dimanche 8 mars 2020

A mariologia herética dos jovens reformados

Huguenotes, tupinambás 
e a mariologia herética dos jovens reformados
Jorge Pinheiro, PhD

Um dos elementos da doutrina reformada em construção, que favoreceu a aceitação do cunhadismo por parte dos huguenotes, e sua conseqüente entrada na estrutura social tupinambá, foram as novas leituras da mariologia e a possibilidade, a partir daí, de compreensão de novas leituras para as estruturas de parentesco.

É muito possível que o texto básico para essa compreensão do papel de Maria, como desestabilizador da estrutura patriarcal monogâmica católica, estivesse no evangelho de Lucas 1.4243, quando este afirma: “Isabel exclamou em alta voz: De onde me provém que me venha visitar a mãe do meu Senhor?”.

É bom lembrar que outra afirmação, esta presente num dos mais importantes documentos da igreja cristã dizia que Maria era théotokos. Assim, o concílio de Calcedônia, 415, apresentou a moça de Belém, como théotokos. Nessa afirmação há uma desconstrução não intencional da patriarcalidade ocidental e, por extensão, da propriedade. O que significava Maria mãe de Deus nesta revisão da questão de parentesco, para os jovens huguenotes? 

Embora a dogmática católica ao falar das duas naturezas do Filho de Deus e de Maria se referisse ao divino e ao humano, esses dois processos miticamente falam de duas gerações. Maria é filha gerada pelo pai, num primeiro momento, mas o pai é gerado pela filha numa universalidade posterior. É por isso que miticamente Maria aparece nos ícones como aquela que deu à luz Deus e, portanto, substituta do pai. Ao mesmo tempo, a defesa daqueles que adoravam Maria através dos ícones era de que ao venerar a imagem não a encaravam como deusa à maneira pagã, mas como aquela que deu à luz Deus. Esse pensamento percorreu um caminho que levou a idéia de segunda Eva. Provavelmente a maior revolução em toda a história da linguagem acerca de Maria. E por que segunda Eva? Qual a diferença entre a primeira e a segunda? Há três questões teológicas importantes nesta discussão: a primeira é a idéia de que ela deu à luz Deus; a segunda, a percepção da necessidade de identificar uma mulher como a geradora de uma nova criação; e a terceira de que, sendo Deus criado e a mulher geradora da nova criação, o gênero feminino e não o gênero masculino ocuparia a centralidade da nova estrutura de parentesco. Vejamos cada uma delas.

Em primeiro lugar, nessa leitura a maternidade não depende de um homem e que, de fato, o pai não é um pai. Na verdade, na universalidade da maternidade da moça de Belém, ela se tornou mãe de seu pai e, por extensão, mãe de todos os pais. 

Em segundo lugar, ao acrescentar o anúncio do anjo Gabriel de que o que moça de Belém haveria de gerar seria fruto do “ruach hakadosh”, do vento santo, se dava a ruptura do significado biológico e cultural da paternidade: o que dava à maternidade caráter suprabiológico e supracultural, já que foram rompidos os laços de sangue. Então, o pai não é mais pai, nem o filho é filho do pai, mas da mãe. Nesse sentido, podemos entender théotokos. Mas tal descontrução não pára aí. A priori há uma realidade natural: inter feces et urinas nascimur. A vulva, a madre aberta pela passagem do primogênito/a permaneceu presente na cultura ocidental católica e tem a consistência da lei biológica: ninguém chega ao mundo de outra maneira. Não ha exceção. Mas em théotokos houve a ruptura.

Em terceiro lugar, é interessante notar que Pilatos perguntou à multidão quem ela desejava que fosse solto: Jesus ou Barrabás? Ora, Jesus significa o que é eterno liberta, e Barrabás, filho do pai. Assim, naquele momento demoníaco, a multidão pediu a morte da liberdade e a permanência da estrutura de parentesco patrilinear, do filho do pai. Momentos mais tarde, já na cruz, Jesus reafirmou a universalidade da maternidade suprabiológica e supracultural e disse ao amigo João que Maria era sua mãe, e à Maria que João era seu filho. 

Assim, a Reforma que dava seus primeiros passos estava a construir leituras de uma nova estrutura de parentesco, liberta dos laços de sangue, do biológico e dos condicionamentos culturais da patriarcalidade. E foi através do cunhadismo que os jovens huguenotes encontraram uma ponte de diálogo com essa mariologia herética e revolucionária, a estrutura de parentesco matrifocal, que tem como possibilidade de construção o parentesco definido pelo gozo, mas também por seu oposto, o abandono. Tal postura leva à escolha adotiva e, nesse sentido, aponta para a liberdade, mas também em posição, à escravidão, ambas, liberdade e escravidão em relação à natureza e às construções daí decorrentes.

Mas há uma quarta questão, que extrapolava o universo da naturalidade, está embutida em théotokos e apontava para o novo mundo a construir: a gravidez e o parto da mulher virgem, que não tem a vulva como caminho, mas acontece na exterioridade do corpo. Assim, a moça de Belém, eterna virgem, preanuncia o tempo da maior de todas as desconstruções, a abolição da maternidade e a expansão da matrifocalidade. Essa desconstrução, sem dúvida, poderia transformar a face do Novo Mundo. Mãe de seu pai, a mulher virgem gerará seu pai. E assim construiremos um novo parentesco. 

Quando falamos de matrifocalidade devemos esclarecer que não se trata de um subsistema do matriarcado, mas um sistema dependente do patriarcado, que por sua vez o reproduz. O patriarcado deve ser compreendido, então, como estrutura baseada na distinção dos gêneros, masculino/ feminino, apresentados como complementares, mas vividos em assimetria de poder e, em muitos casos, concordes na proibição da sexualidade homoerótica, embora esse não fosse o caso entre os tupinambás. O matriarcado propriamente dito não existe e usar tal expressão leva a desviar a atenção do patriarcado, criando falsa simetria. Assim esclarecido, aqui não falamos de matriarcado, mas trazemos da antropologia o conceito “matrifocalidade” que nos fornece sentidos para compreender teologicamente os laços de parentesco do cunhadismo tupinambá. 

Nessa construção teológica da matrifocalidade dos primeiros huguenotes, fenômeno também vivido pelos anabatistas na Alemanha, tomamos como modelo o papel da mulher na família mediterrânea, onde o espaço físico da casa era entendido como categoria de gestão da chefia feminina e de arranjos extensos presentes nos grupos de parentesco. Nesses arranjos a centralidade da figura feminina e do papel exercido pelas mulheres, além de ser traço característico, religiosos ou não, exercia um eixo estruturador, que produzia e reproduzia modos de ser do modelo familiar. 

A presença matrifocal no modelo mediterrâneo não estava associada à idéia de pessoas e comunidades fracas do ponto de vista da sobrevivência, mas denotavam a expansão das trajetórias de ascensão das mulheres, que muitos vêem como representantes de um tipo de matriarcado. Mas, como dissemos, referir-se à figura de mulheres fortes utilizando-se a expressão matriarcal/ matriarcado é um erro. O termo correto é matrifocalidade, que deve ser entendido, em seu sentido expandido, como gestão doméstica e/ou familiar por mulheres, que lhes confere um espaço de relativo poder. E no modelo matrifocal mediterrâneo, que interessa desde uma perspectiva teológica, as mulheres podiam ou não ser chefes da casa, assim como podiam ou não ser liderança de extenso grupo familiar, onde homens, pai e filhos, aceitavam a chefia feminina. Assim, é importante entender que a matrifocalidade mediterrânea não representava ausência do homem na família ou comunidade, e nem implicava em chefia de mulheres solteiras, distante dos agrupamentos familiares, ou solitárias na gerência da prole. 

Teologicamente, a matrifocalidade é compreendida aqui como construção e expansão da imagem de Maria, que concentra poder entendido como força simbólica circulante, que se fundamenta em presença conquistada na trajetória da fé cristã. Essa presença se traduz na definição de espaço espiritual próprio, que é fruto do prestigio adquirido nas comunidades, já que recebe o estatuto de mãe coletiva pela sua trajetória: no caso gerar o pai, e pelo tipo de funções desempenhadas, de parteira de um novo tempo, responsável por trazer ao mundo, com suas próprias mãos, o filho de novas gerações. 

