de forma dinâmica na existência. Por isso, não se pode subscrever nem a construção de uma ética social absoluta, nem uma construção de tipo racionalista. Toda compreensão real da essência e como conseqüência toda ética real são concretas. Essa essência se situa naquele momento especial, pleno de liberdade e que revoluciona conceitos, ações e destinos. A universalidade desse tempo kairótico comporta riscos concretos, já que não se move num universal abstrato, separado da situação atual, o que é válido tanto para a pessoa, quanto para a consciência ética de um grupo social, no nosso caso da brasilidade em sua relação com a afrodescendência. Exatamente por isso, toda realidade essencial comporta dois aspectos, aquele a traz de volta à origem, “ao fundamento e abismo de todo ser, e um outro que indica seu caráter particular, sua inserção na finitude”. 

Assim, a realização da essência da brasilidade, em sua relação com a afrodescendência, deve se orientar em direção a ela própria, na medida em que essa manifestação de sua origem criativa remete ao que é perene nela. Exprime o que lhe é próprio, suas solidariedades no plano formal e sua finitude. Por isso, uma ética da brasilidade deve transportar ao transcendente e ao mundo, que em última instância são o bem decisivo de nossa existência concreta. Ao nos posicionarmos por uma ética que parte da essência de nossa brasilidade nos posicionamos por uma ética da vida. E tal compreensão leva-nos a estudar o desenvolvimento criativo desta essência brasileira enquanto vida que irrompe na história, criadora de um novo ser. 

E a partir daí podemos afirmar que a experiência do cristianismo protestante em sua essência pode ser uma experiência transcendente ao nível da materialidade afrobrasileira, uma experiência que deve acontecer em todas as situações. Nesse sentido, tal protestantismo não poderia ser identificado com um tipo determinado de organização social, mas ser portador de poder e oferecer aos afrobrasileiros uma mensagem de vida, tanto para a pessoa como particularidade, como para as comunidades como um todo. Exatamente por isso, apresenta-se capenga toda forma de cristianismo, protestanstismo, evangelicalismo que se fecha na pura interioridade. Mas também não se pode dizer que o cristianismo do princípio protestante é um movimento que parte mecanicamente da interioridade em direção à exterioridade, apropriando-se de formas culturais afrobrasileiras ou simplesmente passando ao largo delas. Na verdade, ele toma forma a partir delas, mas também dá forma às expressões culturais afrobrasileiras. Dessa maneira, um tal cristianismo do princípio potestante está interpenetrado pela consciência experiência estética, ética e pelos modelos sociais da afrobrasilidade. 

O princípio protestante, ao fundamentar-se numa ética do amor-companheiro, daquele que parte e reparte o pão, tem uma postura crítica diante da ordem social que se apóia na opressão e na exclusão social. Nesse sentido, clama pela necessidade de uma ordem na qual o sentido de comunidade seja o fundamento da organização social. Esta ética do amor propõe uma economia solidária onde a alegria não seja fruto do ganho, mas do próprio trabalho. E condena o egoísmo de classe, onde cada qual procura enriquecer através da exploração de seu próximo e das conseqüências desse processo, como o privilégio da educação para uma elite. Tais pecados sociais são limitação do bem, porque impedem a universalização do amor; alienação da vontade, porque degradam a possibilidade de escolha dos agentes morais; e dependência do mal, porque aprofundam raízes e escravizam a comunidade. Diante disso o princípio protestante propõe que se enfrente tais pecado com autonomia crítica, solidariedade e transformação social, por acreditar que tais posicionamentos políticos geram justiça, paz e participação solidária. 

Ora, se rupturas espirituais estão sempre associadas a rupturas econômicas, da mesma maneira que um processo de unidade espiritual vem associado a um processo de unidade econômica, como considerou Tillich, o fracionamento espiritual característico de nossa épocas traduz fracionamento econômico, distanciamento e choque entre classes. Tal situação nos exorta a buscar a construção de um novo processo cultural de unidade de onde brote unidade e solidariedade social e econômica, mas também espiritual. Ora, se é viável sonhar e lutar por processos de desenvolvimento que combinem mudanças espirituais e transformações econômicas e sociais, podemos afirmar que o protestantismo está eticamente obrigado a fazer uma escolha, ou participa do processo, atuando a favor desse desenvolvimento ou entra em processo de caducidade, ao afastar-se da vida real das comunidades afrobrasileiras nas quais está inserido. 

Seja qual for a nossa opinião ética sobre a relação protestantismo/afrobrasilidade, um fato deve ser ressaltado: é necessário para o protestantismo manter um relacionamento com as pessoalidades, comunidades e cultura afrobrasileira, já que a rejeição da afrobrasilidade em nome de um protestantismo sem raízes contradiz a universalidade do cristianismo. E se o cristianismo não somente pode, mas deve manter um relacionamento com a afrobrasilidade, devemos nos perguntar se o contrário da premissa é verdadeira: pode a afrobrasilidade ter um relacionamento construtivo com o protestantismo? Para muitos, a tradição histórica de ausência e negação da negritude nega a possibilidade dessa aproximação, mas devemos ver que tal concepção mais que nada traduz uma relação de causalidade ideológica. Por isso, as pessoalidades, comunidades e culturas afrobrasileiras estão desafiadas a construir atitudes diferentes em relação ao princípio protestante e em relação às estruturas ideológicas do protestantismo. A história do protestantismo no passado e no presente é passível de muitas críticas. Suas opções fizeram como que dificultasse seu relacionamento com parte da população afrobrasileira excluída de bens e possibilidades. Mas, ao contrário do que pode parecer, não podemos dizer que a ideologia branca do protestantismo de missões seja um fenômeno constitutivo do protestantismo. Antes, é uma herança da cultura burguesa. 

Embora, haja razões históricas para criticar o protestantismo, erramos quando negamos a existência da base solidária do ideal cristão. Quer dizer, há setores do movimento de resistência do povo negro que vê com desconfiança o protestantismo. Mas, se as idéias de emancipação do povo negro não traduzem nenhuma oposição essencial, de princípio, ao cristianismo que vive o princípio protestante, aos cristãos cabe ter uma atitude solidária e fraterna com as reivindações e lutas da afrobrasilidade. Atitude solidária e fraterna deve ser entendida como a realização do princípio do amor cristão, que entende a necessidade de eliminar as condições que geram miséria e exclusão. Tal atitude traduz a urgência de combater os fundamentos da exclusão racial e social e de ações para a construção de uma outra ordem social, que inclua excluídos e desapropriados de direitos e bens. Isto porque o princípio protestante só existe como ideal ético quando traduz anseios e esperanças dos mais variados setores das comunidades. 

3. A Escravidão Gerou Miséria e Exclusão 

Joaquim Nabuco foi o primeiro brasileiro a apresentar uma visão globalizadora de nossa formação histórica. E o fez numa pequena obra de propaganda: O Abolicionismo. Nela, ele mostrou que a escravidão, que durou três séculos, não constituía um fenômeno a mais, de modo que deveria ser analisado em igualdade de condições com a monocultura e a grande propriedade agrária. 

Para Nabuco, foi a escravidão que formou o Brasil como nação. Ela é a instituição que ilumina a compreensão de nosso passado. E é a partir dela que se definiram entre nós a economia, a organização social, a estrutura de classes, o Estado, o poder político e a própria cultura. A escravidão foi a protagonista por excelência da história brasileira. Historiadores, sociólogos e antropólogos começam a entender assim; porém, como representantes da Igreja, nós protestantes, raramente reconhecemos essa dívida intelectual, cultural e social. O autoritarismo tão típico de nossa elite, a dificuldade na construção da cidadania e a exclusão social estão intimamente ligadas a esses trezentos e setenta anos de escravidão e são as heranças trágicas da brasilidade. Assim, a escravidão gerou miséria e exclusão. 

Nossa cultura relacional e os seus códigos devem ser entendidos a partir de uma chave dupla: é necessário partir das matrizes antropológicas, mas não se pode esquecer as pressões globalizantes. E as matrizes antropológicas foram construídas a partir da polaridade de dois mundos e de duas realidades que têm suas origens com a escravidão: a casa, enquanto dimensão social permeada de valores, de espaços exclusivos e lugar moral, e a rua, enquanto movimento, trabalho, tripalium. Essa situação traduz a relação existente entre senhores e escravos. A afirmação antropológica do padre Antonil, nosso primeiro economista, no século dezoito, de que “o Brasil é um inferno para os negros, um purgatório para os brancos e um paraíso para os mulatos” não é uma constatação biológica. Era um inferno para os negros porque para estes não havia esperança a não ser a morte, geralmente prematura. Para os portugueses era o purgatório porque estes acreditavam na possibilidade de fazer fortuna e voltar a Portugal. E era um paraíso para os mulatos porque estes já livres da escravidão: podiam transitar entre brancos e negros, crescendo em importância social pelo papel mediador que lhes era confiado. 

Assim, o paraíso aqui é definido como resultante de um relacionamento cultural. Locus do mulato ou mulo, animal ambíguo, híbrido, incapaz de reproduzir-se enquanto tal. Apesar da grosseria racista do termo, será ele aquele que rompe a dualidade cultural, tão típica das sociedades protestantes e calvinistas, que opõe bem e mal, deus e diabo. Aqui, ao contrário, com a construção da cultura afrobrasileira e com o mulato, dá-se a síntese que traduz nossa cultura relacional. 

Ótimo exemplo é o nosso Macunaíma, um herói sem nenhum caráter, de Mário de Andrade. Nos países de cultura protestante burguesa, o negativo é o que está no meio. Aqui, o que está no meio é a virtude. 

Antonio Manzatto (1994) analisa a antropologia dos personagens amadianos. Para ele, Jorge Amado vai além do regionalismo e realiza uma síntese magistral da identidade do brasileiro, extrapolando os marcos estéticos da literatura, para formalizar as bases da cultura relacional afrobrasileira, embora não faça a crítica do que se esconde atrás e por baixo da aparente cordialidade do brasileiro. 

A cultura relacional esconde a injustiça social e a opressão sexual. Afirmamos que o Brasil foi formado por três matrizes: brancos, índios e negros, o que, filtrado pela cultura relacional, leva a uma ilusão, a uma mentira, como se brancos, índios e negros tivessem optado pela construção do país. A verdade é que portugueses brancos e aristocráticos exterminaram índios e escravizaram negros. 

Claude-Lévi Strauss em O cru e o cozido (1964) nos leva a conhecer, por meio de uma abordagem estruturalista, como foi determinante no desenvolvimento da humanidade a passagem da alimentação crua para a cozida. A partir do título de inspiração culinária, Claude-Lévi Strauss refere-se às exigências do corpo e aos laços elementares que o ser humano mantém com o mundo. Assim, através da oposição aparentemente trivial entre o cru e o cozido, apresenta a força lógica de uma mitologia da cozinha, tal como concebida pelas tribos sul-americanas. Depois, traz a tona as propriedades gerais do pensamento mítico, onde descobrimos uma filosofia da sociedade e do espírito. E é interessante que este pensamento mítico vai empapar a cultura relacional brasileira. 

No Brasil há um código relacional que traduz uma equivalência entre comida e sexualidade, que tem como fundamento o prazer, e apresenta novos parâmetros para o cru e o cozido, relacionando alimento, comida e sexo. 

Para a cultura afrobrasileira, alimento é o que mantém os seres vivos, a comida, aquilo que dá prazer, e o sexo é sempre um tipo de comida. O alimento é geral e universal, mas a comida dá identidade e, como conseqüência, quem come tem o controle. O alimento cru por excelência é a salada, algo de pouco sabor, sem maiores atrativos, diferente da comida que é bem cozida, como papa ou pirão. O alimento é aquilo que é difícil de engolir, já a comida é arroz com feijão, síntese da afrobrasilidade. Herdeiros que somos das culturas das irmandades de angolanos, benguelas, jejes, nagôs e outras, onde o cuidado pela preservação da vida da comunidade cabia à mulher, na cultura afrobrasileira é ela quem faz a mistura e quem dá a comida. E mulher é dona Flor, moquequeira dengosa, articuladora de temperos, de cama e mesa. Ou Gabriela, de cravo e canela. 

4. Tempo e Construção da Vida 

Na cultura relacional afrobrasileira, o tempo vivido disputa com tempo lembrado. O tempo vivido é a rua, o movimento, é o tripalium. O tempo lembrado é o sonho, é o que foi e que deveria continua a ser. O tempo vivido é o suor e o cansaço. 

