samedi 4 février 2017

A construção do Logos

Do Logos de Heráclito ao Logos joanino
Prof. Dr. Jorge Pinheiro


Logos, no grego 'palavra', foi entendido pelo filósofo grego Heráclito de Éfeso, como o princípio supremo de unificação, portador do ritmo, da justiça e da harmonia que regem o Universo. ["Bem dizia Heráclito: homens são deuses e deuses são homens, porque o Logos é um só" (Hipólito, Refutações, IX, 10,6)].

Assim, Heráclito diante da mobilidade de todas as coisas denominou fogo ao elemento primitivo, e viu este comandado por uma lei natural inteligente ou racional, o Logos. Considerou o Logos dotado de dois princípios internos contrários a operar, ditos por ele, antropomorficamente, guerra e paz (ou discórdia e concórdia). Estas duas forças contrárias transformavam o elemento primitivo, ora na direção da solidificação, ora de retorno ao estado móvel do fogo.

Portanto, o Logos, concebido por Heráclito como uma lei natural ordenadora, a tudo comanda em forma dialética. E segundo Platão é o princípio de ordem, mediador entre o mundo sensível e o inteligível. Assim, para a filosofia grega, Logos era o princípio da inteligibilidade, a razão.

Mas, exatamente por ser razão e palavra, Logos mantém uma relação de complementação com sabedoria, e por isso é pensada por Heráclito como harmonia, o próprio nexo original entre Logos e physis. Todavia, para que, diante da ameaça do relativismo trazido pelas argumentações sofísticas, encontre-se melhor determinado o que se compreende por verdade, o pensamento de Sócrates e Platão vai formular explicitamente a questão: o que é? Esta questão busca definir isso que subjaz sempre idêntico a si mesmo, a substância ou essência, fundamento de +toda instabilidade acidental da existência aparente.

O que em Heráclito se delimitava como o encontro da harmonia passa a ser, a partir do pensamento de Sócrates e Platão, uma procura: nasce, assim, a filosofia como um desejo de conhecimento. Aristóteles caracteriza expressamente esta transformação quando afirma em sua obra que "O que desde sempre, agora e para sempre, é constantemente procurado, porque sempre de novo a questão fracassa, é o problema: o que é o ser?". A filosofia constitui-se, a partir das concepções socrática, platônica, aristotélica, como o pensamento que investiga a questão do ser.

O conceito razão relaciona-se a três outros: essência, existência e essencialização. A essência não é apenas aquilo que uma coisa é, mas também aquilo que faz com que uma coisa possa ser. Nesse sentido, essência é potencialidade, o poder de ser e a fonte de existência: origem do ser. Mas também é o reino da cognição, do pensamento, impossível de penetrar. Pari passo à essência, o Logos correlaciona mente e realidade, tornando possível o conhecimento. Quando alguém compreende e fala sobre a realidade, faz juízos e define padrões, que são comuns aos outros seres humanos, se comunica. E quem possibilita a comunicação é o Logos. Assim, o Logos é a origem da razão e também do ser. Mas, origem do ser aqui não significa conhecimento a priori, é estar colocado à parte do reino da finitude e por isso a origem do ser só é conhecida por um ato de revelação.

A importância do logos




Dentre as inúmeras transformações que surgem com a pólis, a mais importante é a extraordinária preeminência da palavra sobre todos os outros instrumentos de poder.

A palavra deixa de ser o termo ritual e passa a ser a fonte para o debate, discussão e reflexão, sendo ela, ou melhor, o seu uso de forma mais persuasiva, que irá definir o orador vencedor dos embates dialéticos (dialética é compreendida como a arte real da discussão: as normas para uma discussão correta). Todas as questões de interesse geral passam a ser submetidas à arte da oratória e as decisões são as conclusões dos debates. A política se torna a arte do domínio da linguagem.  Com a popularidade dos debates e das discussões, a polis se fundamenta na publicidade das manifestações sociais; se distinguem os interesses comuns dos privados, consolidam-se as práticas abertas e o domínio público, a base social da estrutura.

