dimanche 18 mars 2012

Os batistas na Europa latina

“Os batistas na Europa Latina: entre tradição e emoção, quais recomposições?” 
Por FATH, Sébastien In: Jean-Pierre Bastian (org.) 
La recomposition des protestantismes en Europe Latine: entre émotion et tradition
Genebra: Labor et Fides, 2004, pp.121-138[1].

O ‘protestantismo emocional’ está na moda. Se essa qualificação parece corresponder muito bem ao pentecostalismo[2], ela poderia, no entanto ser conveniente a todas as correntes do protestantismo evangélico? O estudo do caso batista pode contribuir para esclarecer essa questão. Os batistas constituem hoje, depois do pentecostalismo, a ramificação mais numerosa do protestantismo evangélico em seu sentido amplo, compreendido como um cristianismo militante, conversionista e biblicista. Ela constitui hoje em dia a principal confissão protestante americana, mas obteve um crescimento relativamente significativo também em outros lugares, notadamente na Europa. Foi aí que ela nasceu, no começo do século XVII, na intersecção entre o anabatismo e o puritanismo separatista[3]. Tendo ficado por longo tempo confinada ao Reino Unido, ela se desenvolveu, a partir do começo do século XIX, em todos os países europeus, propagando uma ‘nova maneira cristã de ser’, em torno de três traços distintivos: uma teologia de inspiração calvinista, uma eclesiologia congregacionalista e de proclamação (autonomia da assembléia local, composta de militantes ‘engajados’) e a prática do batismo por imersão do convertido, o coração da especificidade batista. Essa implantação evangélica européia se caracteriza ao mesmo tempo por uma referência à tradição confessional e por uma certa plasticidade.

A tradição confessional batista é vigorosa, tal qual outras correntes evangélicas. A identidade batista, construída sobre quatro séculos de história[4], mostra-se, sob muitos aspectos, tão marcante, tão sedimentada quanto a identidade reformada ou a identidade luterana. Ela está apoiada em uma teologia, em confissões de fé, onde a noção de aliança, para os batistas, joga um pouco do papel da justificação pela fé junto aos luteranos: Deus estabeleceu um contrato com as suas criaturas, com base em uma ação universal e cabe à Igreja zelar pela sua manutenção para a maior glória do Criador (Soli Deo Gloria), a síntese entre ortodoxia e ortopraxia.

Ao mesmo tempo, o congregacionalismo exacerbado dos batistas sempre lhes conferiu uma considerável plasticidade que os leva, hoje em dia, a acolher as influências as mais diversas, a começar pelo impacto do pentecostalismo e do carismatismo[5], fundados numa espiritualidade da eficácia em que a emoção prevalece sobre a doutrina. Essa influência, que extravasa o campo batista para atingir o cristianismo em sua globalidade, se manifesta não somente na periferia, mas no interior mesmo daquilo que é o fundamento batista. Resulta daí uma tensão, uma negociação entre um pólo que, esquematicamente, pode ser qualificado de confessional e pietista/ortodoxo (principalmente do grupo vinculado a uma certa ‘tradição’) e um pólo interconfessional e mais emocional. A Europa Latina e, notadamente a França, constitui um bom terreno para o estudo dessa recomposição identitária.

Após uma breve abordagem da situação dos batistas nos países latinos, o que faremos no item 1, partiremos para analisar de modo geral a influência carismática junto aos batistas (item 2) e finalmente focaremos a análise mais especificamente na França, onde os batistas parecem estar divididos entre resistência e aculturação (item 3).

1. Situação dos batistas na Europa Latina

Os batistas europeus constituem uma pequena minoria protestante e ainda menor nos países latinos. No leste europeu os contingentes batistas são, por vezes, substanciais, e suas redes muito ativas: é o caso particularmente da Romênia, da Ucrânia e da Rússia; no primeiro país, os batistas ligados à Baptist World Alliance totalizam mais de 110 000 membros batizados por imersão[6], ou seja, um grupo de mais de 300 000 pessoas[7], aos quais se somam os batistas separatistas (não contabilizados nessas estatísticas) e numerosos batistas ‘viajantes’, sobre os quais não há nenhuma estatística consistente até o momento[8]. Quanto à Ucrânia os batistas, instalados nesse país desde 1859, totalizam mais de 160 000 membros batizados por imersão, ou seja, mais de 450 000 fiéis. Eles contam com dois seminários, em Kiev e Odessa, e numerosas escolas bíblicas[9]. Enfim, os batistas constituem na Rússia a segunda confissão cristã por ordem de importância, depois dos ortodoxos e antes dos católicos, contando com 100 000 membros batizados por imersão e uma implantação antiga de cerca de 150 anos[10].

1.1 Uma situação ultra-minoritária

Por outro lado, o norte europeu possui um presença batista relativamente significativa, sobretudo na Suécia (70 000 fiéis), enquanto que na Alemanha e no Reino Unido, terra nativa dos batistas, estes somam centenas de milhares. Esse não é o caso da Europa latina. Os batistas espanhóis, franceses, italianos, suíssos, belgas, portugueses são ultra-minoritários. Os seus efetivos são raquíticos e suas redes não possuem grande influência. Para fornecer um breve panorama estatístico, baseado na última obra de síntese publicada sobre os batistas no mundo, contam-se 40 000 batistas na França e na Espanha (entre 12000 e 14000 membros batizados por imersão), cerca de 20000 na Itália, tal qual em Portugal, um pouco mais de 3000 na Bélgica, menos de 2000 na Suíça romanda[11]. Por trás dessas cifras esconde-se uma realidade muito contrastante. Na Espanha, na Itália e em Portugal, os batistas jogam um papel de relevância no seio do protestantismo, na medida em que este último é ele mesmo extremamente minoritário. Não é tanto esse o caso da Bélgica e da França. Na França os batistas aparecem nos últimos lugares em relação ao conjunto lutero-reformado, mesmo se algumas personalidades, como André Thobois, durante muito tempo presidente da FPF[12], ou Louis Scweitzer, por algum tempo secretário geral da mesma FPF, souberam se impor. Enfim, na Suíça romanda pode-se considerar como muito fraca a participação dos batistas na vida protestante local, a qual é dominada pela Igreja reformada.

1.2. Redes ativas

Esses dados revelam que, no seio do cristianismo europeu do Sul, os batistas estão em número desprezível, à semelhança, aliás, do protestantismo como um todo. Em contrapartida, se nos restringimos ao protestantismo evangélico nos damos conta de que os batistas ocupam, freqüentemente, uma posição chave. A despeito de seu caráter congregacional, seus organismos supra-locais, de tipo denominacional, se mostram eficazes para estabelecer uma rede transnacional, segundo essa lógica “matizada entre dimensão internacional e dimensão local” evocada por Christopher Sinclair[13] na apresentação sugestiva que ele propõe da construção histórica da identidade evangélica: os batistas da Europa latina realizaram assim, precocemente, encontros tais como a Conferência Regional Batista dos  Países Latinos, que ocorreu em Paris, de 11 a 14 de julho de 1937. Representantes belgas (os pastores O. Valet e A. Wémers), espanhóis (o catalão A. Celma, de Barcelona), português (Manuel Cerqueira), italiano (G.B.Scrajber), encontraram-se com tantos outros franceses, e também com muitos batistas anglo-saxãos de renome que estavam presentes[14], dentre os quais um pastor um pastor Pope, “acompanhado de muitos batistas australianos”, detalha o cronista francês que acompanhou o evento[15]. Um alemão, o Dr. Johannes Mundhenk estava também presente. Sem chegar ao ponto de assumestava tambanos"ptist Foreign Mission Societys para estabelecer uma rede transancional Suitzer, durante certom se impor.ecret (t na medida em que este ttante. Na Espanhantegraçeparatistas (ndade siportanteir a afirmação um tanto otimista do Dr. Lewis, que se regozijava de que entre “esses batistas de diversos países não há diferenças senão de fisionomia e idioma”[16], essa Conferência, que tratou de temas da juventude, de  evangelismo, da obra das mulheres, de missões, é um exemplo dessa ação em rede dos batistas dos países latinos, que pode ser observada também através de uma certa circulação muito precoce de textos ‘denominacionais’ de uma país para o outro[17]. A atividade das redes batistas prosseguiu desde então, encontrando na Fédération Baptiste Européenne[18], criada em 1949, um lugar privilegiado[19].

1.3. Um papel de interface

A eficácia das redes denominacionais batistas explica em parte porque muitos de seus líderes acham-se na direção de organizações evangélicas interconfessionais. Os batistas acham-se freqüentemente à cabeça de redes evangélicas, na Europa latina, assim como em outros lugares.Na França, durante quase quarenta anos, dois batistas, Jacques Blocher e André Thobois, é que são, e de longe, os recordistas na presidência de obras evangélicas, quer seja da Aliança Evangélica, dos Grupos Bíblicos Universitários, ou da Associação das Igrejas de Proclamadores.

Ademais, os batistas parecem jogar, na Europa latina como em outras partes, um papel de interface essencial entre o universo pentecostal carismático e o universo lútero-reformado. Pela sua teologia, pela sua herança confessional, os batistas estão, com efeito, ancorados em uma certa tradição protestante. Ao mesmo tempo, pela sua flexibilidade congregacionalista, eles se abriram mais rapidamente que as outras confissões à influência de um protestantismo emocional de tipo carismático-pentecostal[20]. É por isso que eles constituem, sob muitos aspectos, uma ‘denominação teste’ no que se refere à tensão entre uma certa tradição ‘pietista ortodoxa’ e uma influência ‘emocional-experiencial’[21]. Se eles pendem em direção ao pólo carismático, é toda a vertente evangélica que tende então a balançar para esse lado. Em contrapartida, se eles se mantêm sobretudo no pólo pietista ortodoxo, a influência ‘emocional-experiencial’ se manterá relativamente confinada, e não somente nas fileiras batistas. Posto, de forma breve, o quadro da paisagem batista na Europa latina, é preciso agora examinar mais de perto os elementos dessa tensão ente pólo pietista/ortodoxo e emocional-experiencial.

2. Os termos da influência carismática no meio batista

Não é possível compreender a influência carismática no meio batista exatamente da mesma maneira que no meio católico ou no reformado. Com efeito, o tipo de organização religiosa dos batistas é específico e isso se reflete sobre a maneira pela qual se dá a tensão entre pólo emocional/experiencial e pólo pietista ortodoxo. Esse tipo de socialização religiosa batista não se enquadra no dualismo clássico da ‘igreja’ e da ‘seita’. Após um exame cuidadoso, os batistas não podem ser colocados nem numa nem noutra categoria. Da igreja, os batistas possuem um relacionamento articulado, denso com o meio circundante, assim como uma base doutrinária muito firme, mas ele não possuem traços de ‘grupo de massa’ nem um forte acento institucional supra-local. Da seita, os batistas adotam a lógica do grupo militante, célula de ‘convertidos’ voltados ao proselitismo, mas nem por isso praticam a retirada do mundo (ou a sua crítica sistemática).

2.1. Um tipo ‘associativo-ideológico’

De fato, o tipo que melhor corresponde às igrejas batistas é o tipo ‘denominacional’, próximo daquele da ‘igreja livre’ descrito no começo do século XX por Ernst Troeltsch[22]. O recurso a um modelo de análise elaborado por Jean Paul Willaime é oportuno para esclarecer, sob um outro ângulo, essa especificidade organizacional dos batistas[23]. Nem modelo ‘institucional-ideológico’ (do tipo igreja reformada), nem modelo ‘institucional-ritual’ (do tipo católico), as igrejas batistas não correspondem também ao modelo ‘associativo-carismático’(do tipo ‘seita de guru’). Verifica-se que o seu modelo é o ‘associativo-ideológico’, categoria que nos parece útil forjar, completando a tipologia de Jean-Paul Willaime, para dar conta da especificidade social dos batistas[24]. A igreja vivida pelos batistas é ‘associativa’ e não ‘institucional’(nestas o papel mais importante cabe às estruturas supra-locais). Sob outro aspecto ela deve sua coerência não ao ‘carisma’ pessoal do pastor, eventual detentor de profecias particulares ou de tal ou tal poder de cura indispensável à coesão de sua assembléia, mas sobretudo à ‘ideológica’, isto é,  à construção social de uma linha  doutrinária precisa, normativa, defendida por um certo número de mediações[25].