Aqueles que procuram nas Escrituras cristãs textos que possam remeter à tradição matrifocal da moca de Belém surpreendem-se com o fato destes textos serem poucos. Fora os relatos agrupados nos evangelhos de Mateus e Lucas nos capítulos um e dois, só se menciona Maria em passagens de João dois e dezenove. Afora isso, há uma alusão a que o pai enviou ao mundo o seu filho, “nascido de mulher”, na carta de Paulo aos gálatas no capítulo 4.4. Da mesma maneira, os estudos das Escrituras cristãs mostram que a primeira geração de escritores, como Paulo, Marcos e João, não deu nenhuma importância à memória da moça de Belém: não se referiu a ela como virgem mãe e nem deu destaque à história da concepção do filho por ação do espírito. Isso, no entanto, não diminuiu a importância da matrifocalidade que seria construída com os passar dos anos na fé católica ocidental e oriental.

A raridade dos textos neotestamentários cristãos sobre a virgem mãe contrasta com a quantidade de histórias e relatos de milagres que foram se acumulando nos primeiros dezesseis séculos de história do cristianismo. A explicação para isso é que, com o passar dos tempos, o cristianismo foi desenvolvendo um imaginário matrifocal a partir de aspectos originários de sua fé, procurando relacioná-lo com culturas e sensibilidades dos povos. Assim, é possível de quatro aspectos na construção da matrifocalidade cristã.

O caráter cultural
  
A matrifocalidade cristã lembra afluentes que deságuam num rio. Surge do relato bíblico e da memória da virgem mãe, com a qual a comunidade cristã se identifica através do próprio canto da moça de Belém, quando diz que “todas as gerações me proclamarão bendita porque o todo-poderoso fez em mim maravilhas”, conforme Lucas 1.48-49.

O cumprimento desse salmo de louvor veio aos poucos, dando seu salto formal com os primeiros concílios da igreja católica. Mas não podemos dizer que o cumprimento dessa profecia de bendição ao pai, pela graça dada à moça de Belém, se deve exclusivamente aos católicos. Maria sempre virgem foi vista assim por Lutero que dedicou a ela seu Magnificat. O que a Reforma dos huguenotes não aceitava é que se construísse uma piedade cristã a partir de uma teologia matrifocal. Ou seja, que Maria fosse colocada no mesmo nível do Cristo. 

O apóstolo Paulo afirmou em sua primeira carta a Timóteo (2.5), que há um só Deus e um único mediador entre Deus e a humanidade, que é Jesus Cristo. Os catecismos católicos responderam à polêmica suscitada pela matrifocalidade fazendo distinções entre adoração a Deus e veneração, procurando expressões doces para a matrifocalidade e ligando-a de forma mais íntima à própria piedade ao Cristo. Mas o imaginário matrifocal teve tanta força que, de fato, a leitura patriarcal da trindade fez água e o pai perdeu importância de forma crescente na tradição popular medieval.

Esta situação teve raízes históricas. Uma delas se deveu ao analfabetismo das massas e a conseqüente despreocupação em relação à leitura dos textos neotestamentários no longo período de construção da igreja católica, restando ao povo a devoção tradicional combinada às crenças e costumes de suas comunidades. Este tipo de sincretismo foi a regra no mundo antigo que se tornava cristão.

Assim, por exemplo, quando o cristianismo entrou no norte da Europa encontrou os cultos celtas a uma deusa que era a rainha do céu. Logicamente, a síntese entre a rainha do céu e a virgem foi um processo natural, onde os celtas convertidos atribuíram à imagem de Maria as capacidades e peculiaridades da rainha do céu. Essas percepções se deram cada vez que o cristianismo se inseriu em uma região, assumiu a cultura e procurou traduzir as crenças que lhe eram anteriores a uma forma compatível com a fé cristã. 

Na Guanabara invadida pelos franceses, a matrifocalidade mais do que se expressar como culto religioso se traduziu como cunhadismo. Mas, matrifocalidade cristã e cunhadismo se apresentaram enquanto fenômeno correlacional para os huguenotes, porque afirmou novas leituras da fé a partir da estrutura de parentesco dos tupinambás. 

A moça no desamparo de seu gênero

O testamento cristão, e isso estava claro para os huguenotes (conforme A confissão de fé da Guanabara), deu continuidade às escrituras hebraico-judaicas a partir da vida e das palavras de Jesus. Quando Lucas conta, no primeiro capítulo do seu evangelho, a anunciação do anjo à moça de Belém e depois sua visita à prima Isabel (1.36+), estava a pensar em alguns relatos proféticos das escrituras hebraico-judaicas, como o relato de Sofonias capítulo três e o relato de 2Samuel capítulo seis. Se for assim, a idéia da matrifocalidade é clara, aquela moça simbolizava a figura da comunidade de fé. É símbolo da gente despossuída, fiel a Deus e, ao mesmo tempo, da humanidade nova. Nesse sentido a figura de uma mulher, mais precisamente de uma moça no desamparo de seu gênero, sintetiza a vocação do seu povo e dos fiéis da nova aliança. Ela é em pessoa a realização plena do que os profetas antigos chamaram de virgem, filha de Sião, referindo-se ao povo, conforme 2Reis 19.21; Isaías 52; Jeremias 31.4+ e Sofonias 3.12+. A matrifocalidade religiosa está sintetizada nessa moça sem poderes políticos, mas mãe de Deus. É uma parábola da humanidade, que bem poderia traduzir a realidade tupinambá naquele momento de encontro com jovens reformados.

É interessante ver como a matrifocalidade cristã fortalece e amplia a leitura de gênero presente nas Escrituras hebraico-judaicas. Na leitura da criação, narrada no Gênesis, a mulher é produção do pai e culminou sua ação criadora. Em muitos textos bíblicos, embora a mulher seja figura da humanidade em sua relação com o pai, ela mais que nada é esposa. Tal imagem no livro do Apocalipse expande a matrifocalidade cristã nascente ao dizer que pareceu no céu um grande sinal: uma mulher vestida do sol, com a lua debaixo dos pés e na cabeça uma coroa de doze estrelas (12.1). Esta imagem traduz a mitologia matrifocal de antigas ancestralidades e apresenta a vitória da comunidade cristã que enfrentava o martírio e as perseguições. E não foi por acaso, então, que o cristianismo nascente viu nesta imagem da comunidade grávida do Messias a figura de Maria mãe.

Mas ao discutir novas possibilidades para a estrutura de parentesco patriarcal como conseqüência da expansão da matrifocalidade, dogmas que, por centenas de anos repousaram no inconsciente cristão, trouxeram percepções importantes: ela é mãe do pai, mas é santificada e exaltada pela morte do filho que vai nascer. Nesse sentido, o fato de ser mãe do pai, que é filho, e vai morrer, ela se faz símbolo perfeito da matrifocalidade. Assim, a matrifocalidade cristã significava para os huguenotes uma reforma radical: a moça de Belém era figura de um caminho novo, de uma nova estrutura de parentesco, matrifocal e não patriarcal nuclear.

O eixo fundamental das Escrituras hebraico-judaicas e cristãs para os católicos era a revelação de que o pai tinha um projeto para a humanidade: uma vida de intimidade com ele. Essa intimidade que recebeu também os nomes de aliança ou reino de Deus supunha uma proximidade afetiva que lembra a relação homem/ mulher. É como um casamento. Ora, a imagem tradicional de Deus no catolicismo medieval era de um pai dono do poder. Para se ter acesso a esse pai era necessário um intermediário. Essa constatação, num primeiro momento inconsciente, mas que se conscientiza na construção católica, leva com a Reforma ao surgimento e à expansão de uma teologia da matrifocalidade. 

Para ouvir a palavra do pai, os católicos na Idade Média precisavam do “anjo do Senhor”, emanação visível do pai transcendente. É imagem ou expressão da presença do pai. Em outros lugares, os textos chamam de “glória do Senhor”, o sinal visível da presença do pai. Como no Êxodo, a nuvem que desce sobre o monte Sinai quando o pai fala (Ex 19) ou a tenda na qual o povo consulta o pai. Quando os israelitas acolheram e reverenciaram a tenda, a arca, a nuvem ou o vento, sinais da presença divina, não é nenhum destes elementos em si que eles adoram e sim o pai presente através deles.