A festa é a ruptura do tempo vivido. É o momento em que o corpo deixa de ser gasto pelo tripalium e é gasto pelo prazer. Talvez por isso, o maior acontecimento relacional da afrobrasilidade é o carnaval. É o momento do contrário. Troca-se o dia pela noite, a casa pela rua. A regra é o excesso. Não é uma festa de máscaras mas de fantasias. É uma leitura da liberdade considerada fim das regras e convenções. Vive-se o fim da miséria, o fim da escravidão, o fim do pelourinho. É a utopia socialista em versão brasileira. Todos somos iguais diante da possibilidade do prazer. Ou como canta Ney Matogrosso: 

“Não existe pecado do lado de baixo do Equador / vamos fazer um pecado rasgado / suado / a todo vapor / me deixa ser teu escracho / capacho / teu cacho / diacho / riacho de amor / Vê se me usa / abusa / lambuza / que a tua cafusa não pode esperar / quando a lição é de escracho / olha aí / sai de baixo / que eu sou professor / deixa a tristeza pra lá / vem comer / vem jantar / sarapatel / caruru / tucupi / tacacá / vê se me esgota / me bota na mesa / que a tua holandesa não pode esperar / deixa a tristeza pra lá / vem comer / vem jantar / sarapatel / caruru / tucupi / tacacá (Ney Matogrosso, Não existe pecado ao sul do equador”. 
Letra e música: Chico Buarque e Ruy Guerra. In: "Feitiço Elektra", 1978.). 

Os códigos da afrobrasilidade caminham a par com a questão racial. A solução relacional para a injustiça social é a miscigenação e para a opressão sexual, o sincretismo. A oposição entre cultura latina, cultura indígena e cultura negra não se tornaram irreconciliáveis, mas deram origem a uma síntese, que é a cultura popular afrobrasileira. 

Essa cultura mestiça, essa síntese, é entendida como a maneira de o brasileiro viver a vida, seu gosto pela festa, pela música, pela dança, pela comida e pelo sexo. Mostra uma forma de viver em que a vida não é algo acabado e definido, mas que se vai construindo no concreto do cotidiano vivido. Essa é uma característica muito especial da cultura relacional afrobrasileira, na qual a vida tem de ser reelaborada a cada dia. Não é uma forma cultural fixa, mas vai-se modificando conforme se vai vivendo. 

Esses dados são fundamentais para se entender a questão da identidade do afrobrasileiro. Sua identidade não existe como algo dado. Também a identidade vai sendo construída, e os elementos externos e as pressões mais novas (isto é, globalizantes) vão sendo deglutidos e vividos no hoje que se vive. 

5. A Cultura Relacional Afrobrasileira 

O concreto e imediato da vida do afrobrasileiro o leva a ser um ser relacional. Mais do que estar situado diante das coisas e da natureza, o realizar-se do afrobrasileiro como ser dá-se através do relacionar-se. Assim, não se considera prisioneiro do destino, das forças das coisas ou da natureza. 

É um ser que procura aliados, quer para a realização de seus prazeres, quer para enfrentar os desafios impostos por elementos ou realidades alheias a seu cotidiano. A essa procura de alianças, o afrobrasileiro chama de amizade e companheirismo. E se ele pode relacionar-se com seus pares, também o pode fazer com a transcendência. Para o brasileiro, o relacionar-se com o transcendente jamais significa uma negação do humano. Daí a intimidade que aparenta ter com a divindade. 

Nas religiões afrobrasileiras, que nasceram do sincretismo, das quais a Umbanda talvez seja o caso mais peculiar, os elementos constitutivos da personalidade dos orixás são traduções antropológicas do afrobrasileiro, inclusive de seus códigos relacionais. 

Tanto o ideal de liberdade como outras características do afrobrasileiro traduzem uma profunda dimensão coletiva. Isso não elimina ou massacra sua pessoalidade, mas, na maioria dos casos, lhe permite reafirmá-la. E o massacre não acontece porque o afrobrasileiro é coletivo e comunitário, mas porque não sobrevaloriza as estruturas sociais. Assim, ao desprezar as estruturas, ao negar qualquer redução ao papel de simples engrenagem, reafirma a amizade e a solidariedade como formadoras do coletivo. Para ele, a liberdade, a amizade e a solidariedade acontecem na comunidade. É difícil imaginar o afrobrasileiro solitário. Ao contrário, a imagem cultural e social que temos dele, e que toda a cultura popular reflete é a do homem e mulher cercados de amigos, conhecidos e parentes. A sua práxis religiosa é sempre coletiva. A religião é sempre um acontecimento comunitário, quer falemos da Umbanda ou do pentecostalismo popular. Para o afrobrasileiro, a religião não pode ser vivida individualmente. A idéia de que a religião é questão de foro íntimo é uma abstração branca, calvinista ou tridentina. Ao contrário, na cultura afrobrasileira todos discutem a religião do outro, opinam e querem vê-lo junto na mesma comunidade. 

E em relação às festas não poderia ser diferente. E festa implica comida, música e dança. Em condições normais, o afrobrasileiro não come, nem bebe sozinho. A comunidade é o espaço onde sua pessoalidade e criatividade atingem os níveis mais altos. 

6. A Criatividade Afrobrasileira 

Um pensamento protestante que parta da realidade da cultura relacional afrobrasileira não pode desrespeitar a negritude. Não pode negar o mundo negro considerado parte integrante da humanidade criada à imagem e semelhança de Deus. Ao contrário, deve partir da realidade antropológica da criatividade afrobrasileira, que em amplo espectro se traduz numa antropologia da aventura e do risco enquanto fonte da liberdade que busca. 

Razões geográficas, históricas e raciais, nos últimos três séculos, levaram ao mergulho no desconhecido e plasmaram no afrobrasileiro essa atração pela aventura e pelo risco. O afrobrasileiro ama o desafio, não como futuro planejado, mas como espaço para a criatividade. Para ele, desafio é sempre se lançar à aventura da ruptura de regras, é dizer não às convenções e sobreviver pela coragem. 

Quando enfrenta esses desafios, que vai da sobrevivência no trapézio da economia informal ao transformar-se em Mané Garrincha nos gramados do mundo, está de fato modelando sua identidade. Mulato, não teme mergulhar nos desafios da cultura branca e globalizada. 

Aventura implica a possibilidade do fracasso. E fracasso faz parte do risco. Mas ao viver a dialética desse movimento, o afrobrasileiro constrói sua identidade, ainda que a um preço muito alto. Na verdade, é fazendo assim que ele sente-se livre e dá asas à sua criatividade, sem se preocupar com a construção do futuro. E se não fosse assim não estaríamos diante do afrobrasileiro. 

A dificuldade em globalizar o afrobrasileiro repousa aí: na cosmovisão de que a vida humana deve ser entendida como aventura e prazer. Como algo que não pode ser planejado, organizado, dimensionado, mas vivido. Dessa maneira, viver é estar aberto ao novo, ao desafio, ao que ainda não foi vivido, nem mesmo se planejou viver. A ação antropológica do afrobrasileiro nasce da possibilidade de escolher a vida que sonha viver, que ele tem liberdade para escolher viver. Nesse sentido, quer viver a cada dia um novo sonho. E como para ele ficção e realidade se entrelaçam, sua maior construção é o carnaval, já que gira ao redor da festa e do prazer. Comida e sexo, futebol e carnaval surgem como expressões maiores da possibilidade da utopia. 

O pensamento protestante não pode estar preocupado em adaptar o homo afrobrasiliensis à globalidade banalizadora, mas em entender os elementos da imago Dei que permeiam essa riqueza civilizatória. 

7. A Busca do Transcendente 

A afrobrasilidade é um modo de ser, uma maneira de existir. O afrobrasileiro não se diferencia simplesmente pela sua cor de pele. A pele negra tem uma história, uma história de negações e de resistências. É preciso, pois, compreender que o afrobrasileiro se autocompreende, num primeiro momento, em sua história de negação, e por isso se afirma negro. A afrobrasilidade é afirmação deste que é negro e negra: é negação da negação. Este afrobrasileiro, destituído de sua história, vive imerso em si mesmo e numa sociedade que promove a ruptura de seus valores étnicos, sociais e culturais, mas quer iniciar uma outra história, onde não é João ninguém, Maria nenhuma. 

Mas a história do povo negro não começa com a escravidão. Afirmar a afrobrasilidade é afirmar uma proposta em que a afrobrasilidade é mais do que uma evidência, é afirmar uma história que foi excluída. Implica compromisso com a causa de um povo. Se a cultura relacional afrobrasileira tem um caráter mágico, fortemente empapado no maravilhoso, isso se dá porque o dia-a-dia desse ser humano está ligado à busca da transcendência. Nesse sentido, o elemento que vai além e ultrapassa o concreto do dia-a-dia do afrobrasileiro é o transcendente. 

Essa presença do maravilhoso caldeia toda a malha relacional, indo do afrobrasileiro simples ao que alcançou o sucesso e a glória. É importante, no entanto, entender que o maravilhoso relacional da cultura afrobrasileira não nasceu de um processo pacífico, mas violento, do choque entre o universo transcendental de brancos e a matriz sacralizadora da natureza da religiosidade negra. A contra-reforma produziu genocídio e escravidão, macerando o universo religioso de povos e nacionalidades. 

A recuperação da história do povo negro como tradição e cultura liga-se à necessidade de conscientização da identidade afrobrasileira. Aquele que esquece nega o esquecido, reprimindo ou suprimindo. A identidade está imbricada à memória. Evocar a memória é provocar e transformar. 

Dessa maneira, reconhecendo os elementos negativos da cultura relacional afrobrasileira, que se traduziu na tentativa de esconder as injustiças sociais sofridas, podemos resgatar o que ela construiu de positivo. Afirmar a cultura à qual pertencemos é o primeiro passo para construir um pensamento protestante afrobrasileiro, que compreenda a identidade do povo negro em sua busca de felicidade e transcendência. 

A antropologia mostra-nos um afrobrasileiro em busca da felicidade imediata e da transcendência, possibilitando ao pensamento protestante uma compreensão dos elementos da revelação e da imagem de Deus aí embutidos. Não devemos temer o afrobrasileiro, mas conscientemente reconstruir raízes e memória. Esse caminho dará fundamentos a velhos sonhos, traduzirá a boa notícia como resposta imediata e concreta para a utopia que se desfaz na quarta-feira de cinzas. 

Ser negro traduz metanóia e por isso a afrobrasilidade constitui-se num desafio não só para os negros. A afrobrasilidade deve ser uma práxis, uma atitude de resgate diante da história de negação do negro. Desse ponto de vista, colocar para a nova igreja a afrobrasilidade como princípio protestante implica resgate de uma história de sofrimento e dor e redenção diante das possibilidades que estes sofrimento e dor construíram. O lugar fundamental da gestação da afrobrasilidade do ponto de vista do princípio protestante dá-se no locus da comunidade negra, espaço de formação da identidade negra, como vida resgatada. Mas, considerando que o princípio protestante possui dimensões que transcendem o locus, é importante estabelecer paradigmas que o viabilizem. Paradigmas esses que possibilitem a cada comunidade traçar seu caminho de liberdade, de acordo com sua realidade e necessidade, sem perder o vínculo com o conjunto da mensagem de redenção. Nesse sentido, não basta construir um pensamento da negação, mas um pensamento da afirmação da afrobrasilidade. Não somente uma práxis do protesto, mas uma práxis da proposta, uma práxis da libertação que permita levar a riqueza dos sonhos ancestrais à sociedade afrobrasileira de conjunto. 

Num primeiro momento, abertura à transcendência é sofrimento e cruz. Motor da liberdade cristã, quando esta se revela no aspecto da supressão do ser humano imediato. É a exigência de romper com o existente aceito. Essa ruptura, no entanto, exige persistência na determinação e no sofrimento em nível imediato, sem a qual não há liberdade dentro da ordem existente (Ballestero, 1970, p.110-111). 

Contudo, abertura à transcendência não se resume a esse primeiro momento. Na verdade, é diametralmente oposto a ele, traduz outra realidade, outra natureza. A unidade transcendência/humilhação/cruz é superficial como realidade imediata. Por isso, a emergência da transcendência passa pela morte do mundo, porque a realidade entrou em caducidade. Sofrimento e cruz refletem essa impossibilidade de vida e de eternidade. A transcendência é regeneradora porque acontece no mais fundo da própria raiz humana. É no momento da morte de seu consciente, que o mais profundo da intencionalidade humana se revela. 