Porém, esse desenvolvimento traz uma profunda transformação, já que ao tornar comuns os elementos de uma cultura, levamos os mesmos à crítica e à controvérsia. Todos os elementos estão expostos a interpretações diversas e a debates apaixonados. Já não era possível se impor só por prestígio pessoal ou religioso... Devia haver o convencimento pela dialética.

A palavra constituiu-se no instrumento da vida política. Sua vertente escrita trouxe em si a possibilidade de uma completa divulgação do conhecimento. Neste momento, a escrita tornara-se pública, não mais estando presente apenas no palácio – como no período micênico. Neste contexto, o saber pode tornar-se igualmente público, deixando de estar restrito aos magistrados ou sacerdotes. Depois de divulgadas, as idéias deverão ser submetidas ao debate político e à aceitação popular.

A sabedoria e o logos

Com a consolidação da importância da palavra, o saber passa a ser um bem público. E a sabedoria, tão exaltada por filósofos como Platão, para o qual a sabedoria pertencia ao passado, ofereceu aos seus contemporâneos o amor à sabedoria, à filosofia. Assim, a sabedoria percorreu as veredas da linguagem, da palavra, do discurso, do logos, da dialética: este caminho tornou-se característico da cultura grega. Pode-se, em última instância, argumentar que a filosofia nasceu no momento em que se tentou recuperar algo perdido, a sabedoria, mesclada à dialética.

Não foi sem resistência que esse percurso foi seguido. A popularização do saber, antes inacessível, foi questionada. Havia uma articulação para que os mitos que chegassem à praça publica e fossem objeto de exame, mas não deixassem de ser um mistério. A sua reformulação produziu um salto no desenvolvimento humano, mantendo seus reflexos até hoje.

Na contemporaneidade latino-americana, partindo da dialética, Enrique Dussel propõe a dialética analógica da alteridade, a abertura da totalidade à alteridade, transcendendo o âmbito do logos. O logos permanece no mundo e não pode avançar mais além. O logos que transcende é análogos, mais além do logos, analogia que se articula na dialética da voz ouvida que leva a ouvir: ou seja, a ouvir a voz. Assim, o logos chega ao seu limite, e confia no que ouve do outro pela fé, pois sem a confiança no outro, não se pode escutar sua voz. Fé aqui significa ir mais além do horizonte da physis, ir mais além do horizonte da ontologia do mesmo, afirmando a ontologia da negatividade, isto é, já que o outro não se origina no idêntico, é diferente. Brota como ouvido, é âmbito ao qual a totalidade pode abrir-se, e ao abrir-se muda de estatuto, tornando-se ontologia negativa.

Em sua reflexão sobre a superação das totalidades ontológicas a partir da abertura à alteridade, Dussel afirma que tal superação se dá com a metafísica, entendida como além do fundamento. E se dá assim porque a metafísica não é somente ontológica, mas opera através da descoberta de um mais-além do mundo. E como em grego aná significa mais além, e logos significa palavra, análogos toma o sentido de palavra que irrompe no mundo desde um mais além do fundamento. O método ontológico-dialético chega até o fundamento do mundo desde um futuro, porém se detém diante do outro como um rosto de mistério e liberdade, de história distinta, mas não diferente. 1 Mas se o outro é distinto, não há diferença, nem retorno, embora haja história e crise. Por isso, para Dussel, se este logos irrompe enquanto interpelante indo mais além da compreensão, ele é análogo.

Essa interpretação de Dussel repousa na compreensão do Logos joanino, que repousa em Jesus, o Cristo, acima da tradição filosófica, quer de Heráclito, quer de Platão ou do neoplatonismo, e ainda da filosofia judaica expressa em Filón de Alexandria. Nesse sentido, se antes estávamos diante da personificação do Logos, ainda assim não há na tradição da filosofia grega ou judaica a idéia de encarnação do Logos. Esse Logos joanino, por isso, vai além de toda a tradição filosófica, embora João a utilize como ponte para falar à cultura de sua época.