A matrifocalidade rompe a ausência e o distanciamento paterno. O que ela faz é trazer a realidade da ancestralidade para o presente. Heróis civilizadores deixam de estar no passado e passam a estar no cotidiano da vida, nas coisas que são feitas e que representam no dia a dia a manutenção da vida. Nesse sentido, a matrifocalidade não é representação do pai ou do filho, mas novo parentesco. Diante da matrifocalidade todos são filhos e não há um filho mais importante, porque o primeiro, o mais querido, morreu. E a volta dele, o levantar dele, se dá como memória em todos os demais.


Essa matrifocalidade, presente no imaginário dos huguenotes em seus relacionamentos com as cunhãs, possibilitou a construção de pontes entre a cultura tupinambá, hegemônica, e o grupo de reformados, com uma tradição a construir, mas movidos pela utopia da França Antártica. Essa compreensão nos remete ao diálogo político-religioso de tupinambás e huguenotes, onde ao nível da teologia, o eixo mais importante aponta para uma teologia matrifocal, onde a universalidade da Reforma incipiente repousa em colo feminino, deslocando o pai. E porque uma virgem deu à luz Deus e é geradora da nova criação, o gênero feminino e não o masculino passa a ocupar a centralidade da estrutura de parentesco dessa nova criação.  Assim, a cunhã vai introduzir com gozo o jovem huguenote na cultura tupinambá.





vendredi 7 février 2020

A reforma de Josias

A renovação da Aliança

Contexto histórico

Senaqueribe subiu ao trono assírio em 705 antes de Cristo e teve que enfrentar uma revolta na Babilônia, mas não só lá: todas as províncias do oeste se levantaram. Acreditavam ter chegado o momento da libertação. O Egito prometeu ajudar aos rebelados. A coalizão integrava Tiro, cidades fenícias; Ascalon e Ecron, cidades filistéias; Moabe, Edom e Amon; e Ezequias, de Judá, entrou como um dos chefes da revolta. Fortificou suas defesas e preparou-se para o ataque da Assíria.

O que não se fez esperar. Senaqueribe em 701 antes de Cristo atacou Tiro e venceu. Depois foi a vez de Biblos, Arvad, Ashdod, Moabe, Edom e Amon, que se entregaram e pagaram tributo a Senaqueribe.

Ascalon, Ecron e Judá, resistiram. Senaqueribe tomou primeiro Ascalon. Os egípcios tentaram socorrer Ecron e foram derrotados. E foi a vez de Judá. Senaqueribe tomou 46 cidades fortificadas em Judá e cercou Jerusalém.

Nos Anais de Senaqueribe se diz o seguinte:

"Quanto a Ezequias do país de Judá, que não se tinha submetido ao meu jugo, sitiei e conquistei 46 cidades que lhe pertenciam (...) Quanto a ele, encerrei-o em Jerusalém, sua cidade real, como um pássaro na gaiola...".

Entretanto, por motivos desconhecidos, talvez uma peste, ele levantou o cerco a Jerusalém e voltou para a Assíria. Jerusalém voltou a respirar, no último minuto. Mas teve que pagar tributo aos assírios.

Não se sabe porque Jerusalém se salvou. 2Reis 19,35-37 diz que o Anjo de Iaveh atacou o acampamento assírio. Existe uma notícia de Heródoto, História II, 141, segundo a qual num confronto com os egípcios os exércitos de Senaqueribe foram atacados por ratos, o que levanta a hipótese de que a peste bubônica tenha grassado em seu exército. 

Para Hermann, estudioso do assunto, "pode-se considerar que algum fato, acontecido no acampamento assírio que assediava Jerusalém, tenha obrigado à partida; mas isto não exclui que Ezequias tenha enviado o seu tributo e renovado de modo ostensivo o tratado de vassalagem, cuja ruptura provocara a invasão assíria". 

Outra questão é se teria havido uma segunda campanha de Senaqueribe na Palestina. De qualquer maneira, segundo os Anais de Senaqueribe, o tributo pago por Ezequias ao rei assírio foi significativo:

"Quanto a ele, Ezequias, meu esplendor terrível de soberano o confundiu e ele enviou atrás de mim, em Nínive, minha cidade senhorial, os irregulares e os soldados de elite que ele tinha como tropa auxiliar, com 30 talentos de ouro, 800 talentos de prata, antimônio escolhido, grandes blocos de cornalina, leitos de marfim, poltronas de marfim, peles de elefante, marfim, ébano, buxo, toda sorte de coisas, um pesado tesouro, e suas filhas, mulheres de seu palácio, cantores, cantoras; e despachou um mensageiro seu a cavalo para entregar o tributo e fazer ato de submissão".  

Essa informação concorda com a de 2Reis 18.13-16:

"No décimo quarto ano do rei Ezequias, Senaqueribe, rei da Assíria, veio para atacar todas as cidades fortificadas de Judá e apoderou-se delas. Então Ezequias, rei de Judá, mandou esta mensagem ao rei da Assíria, em Laquis: 'Cometi um erro! Retira-te de mim e aceitarei as condições que me impuseres'. O rei da Assíria exigiu de Ezequias, rei de Judá, trezentos talentos de prata e trinta talentos de ouro, e Ezequias entregou toda a prata que se achava no Templo de Iaveh e nos tesouros do palácio real. Então Ezequias mandou retirar o revestimento dos batentes e dos umbrais das portas do santuário de Iaveh, que... rei de Judá, havia revestido de ouro, e o entregou ao rei da Assíria".

Com isso, a reforma de Ezequias tinha dado início perdeu o rumo. Seu sucessor Manassés foi um dos piores e mais longos governos de Judá. Foram 55 anos de governo. No final do governo de Manassés o imperialismo assírio começou a entrar em declínio. Era uma época de sincretismo religioso. Deuses, cultos e  costumes se misturavam, e os assírios temerosos de perder o poder político, oprimiam os cultos nacionais, tentando manter sua influência. Tal situação ameaçava o culto a Iaveh. Mas quem protestava era reprimido.

Manassés foi sucedido pelo filho Amon que acabou assassinado por opositores aos assírios. E foi entronizado, com apenas 8 anos de idade, seu filho Josias, em 640 a.C. Durante seu reinado, Judá alcançou esperançosa independência.

A Reforma de Josias e o Deuteronômio

Assim, a Assíria viveu seus estertores, enfrentando levantes violentos provenientes de vários pontos do império. Povos oprimidos pela extrema violência assíria levantaram suas cabeças. Principalmente os babilônios e os medos, artífices da derrocada definitiva da Assíria, entre 626 e 610 a.C.

Foi um momento especial para Judá. Há um renascimento do nacionalismo e o rei Josias dá início a uma reforma, descrita em pormenores em 2Reis 22.3-23.25 como sua grande obra política. A reforma começou por volta do ano 629 a.C., décimo segundo do reinado de Josias, que tinha 20 anos de idade.

Aproveitando o debilitamento assírio, Josias recuperou o controle sobre as províncias do antigo reino de Israel, cobrou tributos e melhorou suas defesas. Fez uma limpeza geral no país: cultos e práticas estrangeiras, introduzidos em Judá sob a influência assíria, foram eliminados. A magia e as adivinhações foram banidos. Os santuários do antigo reino de Israel, considerados idólatras, destruídos.

Do templo de Jerusalém foi recuperado um código de leis, o núcleo do atual livro do Deuteronômio, como se lê em 2Rs 22. Segundo alguns, escrito no reino do norte e levado para Jerusalém em seguida à destruição de Samaria em 722 a.C.; segundo outros, escrito em Jerusalém mesmo, durante o governo de Ezequias, por grupos fugidos do norte. O Deuteronômio original compreendia os capítulos 12.1-26.15 -- um código de leis de renovação da aliança -- ornamentado por uma introdução (os atuais capítulos 4.44-11.32) e uma conclusão, os capítulos 26.16-28.68.