A interioridade cristã não é consciência cartesiana. É um tempo de negação de todo objeto possível, tempo de vazio interno que possibilita a abertura ao sagrado. É nesse momento que a transcendência aparece como disponibilidade transparente da consciência. Dessa maneira, a transcendência do afrobrasileiro não pode realizar-se a não ser como articulação viva da subjetividade e como sua obra. A morte do afrobrasileiro imediato é o ato que faz possível ressurgir o verdadeiro afrobrasileiro, a partir daquilo que lhe é inalienável e próprio. Fazendo uma releitura de Lutero podemos dizer que o cristão “é servo em tudo e está submetido a todo mundo”, então... o cristão “é senhor de todas as coisas e não está submetido a ninguém” (Luther, 1955, p. 225). 

Se entendermos a dialética desse processo, teremos elementos para construir uma práxis afrobrasileira do princípio protestante. Uma práxis que parte da negação, mas vai além, transcende, e que fará de todos nós senhores da vida que nos foi entregue. 

Tu és o Poeta, o grande Assinalado 
Que povoas o mundo despovoado, 
De belezas eternas, pouco a pouco... 
Na Natureza prodigiosa e rica 
Toda a audácia dos nervos justifica 
Os teus espasmos imortais de louco! 
“O assinalado”, Cruz e Souza (terceira e última estrofes).

Notas

1 Jorge Pinheiro dos Santos é cientista da religião e teólogo. É Doutor e Mestre em Ciências da Religião pelo Programa de Pós-Graduação em Ciências da Religião da Universidade Metodista de São Paulo. Tem graduação em Teologia pela Faculdade Teológica Batista de São Paulo. É professor de Teologia e História na Graduação e no Mestrado da Faculdade Teológica Batista de São Paulo. Entre seus livros publicados estão Somos a imagem de Deus, ensaios de antropologia teológica, São Paulo, Ágape Editores, 2001; Ética e Espírito Profético, revisitando a História com Paul Tillich, São Paulo, Ed. Igreja sem fronteiras, 2002; Teologia e Modernidade, Etienne Higuet (org.), vv.aa., São Paulo, Fonte Editorial, 2005; e A Forma da Religião, Etienne Higuet e Jaci Maraschin (orgs,), vv.aa., São Bernardo do Campo, Universidade Metodista de São Paulo, 2006.

2 Kenneth Scott Latourette, História del Cristianismo, s/l, Casa Bautista de Publicaciones,1977, t.2 , p.677.

3 Robert Divine it alli, América Passado e Presente, Rio de Janeiro, Nórdica.1992, p.328.

4 Bárbara Stein, “O Brasil Visto de Selma”, Alabama, in Revista do Instituto de Estudos Brasileiros, nº 03 USP. p. 49.

5 Rute F. Mathews, Ana Bagby a Pioneira, Rio de Janeiro, Casa Publicadora Batista, 1972, p.24.

6 A. R. Crabtree, História dos Batistas do Brasil até 1906, Rio de Janeiro, Casa Publicadora Batista, 1962, p. 58.

7 Donaldo Price, “A implantação das Assembléias de Deus no Brasil e dos Batistas Brasileiros: um contraste entre dois modelos missionários”, São Paulo, Teológica, Ano 3, no. 4, 2o. semestre 2001, p. 39.

8 Elisabete Aparecida Pinto e Ivan Antonio de Almeida, “Introdução”, in Religiões, Tolerância e Igualdade no Espaço da Diversidade (exclusão e inclusão social, étnica e de gênero), São Paulo, FALA PRETA!, 2004, p. 16.

9 Paul Tillich, A Era Protestante, São Bernardo do Campo, Ciências da Religião, 1992, p. 221.

10 “A existência humana é a elevação do ser à dimensão da liberdade. O ser se liberta das cadeias da necessidade natural. Torna-se espírito e adquire liberdade de se questionar a si mesmo, o seu ambiente, de questionar a verdade e o bem e de decidir a seu respeito. Entretanto, há nessa liberdade certa falta de liberdade, pois somos todos compelidos a decidir. ‘Essa inevitabilidade da liberdade, de ter que decidir, cria profunda inquietude da existência; é por esse meio que a existência passa a ser ameaçada’. Tudo isso, porque somos confrontados por uma exigência incondicional de escolher o bem e de realizá-lo, na mesma medida em que isso não pode ser alcançado. Conseqüentemente, o ser humano, na sua dimensão espiritual carrega em si uma ruptura, que também se manifesta na sociedade. Não é possível fugir dessa exigência. Ao enfrenta-la jamais se reveste de segurança absoluta. Trata-se pois do que Tillich chama de ‘situação humana limite’: todas as seguranças que construímos são questionadas e as possibilidades humanas alcançam e descobrem seus limites”. James Luther Adams, O conceito de era protestante segundo Paul Tillich, in Paul Tillich, A Era Protestante, SBC, Ciências da Religião, 1992, p. 301.

11 “Observamos aqui um dos aspectos mais originais e notáveis da doutrina da justificação em Tillich. Lutero aplicava essa doutrina apenas à vida religiosa-moral. O pecador, não obstante ser injusto era ‘justificado’. Tillich aplica a mesma doutrina igualmente à esfera religiosa-intelectual. Nenhuma autoridade tem o direito de exigir, na verdade, a aceitação de qualquer crença ‘correta’ de quem quer que seja. A devoção à verdade é suprema; é devoção a Deus. Existe sempre um elemento sagrado na integridade que conduz à dúvida mesmo sobre Deus e a religião. Na verdade, se Deus é a verdade, Ele é a base e não o objeto das questões a seu respeito. Qualquer lealdade à verdade será sempre religiosa, mesmo quando acabar constatando a falta de verdade. Parafraseando Agostinho, a pessoa que duvida com seriedade terá de dizer: ‘Duvido, logo sou religioso’. O divino se faz presente até mesmo na dúvida. O ateísmo absolutamente sério pode se dirigir ao incondicional; pode ser uma forma de fé na verdade. Vê-se aqui a conquista da falta de sentido pela consciência da presença paradoxal do ‘sentido na própria falta de sentido’. Assim é ‘justificado’ aquele que duvida. A única atitude fundamentalmente irreligiosa é, então, a do cinismo absoluto com sua completa falta de seriedade”. James Luther Adams, idem, op., cit., pp. 302-3.

12 Paul Tillich, Le problème de l’éthique sociale évangélique in Christianisme et socialisme, Écrits socialistes allemands (1919-1931), Les Éditions du Cerf, Éditions Labor et Fides, Les Presses de l’Université Laval, 1992, p.276.

13 Idem, op. cit., p. 276.

14 Paul Tillich, Rapport au Consistoire in Christianisme et socialisme, Écrits socialistes allemands (1919-1931), Les Éditions du Cerf, Éditions Labor et Fides, Les Presses de l’Université Laval, 1992, p.3.

15 “(...) l’ethique de l’amour introduit dans chaque forme sociale et économique un ferment de critique d’autant plus actif que l’ordre s’appuie davantage sur le pouvoir, l’oppression, l’intérêt personnel. Pour cette raison, le christianisme a pu trouver plus de parenté avec la structure de la société médiévale qu’avec celle de l’époque romaine tardive, et se lier plus étroitement à elle. Voilà pourquoi, c’est notre conviction, il doit à présent s’opposer à l’ordre social capitaliste et militariste dans lequel nous nous trouvons et dons les ultimes conséquences sont devenues manifestes avec la guerre mondiale”. Paul Tillich, Rapport au consistoire, op. cit., p. 4. 

16 Idem, op.cit., p.5.

17 Cultura relacional é aquela em que as relações entre as classes aparecem de forma difusa, sobre a base de relações sociais aparentemente pouco intervencionistas diante de uma sociedade civil incipiente, onde a interação entre o público e o privado se figura flexível e amorfa. Por isso, nessa cultura, as relações dentro das classes e, muitas vezes, entre elas se mostram mais gratificantes do que os motivos e fins que deram origem a essas relações.

18 O tripalium dá origem à palavra trabalho. É um instrumento de três piquetes usado para fixar animais quando se pretendia fazer intervenções veterinárias ou marcá-los a ferro. Foi utilizado pelos romanos, depois na Idade Média e posteriormente importado pelos colonizadores portugueses. Era utilizado nas fazendas brasileiras para conter os escravos quando castigados ou marcados a fogo.

19 Em obra publicada em 1711, Os escravos são os pés e as mãos do senhor do engenho, o jesuíta André João Antonil, proprietário do maior número de engenhos entre as ordens religiosas, afirmava que sem os escravos “no Brasil não é possível fazer, conservar e aumentar fazenda, nem ter engenho corrente. E do modo, como se há com eles, depende tê-los bons ou maus para o serviço. Por isso é necessário comprar cada ano algumas peças e reparti-las pelos partidos, roças, serrarias e barcas”. 

20 “Livres para a fome, livres para o inverno e para as chuvas do céu... Livres sem um teto para os cobrir, sem pão para comer, sem terra para cultivar... Nós lhes demos liberdade e fome ao mesmo tempo” (Wilmore e Cone, 1986, p. 42).

21 “Mais do que um simples mecanismo de adaptação de migrantes pobres ao meio urbano, uma religião como a Umbanda, que tem crescido não somente entre as classes baixas, mas também entre as médias, deve ser vista como uma síncrese das tradições afrobrasileiras e espíritas. É por isso que a verdadeira chave da compreensão da Umbanda reside na própria sociedade brasileira, já que essa religião é fruto de transformações sociais e econômicas que ocorreram no país” (Fry e Howe, 1975).

22 “A adesão das massas urbanas à umbanda e ao pentecostalismo são freqüentemente explicados em termos de exposição às relações de produção nas cidades. Assim, as pessoas que não podem recorrer aos relacionamentos familiares existentes no campo entre camponês ou trabalhador rural e seu patrão (os quais embora extremamente exploradores pelo menos propiciam um tipo mais pessoal de contato e algum tipo de ‘proteção’) buscariam substitutos em cidades onde as relações capitalistas de trabalho deixam menos margem para contatos pessoais e nos quais os empregadores não têm obrigações morais em relação aos seus empregados. (...) Pentecostalismo e umbanda são religiões de massa importantes no Brasil. Para certos setores da população elas têm funções sociais e psicológicas significantes. Elas não só satisfazem aspirações em relação a uma visão espiritual e mágica do mundo, mas também fornecem ao crente uma orientação definitiva em relação à sua conduta, assim proporcionando apoio espiritual” (Oliven, 1987, p. 42).

23 O ser humano tem um destino. O termo destino conota vocação, aponta para aquele conteúdo intrínseco que constitui uma dimensão da natureza humana. Destino tem matizes de dom, propósito e alvo. A concepção cristã do ser humano trabalha com a idéia de que todos os seres humanos são chamados à construção de destino pleno de sentido.

24 A expressão nova igreja traduz a consciência de que o cristianismo deve apresentar um evangelho integral, holístico, ao mundo. Esse evangelho não se limita ao privatissimum da salvação individual e nem se fecha entre as quatro paredes do templo, mas está preocupado com o ser humano enquanto totalidade social, política e cultural. Essa consciência vem se estendendo cada vez mais pelo conjunto das igrejas evangélicas no Brasil, sejam elas históricas ou pentecostais.



25 “Acredito na luta revolucionária que Jesus, o Messias negro, iniciou. Acredito no sacrifício que ele quis fazer. Acredito que é necessário que eu empenhe toda a minha vida na luta do povo negro contra a opressão de uma situação estabelecida pelo inimigo branco. Acredito que devo estar totalmente envolvido nesta luta. Não há outro meio de salvação”. Albert B. Cleage, Não Desperdicemos o Espírito Santo: in Gayraud S. Wilmore, e James H. Cone, Teologia negra, São Paulo: Paulinas, 1986, p. 210. 



Referências Bibliográficas 

Adams, James Luther O conceito de era protestante segundo Paul Tillich, in Paul Tillich, A Era Protestante, SBC, Ciências da Religião, 1992. 

ANTONIL, André João. Os escravos são os pés e as mãos do senhor do engenho, 1711. 

AZEVEDO, Israel Belo de. A Celebração do Indivíduo. A Formação do Pensamento Batista Brasileiro, Piracicaba: Editora Unimep, São Paulo, Exodus, 1996. 

BALLESTERO, Manuel. La revolución del espíritu (Tres pensamientos de libertad). Madrid: Siglo XXI, 1970. 