2.2 O primado da validação doutrinária

Essa especificidade a uma só vez associativa e ideológica não é facilmente pensável no contexto da Europa latina. Com efeito, a dimensão ideológica historicamente foi sustentada, no Velho Continente, por igrejas-instituições. A associação autônoma evoca facilmente a seita carismática, à margem de regulação institucional e que se supõe poder assegurar uma coerência ideológica apenas a longo prazo. Forçoso é, no entanto, constatar que no meio batista é o misto de associativo-ideológico que jogou, por várias vezes ao longo dos séculos, uma identidade específica sempre bem perceptível no campo teológico e eclesiológico protestante. O elemento chave nesse dispositivo foi a manutenção da doutrina e do biblicismo. As confissões de fé, as ‘alianças’ batistas, a imprensa denominacional, as convenções e encontros periódicos, os centros de formação para pastores, todos contribuíram, em graus variados, para manter o elemento ideológico como chave principal do sistema, relegando o elemento carismático a um papel subalterno. No meio batista, jamais a legitimidade do pastor deve-se, em princípio, em primeiro lugar ao seu carisma pessoal, suas atitudes de profeta-curandeiro, por exemplo. Ela repousa sobretudo sobre o seu papel de intérprete autorizado das Escrituras[26]. “Sejam convicbor et Fidessn du clerc Jean-Paul WILLAIME, Profession:padade do pastor deve-se, em princ de tal ou tal poder de cura indispenstos das verdades bíblicas, sejam homens do Livro!” aconselhava Ruben Saillens aos jovens pregadores[27]. Em última instância é a referência a uma certa leitura da Bíblia que prima e que distingue[28].

2.3. Um freio à validação experiencial/emocional?

Essa leitura, freqüentemente de inspiração calvinista, valoriza geralmente uma certa ‘ortodoxia’ protestante, a conversão e a experiência cotidiana da fé. Na visão batista majoritária essa ‘experiência’ não é compreendida sob a forma prioritária do milagre e dos sinais extraordinários do Espírito: ela é compreendida basicamente, dentro da tradição pietista, como uma impregnação crescente das verdades bíblicas apreendidas cotidianamente. A leitura cotidiana da Bíblia se coloca, sob esse ponto de vista, como o lugar privilegiado, e indispensável, de uma experiência que permanece dentro do ‘quadro’ ideológico pretendido[29]. É somente a Bíblia que valida, que faz a norma. A experiência, ou o carisma, não jogam nenhum papel direto nesse assunto. Não é de surpreender, portanto, que todo pastor batista esteja ele próprio submisso a essa regulação. Os membros podem muito bem contestá-lo se ele parece se ‘desviar’ da compreensão bíblica coletivamente escolhida. É por essa medida, igualmente, que a qualidade de membro pode ser obtida (na condição de uma certa ortopraxia complementar) ou recusada.

Essa dimensão associativa-ideológica dos batistas constitui, a despeito das aparências, um meio relativamente difícil para a penetração do carismatismo-pentecostal, ao menos se definimos este último por uma certa prioridade atribuída ao carisma e à experiência[30].  doxia, longe disso.laracterísiers. os aspectos, como uma 'tal carismartesMesmo se a sua estrutura associativa flexível, o seu conversionismo, seu individualismo e o seu militantismo parecem estar, a priori, em afinidade com o que se conhece do movimento carismático-pentecostal, o acento batista sobre a regulação ideológica parece se constituir em obstáculo a uma visão ‘de todo carismática’. Mas é possível verificar empiricamente essa análise tão geral e teórica? É isso que convém examinar no próximo item.
Igreja Batista em Nice

3. Entre resistência e aculturação: o exemplo francês

A influência carismática no meio batista, um dentre outros campos nos quais se observa um movimento de “‘pentecostalização’ do cristianismo”[31] não é de fácil análise. As monografias consagradas à história e à sociologia dos batistas europeus são ainda muito raras, e os dados publicados pelas uniões batistas, notadamente através de sites na Internet, não distinguem os carismáticos como tal, se bem que eles parecem ser quase invisíveis. Deve-se por isso renunciar a qualquer apreciação empírica da influência carismática? Não, pois há um campo que é exceção no seio da historiografia quase virgem dos batistas na Europa latina. Trata-se dos batistas franceses. Divididos em três facções principais[32] ele foi abordado, ao mesmo tempo, sob o ângulo da síntese sócio-histórica em seu conjunto[33] e como um campo de penetração dentre outros do movimento carismático. A tese defendida por Evert Veldhuizen sobre o carismatismo protestante na França é, nesse sentido, indispensável[34]. Ela inclui numerosas páginas sobre os batistas, fornecendo elementos valiosos. Revisada e complementada pontualmente por uma perspectiva histórica e um exame da imprensa batista francesa contemporânea, ela permite uma avaliação precisa das recomposições internas induzidas pela influência carismática/pentecostal no meio batista. Quanto ao eixo da tensão entre o pólo pietista/ortodoxo e o pólo emocional/experiencial, pode-se observar três cenários.

3.1. Os batistas, ‘concha vazia’ para o carismatismo evangélico

O primeiro cenário é o da ‘concha vazia’. Nessa perspectiva os batistas, enquanto grupo de identidade protestante específica, não é mais do que uma marca, um envelope, uma etiqueta. Mas o conteúdo, este não tem nada de especificamente batista: a identidade carismática/pentecostal se impôs em todos os sentidos, inclusive na concepção de igreja e dos ministérios. Como podemos encontrar, principalmente nos pentecostalismos lusofones, estudados por Jean-Pierre Bastian, o discurso não é regulado pelos teólogos, nem pelas ‘confissões de fé’, o que conduz à multiplicação dos ‘empreendedores independentes’ do carisma, e ao deslocamento dos fiéis de grupo em grupo em busca de maior eficácia na solução dos problemas que os preocupam, concernentes ao amor, ao dinheiro e à saúde, três invariáveis que tendencialmente subjazem a toda busca religiosa[35]. Esse cenário da ‘concha vazia’ é, na verdade, muito marginal no campo batista francês. Ele compreende menos de 10% dos protestantes que possuem a etiqueta de batistas. Contudo é possível encontrá-lo também, muito marginalmente, no seio da Fédération Baptiste, principal união das igrejas batistas na França (ligada à FPF). Ele pode ser encontrado também, e de forma muito mais evidente, no interior da Fédération des Eglises et Communautés Baptistes Charismatiques (FECBC), fundada por Charles Schinkel[36]. Este era, de início, pastor da Église Réformée de France. Mas na primavera de 1977 ele é deposto de seu cargo em Nuneray (norte da Normandia) pelo conselho regional da ERF, principalmente devido às suas fortes convicções carismáticas, mas também pela sua recusa em praticar pedobatismo[37]. O interessado se considera, então, “vítima de suas convicções evangélicas”, estimando notadamente que seus batismos não são “rebatismos”[38].  Na realidade, havia muitos outros motivos para a sua exclusão, em particular a recusa de Schinkel em seguir um curso de licenciatura em teologia: sua opção decididamente carismática o levaria, com efeito, a considerar que a licenciatura “não valoriza em nada o seu ministério pastoral”; é possível observar aqui a clivagem típica entre o pastor como doutor (legitimidade ideológica) e o pastor como profeta (legitimidade carismática). Em seguida à sua exclusão da ERF, Schinkel não tarda em mobilizar uma pequena rede carismática que havia se consolidado em torno dele e de sua assembléia, a Communauté chétienne le Buisson Ardent (Comunidade cristã a Sarça Ardente). A partir de pastorais carismáticas organizadas em Louvetot, esse processo desemboca na criação, em 1986, de uma “Fédération des Eglises et Communautés Baptistes Charismatiques”. Sua sede situa-se em Louvetot, na comuna de Caudebec-en-Caux, de onde é difundida uma revista trimestral[39]. Em 1988, a FECBC reunia 13 igrejas e cerca de 1100 membros[40]. Esses números evoluíram pouco na entrada do século XXI.

Com uma estrutura muito leve[41], o essencial da identidade da FECBC se funda não no batismo, mesmo se o termo foi escolhido por ser julgado cômodo, mas no carismatismo, com uma larga margem de iniciativa deixada aos diferentes pastores[42]. Com exceção da prática do batismo por imersão do convertido e de uma orientação congregacionalista, a concepção dos ministérios, dos dons espirituais, e o estatuto da doutrina diferem consideravelmente da corrente batista histórica implantada na França. As referências, os modelos são extraídos menos da história ou da atualidade batista principal que do universo globalizado do carismatismo[43]. Isso explica, como destaca Evert Veldhuizen, porque a “adoção do adjetivo ‘batista’ incomoda a FEEBF”[44]. O ‘batista’ aqui não está muito distante de uma concha vazia que veste um conteúdo evangélico carismático próximo do que se poderia chamar de “comunidades emocionais”, muito mais reguladas pelos carismas do que pela doutrina ou pela ortopraxia.

3.2. O campo batista[45], lugar de aculturação do carismatismo/pentecostalismo

Um cenário muito mais freqüente que o da concha vazia é o do campo batista servindo de campo de aculturação ao carismatismo/pentecostalismo. Esse fenômeno é, certamente, recíproco: os elementos de início radicalmente pentecostalizantes são pouco a pouco aculturados ao tipo de regulação própria dos batistas, enquanto que estes integram (ou levam em conta) diversos elementos da cultura carismática. Esse processo de aculturação diz respeito a cerca de 40% das igrejas batistas francesas, mas em graus muito variados. O principal campo de aculturação é a Fédération Baptiste, que tem sido confrontada, já de há muito, por uma orientação de tipo pentecostal. No século XIX, antes da criação da Federação, a oferta religiosa de um grupo tido como próximo dos pentecostais fez assim muito sucesso entre as primeiras fileiras batistas do norte e da bacia ‘stéphanois’(vale do Loire), nos anos 1830 a 1850. O reavivamento do país de Galles, em 1905-1906, seduziu também muitas igrejas do norte pela sua ênfase nos “dons espirituais”[46]. Em seguida os contatos com o pentecostalismo a partir do começo dos anos 1930, conduziram a um pequeno fenômeno revivalista no norte (Denain) e na Picardia, de caráter claramente pentecostalizante do fim dos anos 1940 ao fim dos anos 1960. Jules Thobois[47], que havia tido a experiência do ‘batismo do Espírito Santo’ em 1947 é, então, a sua figura de proa. Constata-se, portanto, que mesmo antes da irrupção da ‘onda’ carismática propriamente dita, uma orientação emocional, terapêutica e profética operava ativamente sobre uma parte das igrejas da FEEBF.

Em vista dessa herança, não é surpreendente se hoje uma maioria das igrejas da Fédération Baptiste estão engajadas num processo de aculturação do carismatismo/pentecostalismo. Essa aculturação encontra diversos níveis. Há igrejas batistas de um carismatismo muito militante e exacerbado, como a Communauté Chrétienne du Point du Jour, em Paris[48], igrejas batistas moderadamente carismáticas, como as de Soissons e Saint-Quentin, na Picardia, que amenizaram ao longo dos anos traços como o ‘falar em línguas’[49]. É possível encontrar também igrejas não carismáticas, mas que acolhem de bom grado membros dessa tendência em seu meio, adotando uma liturgia de estilo mais ou menos ‘carismática’. Em todos esses cenários é impressionante constatar o esforço de adequação operado, em particular pelas estruturas da FEEBF, a fim de aculturar o carismatismo no seio do circuito identitário batista. Face ao ímpeto dos “batistas pentecostalizantes”[50] ao final dos anos 1940, em 1952 a FEEBF publica uma “resolução sobre a orientação das nossas igrejas” que preconizava, segundo E. Veldhuizen, “uma posição intermediária, aceitável para os batistas pentecostalizantes e para os outros”.