Ao ser promulgado por Josias em 622 a.C. como lei oficial do Estado, o Deuteronômio deu vida à reforma, mostrando ao povo que Judá podia confiar em Deus, porque essa era a promessa davídica. Era preciso reviver as antigas tradições mosaicas.

O livro de II Crônicas 34 a 36 narra um dos maiores avivamentos experimentados por Israel, dirigido pelo jovem rei Josias (c. 639-609 a.C.), que morreu, em batalha, aos 39 anos. Aos 16 anos começou sua vida espiritual e aos 20 fez uma reforma no reino de Judá. 

Josias herdou uma nação idólatra, com templos pagãos e bosques dedicados às divindades assírias e dos povos vizinhos: Baal, Milcom, Moloque e Astarote. O povo estava perdido e sem rumo. Mas, Josias superou os problemas graças a dois recursos.
  1. A oração, que cumpriu um papel no reavivamento. Jovem ainda começou a buscar ao Senhor, 2 Crônicas 34: 3. Consciente da idolatria existente em seu país, lutou contra esse pecado e destruiu todos os altares, verso 7.
  1. A Palavra. Além da oração, a descoberta do Livro de Deuteronômio, transformou-se em lei fundamental para a implementação das reformas, 2 Crônicas 34.14-18. Ao ouvir a leitura da Palavra do Senhor, o rei humilhou-se diante de Deus, verso 19. Depois, reuniu o povo e leu diante da multidão a Lei do Senhor, verso 30. Isso trouxe uma renovação espiritual.
O que isso nos ensina? Que sem oração e sem a Palavra de Deus não há renovação da aliança. Assim, na renovação da Aliança do povo, promovida pelo rei Josias, teve quatro movimentos: 

1. Uma convocação ao povo para ouvir a Palavra de Deus
2. O povo ouviu a Palavra 
3. O povo aceitou a Palavra
4. Renovou-se a aliança com Deus por meio de um sacrifício pascal

Conclusão histórica

A reforma de Josias surtiu efeito? Sim e não. Positiva no geral, teve, contudo, pontos negativos. Não encontrou uma independência prolongada para poder se desenvolver; foi feita de cima para baixo, imposta pelo governo, sem base popular mais ampla; suas medidas ficaram no exterior, sem levar o povo a uma reconstrução real do culto a Iahveh. A centralização do culto não deu bons resultados, esvaziou a vida e a religiosidade do povo. E os acontecimentos se precipitaram, Josias morreu cedo, e a reforma se perdeu.

Conclusão teológica

Um verdadeiro movimento de renovação espiritual deve estar ligado à oração e ao estudo das Escrituras. Isto porque a Palavra de Deus é restauradora: 

“A lei do Senhor é perfeita e restaura a alma”, Salmos 19.7. 


Ela age de forma poderosa no coração humano, Jeremias 23.29. Essa é a renovação da aliança que Deus deseja que façamos.




lundi 3 février 2020

Derrubou os poderosos dos seus tronos

Humildes, pobre e pequenos
Pr. Jorge Pinheiro

Ao receber a notícia do anjo, a jovem recita de memória, numa adaptação livre, o cântico de outra mulher, feita lá atrás na história de Israel: o cântico de Ana (1Samuel 2.1-10). 

Lucas 1:46-55 Maria disse entäo: "A minha alma celebra a grandeza do Senhor 47 e o meu espírito se alegrou em Deus, meu Salvador, 48 porque ele olhou com amor para esta sua humilde serva! Daqui em diante toda a gente me vai chamar ditosa, 49 pois grandes coisas me fez o Deus poderoso. Ele é Santo! 50 Ele é sempre misericordioso para aqueles que o adoram, em todas as gerações. 51 Fez coisas grandiosas com o seu poder extraordinário. Dispersou os orgulhosos de pensamento e coraçäo. 52 Derrubou os poderosos dos seus tronos e exaltou os humildes. 53 Encheu de bens os que têm fome e mandou embora os ricos de mäos vazias. 54 Ajudou o povo de Israel que o serve, lembrando-se dele com misericórdia. 55 Conforme tinha prometido aos nossos antepassados, a Abraäo e seus descendentes para sempre."

1. Arrogantes / orgulhosos de pensamento e coração / poderosos

Salmo 10:3-7 Os maus falam com orgulho dos seus desejos. As pessoas que exploram os outros desprezam o SENHOR e blasfemam contra ele. 4 O homem mau não se importa com Deus; por causa do seu orgulho ele pensa assim: “Para mim, Deus não tem importância.” 5 Tudo o que esse homem faz dá certo. Ele não pode entender os julgamentos de Deus e zomba dos seus inimigos. 6 Ele pensa assim: “Nunca fracassarei; nunca terei dificuldades.” 7 A sua boca está cheia de maldições, mentiras e ameaças. Ele só fala de desgraças e de maldades.

A vaidade é a vã glória. A glória em vão. A glória no que é vazio. Essa glória é falsa, mentirosa, sem substância. É uma glória que não tem consistência, é efêmera. Não é capaz de realizar o fim devido.

2. Humildes / pobres e pequenos

Sofonias 2:3 Voltem para Deus todos os humildes deste país, todos os que obedecem às leis de Deus. Façam o que é direito e sejam humildes. Talvez assim vocês escapem do castigo no Dia da ira do SENHOR.

Glória a Deus nas maiores alturas do céu! E paz na terra para as pessoas a quem Ele quer bem! Lucas 2.14.





vendredi 31 janvier 2020

Thomas Münzer a partir de Engels e Tillich

Thomas Münzer a partir de Engels e Tillich

Segundo Friedrich Engels (La guerre des paysans en Allemagne. Introduction, traduction entièrement revue et notes d’Émile Bottigellli. Paris: Éditions Sociales, 1974, pp. 146-147), Thomas Münzer sentiu o abismo entre suas teorias e a realidade que tinha diante de si. Atirou-se com zelo na organização do movimento. Escreveu mensagens, cartas, e enviou emissários em todas as direções. Seus escritos e sermões respiravam um radicalismo surpreendente. O humor e ingenuidade de seus panfletos anteriores desapareceram. O pensador tranqüilo desapareceu. 

Münzer era agora o profeta da revolução. Expressava seu ódio contra as classes dominantes, e empregava um linguajar violento que ressuscitava o delírio religioso e nacional dos profetas do Antigo Testamento. Usava, sem dúvida, um estilo adequado ao nível da cultura dos camponeses. 

Nos condados e ducados, os camponeses revoltaram-se, formaram milícias, queimaram castelos e mosteiros. Münzer, já então, era reconhecido como o líder do movimento em Mühlhausen e manteve aí o seu foco. Mas era visto como o profeta da revolução em todos os lugares onde os camponeses se rebelavam.

Os príncipes ficaram impotentes diante dos levantes camponeses. Somente nos últimos dias de abril, os príncipes de Hesse foram capazes de reunir um exército, sob o comando de Landgrave Philip, um homem sanguinário. Com suas tropas entrou em Fulda, depois, a três de maio, derrotou a resistência em Frauenberg e subjugou toda a região. Dirigiu-se para Eisenach e Langensalza, ocupou-as, e lançou suas tropas em direção às terras do duque da Saxônia, contra o foco principal da revolução, Mühlhausen. 

Münzer reuniu as suas forças, cerca de oito mil combatentes com poucas armas. Os combatentes de Thuringian não tinham preparação militar. Estavam mal equipados, eram indisciplinados, tinham poucos soldados experientes e nenhum líder militarmente capacitado. 

Münzer também não tinha o menor conhecimento militar. E, os príncipes, políticos espertos, utilizaram a mesma tática que tantas vezes os ajudaram a conquistar a vitória: a mentira. No dia 16 de maio, começaram as negociações com os camponeses e fizeram um armistício. Quanto menos se esperava, atacaram, antes do armistício expirar. 

Münzer estava com sua família no monte de Schlachtberg, entrincheirados. O desânimo com o ataque tomou conta dos camponeses. Os príncipes, então, prometeram uma anistia geral, se entregassem Münzer vivo. 