BERDYAEV, Nicholas, The Destiny of Man. London: Geoffrey Bles, 1984. 

Crabtree, A. R., História dos Batistas do Brasil até 1906, Rio de Janeiro, Casa Publicadora Batista, 1962. 

CAVALCANTI, Robinson. Os Terreiros de Jesus. O Evangelicalismo e a Raça Negra no Brasil, Ultimato, Ano XXI, No. 193. Minas Gerais, Editora Ultimato, 1988. 

Divine, Robert it alli, América Passado e Presente, Rio de Janeiro, Nórdica.1992. 

FRY, Peter e HOWE, Gary Nigel. “Duas respostas à aflição: umbanda e pentecostalismo”. In: Debate e Crítica, São Paulo, no 6, 1975. 

HEFNER, Phillip J. “A questão do destino humano”. In: Braaten, Carl E. e Jenson, Robert W. Dogmática Cristã. Vol. 1, São Leopoldo: Sinodal, 1990. 

Latourette, Kenneth Scott, História del Cristianismo, s/l, Casa Bautista de Publicaciones, 1977. 

LUTHER, Martin, Les Grands écrits reformateurs. Paris: Aubier, 1955. 

MANZATTO, Antonio, Teologia e literatura, reflexão teológica a partir da antropologia contida nos romances de Jorge Amado. São Paulo, Loyola, 1994. 

Mathews, Rute F., Ana Bagby a Pioneira, Rio de Janeiro, Casa Publicadora Batista, 1972. 

MEER, Antonia Leonora Van Der, África, um Continente Maldito?, Ultimato, Ano XXIX, No. 243. Minas Gerais: Editora Ultimato, 1996. 

PINHEIRO, Jorge, Negritude, Projetos Políticos e Nova Ordem Mundial, Apostila. São Paulo, Faculdade Teológica Batista de São Paulo, 1999. 

O'DONOVAN JR., Wilbur, O Cristianismo Bíblico da Perspectiva Africana, Trad. Hans Udo Fuchs. São Paulo, Edições Vida Nova, 1999. 

OLIVEN, Ruben George, A antropologia de grupos urbanos, Petrópolis: Vozes, 1987. 

Pinto, Elisabete Aparecida e Almeida, Ivan Antonio de, “Introdução”, in Religiões, Tolerância e Igualdade no Espaço da Diversidade (exclusão e inclusão social, étnica e de gênero), São Paulo, FALA PRETA!, 2004. 

Price, Donaldo, “A implantação das Assembléias de Deus no Brasil e dos Batistas Brasileiros: um contraste entre dois modelos missionários”, São Paulo, Teológica, Ano 3, no. 4, 2o. semestre 2001. 

SANT'ANA, Antônio Olímpio de, O Negro Latino-Americano, Tempo e Presença, Ano 11, No. 242. São Paulo: Centro Ecumênico de Documentação e Informação, 1989. 

Stein, Bárbara, “O Brasil Visto de Selma”, Alabama, in Revista do Instituto de Estudos Brasileiros, nº 03 USP. 

STRAUSS, Claude-Lévi, O Cru e o Cozido, Mitológicas, São Paulo, Editora Brasiliense, 1991. 

Tillich, Paul, A Era Protestante, São Bernardo do Campo, Ciências da Religião, 1992. 

____________, Le problème de l’éthique sociale évangélique in Christianisme et socialisme, Écrits socialistes allemands (1919-1931), Les Éditions du Cerf, Éditions Labor et Fides, Les Presses de l’Université Laval, 1992. 

____________, Rapport au Consistoire in Christianisme et socialisme, Écrits socialistes allemands (1919-1931), Les Éditions du Cerf, Éditions Labor et Fides, Les Presses de l’Université Laval, 1992. 

WILMORE, Gayraud S. e CONE, James H., Teologia negra, São Paulo: Paulinas, 1986. Trad. Euclides Carneiro da Silva.



jeudi 6 octobre 2022

... rascunhos para uma teologia da vida

Gramsci e Tillich: 
rascunhos para uma teologia da vida 

Prof. Dr. Jorge Pinheiro 

“A democracia não acredita na harmonia natural, mas crê possível submeter a natureza à razão. Ela crê numa harmonia metafísica, que se instaura necessariamente do processo histórico”. Paul Tillich, “Écrits contre les nazis”. 

Quando pensamos no Brasil, e por extensão na América Latina, nos vemos obrigados a falar da teologia como alavanca para transformações que confrontem as estruturas de poder que mantêm o status quo da mundialização do capitalismo, gerador de vítimas e de excluídos de bens e direitos. Dessa maneira, entendemos a teologia como geradora de ações culturais, políticas e sociais, desencadeadas pela comunidade de fé, consciente e crítica, com vistas à transformação radical, a fim de produzir mudanças estruturais no regime e construir uma nova ordem social tanto brasileira, como latinoamericana. A teologia tem, dessa maneira, como parceira organizações não-eclesiásticas, partidos e organismos de classe de trabalhadores. E tais ações fazem da teologia praxe que leva o cristianismo para além da comunidade de fé, que a faz confrontar desigualdades, exploração e miséria. Tal teologia terá de enfrentar, assim, a oposição dos inimigos da justiça, da paz e da alegria do povo. 

O diálogo entre Antonio Gramsci e Paul Tillich possibilita rascunhar uma teologia da vida que, levando em conta as assimetrias, mas também as aproximações das praxes políticas dos dois pensadores, construir uma teologia de liberdade social, pública, para brasileiros e latinoamericanos. 

Antonio Gramsci e Paul Tillich têm muito em comum. Ambos foram militantes políticos e fundamentaram parte de suas concepções em Karl Marx. Por isso, consideramos importante ver que aproximações e assimetrias existem em suas elaborações teóricas. Cristianismo, democracia, e vida são temas que atravessam seus estudos, e que aqui vamos confrontar. Desejamos, dessa maneira, acrescentar elementos novos numa discussão cada vez mais acirrada em nossa América Latina: ainda é possível a construção de regimes que favoreçam a plenitude do sentido da vida? 

Nos últimos anos, como fruto da crise da esquerda mundial, mas também como fruto da instalação de governos nacionalistas no continente, renasceu a busca pela reflexão de pensadores marxianos. Assim, em várias universidades brasileiras, Antonio Gramsci, por exemplo, passou a ser estudado como nunca fora antes. 

Ora, a busca pelo pensamento de Gramsci situa-se nesse contexto de garimpagem do marxismo marginal, dito também não-ortodoxo. Aqui, nos interessa pensar Gramsci em correlação com um filósofo, nada ortodoxo, Paul Tillich. Aliás, o pensamento social de Tillich é praticamente desconhecido no Brasil, apesar de ter trabalhado quase duas décadas sobre questões políticas analisadas a partir do que ele chamou de socialismo religioso. 

Gostaríamos de começar essa discussão com uma idéia exposta por Tillich, de que a busca pelo sentido pleno de vida, que ele vai chamar de socialismo, traduz um anseio que brota da consciência crítica, transfomadora, num mundo autônomo e racional. Assim, tal substância profética, ou seja, a consciência crítica e transformadora, se exprime na praxe e, por isso, a relação entre profecia e racionalidade é essencial. 

Como a linguagem tillichiana é teológica, ao lê-lo nos vemos na obrigação de traduzi-lo. Assim, o que significariam as expressões profético e profecia? Tillich parte de uma compreensão peculiar do profetismo vétero-testamentário. Vê nele, tanto um clamor, como uma ação, um movimento em prol da justiça, da paz e da alegria, que dariam conteúdo, seriam a essência da religião de Israel e, por extensão, do cristianismo e da Reforma protestante. Por isso, movimento profético é praxe de crítica social, que na modernidade levou à racionalidade da autonomia. Mas, para Tillich, justiça, da paz e alegria, ou seja, socialismo, implica em correlação permanente e necessária entre consciência crítica e racionalidade na autonomia. Assim colocada a questão, vemos que Tillich se afasta das correntes socialistas que repousam exclusivamente no racionalismo, em especial do bolchevismo, como das correntes que vêem a possibilidade de uma expansão crescente da autonomia, via democracia. É essa preocupação de Tillich em correlacionar razão e autonomia que possibilita esse diálogo crítico com Gramsci. 

De Gramsci podemos dizer que recriou a linguagem da tradição marxiana e codificou teoricamente seus conceitos, ao falar de estado regulado, filosofia da práxis, grupo social, hegemonia, sociedade civil, estado ampliado, intelectual orgânico e moderno Príncipe. Mas, neste texto, nos interessa analisar suas idéias sobre o cristianismo, o intelectual e a democracia. 

O desafio cristão 

Marx partiu do fato de que o pensamento judaico/cristão torna o ser humano estranho a si mesmo e desdobra o mundo em um mundo imaginário. Por isso, considerava que o trabalho do teórico consiste em dissolver o imaginário judaico/cristão em sua base terrena. Vai dizer, então, que Feuerbach não percebe que, findo o trabalho da crítica da herança judaico/cristã, o principal ainda está por fazer. O fato de que a base terrena se separe de si mesma e se estabeleça nas nuvens, como reino independente, só pode ser explicado pela dissociação interna e pela contradição dessa base terrena consigo mesma. 

O que deve, portanto, ser feito antes de qualquer coisa é compreendê-la em sua contradição e depois remover essa contradição. Assim, por exemplo, após descobrir que a família terrena é o segredo da Sagrada Família, é a família terrena que deve ser criticada teoricamente e revolucionada. Marx explica a fé cristã por meio das contradições da sociedade humana e de suas dissociações, que induzem o ser humano a projetar fora do mundo, em um paraíso, a realidade na qual desejaria viver. Mas como afirma Radice, na quarta tese sobre Feuerbach, Marx afirma de modo explícito que a forma judaico/cristã reflete um conteúdo histórico. Por estar impotente, o ser humano imagina uma potência divina, por estar abandonado cria uma providência. 

Gramsci verá o pensamento de Marx como herdeiro de dois movimentos culturais, a Reforma protestante e a Revolução francesa: 

"A filosofia da práxis pressupõe todo este passado cultural, o Renascimento e a Reforma, a filosofia alemã e a revolução francesa, o liberalismo laico e o historicismo; em suma, o que está na base de toda concepção moderna da vida. A filosofia da práxis é o coroamento de todo movimento de reforma intelectual e moral, dialetizado no contraste entre cultura popular e alta cultura. Ela corresponde ao nexo Reforma protestante mais Revolução francesa: trata-se de uma filosofia que é também uma política e uma política que é também uma filosofia". 

E por isso dirá que "a religião cristã (...) foi e continua a ser uma necessidade, uma forma necessária de racionalidade do mundo e da vida". 

Marx pode, então, ser entendido como desenvolvimento que se dá a partir de três correntes da Reforma protestante: a luterana que legou Hegel, a calvinista que legou Ricardo e a economia clássica, e a huguenote que criou o jacobinismo. 

"A estas três fontes originais, Gramsci tenta ligar a tradição cultural italiana, principalmente Maquiavel, como precursor do jacobinismo, e Croce como desenvolvimento historicista da filosofia alemã. O marxismo torna-se assim um ponto de convergência destas três correntes sob a forma de crítica radical". 

Dessa forma, para Gramsci, a Reforma foi não somente uma reforma ao nível da economia, filosofia e política, mas também uma revolução cultural, no sentido de que procurou forjar uma nova humanidade. Para Gramsci a consciência religiosa cristã, que se traduziu em revolução cultural no século XVI, teve um caráter de suma importância na construção do pensamento contemporâneo. Ou, nas suas palavras: "da primitiva rusticidade intelectual do homem da Reforma (leia-se Lutero) decorreu a filosofia clássica alemã e o vasto movimento cultural de onde nasceu o mundo moderno". 

Podemos dizer que Gramsci, no que se refere ao cristianismo, faz uma ponte entre Émile Durkheim e Max Weber. Durkheim considera a religião a partir da idéia de vínculo social. A religião constituiria uma comunidade moral na os adeptos comungam um mesmo ideal. A palavra chave aí é solidariedade. E a solidariedade leva a uma memória coletiva, que organiza lembranças, ritualiza a crença. Os estudos de Durkheim sobre as sociedades têm o intuito de dar rumo a sua análise na qual a divisão do trabalho foi anteriormente sua preocupação central. Mais tarde, o diálogo com a antropologia será privilegiado e o universo da religião será pensado como consciência coletiva, abordagem que ele estende ao entendimento da nação, enquanto todo no qual os indivíduos partilham a mesma memória coletiva. 