Há ainda uma ponte com o pensamento judaico, principalmente no que se refere aos textos de Gênesis um e de Provérbios 8.22-31. O primeiro ao utilizar a expressão “en arqué” e o segundo ao personalizar a sabedoria. Nesse sentido, o Logos de João se apresenta como análogo. Análogo a Deus, porque é pessoa divina, e análogo aos seres humanos, porque é pessoa humana.

Análogo significa que o Logos vem de mais-além, isto é, que há um primeiro momento no qual surge uma palavra interpelante, mais além do mundo, que é o ponto de apoio do método dialético porque passa da ordem antiga à ordem nova. Embora, este Logos eterno se reflita através de nossos pensamentos e por isso não possa existir um ato do pensamento sem a secreta premissa de sua verdade incondicional [Romanos 12.2 e 1Coríntios 2.16].

Mas a verdade incondicional não está ao nosso alcance. Em nós humanos há sempre um elemento de aventura e risco em cada enunciado da verdade. Mas mesmo assim, podemos e devemos correr este risco, sabendo que este é o único modo que a verdade pode ser revelada a seres finitos e históricos.

Quando mantemos relação com o Logos eterno e deixamos de temer a ameaça do destino demoníaco, aceitamos então o lugar que cabe ao destino em nosso pensamento. Podemos reconhecer que desde o princípio esteve submetido ao destino e que sempre desejou livrar-se dele, mas nunca conseguiu.

Tarefa teológica da maior importância, na análise cristã do destino é saber relacionar Logos e kairós. O Logos deve alcançar o kairós. O Logos deve envolver e dominar os valores universais, a plenitude do tempo, a verdade e o destino da existência. A separação entre Logos e existência chegou ao fim. O Logos alcançou a existência, penetrou no tempo e no destino. E isso aconteceu não como algo extrínseco a ele próprio, mas porque é a expressão de seu próprio caráter intrínseco, sua liberdade.

É necessário, porém, entender que tanto a existência como o conhecimento humano estão submetidos ao destino e que o imutável e eterno reino da verdade só é acessível ao conhecimento liberto do destino: a revelação. Dessa maneira, ao contrário do que pensavam os gregos, todo o ser humano possui uma potencialidade própria, enquanto ser, para realizar seu destino. Quanto maior a potencialidade do ser – que cresce à medida que é envolvido e dominado pelo Logos – mais profundamente está implicado seu conhecimento no destino.

Nosso destino, que aqui pode ser entendido como missão, é servir ao Logos num novo kairós, que emerge das crises e desafios de nossos dias. Quanto mais profundamente entendermos nosso destino [no sentido de prokeimai, estar colocado, ser proposto] e o de nossa sociedade, tanto mais livres seremos. Então, nosso trabalho será pleno de força e verdade.


Notas

1. Enrique Dussel, “El Método de Pensar Latinoamericano: la Analéctica como Ruptura Teórica”, conferência proferida em novembro de 1972, in Introduccion a Una Filosofia de la Liberación latinoamericana, México D.F., Ed. Extemporâneos, 1977, pp. 117 a 138.

O shemá, leituras antropológicas

O shemá era a oração que duas vezes por dia os judeus elevavam ao Eterno. Essa prece reconhece Deus como único e diz que deviam amá-lo com todo leb, com toda nefesh e com toda meod, conforme Deuteronômio 6.5. 