Esse documento, que se constitui em praxe na FEEBF[51],. Esse texto permite evitar uma divisão no seio da FEEBF sem contudo resolver todas as dificuldades. marca a diferença entre as experiências vividas e a confissão formulada. Ele chama a atenção para a autonomia da igreja local e destaca o fato de que o Santo Espírito opera a conversão, a santificação, a comunhão cristã, a perseverança e a capacitação dos crentes. A manifestação dos dons não é considerada obrigatória, ao contrário da orientação adotada pelos pentecostais. Quanto à cura, ela é um testemunho e não deve ser um instrumento de ‘propaganda’. Apelando para a ‘comunhão fraterna’ esse texto visava, evidentemente, acolher a orientação emocional/profética recusando, no entanto, que a experiência, o ‘dom espiritual’, a cura, pudessem substituir a normatividade da Bíblia. Pode-se perceber portanto que, aqui, os batistas permanecem mais próximos do ‘modelo associativo ideológico’ que do modelo ‘associativo carismático’Enquanto alguns pastores torciam o nariz ao que consideravam ser indiferença dos batistas frente ao carisma, outros fechavam a porta, sem deixar qualquer brecha, à ‘nova onda’ pentecostalizante. Ao final das contas, contudo, a linha de síntese levou a melhor e, até o início do século XXI, a FEEBF permaneceu um lugar de interface e de aculturação privilegiado entre um pólo pietista/ortodoxo e um pólo experiencial/emocional. Para manter essa linha, esforços multidirecionais foram empreendidos. Podemos ter uma idéia ao examinar as publicações da FEEBF, que trata regularmente da questão dos carismas reenquadrando-os numa perspectiva evangélica e batista[52]. A escola de pastores de Massy, cujo rol não para de crescer, cumpre igualmente uma função essencial de submeter todos os pastores, carismáticos ou não, às necessidades de uma formação teórica, teológica[53]. Evidentemente, mesmo que não o diga, A FEEBF privilegia a legitimidade do pastor doutor em detrimento da do pastor profeta, na linha de sua orientação ‘associativa ideológica’. Todo pastor carismático (ou não) da FEEBF está hoje obrigado a passar sob as forças caudinas dessa formação, considerada como uma barreira necessária[54].

O resultado dessa aculturação pode ser observado em diversos níveis. Primeiramente constata-se que a tendência à retirada do mundo observada entre os batistas pentecostalizantes nos anos 1950-1960[55] foi progressivamente atenuada. Após ter rompido brutalmente com o batismo social de um Robert Farelly, a maior parte dos batistas pentecostalizantes reintegraram pouco a pouco a dimensão do engajamento social. O exemplo dos “carismáticos sociais”[56] da comunidade cristã de Lille, abordado por Evert Veldhuizen, é significativo. Fundada em 1975 pelo jovem pastor batista David Berly, essa comunidade inaugurou, desde 1980, duas fraternidades. Abrindo-se à dimensão inter-religiosa, ela criou um ponto de encontro para os sem teto partir de 1985, tornando-se uma “voz do evangelismo social”[57].

Em segundo lugar observa-se que os carismáticos da FEEBF manifestam, na sua maioria, mais interesse pela doutrina, pela teologia, do que os seus colegas carismáticos de outros horizontes. As confissões de fé dos batistas carismáticos da FEEBF têm, certamente, menor importância normativa do que no interior de outras igrejas não carismáticas (o que seria necessário verificar caso a caso), mas elas existem e integram todos os elementos doutrinários próprios aos batistas[58].

Enfim, as estruturas denominacionais colocadas em ação progressivamente pela FEEBF constituíram, de fato, um importante fator de controle da autoridade carismática dentro da igreja (no sentido weberiano do termo). Pela obrigação de formação, pela participação nas pastorais regionais, nacionais, os pastores carismáticos da FEEBF não possuem uma liberdade de ação tal qual encontram em outros meios. Esse elemento de aculturação jogou, por vezes, como um fator de atração para carismáticos cansados de uma aventura solitária. Assim, após o desaparecimento dos fundadores, numerosas igrejas carismáticas bateram à porta da FEEBF desde os anos 1980, desejosas de um enquadramento confessional que lhes fizera falta até então[59].  O caso de Boulogne-sur-Mer descrito por Evert Veldhuizen é um bom exemplo desse processo de integração: como resultado de um trabalho missionário batista realizado pela Mission Intérieure Baptiste (MIB) a partir de 1984, uma pequena “comunidade cristã” foi fundada nesse local. Uma igreja carismática mais radical, e mais isolada, já estava instalada naquela localidade: a igreja cristã carismática de Boulogne-sur-Mer, então ligada à FECBC de Charles Schinkel. Mas, logo após a aposentadoria do pastor-fundador, essa igreja não tarda em se fundir com a igreja carismática recentemente criada pela FEEBF. O acompanhamento por parte da comunidade cristã de Lille (FEEBF) de 1977 a 1984, a intervenção de Daniel Lhermenault, presidente regional da FEEBF, e o impulso dado por um leigo, Maurice Devos[60], a conduziram a essa fusão para a qual as estruturas denominacionais da Fédération Baptiste jogaram um papel mobilizador, e atrativo. Essa aculturação não deixa de se realizar com dificuldades. Existem tensões no interior da FEEBF quanto a isso. De acordo com uma pesquisa de 1988 havia então 2828 carismáticos na FEEBF[61], ou seja, cerca da metade dos membros professos da Fédération Baptiste. Essa proporção aumentou ligeiramente desde então. A tendência carismática seria daí em diante (em 2002) ligeiramente majoritária no seio da Fédération Baptiste, mesmo se o quadro denominacional permanece controlado, na maioria, por não carismáticos, como o comprova este fato significativo: até o presente não houve nenhum presidente da FEEBF que pertencesse abertamente à tendência carismática!

Resta, portanto, que as tensões que podemos intuir decorrem mais de necessidades de aculturação recíproca do que de uma maciça crise de identidade. Desde o texto de síntese de 1952, a coesão interna da FEEBF é, até o momento, inegável. Se para o futuro não se pode eliminar a possibilidade de uma ruptura do equilíbrio atual, o que se verifica na entrada do século XXI é uma recomposição por aculturação mais do que por expulsão ou invasão.

3.3. O campo batista, lugar de resistência ao carismatismo

Enfim, um último cenário ocorre de forma maciça no campo batista: o da resistência à influência carismática/pentecostal. Cerca de 50% dos batistas franceses, dos quais uma minoria de igrejas da FEEBF, a quase totalidade das igrejas da Association Baptiste (AEEBF) e de igrejas batistas independentes, se situam hoje numa linha de resistência em relação à influência emocional/experiencial. É preciso destacar que, à semelhança do restante do protestantismo, essa linha de rejeição é atualmente muito mais matizada do que ela pôde ser nos anos 1930 a 1960, nos quais o pentecostalismo era facilmente apresentado como sendo influenciado por Satanás[62]. Mas ela continua ainda claramente presente. Ela se traduz, no plano teológico, por uma recusa de atualização do “falar em línguas”, por uma grande desconfiança frente à taumaturgia, por um estilo litúrgico e cultual geralmente distanciados de manifestações familiares aos carismáticos, e por uma ênfase muito forte sobre a regulação doutrinária, numa linha semelhante àquela do fundamentalismo histórico, ao qual, aliás, muitas dessas igrejas batistas se reportam. A experiência espiritual é aqui estritamente canalizada, e subordinada à validação pela Bíblia e pela leitura autorizada que esses batistas fazem dela.

Mantendo suas reservas em relação ao carismatismo, a imprensa batista da Associação apresenta atualmente diversos sinais de uma nova, e relativa, benevolência. Mas nenhuma igreja da AEEBF pode, hoje, ser descrita como carismática, ou integrada de perto ou de longe às redes especificamente carismáticas que atuam no país. Em contrapartida, os batistas independentes, surgidos na França principalmente após 1945, permanecem muito hostis, e não é possível observar, junto a estes, essa relativa flexibilização da AEEBF. Basta observar, por exemplo, os sites da Internet das igrejas batistas independentes. Não é raro ver explicitada aí uma maciça rejeição ao carismatismo. É o caso da igreja batista do Centro, em Paris. Fundada pelo missionário americano Arthur Sommerville e atualmente dirigida pelo pastor francês Emannuel Bozzi, ela destaca, em seu site que ela “se posiciona contra a apostasia, o movimento carismático e o movimento ecumênico”, a Eglise biblique baptiste de Montpellier destaca que “nosso estilo de adoração visa honrar a Cristo, e nós nos esquivamos do novo estilo de adoração que invadiu tantas igrejas em nossa região. Nós acolhemos todos aqueles que desejem ouvir um sermão expositivo”. Em termos menos duros que aqueles da igreja batista do centro, verifica-se expressa aqui uma rejeição ao estilo carismático, em proveito de uma liturgia que canaliza de modo muito estrito a emoção e que valoriza a transmissão da mensagem bíblica[63]. Observa-se aqui uma tradição evangélica, da qual o fundamentalismo (mas não somente este) faz parte, que visa “colocar arreios” (harnessing) sobre a tendência ao êxtase e à emoção desenfreada que pôde marcar os fenômenos revivalistas, em nome de uma “domesticação” da experiência espiritual[64].

Conclusão

Finalizando a análise das recomposições internas induzidas pela influência carismática/pentecostal, podemos considerar, à luz do caso batista francês, que o protestantismo evangélico parece longe de estar submerso por aquilo que é qualificado, por vezes um tanto apressadamente, de “onda carismática”[65]. Os batistas que permanecem herméticos ao carismatismo são bem mais numerosos (40%) do que os carismáticos que se utilizam da denominação batista como uma ‘concha vazia’. Quanto aos batistas que se aculturam em graus muito variados à influência carismática (40%), apenas a metade deles a adotaram abertamente, enquanto que os outros estão mais propensos às ações de aculturação do carismatismo a um protestantismo evangélico de tipo pietista/ortodoxo[66]. No total, pode-se estimar hoje em menos de um terço a proporção de igrejas batistas francesas de tipo claramente carismática, as demais permanecendo ou hostis ou em negociação com esse pólo. Em outras palavras: se o campo batista se mostra parcialmente ‘poroso’ à influência carismática ele está bem longe de se submeter em sua totalidade. Ao pólo profético/experiencial replica um pólo pietista/ortodoxo que nos lembra, a partir do campo batista, que as recomposições identitárias do protestantismo evangélico não saberiam se deixar reduzir a uma capa para o carisma e a emoção: se o carismatismo transforma as culturas eclesiais, estas últimas também o canalizam (ou o rejeitam).