Weber trabalha em sentido diferente. O cristianismo é instituição, é igreja, que atua como empresa de salvação das almas. É necessário, então, conhecer os meandros de sua doutrina, a organização de seu clero e a disputa entre visões e interesses distintos no quadro das crenças religiosas. Daí a atenção que dá ao pensamento divergentge, as rupturas no interior de uma mesma ordem ideológica, e sua relação com o poder de Estado. 

Assim, Durkheim busca o que une e Weber realça o que separa. Mas Gramsci está interessado nas duas dimensões, no que une e no que divide. O cristianismo, para ele, é uma concepção de mundo que elabora versões sobre a realidade, o que possibilita aos fiéis atuar segundo determinada ética, mas também os une no interior da mesma comunidade. Essa idéia atravessa as páginas dos Cadernos do cárcere, sintetizada na afirmação de que o catolicismo é o "intelectual orgânico" da Idade Média. 

A intelectualidade orgânica 

Partindo de uma leitura do contexto europeu medieval, Gramsci estuda o papel dos intelectuais católicos: seu cosmopolitismo, incentivado pelo poder de Roma, em relação à fragmentação do poder feudal e sua intolerância diante do pensamento divergente que ameaça a unidade da Igreja. Mas, na qualidade de orgânico, o catolicismo funcionaria como cimento cultural entre diferentes setores de uma sociedade hierárquica. Assim, o catolicismo integra o que se encontra separado por lutas de interesses e discordâncias doutrinárias. O catolicismo, no entanto, é parte de uma superestrutura mais ampla, a ideologia. É uma cosmovisão, tem valor cognitivo, interpreta o mundo ético, orienta a ação, e constrói uma moral que baliza a solidariedade dos fiéis. As ideologias possuem potencialidades diferentes destas, por isso Gramsci faz distinção entre filosofia e cristianismo católico, e entre cristianismo católico e senso comum, mas, ainda assim, todas as ideologias podem ser pensadas a partir dessa mesma matriz teórica. 

Dessa maneira, as análises de Gramsci rompem com a tradição marxiana, já que a ideologia, mas do que falsa consciência é entendida como elemento cognitivo, concepção de mundo que brota da vida social. Para ele, como concepção de mundo, o cristianismo não seria alienante, mas deve ser entendido como ideologia presente na história. Exemplo disso foi o catolicismo, que possuía valor positivo, era orgânico, e construiu vínculo social entre as classes e os grupos sociais. Mas, no correr da Idade Média perdeu essa positividade, ao perder sua função de solidariedade, e passou a atuar como força reativa diante das mudanças. 

E se Gramsci se mantém marxiano no que se refere à crítica da transcendência e, por extensão, da natureza humana, a conclusão que se impõe é que não há sociedade sem ideologia. Gramsci prepara, assim, o caminho para outros teóricos do pensamento marxiano, como Althusser e seu "animal ideológico", e Lévy-Strauss e seu "animal simbólico". 

Mas Tillich teve uma compreensão diferente daquela de Gramsci, que entende a vanguarda enquanto intelectualidade orgânica, mas não vê o movimento de massas em processo dinâmico que pode levar ao surgimento de uma massa orgânica. Há uma divergência entre os dois pensadores: a crítica intelectual não se limita ao intelectual orgânico, é um processo maior que gera a massa orgânica, com dupla ação: de liderança da sociedade e de transformação da situação-limite. 

Na perspectiva tillichiana, a passagem da heteronomia à autonomia se deu através de ciclos que atravessaram épocas. Assim, os movimentos dinâmicos das massas estão presentes nos movimentos religiosos do jovem cristianismo, no movimento político da migração dos povos, no movimento religioso da Reforma, no movimento anabatista e no movimento socialista. Embora esses movimentos possam ser encontrados em diversas épocas, estão presentes em diferentes esferas da cultura, mas sempre como movimentos de liberdade: as massas dinâmicas são parteiras de escravos, de povos, de trabalhadores. 

Por isso, segundo Tillich, não podemos ver o pensamento de Marx como algo que já se esgotou, se nos propomos a fazer a crítica consciente e transformadora, pois a justiça não é justificativa ideológica das democracias, nem idealismo progressivo ou sistema de harmonia autônoma. A busca incondicional da justiça dentro do espírito da crítica profética e com os métodos do marxismo transcende o mundo. Mas até que ponto a metodologia marxiana e uma conquista do poder político poderiam dar sentido à vida? Só se a busca incondicional da justiça levar em conta que a corrupção também está localizada nas profundezas do coração humano. 

O teólogo da vida deve entender que as forças demoníacas da injustiça e da vontade de poder jamais serão plenamente erradicadas da cena histórica. Precisa compreender que a corrupção da situação humana tem raízes mais profundas do que as estruturas históricas e sociológicas. Estão encravadas nas profundezas do coração humano. 

“Como Kierkegaard, Marx fala da situação alienada do homem na estrutura social da sociedade burguesa. Empregava a palavra alienação (entfremdung) não do ponto de vista individual, mas social. Segundo Hegel essa alienação significa a incursão do Espírito absoluto na natureza, distanciando-se de si mesmo. Para Kierkegaard era a queda do homem, a transição, por meio de um salto, da inocência para o conhecimento e para a tragédia. Para Marx era a estrutura da sociedade capitalista”. 

Por isso, a regeneração da humanidade não é possível apenas mediante mudanças políticas, mas requer mudanças na atitude das pessoas em favor da vida. De todas as maneiras, para Tillich e para Gramsci há uma busca comum de respostas entre aquele que encarna o espírito crítico e a ação consciente do intelectual orgânico. Ou como diz Gramsci: 

"Se a relação entre intelectuais e povo/nação, entre dirigentes e dirigidos, entre governantes e governados, é dada por uma adesão orgânica, na qual o sentimento paixão torna-se compreensão e, portanto, saber, não mecanicamente, mas de forma viva, é somente então que a relação é de representação e que se produz o intercâmbio de elementos individuais entre governados e governantes, entre dirigidos e dirigentes, isto é: que se realiza a vida conjunta que, só ela, é a vida social, cria-se um bloco histórico". 

Para Gramsci, o intelectual quando representa determinada comunidade têm função superestrutural, ou seja, cultural, mas, apesar de sua organicidade, precisa exercer autonomia em relação às pressões sociais que sofre. É dessa postura que nasce a força crítica e a compreensão de que diante da realidade há alternativas diferentes daquelas expressas pelo poder. 

A partir de Tillich e Gramsci podemos dizer que o princípio da crítica intelectual é expressão humana e verbal do incondicionado, e resgata a tradição do profetismo bíblico, que possuía uma concepção unitária do fato e procurava a síntese entre política e ética. O profetismo era ao mesmo tempo revolucionário, mesmo quando voltado para o passado, e conservador, mesmo quando impulsionado pela paixão do porvir. Nada fazia sem invocar a tradição, no entanto, sua mensagem eram os novos tempos. Os profetas sabiam servir-se do passado para as necessidades do presente. Todos pareciam ter algo em comum: uma atitude realista. A pregação do futuro não constituía o essencial de seus clamores; era antes, o fruto e o resultado final de um conhecimento aprofundado no mundo adjacente, da atualidade e do passado. Ora, essa função profética está presente na compreensão crítica de Gramsci e de Tillich do intelectual orgânico. 

Mas, não podemos esquecer que para Tillich há limites para a ação do intelectual, pois a razão não é global. Ao contrário, cada criação do espírito é necessariamente afetada pelos limites da situação que a viu nascer. O espírito está sempre ligado a uma classe. No espírito está implícita uma situação particular de luta, de dominação ou de opressão, que conforma a própria consciência. Entendido assim, o espírito não é universalmente o mesmo em cada pessoa, exprime um ser social particular. A passagem à cultura não se faz simplesmente pela transmissão de bens culturais universais, mas pela formação inculcada por uma sociedade e uma situação de lutas determinadas, em meio a obras que exprimem ou exprimiram no passado esta possibilidade humana particular. 

Numa leitura cristã protestante, Tillich considerou a busca pelo sentido pleno de vida produto do desenvolvimento econômico e espiritual, que preparou e se impõe com a Renascença, a Reforma e o surgimento do capitalismo. Visão compartida por Gramsci. Assim, a busca pelo sentido pleno de vida surge em oposição à cultura autoritária e unitária da Idade Média, sedimenta suas bases nas criações culturais dos últimos séculos, e só pode ser compreendida a partir desta evolução: sua permanência está ligada a esse desenvolvimento. Mas não devemos esquecer, porém, que foi do interior do cristianismo que brotaram as idéias modernas de justiça. 

Para a construção de seu pensamento, Gramsci foge das construções ontológicas, e analisa a sociedade como conjunto de forças, imersas na história e marcada por interesses diversos. Podemos ver isso quando em carta à sua cunhada Tatiana Schucht. de dezembro de 1931, expõe seu conceito de Estado ampliado: 

“Eu amplio muito a noção de intelectual e não me limito à noção corrente que se refere aos grandes intelectuais. Esse estudo leva também a certas determinações do conceito de Estado, que habitualmente é entendido como sociedade política (ou ditadura, ou aparelho coercitivo para adequar a massa popular a um tipo de produção e a economia a um dado momento); e não como equilíbrio entre a sociedade política e sociedade civil (ou hegemonia de um grupo social sobre a inteira sociedade nacional, exercidas através de organizações ditas privadas, como a igreja, os sindicatos, as escolas, etc.)”. 

Democracia e sentido pleno de vida 

Ora, em geopolítica, hegemonia significa a supremacia de uma nação sobre outras, seja por sua presença militar, de coerção, seja pela presença política e cultural. Mas na política, o conceito formulado por Gramsci descreve a dominação ideológica de uma classe sobre outra, no caso da burguesia sobre os trabalhadores. 

Em Gramsci não é possível o domínio bruto de uma classe sobre as demais, a não ser nas ditaduras, ou seja, no Estado-coerção. Mas uma classe dominante para ser dirigente deve articular um bloco de alianças e obter o consenso passivo das classes e camadas dirigidas. Nessa busca de alianças, necessárias, a classe dominante sacrifica parte dos seus interesses materiais imediatos, vai além do horizonte corporativo, com a finalidade de construir uma hegemonia ética e política. 

Ao estudar os mecanismos de construção desta hegemonia, Gramsci chega a um conceito fundamental na sua teoria política, a saber, o conceito de Estado ampliado. O Estado moderno na Europa analisada por Gramsci não seria, para ele, apenas instrumento de força a serviço da classe dominante, mas força revestida de consenso, ou seja, combinaria coerção e hegemonia. O Estado ampliado pode, então, ser entendido como sociedade política mais sociedade civil. E, nas sociedades de tipo ocidental, a hegemonia, que se decide nas inúmeras instâncias e mediações da sociedade civil, não pode ser ignorada pelos grupos sociais subalternos que aspiram a modificar sua condição e a dirigir o conjunto da sociedade. 

O sentido de progresso civilizatório que a teoria gramsciana implica, reside no fato de que todo o movimento deve acontecer no sentido de uma absorção do Estado político pela sociedade civil, com o predomínio crescente de elementos de autogoverno e autoconsciência. A partir dessa teorização, Gramsci formula nos Cadernos do cárcere uma crítica ao stalinismo, a partir dos traços de hipertrofia do Estado soviético, que chama de estatolatria, considerando que tal estado de ditadura sem hegemonia não subsistiria por muito tempo. 

Assim o Estado se compõe de dois segmentos distintos, porém atuando com o mesmo objetivo, que é o de manter e reproduzir a dominação da classe hegemônica: a sociedade política, estado-coerção, a qual é formada pelos mecanismos que garantam o monopólio da força pela classe dominante, burocracia executiva e policial-militar; e a sociedade civil, formada pelo conjunto das organizações responsáveis pela elaboração e difusão das ideologias, composta pelo sistema escolar, Igreja, sindicatos, partidos políticos, organizações profissionais, organizações culturais: meios de comunicação e de massa. 

E aqui merecem destaque os meios de comunicação, pois para sua época estavam ainda em sua fase embrionária, e a televisão nem sequer fazia parte dos projetos futuros. Isto só seria possível no início da década de 1950. É exatamente através dos meios de comunicação da alta modernidade, que se dá a canalização da direção intelectual e moral, difundindo as ideologias da classe hegemônica vigente. 