Münzer reuniu um grupo para discutir as propostas dos príncipes. Mas foi traído, rodeado, dominado e imediatamente retirado da liderança. Um cavaleiro e um padre declararam a capitulação. Essa tática de infiltração e terror gerou confusão na milícia anabatista. Alguns resolveram resistir sem o líder, outros se deixaram influenciar pela propaganda dos mercenários dos príncipes. O exército de Landgrave Philip, avançando em colunas estreitas, atacou. As balas atingiram os camponeses desarmados e inexperientes. Após um breve combate, a resistência se desarticulou e se dispersou. Fugiram numa confusão terrível, e foram mortos pelas colunas e cavalaria. Foi um massacre sem precedentes. Dos oito mil camponeses, cinco mil foram massacrados. Depois foi a vez de Frankenhausen. A cidade foi tomada. Ferido na cabeça, Münzer foi encontrado em uma casa e feito prisioneiro. Em 25 de maio, Mulhausen se rendeu. Pfeifer conseguiu fugir, mas foi detido na região de Eisenach. 

Münzer foi submetido à tortura, na presença de príncipes e decapitado. Caminhou até o local da execução com a mesma coragem que demonstrou toda a sua vida. Não tinha mais de vinte e oito anos. Pfeifer também foi decapitado, assim como muitos outros. Em Fulda, um homem de Deus, Filipe de Hesse, iniciou sua justiça sangrenta. Ele e os príncipes saxões executaram 24 pessoas em Eisenach, 41 em Langensalza, 300 após a batalha de Frankenhausen, em Mulhausen mais de 100, em Goermar 26, em Tungeda 50, em Sangerhausen 12, em Leipzig 8, sem falar das pilhagens e mutilações, e da queima de vilas e cidades. 

Para Tillich, é importante que o olhar lançado nas profundezas não seja turvado, que a fé enquanto experiência da incondicionalidade apóie a vontade de dar forma ao mundo e a livre do vazio e do nada de uma simples tecnificação do mundo. O espírito religioso, explica Tillich, está vivo no movimento socialista: é uma vibração religiosa que circula através das massas. E essa santificação da vida cultural no socialismo é uma herança cristã, que lhe transmite coragem e vida.

Para Tillich, há uma razão para se fazer a crítica teológica do marxismo, e esta é exatamente a impressionante analogia estrutural existente entre a interpretação profética e a interpretação marxista da história.

O princípio profético e o marxismo partem de interpretações capazes de ver sentido na história. Para essas duas leituras da realidade, a história vai na direção de um alvo, cuja realização dará sentido a todos os eventos vividos.

E se a história tem um fim, tem também um começo e um centro, onde o sentido da vida se torna visível e possibilita a tarefa de interpretação, tanto do profeta como do militante marxista. Assim, para o profetismo e para o marxismo, o conteúdo básico da história encontra-se na luta entre o bem e o mal.

As forças do mal são identificadas como injustiça, mas podem e serão derrotadas. 

Esta interpretação cria nos dois casos certa atmosfera escatológica, visível na tensão da expectativa e no direcionamento para o futuro, coisa que falta completamente em todos os tipos de religião sacramental e mística. O profetismo e o marxismo atacam a ordem vigente da sociedade e a piedade pessoal como expressões do mal universal num período específico. 

Ora, há um desafio ético, apaixonado, como afirma Tillich, das formas concretas de injustiça, que levanta um protesto, o punho ameaçador, contra aqueles que são responsáveis por este estado de coisas. Assim, o espírito profético e o marxismo colocam os grupos governantes sob o julgamento da história e proclamam a destruição desses grupos.

Tillich afirma que tanto o profetismo como o marxismo acreditam que a transição do atual estágio da história em direção a uma época de plena realização se dará através de uma série de eventos catastróficos, que culminará com o estabelecimento de um reino de paz e justiça.

Dessa maneira, para Tillich, o espírito profético e o marxismo são portadores do destino histórico da humanidade e agem como instrumento desse destino por meio de atos livres, já que a liberdade não contradiz o destino histórico. 

Mas para Tillich, a analogia estrutural entre o espírito profético e o marxismo não se limita à interpretação histórica, mas se estendem à própria doutrina do humano. É uma semelhança, inclusive, que vai além de uma cosmovisão profética do ser humano, que se apresenta como doutrina cristã do humano.

O ser humano, para o marxismo, não é o que deveria ser, sua existência real contradiz seu ser essencial, explica Tillich. A idéia da queda está presente no marxismo. Já que se o humano não caiu de um estado de bondade original, caiu de um estado de inocência primária. Alienou-se de si mesmo, de sua humanidade. Transformou-se em objeto, instrumento de lucro e quantidade de força de trabalho.

Para o cristianismo, como sabemos, o ser humano alienou-se de seu destino divino, perdeu a dignidade de seu ser, separou-se de seus semelhantes, por causa do orgulho, da desesperança, do poder.

Para Tillich, o cristianismo e o marxismo concordam que é inviável determinar a existência humana de cima para baixo, por isso a existência histórica é determinante na construção da antropologia.

Mas a analogia entre cristianismo e marxismo vão mais longe ainda. Vêem o ser humano como ser social, e que por isso o bem e o mal praticados não estão separados de sua existência social.

O indivíduo não escapa dessa situação. Faz parte do mundo caído, não importando se a queda se expressa em termos religiosos ou sociológicos. Tem a possibilidade de fazer parte do novo mundo, não importando se o concebemos em termos de transformação supra-histórica ou infra-histórica.

Dessa maneira, para Tillich, a idéia de verdade tanto no cristianismo como no marxismo vai além da separação entre teoria e prática. Ou seja, a verdade para ser conhecida deve ser feita. Vive-se a verdade.

Da mesma maneira, sem a transformação da realidade não se conhece a realidade. Donde a capacidade de conhecimento depende da situação de conhecimento em que se está. E apoiando-se no apóstolo Paulo, Tillich explica que só o “humano espiritual” consegue julgar todas as coisas, da mesma maneira aquele que participa da luta do “grupo eleito” contra a sociedade de classe consegue entender o verdadeiro caráter do ser.

Assim, com a deformação da existência histórica, praticamente em todas as esferas, torna-se muito difícil a percepção da condição humana e do próprio ser, por isso a presença da igreja e do proletariado na luta é o lugar onde a verdade tem mais condições de ser aceita e vivida.

O auto-engano e a produção de ideologias surge como inevitáveis em nossas sociedades carentes de sentido, a não ser naqueles pequenos grupos que enfrentam suprema angústia, desespero e falta de sentido. A verdade então aparece e pode ser vivida, porque os véus ideológicos foram rasgados.

Mas, alerta Tillich, a verdade pode se transformar num instrumento de orgulho religioso ou de vontade de poder político. Em tudo isso o cristianismo e o marxismo estão juntos em oposição ao otimismo pelagiano ou de harmonia em relação à natureza humana.



Thomas Münzer teologo della rivoluzione

Intervista al Prof. Stefano Zecchi (Università Statale di Milano).
Servizio di Nicola Alessandrini e Cinzia Carantoni.

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Thomas Münzer teologo della rivoluzione

25 mars 2012








jeudi 30 janvier 2020

A aberração do Cristo

A aberração do Cristo
Jorge Pinheiro, PhD



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Bem, vou lembrar e recorrer a um filme que marcou minha vida jovem. Em 1967, Jean-Luc Goddard a partir de um artigo sobre donas de casa de um conjunto habitacional no subúrbio de Paris, que se prostituíam para alimentar o consumo supérfluo, fez “Duas ou três coisas que eu sei dela”, que apresenta uma Paris dos anos 1960, um retrato da sociedade de consumo, em meio à pobreza das massas e a tragédia da guerra do Vietnã. Numa reflexão sobre espiritualidade e alta-modernidade, numa leitura a partir de Slavoj Zizek e John Milbank, quero falar de duas ou três coisas que nascem da referida discussão.

Tal abordagem, como o amor de Goddard por aquela Paris, também parto do coração. E nasceu no jovem sefardita, marxista, militante, que mais tarde, já na terceira década de vida, reconheci no rabino de Nazaré o mashiah esperado. E é exatamente esse itinerário de construção de vida e teologia que me levam a uma empatia com o materialismo do Cristo pensado por Zizek.