[1] Traduzido por Naira Carla Di Giuseppe Pinheiro dos Santos para uso no contexto dos Colóquios de Ciências Sociais e Religião, do programa de doutorado em Ciências da Religião da UMESP.
[2] Sobre esse assunto ver o artigo de Jean-Paul Willaime, “Le pentecôtisme:contours et paradoxes d’un protestantisme émotionnel” In: Archives des Sciences Sociales des RêligionsSociales des adoxes d'lostalismoides, 2004, pp.121-138.eligions, jan-mar 1999:5-28.
[3] Sobre o surgimento dos batistas em torno da figura de John Smyth, ver John E. STAUF-FACHER, La vie et l’oeuvre de John Smyth, 1570?-1612, tese de doutorado, Université des Sciences Humaines de Strasbourg, 1987.
[4] A única ‘soma’ geral atualmente disponível sobre a história batista global é a de H-Leon MAC BETH, The Baptist heritage, Four Centuries of Baptist Witness, Nashville, Broadman Press, 1987.
[5] As diferenças entre meios carismáticos e pentecostais não são sempre claramente percebidas. Podemos enumerar seis: o carismatismo é bem mais transconfessional que o pentecostalismo, ele insiste menos na ascese intramundana e mais sobre o crescimento pessoal. Seu recrutamento socioprofissional se dá em média junto a classes sociais mais elevadas do que aquelas recrutadas pelo pentecostalismo. Além disso, o carismatismo não faz da glossolalia uma condição indispensável para a obtenção do ‘batismo pelo Espírito’. Ele gera também práticas cultuais mais variadas e mais inovadoras do que o pentecostalismo ( no que se refere à música, à participação das mulheres). Enfim, o pentecostalismo (tipo ADD) defende uma concepção de carismas muito biblicamente fundamentada (com base em 1 Coríntios 12: 29-30). Em contrapartida certas correntes carismáticas (em particular as das últimas ‘ondas’) se abrem com mais facilidade a novos carismas, desde que a Bíblia não pareça  interditá-los explicitamente.
[6] Cf. Albert W. Wardin (org.), Baptists Around the World, Nashville, Broadman & Holman Publisher, 1995:264. A Union Baptiste de Roumanie, criada em 1919 contava, em 1995, com 100 000 membros, e a Union des Eglises Baptistes Hongroises de Roumanie, com um pouco mais de 9000. As estatísticas fornecidas em 2002 pelo site internet da Baptist World Alliance (http://bwanet.org/fellowship/member-bodies/member-stats.htm#EUROPE) são similares.
[7] Comumente multiplica-se por três o número de membros batizados por imersão (os únicos ‘batistas’ contabilizados enquanto tal pela igrejas dessa orientação) para ter uma idéia do conjunto de fiéis (que contempla crianças, adolescentes, praticantes não batizados por imersão). 
[8] Acerca da implantação batista na Romênia, há que se destacar um DEA recente em francês, realizado em 1999 por Ovidiou GARDOS em Paris, na Ecole Pratique des Hautes Etudes, seção de Ciências da Religião (dir. Jean-Paul Willaime).
[9] A.W. Wardin (org.), Baptists Around the World, op.cit.:232.
[10] A.W. Wardin, op.cit.:228.
[11] Ibid.:271 a 285.Essas estatísticas devem ser tomadas por ordem de grandeza. Elas subestimam, com efeito, os batistas separatistas, de tipo fundamentalista, que rejeitam qualquer integração a estruturas ecumênicas, mesmo dentro de sua própria confissão- eles não pertencem, por exemplo, à Aliança Batista Mundial.
[12] N.da tradutora: FPF é a sigla para Federação Protestante da França.
[13] Christopher SINCLAIR, “Introduction:définition et historique”, In: C. SINCLAIR (org.), Actualité des protestantismes évangéliques, Strasbourg, Presses Universitaires de Strasbourg, 2002:24.
[14] O americano Dr. Truett, presidente da Aliança Batista Mundial, o britânico Dr. Rushbrooke, secretário da mesma Aliança, o Dr. Everett Gill, representante dos batistas americanos do sul dos Estados Unidos, e o Dr. Lewis, representatne na Europa da American Baptist Foreign Mission Society, antiga provedora de fundos da FEEBF (Federação batista).
[15] Cf. o relatório da Conferência Regional Batista dos  Países Latinos, In: Le Témoin de la Vérité, jul-ago 1937, nº 7:110.
[16] Dr. Lewis, citado no relatório da Conferência Regional, Le Témoin de la Vérité, op. cit.:118.
[17] Muitos textos escritos por batistas franceses foram, por exemplo, traduzidos para uso de outros batistas latinos. Exemplo: Jean-Baptiste CRETIN, Coleccion de textes queestablecen las doctrinas critianas y condenam las tradiciones de la Iglesia Romana. Traducico del Frances de D. Juan Bautista Cretin, pastor em Lyon, Madrid, Imprenta de Jose Cruzado, 1871. Ruben SAILLENS: Consejos Para um nuevo miembro de la Iglesia (trad. Por AMDL Deberes Cristianos pr. Cantaclaro), El Paso, Texas, Reimpresos por “La Vos Bautista”. Aimé CADOT: Lettera amichevole ai membri del clero catholico (s.d., por volta de 1890, publicado na Itália).
[18] Uma Mission Baptiste Européenne foi criada, um pouco mais tarde, em 1954, em Zurique. Ela teve o francês Henri Vincent como primeiro presidente de seu comitê executivo (até 1967).
[19] Por ocasião do 50 anos da Fédération Baptiste Européenne, uma obra foi publicada: Bernard GREEN, Crossing the Boundaries: a History of the European Baptist Federation, Oxford, Baptist Historical Society, 1999.
[20] “O congregacionalismo dos batistas dá uma liberdade quase total às paróquias para adotar um ‘estilo carismático’ sem o risco de interferência de organismos hierárquicos” Evert VELDHUIZEN, Le renouveau charismatic protestant en France(1968-1988), Lille, ANRT, tese de doutorado em história das religiões, Université de Paris IV Sorbonne, 1995:402-403.
[21] Os pólos dessa tensão funcionam aqui como tipos ideais. Em outras palavras, não se trata nem de uma média empírica, nem da essência de uma realidade, nem de um modelo ideal. Trata-se de uma reconstrução estilizada que isola certas características específicas, típicas, do fenômeno estudado. Como toda imagem mental, pode-se contestá-la e relativizá-la; assim, a emoção não se opõe necessariamente à razão crítica ou à ortodoxia, longe disso.
[22] Cf. Ernst TROELTSCH, Die Soziallehren der christilichen Kirchen und Gruppen, 1912, Scienta Verlag, 1961:733-737.
[23] Cf. Jean-Paul WILLAIME, La precarité protestante. Sociologie du protestantisme contemporain, Paris/Genebra, Labor et Fides, 1992:22.
[24] Especificidade partilhada por outros grupos de tipo ‘igreja de proclamadores’.
[25] Para mais detalhes sobre essa tipologia, ver Sébastien FATH, “um modèle associatif idéologique”, In: Une autre manière d’être chrétien en France. Socio-histoire de l’implantation baptiste (1810-1950), Genebra, Labor et fides, 2001:515-530.
[26] Sobre a figura do clérigo protestante (e suas figuras concorrentes), ver Jean-Paul WILLAIME, Profession: pasteur. Sociologie de la condition du clerc à la fin du XXe. Siècle, Genebra, Labor et Fides, 1986.
[27] Ruben SAILLENS, prefácio em Samuel LORTSCH, Félix Neff, l’apôtre des Hautes Alpes, biographie extraite de ses lettres, Nouvelle Société d’éditions de Toulouse, 1941:13.
[28] Ver Sébastien FATH, ítens IV.1.1. e IV.1.2 In: Une autre manière d’être chrétien..., op. cit.:576-605.
[29] Cf. André THOBOIS (presidente da Federação Batista de 1963 a 1987): “Nossa piedade tem suas raízes na Bíblia. É a ela que nós nos voltamos sem cessar e à qual nós nos conformamos. É por isso que nós não buscamos em nenhum outro lugar a fonte, a foram e o sentido de nossa piedade”, In: Pour que notre pieté soit vraie, Paris, Carnets de Croire et servir, 2002:17.
[30] Isto mereceria em si uma análise bem mais acurada mas que não é possível no contexto desta exposição. Para uma reflexão sobre o estatuto da doutrina e do carisma no meio pentecostal, ver Sébastien FATH, “l’autorité charismatique au coeur de l’Eglise: pentecôtisme et débat sectaire”, Etudes Théologiques et Religieuses, tomo 76, 2001/3:371-390. Parece-nos que o pentecostalismo se situa em tensão entre os tipos ‘associativo ideológico’ e ‘associativo carismático’.
[31] Jean-Pierre BASTIAN, “Les protestantismes latino-américains. Un détour pertinent pour la sociologie des protestantismes”, In: Y. LAMBERT et alii, Le religieux des sociologues, Paris l’Harmattan, 1997:145.
[32] Dos atualmente 40 000 fiéis batistas na França, cerca da metade integram a Fédération des Eglises Baptistes de France (FEEBF), a qual está vinculada à Féderation Protestante de France (FPF) desde 1916. A outra metade se divide entre as igrejas da Association Evangélique d’Eglises Baptistes de Langue Française (AEEBF) e as igrejas batistas independentes, das quais um bom número estão agrupadas dentro da  Communion Evangélique de Baptistes Indépendants (CEBI). Esses dois últimos grupos não estão ligados à FPF  em virtude de posições mais restritas quanto ao ecumenismo.
[33] Cf. Sébstien FATH, Une autre manière d’être chrétien, op. cit., e Id., Les baptistes en France (1810-1950), Faits, dates et documents, Cléon d’Andran, Excelsis, 2002.
[34] VELDHUIZEN, op. cit., 1995.
[35]Jean-Pierre BASTIAN, “De l’objet protestantisme à la marge des espaces lusophones” In: Des protestantismes en lusophonie catholique. Lusotopie, Enjeux contemporaines dans les espaces lusophones, Paris, Karthala, 1998:221-234.
[36] Cf. “Le parcours de Charles Schinkel” In: VELDHUIZEN, op.cit.:186-189.
[37] VELDHUIZEN avalia, embora talvez muito apressadamente, que Charles Schinkel “adere à teologia batista, para a qual o batismo de crianças não é a mesma coisa que o batismo de crentes que as igrejas praticam” (VELDHUIZEN op.cit.:187). Ele foi batizado por imersão e batiza os outros da mesma maneira desde 1973.
[38] VELDHUIZEN, op.cit.:193.
[39] Intitulada “Ressurection Magazine”, ela é dirigida por Charles Schinkel. Dentre os seus patrocinadores figuram (em 2001) Jacky Chlepko, Lucien Clerc, André Habersetzer, Daniel Lhermeneault, Daniel Mochamps, Jules Thobois.
[40] E. VELDHUIZEN, op.cit.:404.
[41] Cf. Charles Schinkel, Une Fédération nouvelle sans être une dénomination de plus, revista Actes 2, nº 64:3.
[42] De onde a escolha de Evert Veldhuizen, em sua tese, de não repertoriar os membros da FECBC entre os batistas, mas sim entre as “Igrejas independentes”.
[43]Cf. por exemplo essa citação de Charles Schinkel a propósito de um televangelista carismático argentino: “O irmão Carlos Anacondia trabalha num meio sul-americano latino próximo de uma situação à francesa(...). E, no entanto, lá isso funciona! O Evengelho atravessa a Argentina. Por que ele morre ente nós?”, editorial do Réssurection magazine, nº97, mai-jun 2001:3.
[44] E. VELDHUIZEN, op.cit.:423.
[45] N.da T.: Na verdade, a tradução mais próxima do termo usado pelo autor especificamente aqui seria “os batistas”. A opção pelo uso da palavra campo pela tradutora reflete, por julgá-la cabível, uma aproximação da idéia do termo em Bourdieu  (ver A economia das trocas simbólicas, São Paulo, Perspectiva, 1974). Ademais, o próprio autor vai usar em outras ocasiões e logo a seguir o termo “terrain”, ou seja, terreno, campo.
[46] Para um estudo detalhado desses vínculos precoces entre batistas e movimentos de tipo pentecostal, ver Sébastien FATH, “Baptistes et pentecôtistes en France, une histoire paralléle?”, Bulletin de la Société de l’Histoire du Protestantisme Français, t.146, jul-set.2000:523-567.
[47] Jules Thobois (nascido em 1922) é o irmão mais velho de André Thobois.
[48] Fundada em 1927, como sucursal da Igreja reformada de Passy, separada da igreja-mãe em 1923, essa assembléia tinha como pastor Thomas Roberts desde 1936. Quando Jules Thobois deixa o norte por Paris em 1963, ele sucede Roberts na então Igreja independente da rua Musset. Essa igreja uniu-se à FEEBF em 1966.  Contando com muitas centenas de membros professos (e numerosas sucursais), essa igreja torna-se um dos principais centros do carismatismo protestante. Ver principalmente VELDHUIZEN, op.cit.: 236-273.
[49] Conforme relatado por muitos fiéis dessas igrejas, em outubro de 2002.
[50] VELDHUIZEN, op.cit.:14-15.
[51] Georges BRABANT (et alii), Résolution sur l’orientation de nos Eglises, Paris, FEEBF, 1952.
[52] Ver, por exemplo, o sugestivo dossier consagrado ao ministério pastoral (e à questão da autoridade), no Construire Ensemble,nº11 março 1999.
[53] Essa escola de pastores, que funciona em paralelo a uma escola de idiomas (Les Cèdres) lançada em 1976, não assegura nenhuma formação completa de pastores (que freqüentemente passa pelo Institut biblique de Nogent ou pela faculdade evangélica de Vaux-sur-Seine).O que ela proporciona está mais para uma formação complementar, colocando a ênfase sobre certas especificidades batistas.
[54] Essa formação obrigatória para todo novo pastor compreende seis sessões de dois ou três dias. Os novos pastores devem segui-la por ao menos dois anos. Uma publicação trimestral, Les Cahiers de l’école pastorale, difunde e estimula a reflexão desenvolvida no contexto dessa formação.
[55] Para um estudo desse movimento em direção a uma certa retirada do mundo sob a influência pentecostal, ver Sébastien FATH, “Les Baptistes dans le Bassin houiller du Nord”, In: Bruno DURIEZ et alii, Chrétiens et monde ouvrier, 1937-1970, Paris, l’Atelier, 2001:47-61.
[56] E. VELDHUIZEN, op.cit.:315-325.
[57] Ibid.:324.
[58] Quanto a esse assunto, comparar Jules THOBOIS, Charte charismatique, In: Le Point du Jour, nº 18, 1982:1-2 (ela retoma a da FEEBF, com algumas pequenas adições), e Charles SCHINKEL, “Ce que nous croyons”, Actes 2 (cada número).
[59] Essa motivação não é a única: a preocupação de integrar um corpo denominacional ligado à Fédération Protestante de France (um bom ‘guarda-chuva’) também cumpriu, por vezes, o seu papel!
[60] VELDHUIZEN, op.cit.:317
[61] VELDHUIZEN, op.cit.:402.
[62] Conforme documento da AEEBF, “Les voies habituelles du Saint Esprit”, que pode ser consultado em Robert DUBARRY, Pour faire conaissance avec um ideal d’Eglise, Valence, Imprimeries reunis, 1953:146-152. O “batismo no Espírito” é aí entendido como procedente “do inimigo” (Satanás) e não trazendo proveito algum “senão a ele”.
[63] http://www.diakrisis.org/churches_Europe.htm#France
[64] James Davison HUNTER, American Evangelism. Conservative Religion and the Quandary of Modernity, Rutgers University Press, New Brunswick, 1983:100.
[65] Em sua tese Evert Veldhuizen estimou em somente 12000 o número de carismáticos no interior do protestantismo francês. Nos dez anos que se seguiram esse número sem dúvida aumentou.
[66] Não nos esqueçamos que, nesse processo, uma verdadeira ‘tradição’ batista da emoção se constitui o que, aliás, torna bastante problemática a clivagem tradição/emoção: é bem possível haver aí “tradições emocionais”, socialmente construídas, como o demonstram muitos estudos antropológicos. Ver, por exemplo, Laurent AMIOTTE-SUCHET, “Des pèlerins et des convertis. Les frontières de l’irruption du sacré comparaison  entre un milieu pentecôtiste et un milieu de pèlerins à Lourdes” In: Sébastien FATH (org.), La diversité évangélique, Col. D’Etudes sur le Protestantisme Evangélique, Cléon d’Andran, 2003:29-50.