Assim, o Estado é a sociedade política gramsciana. E esta sociedade civil representa a nova determinação apresentada por Gramsci. Esta sociedade civil assume crescente dimensão no começo do século vinte, com os partidos de massa, sindicatos de trabalhadores e outras formas de organizações sociais. É após seu desenvolvimento histórico que a sociedade civil pôde ser capturada teoricamente. Antes disso, o estado-coerção era muito superior em sua base material para se permitir tal percepção. 

O que chama a atenção no modelo do Estado ampliado, desde o Leviatã de Hobbes até Marx, é o sentido unitário do Estado. Ou seja, até Marx, o Estado era entendido como algo diferente da sociedade civil, que seria extinto quando se extinguisse a divisão de classes dentro da sociedade, uma vez que era esta divisão que produzia a necessidade do Estado. 

Em Gramsci, porém, quando agrega a sociedade civil ao Estado-coerção, nada fica de fora do Estado. Este todo, entretanto, não é homogêneo, é rico em contradições e é mantido pelo tecido hegemônico que a cada momento histórico é recriado em processo permanente de renovação. 

Assim, a luta pela construção de uma sociedade plena de sentido de vida, torna-se mais complexa e difícil do que imaginava Marx. Não basta ser classe dominante, tem que ser também classe hegemônica, dirigente. Desta forma, o campo da luta entre as classes se amplia. E a democracia necessária ao sentido pleno de vida será construída pelo bloco histórico hegemônico. Neste momento, a sociedade civil terá atingido uma base material superior a base material do Estado-coerção, atingindo o que Gramsci chama de sociedade regulada. 

Com a gradativa absorção da sociedade política pela sociedade civil, que atua através dos seus aparelhos de hegemonia, o estado-coerção será substituído pelo estado-ético. E esta figura remanescente do estado-coerção, torna mais factível o modelo social voltado para a democracia de bens e direitos e menos utópico em relação ao que planejara Marx. 

Nesta concepção de Estado, as democracias ocidentais possibilitariam o sentido pleno de vida. Mas fica uma questão: se a supremacia da sociedade civil se dará pelo consenso contra a coerção, onde fica o conceito de luta de classes, momento celular do pensamento marxiano? 

Na verdade, para Gramsci a extinção da coerção do estado se dará pela absorção deste pelo estado-ético, ou seja, pela sociedade civil. Esta sociedade civil está inserida no estado ampliado e, por isso, não se pode falar de extinção do estado, mas de uma reorganização do estado onde um de seus componentes, está atrofiado por disfunção ou necessidade, já que os conflitos passaram a ser administrados pela base material do consenso. 

Há, porém, dois níveis superestruturais nas sociedades democráticas: o estado ampliado, que é a sociedade civil, ou o conjunto dos aparelhos privados de hegemonia; e a sociedade política, ou o estado no sentido restrito do termo, composto pelos organismos de coerção do aparelho burocrático-militar de dominação política. 

Nesse espaço a sociedade civil como espaço do domínio da ideologia, portador material da hegemonia, encontra a possibilidade de legitimidade, de consenso, através dos aparelhos privados de hegemonia que propagam valores ideológicos. 

Assim, o conceito de estado ampliado procura apreender a configuração de forças sociais e políticas resultantes dos estados ocidentais do século vinte, idéia que confronta a proposta de Trotsky de revolução permanente a partir da concepção de hegemonia civil. Tal proposta-conceito parte da idéia de guerra de posição, que exige uma frente de combate no campo cultural, unida às frentes econômicas e políticas para a conquista da hegemonia pelas classes subalternas. A fórmula hegemonia civil propõe a participação das maiorias sociais nos aparelhos privados de hegemonia (sindicatos, partidos, escolas, igrejas, imprensa), que constituem as trincheiras de luta para obter posições de direção no governo da sociedade. 

A proposta de extinção do estado, no entanto, nunca é plena, pois sempre restará o governo para cuidar da sociedade civil. É claro que se entendermos assim podemos dizer que na distinção de função entre as pessoas que governam e as que vivem a vida da sociedade de consenso está presente ainda a dominação entre as classes e, portanto, os restos da coerção do Estado se farão presentes. 

Em Gramsci está presente uma utopia que atravessou todo pensamento socialista: sonhar com o bom selvagem de Rousseau, em oposição ao homem é o lobo do homem de Hobbes. Esse Estado ético é uma idealização do ser humano, que poderia viabilizar a construção de uma sociedade ética, igualitária e justa. 

Mas, mesmo questionando Gramsci, podemos utilizar seus conceitos de estado ampliado e de hegemonia civil como estruturas de pensamento válidas para a análise social, não como proposta da utopia socialista, mas como ferramenta para delimitar e compreender o desenvolvimento das sociedades ocidentais contemporâneas, principalmente aquelas que se propõem democráticas. 

Rascunhos de teologia 

A busca pelo sentido pleno de vida e os movimentos de liberdade sempre estiveram ligados, mas isso não significa que não existem tensões entre o momento universal e o momento particular. O momento universal pode formular exigências que ameaçam absorver o momento particular. A busca pelo sentido pleno de vida se tornará, então, uma idéia geral, desprovida de raízes sociais e perderá sua força histórica. Este é o perigo de uma luta pela justiça restrita à intelectualidade. Esse perigo provém da situação burguesa e de seu pensamento político particular, que procura elaborar uma ordem social futura fundada sobre a justiça, mas deixando de lado a situação proletária real. Seja qual for o valor que se atribua a esta tentativa, ela não será de fato justiça social. A luta contra o intelectualismo utópico se apóia sobre a ligação indissolúvel que Marx viu entre sentido pleno de vida e proletariado, que não pode ser quebrada por essa harmonia metafísica proposta pela globalidade burguesa. 

Para Paul Tillich existe na esfera política uma relação entre razão e autonomia. Toda estrutura política pressupõe poder e um grupo que o assume. Mas um grupo de poder é também um conglomerado de interesses opostos a outras unidades de interesses e sempre necessita uma correção. A democracia está justificada e é necessária na medida em que é um sistema que incorpora correções contra o uso errôneo da razão política. Assim, a teologia e a política não são realidades estanques, porque as raízes do pensamento político não são apenas pensamentos. Teologia e política, no mundo ocidental, estão imbricados, mas não existem sem a necessidade de correção, ou seja, da democracia. 

Tal compreensão da realidade ocidental no pós-guerra levou Tillich a se debruçar sobre projetos que tiveram início ainda na sua fase alemã, como a sua reflexão sobre a cultura. Mas a maioria de seus companheiros, que esperavam a realização da vida social plena de sentido, diante do visível abandono dos direitos civis e humanos, assim como a descoberta da existência de gulags nos países comunistas, se desiludiu. 

“O movimento marxista não foi capaz de se criticar por causa da estrutura em que caiu, transformando-se no que chamamos agora de stalinismo. Dessa maneira, todas as coisas em favor das quais os grupos originais tanto lutaram acabaram sendo reprimidas e esquecidas. Em nosso século vinte temos tido a ocasião de melhor perceber a trágica realidade da alienação humana no campo social”. 

Tal política comunista fez com que Tillich, que não se considerava um utópico, constatasse que “o amanhecer de uma nova era criativa” se distanciava da humanidade. Assim, alertou para o perigo, a partir da experiência stalinista de que, em nome da busca pelo sentido pleno de vida, sociedades mergulhassem no totalitarismo, já que não aceitavam a pluralidade de partidos políticos e as liberdades civis, que ele e os socialistas-religiosos defendiam. Mas é interessante ver que descartava qualquer possibilidade de hegemonia permanente, quer por parte do bloco soviético, quer por parte do bloco ocidental: 

“Novos centros de poder podem aparecer, primeiro secretamente, e depois, então, abertamente, levando para a separação de ou para a transformação radical do todo. (...) O poder inicia a luta novamente e o período determinado do império mundial será tão limitado quanto o foi o período augustiniano de paz”. 

E afirmou que um mundo sem as dinâmicas do poder, sem a tragédia da vida e da história não é o reino de Deus, nem a finalidade do ser humano, pois o fim está limitado à eternidade e nenhuma imaginação pode atingir o eterno. Mas as antecipações fragmentárias são possíveis. Assim, falar de teologia da vida significa entender que a busca pela incondicionalidade da justiça e, por extensão, da paz e alegria, traduz a defesa do sentido último do significado profundo das raízes do humano e que, no mundo contemporâneo, diante do trovejar dos canhões e da ameaça à existência, deve levantar-se como voz profética de um mundo novo. 



I. BIBLIOGRAFIA ANTONIO GRAMSCI 

1. Escritos 1910-1926 

A questão meridional. Introdução e seleção de Franco de Felice e Valentino Parlato. Apresentação de Carlos Nelson Coutinho. Trad. Carlos Nelson Coutinho e Marco Aurélio Nogueira. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1987. 165p. [Contém 10 textos do período 1916-1926]. 

Conselhos de fábrica. Introdução de A. Leonetti. Prefácios de Carlos Nelson Coutinho e Maurício Tragtenberg. Trad. Marina B. Svevo. São Paulo: Brasiliense, 1981. 121p. [Contém 6 artigos de Gramsci da época de L'ordine nuovo, escritos entre 1916-1920, bem como outros 6 artigos polêmicos de Amadeo Bordiga]. 


2. Dos "Cadernos do cárcere" (1929-1935). 

Concepção dialética da história. Apresentação de Carlos Nelson Coutinho e Leandro Konder. Orelha de Luiz Mário Gazzaneo. Trad. Carlos Nelson Coutinho. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1966 (6a. ed., 1986), 341p. 

Literatura e vida nacional. Seleção, tradução e orelha de Carlos Nelson Coutinho. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1968 (3a. ed., 1986). 273p. 

Maquiavel, a política e o Estado moderno. Tradução e orelha de Luiz Mário Gazzaneo. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1968 (8a. ed., 1987), 444p. 

Os intelectuais e a organização da cultura. Tradução e orelha de Carlos Nelson Coutinho. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1968 (5a. ed., 1987), 244p. 


3. Dos "Cadernos do cárcere" (1929-1935). 

(Edição em seis volumes) 

Volume 1: "Introdução ao Estudo da Filosofia. A Filosofia de Benedetto Croce". Edição de Carlos Nelson Coutinho, em colaboração com Luiz Sérgio Henriques e Marco Aurélio Nogueira. Trad. Carlos Nelson Coutinho. Orelha de Joseph A. Buttigieg. Quarta capa de Eric Hobsbawm. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1999. 494p. 

Volume 2: "Os Intelectuais. O Princípio Educativo. Jornalismo". Trad. Carlos Nelson Coutinho. Orelha de Leandro Konder. Quarta capa de Norberto Bobbio. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2000. 334p. 

Volume 3: "Maquiavel. Notas sobre o Estado e a política". Trad. Carlos Nelson Coutinho, Luiz Sérgio Henriques e Marco Aurélio Nogueira. Orelha de Francisco de Oliveira. Quarta capa de Pietro Ingrao. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2000, 428p. 

Volume 4: "Temas de cultura. Ação Católica. Americanismo e fordismo". Trad. Carlos Nelson Coutinho e Luiz Sérgio Henriques. Orelha de Luiz Werneck Vianna. Quarta capa de Michael Löwy. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2001. 394p. 

Volume 5: "O Risorgimento. Notas sobre a história da Itália". Trad. Luiz Sérgio Henriques. Orelha de Octavio Ianni. Quarta capa de Valentino Gerratana. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2002. 461p. 

Volume 6: "Literatura. Folclore. Gramática. Apêndices: variantes e índices". Trad. Carlos Nelson Coutinho e Luiz Sérgio Henriques. Orelha de Alfredo Bosi. Quarta capa de Giorgio Baratta. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2002. 495p. 




II. BIBLIOGRAFIA PAUL TILLICH 

A Era Protestante, São Bernardo do Campo, Ciências da Religião, 1992, p. 274. The Protestant Era, Chicago, Illinois, University of Chicago, 1948. Trad. pt. de Jaci Maraschin. “Die protestantische Ara”, Der Protestantismus als Kritik und Gestaltung, Gesammelte Werke VII, Evangelische Verlag Stuttgart, 1962, pp. 105-123. Trad. al. W. De Gruyter. 