Slavoj Zizek e John Milbank discutiram a aberração/monstruosidade do Cristo, pensando paradoxo e dialética. Nesta discussão, Zizek apresenta a possibilidade de um materialismo da fé cristã e a deidade do Cristo, ou seja a encarnação do Criador. Mas Milbank, a partir de uma leitura ortodoxa, podemos dizer tomista, faz a defesa do escândalo da encarnação a partir da ontologia.

Nesta reflexão, há três coisas que penso, quando tratamos de espiritualidade e alta-modernidade, numa leitura a partir da aberração do Cristo/ do Mashiah: a primeira coisa é que na modernidade colonial e eurocêntrica se conjugava missão a partir do verbo ir, mas neste momento de alta-modernidade em caos e crise se faz necessário pensar o verbo receber; a segunda coisa, é que naquela modernidade referida a lógica da expansão colonial e eurocêntrica era a dialética, mas nesta alta-modernidade somos chamados a pensar a analética; e como terceira coisa que penso nesta introdução, é que na modernidade o Yeshua era o logos joanino, mas nesta alta-modernidade o Yeshua precisa ser entendido como aná-logos.

Ora, estas três percepções permitem leituras críticas da aberração do Mashiah, num confronto entre paradoxo e dialética, e colocam preocupações que devem ser levadas em conta quando se pensa espiritualidade e alta-modernidade.

Como sefardita, ou seja, do povo da estrela, que só aceitou o mashiah na maturidade, vivi e vivo a aberração da encarnação e o mesmo acontece com todos aqueles não-cristãos que pensam o cristianismo, quer sejam muçulmanos ou judeus e essa aberração da encarnação, deus/homem, homem/deus, não desafia apenas Zizek, está presente no mundo da alta-modernidade, e tem a ver com os excluídos e expropriados do terceiro mundo.

Quando pensamos a espiritualidade a partir da América Latina temos elementos para uma análise do clamor dos excluídos e expropriados a partir do conceito de outro e vamos fazer isso, a leitura do mesmo -- aquele que se fecha em si, sente-se autossuficiente, etnocêntrico e não aceita o outro, não aceita a alteridade --, trazendo para o momento presente a discussão entre Slavoj Zizek e John Milbank. 

A ontologia, a partir do iluminismo, ou melhor, a partir de Hegel, e este é um dos problemas da abordagem tomista de Milbank, não se baseou na relação pessoa-pessoa, mas na relação sujeito-objeto. Essa ontologia de uma só pessoa levou ao discurso solipsista, onde não há espaço para o outro, pois é não-ser e negatividade. O olhar europeu colocou-se como superioridade em relação ao outro, externo, primitivo e subalterno, o que conduziu à colonização e à expropriação das vidas. Tal situação teve justificação teológica: o outro é revestido da impessoalidade do inimigo, do estranho, do inferior donde, não há problema se for exterminado, já que este outro está fora da totalidade. Nada acrescenta ou diminuiu à totalidade.

Este mal é transmitido de geração em geração. A prática histórica ganha característica de lei, por isso, apesar de injusta, a exploração se torna legal. Mas a legalidade não pode ser o fundamento da moralidade. Toda prática justa deve ir além do pré-estabelecido, da ontologia da totalidade, além da ordem legal vigente. A origem de uma moralidade justa não está no mesmo, mas no outro, por isso a prática originada no mesmo é uma prática alienante, dominadora e opressora. 

No final dos anos 1960, a partir da constatação de que a dialética era limitadora para a formulação de uma teologia da práxis, Enrique Dussel e Juan Carlos Scannone buscaram uma expansão que chamaram analética. A expressão foi cunhada por B. Lakebrink e traduzia uma releitura da analogia tomista. Mas foi Scannone o primeiro a utilizar o conceito, opondo totalidade e alteridade, ao dizer que tal processo, mais que dialético, para distingui-lo da dialética hegeliana, era analético. 

Assim, Dussel e Scannone buscaram uma alternativa às dialéticas hegeliana e marxista clássica, o que foi possível pela afirmação da existência de um âmbito antropológico alterativo, além da identidade da totalidade, que abria a possibilidade de uma refundação do fundamento, deixando de ser tal para destacar-se como fundado. Mais tarde, Dussel dirá que seu método parte de Lévinas, mas que tem como pano de fundo a realidade latino-americana. A princípio foi formulado como leitura de uma ética da libertação latino-americana, mas ao definir a ética como filosofia primeira, a analética torna-se, em Dussel, a compreensão apropriada a uma filosofia latino-americana de libertação.

Em 1976, teólogos reunidos em Dar-er-Salam afirmaram que o método interdisciplinar na teologia e, por extensão a espiritualidade, tem que levar em conta a interrelação entre as teologias e a análise política, psicológica e social, quando se afirma que a criação é fundamentalmente boa e que a presença do Espírito no mundo e na história é contínua. É importante ter em mente o mal que se manifesta na alienação do ser humano e nas estruturas socioeconômicas. As desigualdades são diversas e apresentam muitas formas de degradação humana e, por isso, exigem fazer do evangelho um bem novo para o pobre. São exatamente essas leituras que nos levam a formular a necessidade de uma espiritualidade que chamamos da libertação.

Em América Latina dependência e libertação, Dussel afirma que na passagem diacrônica, desde o ouvir a palavra do outro até a adequada interpretação, pode-se ver que o momento ético é essencial ao método. Somente pelo compromisso existencial, pela práxis libertadora no risco, por um fazer próprio, pode-se ter acesso à interpretação, conceituação e verificação da revelação do mundo do outro. Dessa maneira, só aparentemente o pensamento europeu antepôs a teoria à práxis, pois o eu colonizo, o eu conquisto precedem o ego cogito. A exploração e a opressão criaram as condições históricas das quais nasceu uma espiritualidade da justificação e do paradoxo, uma falsa consciência da realidade. A práxis da dominação formou a subjetividade do conquistador: o eu moderno é imperial, livre e violento. O pensamento eurocêntrico e sua extensão estadunidense ocultam o conceito emancipador de modernidade como saída do estado de menoridade, o que traduz a justificação da práxis de violência por parte de culturas que se autocompreendem como desenvolvidas. Esta superioridade impôs um processo civilizatório de via única. 

Uma afirmação de Zizek – devemos, então, de um ponto de vista materialista radical, pensar destemidamente nas consequências de se rejeitar a realidade objetiva. A realidade se dissolve em fragmentos subjetivos, mas esses fragmentos incidem de volta no ser anônimo, perdendo sua consistência subjetiva e nos remete à questão do paradoxo.

O esquivar-se da realidade e de uma leitura materialista do mashiah, a partir da ontologia do paradoxo, nos leva à frase exposta por Tertuliano de Cartago, escritor cristão do século terceiro, credo quia absurdum!, creio porque é absurdo. 

Este absurdo paradoxal sobressalta à concretude e nos chama a mergulhar na imensidão do divino/humano e a fechar os olhos e a dizer como o fez um rabino chamado Shaul, que ficou conhecido como Paulo, o pequeno: os judeus pedem um sinal e os gregos a sabedoria, mas nós pregamos a Yeshua crucificado, que é escândalo para os judeus, e loucura para os gregos.

Absurdo, escândalo, paradoxo, tudo como fundamento da fé. Essa mesma emunah que justifica Abraham em meio à loucura de um pai que deve sacrificar o filho da promessa. Logo, a fé deixa de ser a emunah hebraica, que define posicionamento militar, e se transforma em paradoxo, não delírio ou devaneio, mas a loucura da confiança no divino, já que somos incapazes de compreender.

Ora, desde Paul Tillich, enquanto herdeiro de Hegel e do jovem Marx, a práxis é a mediação entre a ontologia e a efetivação do real. Esta correlação, que em Tillich vai virar método, é a procura da superação das dialéticas anteriores, que tratavam do conhecimento do ser e de suas manifestações fora da práxis histórica. Devemos, nesta introdução sobre espiritualidade e alta-modernidade também fazer este trânsito, ao construir uma lógica que não será hegeliana, nem marxista no sentido clássico, mas procurará correlacionar ontologia, lógica e metodologia na dinâmica da práxis espiritual.