Pastoral de domingo


Três passos para quem se importa em servir
Pr. Jorge Pinheiro

Eu me importo em servir porque é um dos propósitos de Deus para a minha vida. Ou como fala o apóstolo Paulo, “somos obra das suas mãos, criados em Cristo Jesus para vivermos na prática das boas obras, as quais de antemäo Deus preparou para nós”. Efésios 2.10.

Eu me importo em servir porque Jesus deu o exemplo. Ou como diz o evangelista Mateus, “aquele que quiser ser grande ponha-se ao serviço dos outros; e aquele que quiser ser o mais importante seja como um criado dos outros. Pois também o Filho do Homem não veio para ser servido, mas para servir e dar a sua vida como resgate por muitos". (Mateus 20.26-28). 

Mas o que significa servir como Jesus?

Primeiro passo: estar pronto para ouvir e ajudar -- “Aconteceu então que dois cegos sentados à beira do caminho, quando souberam que era Jesus que passava, puseram-se a gritar: "Senhor! Filho de David, tem piedade de nós!" Mas o povo repreendia-os e mandava-os calar. Eles porém gritavam cada vez mais: "Senhor! Filho de David, tem piedade de nós!" Jesus parou, chamou-os e perguntou-lhes: "Que querem que eu vos faça?" Mateus 20.30-32.

Mas a decisão de colocar-se à disposição para servir enfrenta três barreiras:
  1. Em primeiro lugar a raiz de todos os males: o egoísmo. (Filipenses 2.4).
  2. Em segundo lugar o medo da crítica, que leva à mania de perfeição. (Eclesiastes 11.4).
  3. Em terceiro lugar a falta de confiança no amor de Deus, que leva ao amor ao dinheiro. Lucas 16.13.
Segundo passo: ter intimidade com Deus -- “Eu bem sei que sempre me ouves, mas digo-o agora para as pessoas que estäo aqui acreditarem que tu me enviaste". Tendo dito isto, clamou em alta voz: "Lázaro, sai cá para fora!". (João 11.42-43).

Mas o desejo de servir com alegria também enfrenta duas perigosas barreiras:
  1. Ser crítico e viver julgando os outros. (Romanos 14.4).
  2. Servir só  para aparecer. (Mateus 6.1).
Terceiro passo: querer cumprir a missão que Deus me deu – “Manifestei neste mundo a tua glória, pois cumpri a missäo de que me encarregaste”. (João 17.4).
           
Lembre-se

Você foi feito para servir. E se realizar bem o seu ministério, ouvirá de Jesus palavras semelhantes a estas: Disse-lhe o seu senhor: "Muito bem! És um servo bom e fiel. Já que foste fiel nas coisas pequenas, eu te confiarei as grandes. Vem tomar parte na felicidade do teu senhor!". (Mateus 25.21).                     

vendredi 16 mars 2012

A antropologia da imago Dei

Para os meus alunos de Teologia Sistemática II. Favor ler o texto abaixo e depois analisar o vídeo do Cordel do Fogo Encantado, "Chover".  Obrigado, JP.

A antropologia da imagem de Deus

O shemá era a oração que duas vezes por dia os judeus elevavam ao Eterno. Essa prece reconhece Deus como único e diz que deviam amá-lo com todo leb, com toda nefesh e com toda meod, conforme Deuteronômio 6.5.

Leb e lebab, que os gregos traduziram por cardia e nós por coração, nos falam dos movimentos do corpo humano. Leb e sua variante lebab ocorrem 858 vezes nas Escrituras hebraicas, das quais 814 se referem ao coração humano. Expressam a noção antropológica de que somos movidos por sentimentos e emoções que movimentam e dirigem nossos membros e corpo. Têm a realidade anatômica e as funções fisiológicas do coração enquanto expressões das atividades do ser humano, que levam às disposições de ânimo como alegria e aflição, coragem e temor, desejo e aspiração, e também às funções intelectuais como inteligência e decisão da vontade, que na cultura ocidental atribuímos ao cérebro. Nas passagens do livro de Gênesis que nos falam do leb constatamos que a antropologia se apresenta como uma psicologia teológica. Assim, leb tem um significado antropológico que fala daqueles aspectos que nos levam aos movimentos do sentir, do querer e do agir, que compõem a personalidade humana.

Meod, que os gregos traduziram por dynamis,ia. intensidade e abundituras judaicas, e traduz a id555555555555555555555555555555555555555555555555555555555555555555555555 e nós por força, aparece trezentas vezes nas Escrituras hebraicas, e traduz a idéia de intensidade e abundância. Em alguns textos, como no caso do crescimento do povo hebreu no Egito, meod aparece ligado à idéia de reprodução, de muitos filhos, o que nos leva a uma compreensão diferente do termo dynamis em grego, que nos fala de uma força física externa ao ser humano. Em hebraico podemos entender meod como potência, aquela força, aquela energia que faz de nós seres criadores, tanto no sentido biológico como intelectual. Seria potência que identifica o ser humano, capacidade de gerar que faz o humano crescer e multiplicar-se.

Mas, nefesh, que os gregos traduziram por psyché, mas que significa garganta, respiração, fôlego, pessoa, vida e alma, [1] sem dúvida, nos fala da plenitude daquilo que é humano, conforme encontramos em Gênesis 2.7. Dessa maneira, nefesh possibilita um rico diálogo com o texto de Gênesis e nos permite uma reconstrução dos significados da natureza humana.

A expressão nefesh leva a uma concepção de exterior versus interior, [2] que tem por base Deuteronômio 32.9, quando afirma que “uma parte de Iaveh faz seu povo”. Mobiliza assim em diferentes níveis essa força criacional, que constitui uma parte de Deus. A matéria-prima utilizada por Deus na modelagem humana é ordinária, enquanto material pertencente a ordem comum de “ló nefesh”: inanimados e animais. É o sopro de Deus que faz especial essa matéria ordinária. Mas será que estamos somente diante de um símbolo ou, de fato, a força criacional de Deus transmite à matéria ordinária não somente vida, mas transfere intensidade e profundidade? De certa maneira, não é absurdo dizer que os seres celestiais são criaturas integralmente espirituais. Sua existência procede do exterior da força criacional de Deus. A exteriorização traduz-se no fato de que a força criacional se dá através da palavra, da palavra criadora de Deus. Nesse sentido, nefesh procede da interioridade de Deus e por isso é conhecida como “ein sof”, que vem de seu interior. “Ele soprou” deve ser entendido como continuidade da afirmação anterior “façamos o ser humano” (Gênesis 1.26), de maneira que nefesh liga céu e terra, o que está acima e o que está abaixo. Por isso, dizemos que a natureza humana é superior à natureza angélica, porque procede da interioridade de Iaveh. Traduz ação mediadora e conjuntiva da força criacional. Donde, a natureza humana procede de atributos divinos não ostensivos, discretos, que se traduzem em integridade holística, pluralidade social, sabedoria, compreensão e abertura à transcendência. Nefesh entende-se e revela-se enquanto natureza que se torna compreensível e inteligível. É transbordamento e transparência do Espírito de Deus, que indica transbordamento e transparência no humano, daquilo que relaciona o que está em cima com o que está em baixo. Da leitura de Gênesis 2.7 podemos constatar que o texto fala de respiração e daquilo que o humano passa a ser: ele não tem uma nefesh, ele passa a ser uma nefesh.

O texto e o pensamento literário dos hebreus são sintéticos. Daí que a chave para chegarmos a uma compreensão analítica dele exige identificar com que parte do corpo o ser humano pode ser comparado e onde o agir humano faz interface com nefesh, utilizando para isso textos que apresentam diferentes sentidos de nefesh. Embora a expressão nefesh apareça 755 vezes nas Escrituras hebraicas e seja traduzida 600 vezes na Septuaginta por “psyché”, garganta e estômago podem ser tomados por paradigma e transmitem a idéia de necessidade, de algo difícil de ser saciado. Nesse sentido, a palavra alma nos dá uma tradução incompleta, pois a idéia é que “Iaveh Deus formou o ser humano do pó da terra e insuflou em suas narinas o seu hálito e o ser humano se tornou um ser vivente que necessita Dele para ser saciado”.

Nefesh não traduz algo bom ou mal, mas a realidade das necessidades fundamentais e imprescindíveis da alma humana, que ao não serem ou não estarem preenchidas por Deus produzem alienação, individualismo, descrença, ignorância e idolatria. Mas como o sopro de Deus pode ter gerado um ser humano com tal índole de insaciabilidade? Se entendermos a nefesh como o órgão das necessidades vitais, dos movimentos emocionais da alma, somos levados a entender o pensamento sintético hebreu ao ver a nefesh como síntese da própria vida. Assim, as necessidades humanas criadas pelo próprio Deus só podem ser saciadas por Ele.

Quem me encontra, encontrou a vida e alcançou benevolência de Iaveh. Quem não me acha, faz violência à sua nefesh. Todos os que me odeiam, amam a morte”. Provérbios 8.39 e seguintes.

No relato de Gênesis 2.7 o ser humano é definido como nefesh hayah, um ser vivente, que necessita ser saciado. Quando integrado ao seu Criador, nefesh é transbordamento e transparência do Espírito de Deus, que indica transbordamento e transparência no humano, daquilo que relaciona o que está em cima com o que está em baixo. Mas essa natureza também se vai constituir enquanto expansão dos significados da imagem de Deus, em graça e amor. “Ele soprou” traduz o fato de que as coisas do intelecto e do coração expressam-se através dos órgãos da fala, em especial, garganta e boca, que possibilitam o sopro. Nefesh como substantivo ganhou vários sentidos, sendo garganta um deles, e assim é usado em Provérbios 23.2, quando diz “põe uma faca à tua garganta, se fores uma pessoa de grande apetite”. A garganta ou goela é por onde entra e sai a respiração, o ar. O ser vivente, então, ganhou a designação nefesh, ser respirador. No caso do humano refere-se basicamente à forma que o espírito e a inteligência, sem forma em si, assumiu ao animar o corpo.[3] Esse padrão simboliza a interioridade da natureza humana. Portanto, para que o humano possa dar intensidade e profundidade a sua inteligência precisa de amor e graça, que nascem da interioridade de Iaveh. Em Gênesis 2.7, “ele soprou” significa que Aquele que soprou o fez numa determinada direção e com objetivo definido. Aqui, direção e objetivo traduzem destinação.