Écrits contre les nazis, 1932-1935, Paris, Genève, Québec : Les Éditions du Cerf, Éditions Labor et Fides, Les Presses de l’Université Laval, 1994. Christentum und soziale Gestaltung. Frühe Schriften zum religiösen Sozialismus, Evangelisches Verlagswerk Stuttgart, Gesammelte Werke II, 1962. Trad. fr. Nicole Grondin e Lucien Pelletier. 
  
La lutte des classes et le socialisme religieux [artigo publicado no Religiöse Verwirklichung de 1930. Gesammelte Werke, II, pp. 175-192] in Christianisme et Socialisme, Écrits socialistes allemands (1919-1931), Les Éditions du Cerf, Éditions Labor et Fides, Les Presses de l’Université Laval, tradução de Nicole Grondin e Lucien Pelletier, 1992. 

Perspectivas da Teologia Protestante nos séculos XIX e XX, São Paulo, ASTE, 1999. Texto original: Perspectives on 19th and 20th century protestant theology, New York, Harper and Row Publishers, Inc., 1967. Tradução de Jaci Maraschin. 

BIBLIOGRAFIA OUTROS 
Hugues Portelli, Gramsci e a questão religiosa, São Paulo, Edições Paulinas, 1984. 
João Rego, Reflexões sobre A Teoria Ampliada do Estado em Gramsci, Recife, Caderno Cultural do Jornal do Commercio, 5/04/1991. 
Lucio Lombardo Radice, "Um marxista diante dos fatos novos no pensamento e na consciência religiosa", Revista Civilização Brasileira, Rio de Janeiro, Ano III, Número 16, novembro/dezembro de 1967. 
Renato Ortiz, Notas sobre Gramsci e as ciências sociais, São Paulo, Revista Brasileira de Ciências Sociais, Out. 2006, vol.21, no. 62. 




jeudi 29 septembre 2022

IVG : le droit à l'interruption volontaire de grossesse en France

Avorter n’est pas une plaisanterie
Auteur : Abigaïl Bassac
https://www.evangile-et-liberte.net/2018/11/avorter-nest-pas-une-plaisanterie/


Sur les réseaux sociaux, l’Interruption Volontaire de Grossesse (IVG) suscite des affrontements entre militants anti-IVG agressifs qui évoquent le « génocide » des bébés et féministes outranciers qui parlent de l’IVG comme d’« un truc banal et dont on peut plaisanter ». 

Une bande dessinée affirme qu’il ne faut pas « faire un fromage » des 200 000 IVG pratiquées en France chaque année. L’IVG n’est ni un génocide, ni une plaisanterie. Les femmes qui veulent avorter avortent, et lorsque cela est illégal, dans des conditions telles qu’elles y risquent leur vie. L’IVG doit donc être légale, les premières semaines de grossesse, afin d’éviter que des femmes meurent. Mais ce n’est pas pour autant un « truc banal ». J’ai lu sur Twitter cette phrase d’une femme s’apprêtant à avorter : « J’ai zéro culpabilité à l’idée d’avorter. Beaucoup plus à l’idée de manquer le taf. MDR. [NDLR : Mort De Rire] » 

Être absent au travail serait donc plus grave qu’interrompre une grossesse ? Certainement pas. Que les femmes qui avortent ne portent pas une culpabilité qui les entrave pour la suite de leur vie, c’est souhaitable pour elles, mais que cet acte soit fait sans gravité ne l’est pas. Une vie en devenir qui aurait pu être ne sera pas. Il n’y a là rien de drôle qui pourrait faire l’objet d’une plaisanterie. 

Si une femme veut avorter, elle doit pouvoir le faire sans risquer une septicémie. Non pas parce que son corps lui appartiendrait, car quand une femme est enceinte, non, elle n’est plus réellement seule dans son corps, mais parce qu’elle doit pouvoir évaluer si elle et son compagnon peuvent réellement accueillir l’enfant potentiel dans leur monde. L’embryon n’est pas pour autant un « alien », « un tas de cellules » ou une « saloperie », c’est le résultat d’une relation sexuelle, la plupart du temps librement consentie, et c’est un début de vie qui nous dépasse.

Un acte n’a pas à être dénué de sens et de poids pour être posé et assumé. Dans une époque où le divertissement règne, il est malvenu de le rappeler, mais la vie humaine comporte des aspects tragiques. Ne nous aveuglons pas, osons nous tenir debout face à cette réalité, même si elle est effrayante. Nous sommes des adultes, libres et responsables.

Interruption volontaire de grossesse en France
https://fr.wikipedia.org/wiki/Interruption_volontaire_de_grossesse_en_France



LE DISCOURS DE SIMONE VEIL EN 1974 À L'ASSEMBLÉE NATIONALE https://www.bfmtv.com/politique/texte-le-discours-de-simone-veil-en-1974-a-l-assemblee-nationale_AN-201706300041.html


Vie Publique
https://www.vie-publique.fr/discours-dans-lactualite/286429-interruption-volontaire-de-grossesse-les-discours-publics-sur-livg
Discours dans l'actualité
IVG : le droit à l'interruption volontaire de grossesse dans les discours publics



IVG le point de vue des protestants 
 Claire Bernole 31/05/2018

Claire Bernole, journaliste à Réforme

Les protestantes et protestants ont joué un rôle essentiel dans le combat historique sur l’avortement et continuent de débattre.

En France, les protestantes ont soutenu de manière décisive la légalisation de la contraception et de l’avortement. « Les femmes protestantes ont été sur-représentées dès la création des mouvements féministes, c’est-à-dire dès la fin du XIXe siècle, rappelle Sylvie Chaperon, historienne. Les protestants font partie de cette frange laïque et progressiste de la société. » Il ne faut pas imaginer pour autant les protestantes – d’ailleurs accompagnées par la Grande Loge féminine de France et quelques francs-maçons hommes – en « pasionarias » de la lutte féministe.
Contraception et avortement

Le débat sur l’avortement a été précédé d’une montée en puissance progressive des questions autour des droits des femmes. D’abord pour défendre l’accès à la contraception puis pour une éducation globale à la sexualité intégrant les revendications des femmes. Ces revendications sont portées par la Maternité heureuse puis par le Mouvement français pour le planning familial (MFPF), qui lui a succédé, ainsi que par le mouvement Jeunes Femmes, rattaché au protestantisme. Ce mouvement a accompagné l’essor du planning familial. « Le protestantisme, qui a beaucoup évolué sur l’IVG, visait la responsabilité humaine. Nous organisions des études bibliques et à l’aide d’intellectuels, de théologiens, nous réinterprétions les textes dans le sens de l’égalité femmes/hommes, même si nous n’en parlions pas en ces termes », raconte Christiane Delteil, participante du groupe Jeunes Femmes de Saint-Jean-du-Gard dès 1967.

Pourtant, si l’Église réformée aide le mouvement par ses prises de position, des freins subsistent. « Les femmes étaient posées comme objet de discours, certes, mais pas en tant que participantes à l’Église. Même si elles pouvaient être pasteurs et même si sur ce point les protestants étaient en avance dans la chrétienté, c’était un combat. Nous étions donc en lutte contre des pesanteurs et des institutions qu’il fallait bousculer », poursuit Christiane Delteil. Aussi, en 1971, de nouveaux statuts détachent officiellement le mouvement de l’Église, même si l’influence du protestantisme demeure.

Finalement, lors du 10e congrès du MFPF, en 1973, le féminisme est intégré aux statuts. La protestante Simone Iff incarnera cette nouvelle ligne favorable à la libéralisation de l’avortement. Mais devant la sourde oreille des politiques, le combat pour la contraception se radicalise.

Dès 1960, les centres de plannings familiaux n’attendent plus la libéralisation de la contraception pour distribuer la pilule à leurs adhérentes. Le combat pour l’avortement suivra le même chemin. En 1973 toujours, le planning familial rejoint la revendication du MLF, qui réclame le droit à l’avortement depuis trois ans. C’est alors la création du Mouvement pour la liberté de l’avortement et de la contraception, qui milite pour l’avortement libre (des voyages sont organisés pour aller avorter à l’étranger ou des avortements ont lieu par aspiration).

Le sujet, qui divisait déjà au sein des groupes locaux du mouvement Jeunes Femmes, devient plus clivant. Parmi ces groupes, qui ont toujours eu vocation à accueillir des femmes indépendamment de toute confession, certaines partent. Des catholiques, mais pas toutes et pas seulement. En fait, il semble très difficile de penser la place de la femme avec recul, sans que son rôle de mère ne la dimensionne d’emblée. Dans les plannings familiaux non plus, tout le monde n’est pas d’accord. À Toulouse, par exemple, le premier planning fondé très tôt, dans les années 1960, se montre modéré lors de la radicalisation en faveur de l’avortement, et se fait doubler par un deuxième planning.

« On était, on est encore, dans un système très patriarcal, perpétué par les mentalités. Les femmes se culpabilisaient quant à l’avortement, leur corps ne leur appartenait pas, finalement », explique Christiane Delteil en insistant sur l’enjeu politique que représente le corps féminin.
Un débat qui divise

« C’était une conception validée par une certaine lecture de la Bible, ce qui rendait toute discussion impossible pour certaines », se souvient-elle. Néanmoins, un véritable travail de réflexion est mené à l’échelle nationale, régionale, locale, et le mouvement Jeunes Femmes se montre partisan de la loi Veil, lors du vote, en 1975. « Il y avait réellement une volonté de changer les mentalités », estime-t-elle.

Aujourd’hui encore, et au sein même du protestantisme, le débat n’est pas clos. En cause, le statut de l’embryon. « Est-ce que l’acte [l’avortement], quelles que soient ses motivations et il y en a de très légitimes, est l’élimination de quelques cellules ou d’une personne humaine en devenir ? », interroge Louis Schweitzer, pasteur baptiste et membre de la commission d’éthique protestante évangélique.

Si certains protestants évangéliques peuvent être ouverts à l’IVG dans les cas où la femme se retrouve en grande détresse, cela implique de tout mettre en œuvre pour que ces situations se raréfient. Car « avorter est toujours un drame », comme le soulignent nos interlocuteurs. Or, « malgré le développement de la contraception, le taux d’IVG reste stable », pointe Louis Schweitzer.
Droit, éthique et information

Et de regretter que « la notion de détresse ait peu à peu disparu des textes pour que l’avortement ne soit plus qu’un droit de la personne. Ceci est symptomatique des lois qu’on veut faire passer grâce à un emballage dont on sait qu’il va se dissoudre au bout de quelques années ». Une fois un moindre mal accepté, il devient un bien et la société ne fait plus l’effort d’avancer vers d’autres solutions.

Samuel Amédro, pasteur de l’Église protestante unie et théologien, nuance : « Certaines femmes vont utiliser cet outil comme un moyen de préserver leur confort, d’autres sont dans la détresse dans laquelle les laisse des hommes lâches ou violeurs. Tout est possible… » Mais selon ce pasteur, l’enjeu n’est pas de cautionner l’IVG en tant que telle. Il est d’accompagner les personnes. « Comment sommes-nous présents à elles, comment Jésus Christ les rejoint-il ? Cela peut changer leur manière de penser et de voir. »

Pas de réponse de principe qui vaille face à une variété de situations. À chacun de décider sans instrumentaliser le texte biblique ni se retrancher derrière la volonté de Dieu, mais en étant pleinement conscient et responsable. D’autant que directement concerné par une difficulté, tout être humain est susceptible de suivre un autre chemin que celui dicté par sa position de départ. « S’il y a une éthique protestante, c’est d’aider les gens à être debout dans leur décision », résume Samuel Amédro. Et son confrère Louis Schweitzer de conclure qu’« on peut avoir une conviction profonde en tant que chrétien et comprendre, en même temps, qu’on ne peut pas imposer cette conviction à une société qui ne la partage pas ».

Encore aujourd’hui, les droits des femmes, dont l’avortement fait partie mais auxquels ils ne se résument pas, restent à défendre. Contre une domination masculine, que les femmes alimentent parfois, même inconsciemment, et contre les femmes elles-mêmes qui peinent à prendre toute leur place. Quant à l’avortement, s’il reste à défendre contre l’ignorance, voire la désinformation exercée par certains lobbies, il demeure le dernier recours, tant il faut encourager la contraception, trop souvent négligée.