Essa correlação com a exterioridade caracteriza a mobilidade da espiritualidade da libertação que, por isso, será uma espiritualidade da práxis, pois, desenvolve o caminho da correlação entre exterioridade e ontologia face à dinâmica da práxis, tratando das formulações de método que acompanham a superação dos horizontes ontológicos. Dessa maneira, coloca a afirmação da exterioridade como fonte anterior às exigências da ontologia, fazendo o caminho que leva um cruzamento comum: a ética. 

Espiritualidade na alta-modernidade deve ser construída a partir de duas abordagens, o outro enquanto revelação de um mistério incompreensível da liberdade e a comunidade de fé enquanto infraestrutura que denuncia o poder excludente. E, assim, a fé nasce como ato da inteligência, é um modo de ver quem é, ou o que é, que realmente ultrapassa o que se vê, que vai além do que se vê. Em primeiro lugar, a esperança de que o outro se revelará concretamente e é a possibilidade da produção e reprodução da vida o que vai além da visão do rosto. Assim, a espiritualidade da libertação significa um pensar sobre um outro, mas um outro que se revela na história, que se revela através do outro, que é o mistério incompreensível de nossa liberdade. Crer na revelação do outro é compreender o sentido da história.

Para que a espiritualidade liberte é necessário descobrir o sentido do presente histórico. E esse desvelar o sentido do presente histórico chamou-se profecia, o falar diante. Mas falar diante de quem? Na modernidade, este falar diante nos levou a leitura formal do ir: deveríamos ir para falar diante. Ora, se profecia é isso: falar do sentido dos acontecimentos presentes através da vida cristã, nesta alta-modernidade de caos e crise, o desafio não é ir, mas receber. Vivemos a localidade global, não somos chamados a ir, mas a receber, porque os excluídos e expropriados estão entre nós, conosco. Assim, contra a lógica que não aceita a exterioridade, espiritualidade na alta-modernidade é receber e viver a realidade da fé no chão da vida. 

A espiritualidade libertadora reconhece a vida a partir da analética: onde o outro se apresenta como alteridade, pois irrompe como estranho, diferente, excluído, que está fora do sistema e clama por justiça.

Ora, a ação espiritual é uma atividade de afrontamento, que diz respeito aquelas pessoas que sabem que é preciso consultar e interpelar, e não situar-se como espectadores passivos.

A analética é uma contribuição à questão metodológica, que parte da exterioridade, que é real devido à existência da liberdade humana, capaz de constituir outras histórias, outras culturas e outros mundos. A lógica hegeliana e por extensão a dialética só chegam até o horizonte do mundo, onde engolfa o outro, anulando-o em sua alteridade. Porém, além da identidade divina e além da dialética ontológica de Heidegger existe um momento antropológico, que afirma uma nova maneira de pensar a espiritualidade.

Analético é o fato pelo qual o ser humano, comunidade ou povo se situa sempre além do horizonte da totalidade. O momento analético é o ponto de apoio de novos desdobramentos. Entretanto, o ponto de partida do discurso metódico é a exterioridade do outro, como uma alternativa à dialética que trabalha com a contradição, identidade e diferença. O princípio não é o de identidade, mas de distinção. O momento analético segue uma sequência, a totalidade é posta em questão pela interpelação provocativa do outro. Escutar sua palavra é ter consciência ética, é aceitar a palavra interpelante por respeito à pessoa que fala, por não poder interpretá-la adequadamente. É lançar-se à práxis do excluído e expropriado.

Desde o século dezesseis, a América Latina é um continente ontologicamente oprimido por uma vontade de poder exercida na totalidade mundial pela Europa. Vontade de poder é uma potência que não somente critica os valores estabelecidos, mas que propõe novos, propõe valores na totalidade a partir do lado dominante da bipolaridade: a América Latina tem então como ideal ser europeia.

Na analética se faz necessária a aceitação ética da interpretação do clamor e a mediação da práxis. Esta práxis é constitutiva, condição de possibilidade da compreensão: traduz ser levado à exterioridade, lugar do exercício da consciência crítica. Sem o momento analético o método pode se dizer científico, mas se reduz ao fático natural, ao lógico ou matemático. 

O momento analético é a afirmação da exterioridade: não é somente a negação da negação do sistema desde a afirmação da totalidade, é a superação da totalidade a partir da transcendentalidade interna ou da exterioridade daquele que nunca esteve dentro. O momento analético é crítico por isso:é a superação do método dialético negativo, mas não o nega, como a dialética não nega a ciência, simplesmente o assume e completa, lhe dá seu justo valor. Afirmar a exterioridade é realizar o impossível para o sistema, o imprevisível para a totalidade, aquilo que surge a partir da liberdade não condicionada, inovadora. Só através da analética é possível comprometer-se com o outro, a ponto de arriscar a vida na luta pela libertação desse outro, além do que possibilita a justiça do sistema como consequência. A analética é prática: é uma economia, uma erótica, uma pedagogia e uma política que trabalham para a realização da alteridade humana, alteridade que nunca é solitária, mas a epifania de pessoas, gêneros, crenças, de uma geração, de um tempo e da espécie humana. 

A questão pedagógica não é tratada por Heidegger porque pensa que o ser-no-mundo procede unicamente da pessoa, mas se esquece que quem dá sentido ao meu mundo é o outro. É no processo pedagógico que se organiza o meu mundo, quando me descubro outro que está no outro, me descubro novo. 

A analética, então, não é pura teoria como a ciência e a dialética, mas é prática, porque sua essência constitutiva é a ética. Quando não há práxis não há analética, porque a prática -- a relação pessoa/pessoa -- é a condição para compreender o outro e exercer a plenitude da consciência crítica diante do sistema. O momento chave da leitura analética é o saber ouvir, o saber ser discípulo do outro, para poder interpretá-lo: isto é comprometer-se com sua libertação. Isso implica derrotar a totalidade ontológica divinizada, descer da oligarquia acadêmica e cultural, para expor-se a favor dos excluídos e expropriados pelo sistema. 

Ao citar Bento XVI, de forma crítica, Zizek diz que o papa condenou o secularismo sem Adonai, ocidental, no qual o dom divino da razão foi deturpado em doutrina absolutista. A conclusão do papa parece clara, pois razão e fé deveriam se juntar de uma nova maneira e descobrir seu fundamento comum no logos divino. E seria para esse grande logos, para essa amplitude da razão, que deveriam nortear o diálogo entre as culturas. 

Mas será mesmo? Em sua reflexão sobre a superação das totalidades ontológicas a partir da abertura à alteridade, Dussel afirma que tal superação se dá com a metafísica, entendida como além da totalidade ou além do fundamento. E se dá assim porque a metafísica não é somente ontológica, mas opera através da descoberta de um mais-além do mundo e como em grego aná significa mais além, e logos significa palavra, análogo toma o sentido de palavra que irrompe no mundo desde um mais além do fundamento. O método ontológico-dialético chega até o fundamento do mundo desde um futuro, porém se detém diante do outro como um rosto de mistério e liberdade, de história distinta, mas não diferente. Por isso, quando o logos irrompe enquanto interpelante, deixa de ser paradoxo, é análogo. 

Dialético é um a-través-de, analético é logos que vai além. No logos, num primeiro momento surge a palavra interpelante, mais além do mundo. Este é o ponto de apoio do método dialético, que passa da ordem antiga à ordem nova. Esse movimento de uma ordem a outra é dialético, porém é o outro como excluído e expropriado que é de fato o ponto de partida. A leitura analética surge desse outro e avança dialeticamente, há uma descontinuidade que surge da liberdade do outro. Este método tem em conta a palavra do outro como outro, implementa dialeticamente todas as mediações necessárias para responder a essa palavra, se compromete pela fé-posicionamento na palavra histórica, esperando o dia em que possa viver com o outro e pensar sua palavra.