Esse é o destino do humano: ter sua nefesh integralmente saciada por seu Criador e a partir daí relacionar-se com Ele, com o universo, com seus semelhantes e consigo mesmo. Nesse caso, temos uma nefesh em equilíbrio, plena do Espírito de Deus, o que se traduz em integridade holística, pluralidade social, sabedoria, conhecimento e abertura à transcendência. A ruptura dessa integridade produz alienação, individualismo, descrença, ignorância e idolatria. A antropologia da nefesh em Gênesis nos fala sobre a imagem de Deus e nos dirige a uma pesquisa teológica do humano, da humanidade, da pessoa e da comunidade, da pessoa e da ordem social, da pessoa enquanto excluído, da pessoa enquanto eleito, da humanidade e seu destino, ou seja, da vida para o mundo, do amor para o próximo e da criação para todos.

Diante disso, devemos nos perguntar que princípios podem nortear tal pesquisa teológica? Sem dúvida, o princípio arquitetônico, enquanto revelação, fé objetiva, base e eixo da teologia. E logicamente o princípio hermenêutico, ou seja, a interpretação dos aspectos históricos e lingüísticos dessa revelação. Devemos partir, logicamente, da razão filosófica, que produz ordenação, mas não devemos esquecer a razão científica, enquanto leitura fenomenológica da natureza da antropologia e nem da razão ordinária, enquanto universalidade do senso comum. É bom lembrar, que toda análise metodológica, consciente ou inconscientemente, no correr da história da teologia, tem levado inexoravelmente a diferentes compreensões do fato teológico. Isto porque o princípio arquitetônico depende do que colocamos como base da estruturação geral da revelação e porque o princípio hermenêutico parte sempre de uma ou de múltiplas visões filosóficas que podem ser utilizadas como instrumentos de interpretação da história da revelação. Ou seja, quer queiramos ou não, a ideologia define a hermenêutica, pois o saber sempre está sob o risco de ser arrebatado pela ideologia, já que a ideologia permanece à espreita enquanto código de interpretação. Enquanto intelectuais temos amarras, pontos de apoio, somos transportados pela substância ética.[4]

Aqui reside a dificuldade, toda teologia é transitória. Reflete um momento de compreensão da revelação e de sua história. Mas, em nosso trabalho, utilizaremos a antropologia que as Escrituras nos oferecem como um instrumental hermenêutico para compreender o homo brasiliensis. Isto porque embora não seja antropologia, a teologia nos oferece um roteiro antropológico legítimo. No centro da fé cristã se encontra Jesus Cristo, Deus e ser humano, revelador do divino e do humano. E se a teologia fala da divindade, ela fala a homens e mulheres, fala sobre um Deus que encarnou e que ama os homens e mulheres. Está a serviço do humano.[5] Não podemos fugir a essa realidade, por isso, teologicamente, nosso objetivo é fazer a partir da própria compreensão do humano uma leitura da imagem de Deus que responda aos questionamentos e necessidades teológicas das brasilidades.

No livro das origens lemos: “agora vamos fazer os seres humanos, que serão como nós, que se parecerão conosco. Eles terão poder sobre os peixes, sobre as aves, sobre os animais domésticos e selvagens e sobre os animais que se arrastam pelo chão”. (Gênesis 1.26). Ora, se todo o universo é o mundo do ser humano, conforme afirmam os dois relatos da criação e o salmo oito, em que sentido o ser humano é a imagem de Deus? Como Deus conferiu ao humano essa correspondência?

A partir da antropologia bíblica podemos ver que em primeiro lugar o homo sapiens é fruto de uma intervenção de Deus. Há uma concessão de encargo que diferencia o ser humano do resto da criação. Ele é apresentado como um momento sublime, especial, como um ser que coroa toda a ação criadora de Deus. Ele recebe responsabilidade e poder de decisão. Em relação a esta discussão, considero elucidativa a exposição que apresenta a imagem de Deus através de três concepções: substantiva, ou seja, física e psicológica; relacional, ou seja, com um tropismo à transcendência e possibilidade de relacionamento com Deus; e funcional, que se dá através da ação cultural do ser humano. Acredito, porém, que privilegiar uma dessas concepções em detrimento das outras duas é perder a riqueza do ser humano enquanto imagem de Deus. Por isso, aqui correlacionamos as três concepções, já que formam uma totalidade. Em segundo lugar, Deus deixa claro a finalidade da decisão de criar um ser pessoal, segundo sua imagem. Tal ser deverá ter uma relação especial com o restante da criação. Deus cria e entrega ao ser humano sua criação. Este ser pessoal deverá estar sobre ela, numa relação de trabalho, produção e administração. O ser humano relaciona-se com a criação e através do uso e de suas descobertas em relação a ela, mantém uma permanente relação com Deus. Em terceiro lugar, a imagem de Deus é traduzida na relação que mantém com as criaturas, já que é uma relação de domínio. Ele reina sobre o universo produzido pelo poder criador de Deus. Mas aqui há um detalhe sutil: este direito de domínio não lhe é próprio, ele reina enquanto imagem de Deus. Ele não é proprietário, nem tem autonomia irrestrita sobre a criação. Imagem de Deus traduz também abertura à transcendência. Aqui estão dados os elementos que nos permitem entender porque faz parte da humanidade o abrir-se à transcendência e viver com ela. Há um deslumbramento permanente diante do absoluto, do sobrenatural e do mistério. Estamos diante de um ser que pode pensar o que não está aqui e agora, e que pode refletir sobre o que vai além da realidade factual. E é por poder pensar tais realidades que não podem ser vistas, que o ser humano enquanto imagem de Deus pode refletir sobre a eternidade e relacionar-se com o transcendente. Assim, ao ser feito imagem de Deus, o próprio Deus transfere à humanidade a capacidade de relacionar-se com Ele.

Adão é um ser plural. Esse ser humano de que fala Gênesis 1.26, que deve ser uma imagem de Deus, não é uma pessoa em particular, pois a continuação do texto fala que eles dominem. Assim, estamos diante da criação da humanidade e o domínio do universo não é dado a uma pessoa, mas a comunidade dos homens. Ninguém pode ser excluído da autoridade de domínio dada por Deus à humanidade. Da mesma maneira, em Gênesis 1.27 temos uma outra característica fundamental dessa mesma humanidade: ela é formada por homens e mulheres. Para alguns teólogos, como Karl Barth,[6] tal explicação de Gênesis 1.27b, de uma humanidade formada por dois sexos, é apresentada por Deus “quase à maneira de definição”. Logicamente, há uma intenção para que o texto se aprofunde em tais minúcias. É a de apresentar como o universo criado deveria ser administrado: através da convivência de seres que se completam e se amam. Ou seja, esse ser plural só poderia exercer o domínio através da comunidade, completando-se como homem e mulher.

E para onde aponta o domínio? Todo o universo é o mundo do ser humano, por isso há a total desmitização da natureza. Não há astros divinos, terra divina, nem animais divinos. Todo o universo pode tornar-se o ambiente do ser humano, seu espaço, que ele pode adaptar às suas necessidades e administrar. E como ele consegue isso? Através da cultura, enquanto processo social e objetivo de sujeição da natureza, e através da necessidade de expansão e domínio, pessoal e subjetivo, que é peculiar a todo homem e mulher livres. Mas, o afastamento de Deus fez com que a humanidade perdesse sua capacidade de ser imagem de Deus viva e eficaz. Seu caráter inicial está distorcido e o mal perpassa todas suas ações. Assim, o ser humano lançou-se ao domínio de seus iguais, inclusive através do derramamento de sangue; suprimiu o equilíbrio e a mútua ajuda entre homem e mulher; mitificou a ciência e técnica; e lançou-se à destruição da própria natureza. Cristo é “a verdadeira imagem do Deus invisível” (Colossenses 1.15, cf. 2Coríntios 4.4) e a Ele cabe fazer, a nível escatológico, aquilo que à humanidade tornou-se impossível. “Foi-me dado todo o poder no céu e na terra, por isso, indo, fazei discípulos em todas as nações...” (Mt 28.18).

(Texto extraído do livro de Jorge Pinheiro, Teologia Bíblica e Sistemática, São Paulo, Fonte Editorial, 2012. Adquira o seu numa boa livraria on-line).

[1] Nelson Kirst, Nelson Kilpp, Milton Schwantes, Acir Raymann, Rudi Zimmer, Dicionário Hebraico Português & Aramaico Português, São Leopoldo/Petrópolis, Sinodal/Vozes, 1988. Verbete: vpn, p. 159.
[2] Raphaël Draï, La Pensée Juive et L’Interrogation Divine, Exégèse et Épistémologie, Paris, Presses Universitaires de France, 1996, p. 414.
[3] L. Byron Harbin, Teologia do Antigo Testamento (apostila), São Paulo, Faculdade Teológica Batista de São Paulo, 1997, p. 32.
[4] Paul Ricoeur, Interpretação e Ideologias, RJ, Francisco Alves, 1990, pp.94-95.
[5] Antonio Manzatto in Teologia e Literatura, São Paulo, Edições Loyola, 1994, p. 41.
[6] Citado por Hans Walter Wolff, in Antropologia do Antigo Testamento, São Paulo, Edições Loyola, 1975, p. 215.

samedi 10 mars 2012

O que é o capitalismo?

Uma conversa necessária [i]
Por Jorge Pinheiro [ii]
Texto publicado no site Evangélicos pela Justiça, em 12 de junho de 2010.
Mafalda e o futuro

Caros colegas, bom dia. Vamos começar essas reflexões sobre o capitalismo lembrando que ele tem defensores. Claro está que em relação ao feudalismo, modo de produção que caracterizou a Idade Média, ele significou um passo a frente. Mas, hoje, muita gente que defende o capitalismo, na verdade, não entende o que ele significa, já que é um sistema opaco e sua natureza exploradora não fica evidente.

Outros defendem o capitalismo porque são seus beneficiários e ganham dinheiro graças a ele. Há ainda os especialistas que, muitas vezes, são porta-vozes do sistema, como economistas, jornalistas, acadêmicos e representantes do pensamento único, que conhecem o sistema, mas por serem bem remunerados omitem determinadas questões em suas análises.

Por isso, antes de analisar o capitalismo propriamente dito, vamos ver alguns dados de documentos das Nações Unidas. São informações sobre a crise atual e quando analisadas por instituições como G20, FMI, OMC e BIRD, estas chegam à estranha conclusão de que a crise do capitalismo se resolve com mais capitalismo.

Mas, vamos aos números, sistematizados pelo Programa Internacional de Estudos Comparativos sobre a Pobreza, localizado na Universidade de Bergen, Noruega.

Segundo a instituição, a população mundial era de 6,8 bilhões de habitantes em 2009. Desses,
. 1,02 bilhão de pessoas sofrem subnutrição crônica (FAO,2009);
. 2 bilhões de pessoas não têm acesso a medicamentos (www.fic.nih.gov);
. 884 milhões de pessoas não têm acesso à água potável (OMS/UNICEF 2008);
. 925 milhões de pessoas não têm moradia ou residem em moradias precárias (ONU Habitat 2003);
. 1,6 bilhões de pessoas não têm acesso à energia elétrica (ONU Habitat, Urban Energy);
. 2,5 bilhões de pessoas não são beneficiadas por sistemas de saneamento, drenagens ou não têm privadas domiciliares (OMS/UNICEF 2008);
. 774 milhões de adultos são analfabetos (www.uis.unesco.org);
. 18 milhões de pessoa morrem por ano devido à pobreza, a maioria crianças menores de cinco anos de idade (OMS);
. 218 milhões de crianças e jovens, entre 5 e 17 anos de idade, trabalham em condições de escravidão, em tarefas perigosas ou humilhantes, como soldados da ativa atuando em guerras e/ou conflitos civis, na prostituição infantil, como serventes, em trabalhos insalubres na agricultura, na construção civil ou industria têxtil (OIT: “La eliminación Del trabajo infantil, un objetivo a nuestro alcance” 2006).

Entre 1988 e 2002, os 25% mais pobres da população mundial reduziram sua participação no produto interno bruto mundial (PIB mundial) de 1,16% para 0,92%; enquanto os 10% mais ricos acrescentaram fortunas em seus bens pessoais passando a dispor de 6,4% para 7,1% da riqueza mundial.

Mas, o que é o capitalismo?