Un œil libéral sur l’IVG
https://www.evangile-et-liberte.net/2022/02/%EF%BB%BFun-oeil-liberal-sur-livg/

L’interruption volontaire de grossesse est un sujet de débat, y compris dans les pays où elle a été légalisée. La pasteure Emmanuelle Jacquat rappelle à la fois qu’il est nécessaire que cet acte soit légal et que son poids devrait nous conduire à épauler les femmes qui le traversent au lieu de détourner les yeux ...



mardi 27 septembre 2022

La Rochelle, belle et rebelle

 La Rochelle, belle et rebelle


Desde o começo do século 16, La Rochelle era uma cidade próspera que lucrava com o comércio. Era um centro huguenote extremamente ativo.


Amanhã volto para o Brasil. Estou na França há quinze dias. Vim apresentar comunicação sobre Socialismo e Religião no Colóquio Internacional da Associação Paul Tillich em Língua Francesa, que se reuniu em Toulouse. Depois do Colóquio vim para Paris. Estou hospedado na Faculdade Evangélica Livre de Vaux-sur-Seine.


Estou vivendo momentos de descanso e reflexão, aqui à margem do rio Sena, onde num ambiente pleno de espiritualidade cristã, posso meditar sobre a heróica história dos evangélicos na França. E é sobre eles, os huguenotes, que escreverei nesta crônica.


Os huguenotes eram protestantes franceses que surgiram durante a Reforma do século XVI. Não eram camponeses, mas cidadãos nobres e burgueses. Fundaram em 1559 uma igreja reformada que cresceu de forma impressionante.


Em 1571, houve um sínodo huguenote que elaborou, sob a inspiração do líder reformado Théodore de Bèze, a Confissão de La Rochelle. Em 1573, Henrique III, ainda como duque de Anjou, cercou a cidade por mais de seis meses. Os huguenotes formavam então um formidável grupo de pressão econômica, política e militar, apoiados pelos ingleses, alemães, holandeses e pelos protestantes de Genebra.


Assim, na segunda metade do século XVI, os ataques católicos aos huguenotes fizeram-se cada vez mais virulentos, culminando com o massacre de São Bartolomeu, em 24 de agosto de 1572, no qual foram mortas mais de 30 mil pessoas.


Estou sentado num banco de madeira, rodeado de verde. Atrás, fica a biblioteca da faculdade, lá na frente, uma árvore seca se inclina sobre o rio. Um irmão seminarista, do Haiti, caminha de um lado a outro do campo verde. Ele ora. Está entardecendo. São quase dez da noite, mas ainda está claro. Eu também oro, olhando para o rio Sena e agradecendo a O Eterno por aqueles que vieram antes de mim, que mantiveram ao preço de sangue, desfraldada, a bandeira do Evangelho.


Os católicos franceses, agrupados no partido da Santa Liga, entre 1576 e 1584, passaram a pressionar huguenotes e os reis considerados hesitantes. Na esperança de legalizar a existência de uma igreja reformada e de apaziguar os ânimos, o rei Henrique IV (1553-1610), soberano huguenote que se converteu sob pressão ao catolicismo uma semana antes do massacre de São Bartolomeu,  assinou em 13 de abril o Edito de Nantes. Em 1576, retornou ao protestantismo.


O Edito de Nantes fez importantes concessões aos huguenotes. Entre elas, as liberdades de consciência e de culto nas residências senhoriais, em todas as cidades onde existisse a fé reformada. Concedeu anistia para todos os "crimes" cometidos no passado e criou 150 locais de refúgio para os huguenotes: 66 cidades e castelos onde guarnições eram mantidas pelo rei.


La Rochelle que pertencia aos huguenotes desde a primeira guerra de 1562 foi uma dessas cidades de refúgio. E mais: tornou-se a mais forte praça de guerra cedida aos protestantes pelo Edito de Nantes. Na verdade, era a capital huguenote na França.


O Edito de Nantes foi, de fato, uma constituição político-religiosa que procurou criar mecanismos de defesa para os huguenotes. Mas não durou muito. Em 1627, o cardeal Richelieu, a propósito de um pacto firmado entre La Rochelle e a Inglaterra, que já declarara guerra à França, iniciou a destruição de La Rochelle.


O cardeal conduziu pessoalmente o cerco à cidade rebelde, construindo em terra firme, 12 km de linhas contínuas de fortificações e, no mar, a construção de um dique destinado a impedir a chegada de suprimentos pela frota inglesa.


Os huguenotes, comandados pelo almirante Jean Guiton, prefeito da cidade, resistiram durante quinze meses até que a fome forçou-os à rendição em 28 de outubro de 1628. As fortificações da cidade foram arrasadas e as franquias municipais suprimidas. A partir de então, La Rochelle entrou em declínio.


Luiz XIV, convencido de que os huguenotes haviam desaparecido do solo francês, seja pela fuga, pela conversão forçada ao catolicismo ou pelo massacre, aboliu, em 18 de outubro de 1685, o Edito de Nantes.


A partir desse momento, os huguenotes perderam toda liberdade de culto e toda garantia de segurança. Tornaram-se marginais: suas propriedades foram confiscadas e privados de todos os seus direitos pessoais.


A guerra civil irrompeu como guerra clandestina, com a fuga para os países protestantes de centenas de pastores. Suas igrejas foram destruídas. Abandonaram bens e filhos, que eram proibidos de deixar o país. O catolicismo exigia que fossem reeducados na fé romana.


Mais de 400 mil huguenotes se refugiaram principalmente na Holanda e na Prússia, países que lucraram com isso por receber recursos humanos estratégicos: comerciantes, empresários e intelectuais. A América inglesa também recebeu um número grande dessa elite huguenote em diáspora. 


Poucos irmãos brasileiros sabem que a saga huguenote aportou em nossas terras. Poucos, infelizmente, têm conhecimento dos mártires que testemunharam e foram sacrificados aqui por amor ao Evangelho.


Em 1557, chegou ao Rio de Janeiro um grupo de huguenotes com o objetivo de fundar aqui uma colônia chamada França Antártica, que deveria se caracterizar pela tolerância religiosa. Eram os primeiros protestantes a pisar em terras brasileiras.


Três pastores lideravam o grupo huguenote. Ao aportarem no Rio, depois de brigas e discordâncias com os católicos que integravam a França Antártica, Villegaignon, comandante da frota francesa, entregou os pastores e suas ovelhas às autoridades portuguesas. Alguns conseguiram escapar, mas quatro deles, Jean du Bourdel, Matthieu Verneuil, Pierre Bourdon e André la Fon foram presos e condenados à morte.


Foram condenados não somente por aportarem na terra, que era colônia portuguesa, mas por difundirem o evangelho da graça, que contrariava as doutrinas católicas de salvação por fé e obras.


Antes de serem executados, os huguenotes tiveram a oportunidade de confessar sua crença. Era um direito. E o governador português exigiu dos rebeldes uma confissão de fé. Era uma última chance de renegar suas heresias protestantes. Foi-lhes dado um prazo de 12 horas para que escrevessem num documento tudo quanto criam.


Em doze horas aqueles quatro homens, com ajuda apenas de suas Bíblias escreveram a primeira confissão de fé das Américas, mostrando aos jesuítas aquilo no que criam. Foi um Credo. E sabiam que estavam assinando suas sentenças de morte.


No momento da execução o carrasco, por conhecer a vida piedosa daqueles homens, recusou-se a executá-los. Impaciente, José de Anchieta, o padre que os acompanhava, afastou o carrasco e ele mesmo pôs fim à vida dos huguenotes. Era uma manhã de sexta-feira, 9 de fevereiro de 1558. 


Pai querido, em nome de Jesus, agradeço por teus mártires. São dez e meia da noite. O Sena agora é apenas uma mancha escura que desliza. No meu coração, porém, brilha mais forte o evangelho da graça, que irmãos de outros tempos me entregaram. Devo honrar este evangelho e passá-lo às gerações futuras. Vaux-sur-Seine, 2 de junho de 2003.





A vida ... uma paixão radical

A vida, uma paixão radical


Um dos temas centrais da mídia, hoje, é a violência. Tal fato nos leva a pensar e a viver como se a vida não tivesse a menor importância ou valor. E em nome de doutrinas, políticas e religiões, gentes são transformadas em bombas humanas, assassinos seriais, legais ou não, que espalham a dor, o sofrimento e a morte. Nesse clima de ódio e violência, é importante dizer que a primeira teologia das Escrituras hebraicas, e posteriormente cristãs, construída para o ser humano no bojo da teologia da criação, é a teologia da vida.


O Eterno fez o humano como semelhante, cheio de parecença, para ser como Ele e com Ele, para curtir o mundão criado, fazer sexo, ter filhos, produzir criativamente. E O Eterno contou isso aos humanos e um dia isso foi registrado lá em Bereshit, o livro primeiro das Escrituras. E é interessante que quem registrou a história que ouviu dos antepassados disse que O Eterno curtiu a beça tudo aquilo. Achou genial o que tinha feito, tanto que deu por terminado o seu trabalho e foi descansar.


As histórias se multiplicam. Há histórias que falam da importância da vida nas Escrituras hebraicas, e há histórias sobre a vida e sua singularidade nas tradições de gentes e povos. Na tradição judaica, conta-se que quando os escravos fugiram do Egito com os soldados egípcios correndo atrás deles e já estavam atravessando o Mar Vermelho, anjos resolveram cantar um hino de gratidão a O Eterno, mas o Eterno não permitiu e disse: Eu criei o ser humano, cada um deles é minha criação, como poderei cantar se muitos vão se afogar neste mar? Eis a universalidade da vida: fomos criados por O Eterno, todos somos parecença, quer escravos hebreus ou soldados egípcios. A teologia entende isso: a vida é direito universal porque O Eterno ama a pessoa, todas as pessoas -- foram feitas por Ele e têm o jeitão dele.


Nesse sentido, a partir da teologia da vida podemos dizer que não há diferença entre judeu e grego, cada pessoa ocupa um lugar especial no coração de O Eterno, para Ele é como se todos fôssemos únicos. 


O respeito pela vida de cada um e de todos e a negação do ódio e da violência: direcionam a teologia da vida. Criar e educar pessoas traduz-se em ensinar, em primeiro lugar, que quem destrói uma única vida destrói todas e a própria criação. E quem cuida e salva uma única vida salva o mundo. Cuidar e salvar pessoas é semear a paz para que ela reine entre os seres humanos. Para que ninguém possa dizer: o meu pai é maior do que o teu pai.


Voltando ao primeiro livro das Escrituras hebraicas, vemos que ele se descreve como o livro da história humana. E é interessante o que esse livro fala da criação e da história do primeiro casal: Da-terra e A-vida. Este é sentido dos nomes Hadam e Hawah. A construção dessas duas pessoas, Da-terra e A-vida, ao se dar no final do processo de surgimento do universo, mostra o valor que têm para O Eterno: são menores, aparentemente pequenos, mas valem muito, pesam tanto quanto todo o universo. A história humana é a história de uma pessoa, de duas pessoas, de todas as pessoas. 


E será que eu posso fazer da minha mulher, escrava. Ou, em outras palavras, posso explorá-la? Não, não posso. Será que posso fazer dos meus pais, escravos. Ou, em outras palavras, posso explorá-los? Não, não posso. Será que posso fazer de meus filhos escravos. Ou, em outras palavras, posso explorá-los? Não, não posso. E por quê? Porque devo amar o humano como semelhante, como igual. Esteja ele ao lado ou distante, é sempre próximo. Este princípio é fundamental na teologia da vida. As relações humanas implicam em reciprocidade, deve levar ao companheirismo, ao fundamento de origem: Da-terra e A-vida estão por trás de toda a humanidade.


As Escrituras hebraicas nos falam da obrigação de amar o estrangeiro, ou seja, aquele que nos parece totalmente diferente. Esse é o princípio da paz entre os povos. Por isso, a teologia da vida propõe que a paz prevaleça, seja formulada como lei a obrigação de cuidar e proteger os diferentes e as minorias. Este é o sentido maior da justiça.


Assim, se perguntarem: um homem pode explorar pai, mãe, mulher, filhos? Sabemos que a resposta é não. E de novo a pergunta: um homem pode explorar aquele que é diferente dele por credo, raça, sexo ou sob qualquer outro aspecto? Muitos acharão que sim. Mas quando tenho em minha frente uma pessoa, tenho um igual e, por mais diferente que seja, é meu irmão. Ser justo é reconhecer a liberdade dele, seus direitos e cuidar para que tenha uma vida digna, como humano que é.


O respeito e o cuidado por tudo aquilo que é humano, pelo ser, por sua terra e vida, é teologia radical, que nasce da compreensão de que somos semelhantes, cheios de parecença com O Eterno. A imagem está em um, em dois, em todas as pessoas.