Os antecedentes da analética foram colocados pelos pós-hegelianos e por Lévinas, não pelos filósofos modernos, nem por Heidegger, porque estes incluem tudo na concepção do ser. Mas, os verdadeiros críticos do pensamento eurocêntrico são os movimentos de libertação do terceiro mundo, porque escutam o outro, o não-europeu que foi excluído e expropriado. Para este, que está mais além, a dialética não basta, é necessário a analética, capaz não de ver, mas de ouvir a palavra crítica do outro, capaz de despertar a consciência ética e aceitar essa palavra, por respeito e fé-posicionamento ao outro, cuja interpelação não é interpretada adequadamente porque sua fundação transcende o nosso horizonte. Partimos da crítica de Lévinas, mas em Lévinas o outro é um outro abstrato. Lévinas ficou no meio do caminho, porque tem uma pedagogia, mas carece de uma política: nunca imaginou que o outro possa ser um muçulmano. Seu método se esgota no começo. Por isso, há que ir mais além de Lévinas e, por suposto, além de Hegel e Heidegger. Mais além que estes por serem ontólogos e mais além que Lévinas por este permanecer numa metafísica da passividade e numa alteridade equivocada. 

Zizek diz que não há provas – e não pode haver – de que Deus exista. Mas em vez de ser motivado por provas, o fiel, seja ele judeu, cristão ou muçulmano é motivado pelo desejo de que Adonai exista. Essa, no entanto, é a melhor prova de que Deus não existe, pois uma vez que só podemos desejar que exista aquilo que não existe, o teísmo é a melhor prova da não existência de Deus. Isso é o que Lacan afirma: os teólogos são os únicos ateístas verdadeiros. 

Mas será assim tão simples? Depois da questão judaica, Marx faz a crítica econômica do cristianismo. Essa crítica está dirigida às comunidades de fé, já que para Marx elas são a expressão da miséria. Mas também faz a crítica da religião quando analisa o fetichismo da mercadoria, porque a leitura religiosa do mundo real só vai desaparecer quando desaparecerem as condições atuais de vida. Mas por que é assim? Em que consiste essa leitura do mundo real? Porque o olhar religioso vê a existência separada das relações construídas pelos seres humanos, mas essa existência independente das relações sociais, essa existência não-real, é reflexo de outro real. Essa divisão entre a aparência que encobre a existência e esconde a realidade é o fenômeno do fetichismo. O fetichismo da mercadoria, um modo estranho de fetichismo, consiste nisso: esconde o caráter social do trabalho e se manifesta como se fosse um caráter material dos próprios produtos do trabalho. Ou seja, em relação à mercadoria, acontece o mesmo que no mundo da religião: a realidade se apresenta separada, alienada, das relações de trabalho, do essencial concreto e de seu produto, criando uma realidade aparente, como se o valor da mercadoria pertencesse por direito a sua própria estrutura independente. 

Uma espiritualidade da libertação é uma ética da vida. Há aqui uma passagem da razão estratégica, enquanto campo estratégico de forças sem sujeitos, em direção à razão libertadora, situada ao nível da microfísica do poder. Entendo esta questão a partir das barricadas de maio de 1968. Será que a razão libertadora, que se dá como síntese da ação crítico-desconstrutiva, num primeiro momento, para depois passar a ação construtiva de normas, subsistemas e sistemas completos, tem um componente que não é razão instrumental, mas razão de mediações a nível prático? Quando a razão estratégica visa chegar a um fim exitoso é preciso entender que, enquanto razão crítica, esse fim é uma mediação da própria vida humana, principalmente quando excluídos e expropriados são partícipes dessa ação.

É a partir dos excluídos e expropriados enquanto partícipes, que a razão estratégico-crítica realiza a ação transformadora. Mas quem é este sujeito das transformações e como se articula a espiritualidade com este sujeito histórico? Ora, a espiritualidade é a consciência ilustrada da práxis judaico-cristã. Agir no espírito pode vir de uma comunidade estranha ao excluído e expropriado, mas que adere ao clamor da vida não por sentimentos necessariamente religiosos, mas por superação. Por isso, a espiritualidade judaico-cristã está sempre exposta às oscilações oportunistas, por não perder o vínculo ideológico com o chão materno e seu messianismo.

Ora, a espiritualidade libertadora não é apenas uma razão estratégica que procura realizar os fins que as táticas e as circunstâncias impõem. Na verdade, não tem as mãos livres quando se trata de espiritualidade libertadora, em relação aos excluídos e expropriados. O êxito dependerá das condições de possibilidade, ou seja, será impossível separar teoria e prática. Por isso, a espiritualidade da libertação deverá saber integrar os princípios enunciados na escolha de fins, meios e métodos, que levam à práxis crítica e posicionam o outro como análogo.

O sistema-mundo nesta alta-modernidade em caos e crise, ao impossibilitar a produção e reprodução da vida caminha no sentido de aprofundar seu próprio caos e crise ao semear doenças, fome, terror e morte. As vítimas são esses bilhões de seres humanos, cujas dignidades e vidas são permanentemente destruídas. A alta-modernidade e sua globalidade levam a um assassinato em massa e ao suicídio coletivo. São os cavalos do apocalipse. É o fetichismo do capital, que se apresenta como sistema formal performático, onde dinheiro produz dinheiro. 

Cabe, por isso, à espiritualidade libertadora levantar uma ética enquanto recurso diante de uma humanidade em perigo de extinção. A esta espiritualidade cabe a corresponsabilidade solidária, que parte do critério de vida versus morte, de caminhar com dignidade na senda fronteiriça, entre os abismos da cínica irresponsabilidade ética diante de excluídos e expropriados e a paranoia fundamentalista.

Aqui estamos diante do sujeito histórico que aponta para a esperança escatológica, para a construção do Reino, que se realizará com o ir mais além da alta-modernidade, onde o ser humano excluído e expropriado não apenas do sistema, mas do direito à produção e reprodução da vida, colocará na ordem do dia a questão da revolução enquanto promessa escatológica. E a espiritualidade da libertação deve entender que tal ação e postura não nega o análogo crístico, mas que deve deixar de ser apenas hermenêutica teórica e desenvolver-se enquanto presença que fundamenta a transformação prática. E isso só pode acontecer no sentido estrito de uma ética da libertação, não fundamentalista ou salvacionista.

É por isso que a espiritualidade da libertação deve se esforçar para apresentar um princípio universal: o dever da produção e reprodução da vida de cada ser humano. Princípio este que é objetiva e subjetivamente negado pelo sistema-mundo e pela globalização.

E volto ao Goddard de Duas ou três coisas que eu sei dela, quando cita a frase do Tractatus logico-philosophicus de Wittgenstein: os limites do meu mundo são os limites da minha linguagem. Só que em seguida vemos Juliette andando por Paris e dizendo: mas o mundo sou eu. 

Linguagem e pessoalidade, a espiritualidade libertadora caminha sobre o fio da navalha: de um lado está a negação de presença e recebimento do outro, e de outro o fundamentalismo pró-integração. Por isso, estratégia e tática devem partir de critérios claros e de um princípio geral -- o dever da produção e reprodução da vida -- que possibilitem cumprir às mediações existentes. É nesse sentido que receber, e tudo o que isso implica, rompe a discussão tão moderna entre paradoxo e dialética. Não há paradoxo porque o Yeshua é análogo e o método é analético. Os fins estratégicos devem ser enquadrados dentro desses princípios gerais, a fim de que, com factibilidade ético-crítica a espiritualidade possa negar as causas da negação da vítima. Essa é uma luta desconstrutiva, que exige meios proporcionais àqueles contra os quais a luta é travada.

Mas se por um lado a espiritualidade traduz uma ação desconstrutiva, nesta alta-modernidade de caos e crise, por outro promove transformações construtivas que se projetam na esperança escatológica e Deus é nesta esperança e possibilidade de produção e reprodução da vida, e o Mashiah já não é aberração ou paradoxo, mas análogo. E é nesse sentido que Deus é, e o Mashiah é análogo, pois se projetam no eterno agora, planejado, realizado em progressão, mas nunca totalmente. 

Mais uma vez quero convidar você a fazer esta viagem, onde os textos se imbricam em reflexões a partir da filosofia, teologia, política e vida. 

Bibliografia

DECLARAÇÃO de teólogos do Terceiro Mundo, Dar-er-Salam, Tanzânia, 1976, Tese 32.
DOSSE, François, Paul Ricoeur, Un philosophe dans son siècle, Paris, Armand Colin éditeur, 2012.
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Existência & desafio
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