O capitalismo é um sistema econômico caracterizado pela propriedade privada dos meios de produção, pela existência de mercados livres e trabalho assalariado. Na historiografia ocidental, a ascensão do capitalismo está associada ao fim do feudalismo, ocorrido na Europa no final da Idade Média. Mas, não podemos esquecer de outras condições também associadas ao capitalismo, como a existência de pessoas e empresas que investem em troca de um lucro futuro; o respeito a leis e contratos; a existência de financiamento, moeda e juro; e a ocupação para os trabalhadores a partir de um mercado de trabalho.
 Karl Marx
A palavra capital vem do latim capitalis, que vem do indo-europeu kaput, que quer dizer "cabeça", uma referência às cabeças de gado, medida de riqueza nos tempos antigos. A conexão léxica entre o comércio de gado e a economia pode ser vista em nomes de várias moedas e palavras que dizem respeito ao dinheiro. O primeiro uso da palavra capitalista foi em 1848 no Manifesto Comunista de Marx e Engels; porém, a palavra capitalismo não foi usada. O primeiro uso da palavra capitalismo foi feito pelo escritor Thackeray, em 1854, com a qual quis dizer "posse de grandes quantidades de capital", e não se referir a um sistema de produção.

Em 1867, Proudhon usou o termo capitalista para referir-se aos possuidores de capital, e Marx e Engels referiam-se à "forma de produção baseada em capital" e, n’O Capital, o capitalista é um possuidor privado de capital.

Mas nem Proudhon, Marx ou Engels usaram os termos em alusão ao significado atual da palavra capitalismo. A primeira pessoa que fez isso foi Werner Sombart em seu Capitalismo Moderno, de 1902. Max Weber, um colega de Sombart, usou o termo no seu livro A Ética Protestante e o Espírito do Capitalismo, de 1904.

O capitalismo moderno começou com a Revolução Industrial e as revoluções burguesas: na Inglaterra, com a independência dos EUA e com a revolução francesa. É importante entender que capitalismo não é sinônimo de propriedade privada, embora ela seja fundamental para a sua existência. A propriedade privada já existia, por exemplo, nas tribos de Israel. Os regimes teocráticos, baseadas em leis ditas entregues por Deus, seguiam um modelo próximo ao feudalismo, com as terras pertencendo ao rei e os súditos trabalhando nelas. Ou seja, a existência de propriedade privada é antiga como a própria história.

Um pouco de história

Foi com o crescimento da população, o desenvolvimento da agricultura, a criação das cidades e a multiplicação de trabalho, quando as pessoas passaram a viver em sociedades maiores, que se tornou necessária a organização da produção a partir de relações interpessoais. Assim, foram elaboradas leis para reger as relações interpessoais entre gente que não se conhecia.

Depois, com o desenvolvimento dos transportes terrestres e marítimos, e a existência de cidades com grandes populações, surgiu o comércio internacional. As nações comerciantes eram as cidades-estado, com destaque para Atenas na Grécia, que nos séculos V e IV antes de Cristo inventou o sistema bancário.

Contudo, a existência de escravos não permitiu o desenvolvimento da instituição da propriedade privada como no capitalismo moderno, pois a escravidão impossibilita o mercado livre e viola o direito de propriedade privada.

Assim, o Império Romano se caracterizou pela liberdade relativa do comércio e da produção até o final do século terceiro depois de Cristo. A partir dessa data a implantação de controles de preços pelos imperadores suprimiu a liberdade econômica do Império. A economia do Império Romano, segundo alguns historiadores, tinha instituições capitalistas quase tão avançadas quanto as da Inglaterra no início da revolução industrial. Mas com o declínio do Império Romano e as invasões dos povos que os romanos chamavam de bárbaros, a organização social voltou a tomar feições tribais.

Em seu período final, o feudalismo passou por uma crise devido à catástrofe demográfica causada pela epidemia da peste negra (peste bubônica) que dizimou 35% da população européia. Depois da crise econômica e demográfica, o comércio desenvolvido pelas cidades-estado italianas permitiu à Europa viver certo crescimento comercial e urbano, o que aumentou e aprofundou as relações de produção capitalistas. Mas, nem tudo foi tão fácil, pois no final do feudalismo e início da idade moderna, a realeza expandiu seu poderio econômico e político através do mercantilismo e do absolutismo. Ou seja, através de doutrinas e práticas anticapitalistas. Niccòlo Machiavelli foi um dos defensores dessa postura anticapitalista, ao afirmar que "a unidade política é fundamental para a grandeza de uma nação". Com o absolutismo e o mercantilismo, o Estado controlou a economia e buscou nas colônias a riqueza necessária para garantir o enriquecimento da metrópole.

E porque a propriedade privada necessita da liberdade de contrato para juntos formarem o sistema capitalista, no século XVI surgiu na Escola de Salamanca, alguns teólogos que apresentaram as primeiras ideias de uma economia capitalista liberal. Para eles, entre os quais estava Tomás de Aquino, a propriedade privada era olhada como moralmente neutra. Em última instância, antes dos protestantes, Tomás de Aquino já deixava aberta a idéia de que não era pecado ser capitalista.

Mas como dissemos acima, foi com as revoluções burguesas no início da Idade Moderna que o capitalismo se estabeleceu como sistema econômico nos países da Europa Ocidental. Algumas dessas revoluções foram a Revolução Inglesa (1640-60), a independência dos EUA (4 de julho de 1776) e a Revolução Francesa (1789-1799), que construíram o arcabouço institucional de suporte ao desenvolvimento capitalista.

A partir da segunda metade do século XVIII iniciou-se um processo de produção em massa, geração de lucro e acúmulo de capital. As sociedades superam os critérios da aristocracia, o privilégio de nascimento, por exemplo. Surgiram as primeiras teorias econômicas modernas: a Economia Política e a ideologia que lhe corresponde, o liberalismo. Na Inglaterra, o escocês Adam Smith publica Uma Investigação sobre a Natureza e as Causas da Riqueza das Nações.

As fases do capitalismo

A primeira fase do capitalismo foi comercial. Predominou o produtor independente, artesão, mas generalizou-se o trabalho assalariado. A maior parte do lucro concentrava-se na mão dos comerciantes, não nas mãos dos produtores. Lucrava mais quem comprava e vendia a mercadoria, não quem produzia.

Depois veio o capitalismo industrial, quando o trabalho assalariado já instalado, em prejuízo dos artesãos, separou os possuidores de meios de produção e o exército de trabalhadores.

Na sequência tivemos o capitalismo financeiro, quando o sistema bancário e corporações financeiras passaram a controlar as demais atividades.

E, atualmente, vivemos sob o capitalismo em sua fase informacional, que sem deixar de ser financeiro e industrial, toma como característica a importância do conhecimento.
Gerados e nascidos na ideologia do capital

Um pouco de teoria

Em termos teóricos, dizemos que modo de produção é a forma de organização socioeconômica associada a uma determinada etapa de desenvolvimento das forças de produção e das relações de produção. Reúne as características do trabalho, seja ele artesanal, manufaturado ou industrial. São constituídos pelo objeto sobre o qual se trabalha e por todos os meios de trabalho necessários à produção – ferramentas, instrumentos, máquinas, oficinas, fábricas.

No correr da história existiram modos de produção, o antigo ou comunismo primitivo, o asiático, o escravista, o feudal, o capitalista, e o comunista, ainda um projeto a ser construído. Assim, um sistema econômico é definido pelo modo de produção no qual se baseia. O modo de produção atual, capitalista, é aquele sobre o qual se baseia a economia da maioria dos países do mundo.

Algumas pessoas enfatizam a propriedade privada do capital como sendo a essência do capitalismo, outros enfatizam a importância de um mercado livre como mecanismo para o movimento e acumulação de capital.

Karl Marx, em O capital, é crítico do capitalismo, e o olha através da dinâmica das lutas de classes, incluindo aí a estrutura de estratificação de diferentes segmentos sociais, dando ênfase às relações entre proletariado (classe trabalhadora) e burguesia (classe dominante). Para ele, a diferença de poder econômico entre as classes é um pressuposto do sistema, ou seja, a classe dominante acumulará riquezas por meio da exploração do trabalho das classes operárias.

Os defensores do capitalismo afirmam, no entanto, que num mercado livre existe competição e concorrência constante entre todos os integrantes do sistema, e se uma pessoa recebe em troca do seu trabalho menos do que ele produz, ele poderá mudar para o concorrente, pois este lucrará com o seu trabalho.

Devido à amplitude da expressão, surgiram controvérsias quanto ao capitalismo. Uma delas é se de fato o capitalismo é um sistema real, isto é, se ele já foi implementado em economias nacionais ou se ainda não se completou. Nesse caso, a pergunta é: que grau de capitalismo existe numa dada economia nacional. Outra questão é se o capitalismo é específico a uma época ou região geográfica particular ou se é um sistema universal, que pode existir através do tempo e do espaço.

Alguns interpretam o capitalismo como um sistema puramente econômico. Marx, no entanto, considerava que é um complexo de instituições político-econômicas que determinam as relações culturais, éticas e sociais.

No final do século XIX e início do século XX, época da Revolução Industrial, a economia capitalista vivia a fase do capitalismo competitivo, onde cada ramo de atividade era ocupado por um grande número de empresas, normalmente pequenas, que concorriam intensamente entre si. O Estado quase não interferia na economia, limitando-se apenas à manutenção e funcionamento do sistema.

A partir da Primeira Guerra Mundial, o capitalismo passou por mudanças, primeiro nos Estados Unidos, com o enriquecimento alcançado com a venda de armas aos países combatentes, ocupando, então, lugar de destaque no mercado mundial. Em alguns ramos de atividade, o capitalismo deixou de ser competitivo para se tornar monopolista. Essa transformação deu-se através de dois processos:

1. Empresas foram a falência, as maiores compraram as menores e outras se unificaram -- surgiu a sociedade anônima. As grandes empresas passaram a controlar um ramo de atividade.

2. Com as crises econômicas de 1929/1933, a Grande Depressão, o Estado passou a interferir na economia, exercendo influência em algumas atividades econômicas. Em vários países, o Estado passou a controlar os créditos, os preços, as exportações e importações, mas levando em conta os interesses das corporações e dos países que ocupavam o centro do sistema.

O capitalismo do século XX passou a enfrentar crises que se repetem a intervalos cada vez mais curtos. O desemprego, as crises nos balanços de pagamentos, a inflação, a instabilidade do sistema monetário internacional e o aumento da concorrência entre os grandes competidores levaram a essas crises cíclicas do sistema capitalista.

No final do século XX, os Estados Unidos e a Inglaterra passaram a difundir a teoria neoliberal. Segundo esta teoria, para evitar futuras crises a receita seria privatizar empresas estatais que pudessem ser substituídas com vantagens pela iniciativa privada, aperto fiscal no sentido de zerar o déficit fiscal, controle da inflação, câmbio flutuante e superávits em comércio exterior. Essa política passou por dois grandes testes: a crise dos países asiáticos e a crise da Rússia, que foram controladas com o auxílio do FMI, não sem antes destruir quase a metade de seus PIB's.

Apesar dos avanços macroeconômicos, a pobreza e a desigualdade continuam altas na América Latina, onde cerca de uma em cada três pessoas (165 milhões no total) vivem com menos de dois dólares por dia. Aproximadamente um terço da população não tem acesso à eletricidade e ao saneamento básico, e estima-se que 10 milhões de crianças sofram de desnutrição. Esses problemas não são novos. A América Latina já era a região com maior desigualdade econômica do mundo na década de 1950.

No consenso de Washington, os Estados participantes, em uma assembléia presidida pelos Estados Unidos, escolheram o capitalismo como sistema econômico legítimo, por representar os interesses liberais das empresas. Este fato está conectado ao avanço da globalização, que é a expressão dos interesses da classe empresarial dominante representada pelas multinacionais.

Assim, no final do século XX e início do século XXI, com o advento da globalização, algumas empresas que exerciam monopólio ao nível regional, começaram a enfrentar concorrência global e pressões maiores para se tornar atores do mercado globalizado. Em razão dessa concorrência surgiram fusões, onde empresas de atuação regional se fundiram para enfrentar a concorrência global. E em reação às fusões regionais, empresas globais adquiriram empresas regionais, como forma de entrar rapidamente em mercados locais.

Frutos aparentemente positivos desse processo de globalização é que empresas passaram a oferecer benefícios a seus empregados, antecipando a ação de sindicatos e governos. Benefícios como redução da jornada de trabalho, participação nos lucros, ganhos por produtividade, salários acima da média do mercado, promoção à inovação, jornada de trabalho flexível, flexibilização de jornada para mulheres com filhos, participação societária para produtos inovadores desenvolvidos com sucesso, entre outros.

Ao contrário do princípio do capitalismo, quando se acreditava que a redução de custos com recursos humanos e sua consequente exploração, traria o maior lucro possível, passou a vigorar a tese de que é desejável atrair os melhores profissionais do mercado e mantê-los motivados já que isso tornaria a empresa mais lucrativa. No entanto, o número de funcionários que se enquadram nesse modelo é insignificante diante da massa dos trabalhadores do mundo, que operam em condições precárias e recebem baixos salários.

O tratado de Veneza (1987) que abordou o investimento do Estado enquanto empresa, foi bem recebido por países do hemisfério sul e favoreceu o surgimento de alianças econômicas entre países. Além de identificar a necessidade de desenvolvimento econômico da América Latina, defendeu o término do monopólio de algumas cadeias, como a indústria automobilística, alimentícia, de tecnologia da informação e, inclusive, da produção cafeeira. A conclusão foi expandir a relação entre Estados que pouco se conectavam, como o Brasil e seus vizinhos, e criar vínculos de comércio direto e livre. Os projetos de comércio e integração do cone sul latino-americano tem no tratado de Veneza uma de suas bases.

Mas, muitos consideram que há ainda um capitalismo verde, cuja proposta é de preservar o ambiente, ser socialmente responsável e interagir na comunidade em que a empresa está inserida, o que diferenciaria a empresa em relação a concorrência e ampliaria os lucros. Há uma tendência para adoção deste modelo em empresas ocidentais, desde que tais medidas não prejudiquem a economia global, independentemente do mal que a degradação ambiental possa causar ao planeta.

É importante ver que hoje o país capitalista em maior expansão, mantendo aí todas as críticas que se faz ao capitalismo, é a República Popular da China. Mas, ao contrário das outras economias capitalistas, principalmente as ocidentais, que utilizam o livre mercado com pouca intervenção do Estado na economia, a China desenvolve uma política de intervenção na economia, restrições ao capital estrangeiro, e tem uma economia parcialmente planificada. O que nos leva a falar da China como um capitalismo de Estado.

Depois de 500 anos, é o caso de perguntar: é isso o que o capitalismo tem a nos oferecer? Por isso, voltamos ao princípio dessas reflexões. Diante dos resultados práticos do capitalismo, pense: se houvesse a possibilidade de redistribuir o enriquecimento adicional produzido entre 1988 e 2002 dos 10% mais ricos do planeta, mesmo sem tocar nas suas fortunas, teríamos duplicada a renda de 70% da população mundial.


[i] Na elaboração desse texto utilizei análise de Atílio Borón, do Conselho Latino-Americano de Ciências Sociais (CLACSO); Max Weber, A ética protestante e o espírito do capitalismo; André Comte-sponville, O capitalismo é moral?; Jeffry A. Frieden, Capitalismo global, história econômica e política do século XX; e material próprio utilizado em sala de aula.
[ii] Jorge Pinheiro é cientista da religião para as áreas de Política e Religião.

jeudi 8 mars 2012

De loiras, mulatas e negras


Há dois anos escrevi...
Por Jorge Pinheiro, de São Paulo

A marcha das mulheres explodiu estereótipos, mitos sexuais, definiu novos comportamentos e construiu cosmovisões. Essa é a mulher deste século XXI. Dilma Rousseff faz parte dessa história.

Veja o vídeo
http://www.youtube.com/watch?v=porOx00eXLg 


Colagem de Luiz Rosemberg Filho
A eleição da presidenta Dilma Roussef me levou ao passado. Ao início da alta-modernidade, expressão que prefiro ao invés de pós-modernidade, porque apesar das revoluções vividas ainda não fomos além da modernidade. E por causa da eleição da presidenta, resolvi fazer uma viagem às três últimas décadas do século XX, tempo do movimento da contracultura feminina, definidor de comportamentos e cosmovisões. E parto daí, porque foi em 1975 que a ONU instituiu o Ano Internacional da Mulher, dando força a grupos e publicações feministas, que discutiam o papel secundário que era atribuído à mulher na sociedade.

Foi a acumulação, expressão daquilo que despontava no campo de gênero, que nos deu o novo. Foi época do fazer e pensar o movimento de mulheres, agregando a participação de diferentes setores sociais, trabalhadoras da cidade, e depois do campo, intelectuais, negras, ecologistas, portadoras de deficiência, lésbicas, lideranças comunitárias e donas de casa.

E eu lembrei das loiras, mulatas e negras, que durante a ditadura militar estavam reunidas em torno da luta pela volta da democracia, por melhores condições de vida e pela alteração da condição desigual das mulheres.

Teresinha de Jesus/ Deu a queda foi ao chão/ Acudiram três cavaleiros/ Todos três, chapéu na mão. 

Uma das maneiras de se conhecer as representações que a sociedade tem da mulher, disse Rose Marie Muraro, é a análise de seus mitos sexuais. E, se quisermos compreender os mitos sexuais brasileiros, vale a pena compará-los com os de outras sociedades, como a estadunidense. Afirmava Muraro: “Quando falamos de mitos sexuais brasileiros, dois nomes nos vêm à memória: Xuxa e Vera Fischer. Xuxa, mais do que qualquer outro símbolo sexual no Brasil é a megastar no sentido americano do termo. Construiu uma imensa fortuna em cima de um império baseado no consumo de sua imagem pelas crianças brasileiras.”

E analisava tal imagem, elaborada pela TV Globo, a da boneca loura, infantil e erótica. Uma imagem que para as meninas era o modelo de feminilidade disponível e que não deixava lugar para outra alternativa, pois ocupou por anos, o espaço matinal de entretenimento nas casas brasileiras.

E como essa imagem da Xuxa (Santa Rosa, 27/03/1963) não foi construída para agradar somente às crianças, mas para ser modelo de sexualidade feminina, o fenômeno criou vetores. Os meninos ao desejá-la procuravam parecer homens maduros, absorvendo a mensagem de que a sexualidade precoce é o caminho para a masculinidade.

Se juntarmos essa imagem à de Vera Fischer (Blumenau, 27/11/1951), também loura, mas de apelo sexual adulto, podemos ver como definições começaram a ser construídas.

Ambas eram louras e, no Brasil, isso lembrava as atrizes do cinema estadunidense. E as consequências para a mulher brasileira passaram a ser muito ruins. Quase nenhuma brasileira da época tinha condições para se identificar com essas modelos e isso rebaixou a autoestima, diminuindo no imaginário seu valor no mercado sexual. Aliás, segundo Muraro, os símbolos sexuais são feitos para isso mesmo, para diminuir o valor das mulheres como mercadoria e manter intacta a dominação masculina.

Outro ponto importante na construção desse imaginário feminino era a obsessão pela juventude. Xuxa tinha pavor de envelhecer e Vera Fischer também. Esta última procurou formas perigosas de escape, quando acreditou que a juventude ia declinando. Aliás, depois dos quarenta as mulheres começavam a se sentir inseguras, porque o símbolo sexual é sempre um objeto descartável, sem vida e sem identidade.

O primeiro foi seu pai/ O segundo seu irmão/ O terceiro foi aquele que a/ Teresa deu a mão

Por isso, Xuxa, em entrevista a Regina Rito, disse que “nenhum fã perdoa quando um ídolo envelhece”. Ela tinha começado sua carreira na televisão em 1983, quando foi convidada por Maurício Sherman para apresentar o Clube da Criança, na Rede Manchete. Nessa época, trabalhava como modelo em Nova York e gravava o Clube nos finais de semana. Em 1986 estreou o primeiro programa diário com seu nome: O Xou da Xuxa, na Rede Globo.

É bom lembrar que as mulheres que se tornaram símbolos sexuais, pin-ups, dificilmente aceitavam retornar ao status de ser humano. Jean Harlow (Kansas City, 03/03/1911), Judy Garland (Grand Rapids, Minnesota, 10/06/1922), Marilyn Monroe (Los Angeles, 01/06/1926), por exemplo, acabaram morrendo nessa busca tresloucada de meios de escape à depressão causada pelo envelhecimento.

Assim, o culto da adolescência e da juventude teve papel relevante na manutenção do status quo, ou seja, do controle da experiência e do conhecimento acumulados pelas mulheres mais maduras.

E esse movimento contrarrevolucionário à emancipação feminina foi tão forte e racista que, nesses anos, quase não encontramos mulheres mulatas e negras que tivessem conquistado status de símbolo sexual. As mulatas das escolas de samba, ou mesmo Taís Araújo (Rio de Janeiro, 25/11/1978), a Xica da Silva, eram símbolos de menor força para o marketing padronizado pela mídia.

Diferente desse panorama era o que começava a acontecer nos Estados Unidos. Lá, Madonna (Bay City, 16/08/1958) criou a imagem de transgressora dos valores puritanos e de independência em relação aos desejos masculinos, que ela manipulou publicamente sem inibição. E num ritmo acelerado, tão famosas quanto Madonna despontaram duas jovens negras: a cantora e atriz Whitney Houston (Newark, 09/08/1963) e a modelo Naomi Campbell (Londres, 22/05/1970), que fez par com a loura Cláudia Schiffer (Rheinberg, Nordrhein-Westfalen, 25/08/1970) .

Quanta laranja madura/ Quanto limão pelo chão/ Quanto sangue derramado/ Dentro do meu coração. 

Assim, nos Estados Unidos foram sendo criadas alternativas de identificação feminina, com identidade própria, que rompiam os padrões patriarcais de beleza e moralidade. Esse fenômeno, em relação à mulher negra, era previsível, pois os negros emergiam como nova classe média, apesar de, na época, 25% dos homens negros acabarem presos ou assassinados, vítimas do racismo. Ainda assim, o povo negro começava a impor valores por meio da luta por direitos civis, mas também por sua potencialidade de consumo.

E as mulheres norte-americanas exerceram pressão sobre as estruturas. Em poucos anos abraçaram a causa da liberdade feminina, como forma de enfrentar a competição do mercado de trabalho. Nas universidades surgiram centenas de centros de estudos da mulher, que fizeram das questões de gênero categorias do debate teórico acadêmico. Ocuparam espaços políticos, foram eleitas para governadoras de Estado, prefeitas, e escolhidas como secretárias de Fazenda e, inclusive, secretária de Estado.

E no Brasil, derrubada a ditadura, a pressão por espaço político também cresceu. Surgiram os conselhos estaduais e municipais da condição feminina e, em 1985, o Conselho Nacional dos Direitos das Mulheres, que elaborou ações de governo em relação às mulheres.

Nas eleições de 1986, 26 mulheres foram eleitas para a Assembléia Nacional Constituinte. E, independentes de seus partidos, encaminharam propostas vindas das mulheres de todo o país para inclusão ou alteração do texto constitucional. Dessa maneira, 85% das reivindicações apresentadas pelo movimento de mulheres entraram na Constituição de 1988, ampliando como nunca antes se vira a cidadania feminina.

E, em 1996, realizou-se no Brasil uma eleição que incluiu o princípio de quotas, a fim de neutralizar a discriminação sofrida pelas mulheres nos partidos. Dessa forma, foi definido o mínimo de 20% das vagas de cada partido para candidatas mulheres.

Essa marcha explodiu estereótipos e mitos sexuais. A mulher definiu comportamentos e construiu cosmovisões. Essa é a mulher deste século XXI. Dilma Rousseff faz parte dessa história.

Dá laranja quero um gomo/ Do limão quero um pedaço/ Da menina mais bonita/ Quero um beijo e um abraço. 


Parabéns pelo 8 de março, meninas!

13/11/2010

Fonte: ViaPolítica/O autor

Fontes

José Agripino de Paula, Lugar Público, Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, 1965.
Sérgio Sant’Anna, A Utopia de José Agripino, Folha de S. Paulo, 23/02/1997, caderno Mais.
Terra em Transe, direção de Glauber Rocha, com Jardel Filho, Paulo Autran e José Lewgoy no elenco. O filme recebeu dois prêmios no Festival de Cannes, o da Crítica Internacional e o Buñuel.
Rose Marie Muraro, A Mulher Combate Seus Mitos, Folha de S. Paulo, 6/04/1997, caderno Mais.