Leb e lebab, que os gregos traduziram por cardia e nós por coração, nos falam dos movimentos do corpo humano. Leb e sua variante lebab ocorrem 858 vezes nas Escrituras hebraicas, das quais 814 se referem ao coração humano. Expressam a noção antropológica de que somos movidos por sentimentos e emoções que movimentam e dirigem nossos membros e corpo. Têm a realidade anatômica e as funções fisiológicas do coração enquanto expressões das atividades do ser humano, que levam às disposições de ânimo como alegria e aflição, coragem e temor, desejo e aspiração, e também às funções intelectuais como inteligência e decisão da vontade, que na cultura ocidental atribuímos ao cérebro. Nas passagens do livro de Gênesis que nos falam do leb constatamos que a antropologia se apresenta como uma psicologia teológica. Assim, leb tem um significado antropológico que fala daqueles aspectos que nos levam aos movimentos do sentir, do querer e do agir, que compõem a personalidade humana. 

Meod, que os gregos traduziram por dynamis e nós por força, aparece trezentas vezes nas Escrituras hebraicas, e traduz a idéia de intensidade e abundância. Em alguns textos, como no caso do crescimento do povo hebreu no Egito, meod aparece ligado à idéia de reprodução, de muitos filhos, o que nos leva a uma compreensão diferente do termo dynamis em grego, que nos fala de uma força física externa ao ser humano. Em hebraico podemos entender meod como potência, aquela força, aquela energia que faz de nós seres criadores, tanto no sentido biológico como intelectual. Seria potência que identifica o ser humano, capacidade de gerar que faz o humano crescer e multiplicar-se.

Mas, nefesh, que os gregos traduziram por psyché, mas que significa garganta, respiração, fôlego, pessoa, vida e alma, sem dúvida, nos fala da plenitude daquilo que é humano, conforme encontramos em Gênesis 2.7. Dessa maneira, nefesh possibilita um rico diálogo com o texto de Gênesis e nos permite uma reconstrução dos significados da natureza humana. 

A expressão nefesh leva a uma concepção de exterior versus interior, que tem por base Deuteronômio 32.9, quando afirma que “uma parte de Iaveh faz seu povo”. Mobiliza assim em diferentes níveis essa força criacional, que constitui uma parte de Deus. A matéria-prima utilizada por Deus na modelagem humana é ordinária, enquanto material pertencente a ordem comum de “ló nefesh”: inanimados e animais. É o sopro de Deus que faz especial essa matéria ordinária. Mas será que estamos somente diante de um símbolo ou, de fato, a força criacional de Deus transmite à matéria ordinária não somente vida, mas transfere intensidade e profundidade? De certa maneira, não é absurdo dizer que os seres celestiais são criaturas integralmente espirituais. 




Sua existência procede do exterior da força criacional de Deus. A exteriorização traduz-se no fato de que a força criacional se dá através da palavra, da palavra criadora de Deus. Nesse sentido, nefesh procede da interioridade de Deus e por isso é conhecida como “ein sof”, que vem de seu interior. “Ele soprou” deve ser entendido como continuidade da afirmação anterior “façamos o ser humano” (Gênesis 1.26), de maneira que nefesh liga céu e terra, o que está acima e o que está abaixo. Por isso, dizemos que a natureza humana é superior à natureza angélica, porque procede da interioridade de Iaveh. Traduz ação mediadora e conjuntiva da força criacional. Donde, a natureza humana procede de atributos divinos não ostensivos, discretos, que se traduzem em integridade holística, pluralidade social, sabedoria, compreensão e abertura à transcendência. 

Nefesh entende-se e revela-se enquanto natureza que se torna compreensível e inteligível. É transbordamento e transparência do Espírito de Deus, que indica transbordamento e transparência no humano, daquilo que relaciona o que está em cima com o que está em baixo. Da leitura de Gênesis 2.7 podemos constatar que o texto fala de respiração e daquilo que o humano passa a ser: ele não tem uma nefesh, ele passa a ser uma nefesh.

O texto e o pensamento literário dos hebreus são sintéticos. Daí que a chave para chegarmos a uma compreensão analítica dele exige identificar com que parte do corpo o ser humano pode ser comparado e onde o agir humano faz interface com nefesh, utilizando para isso textos que apresentam diferentes sentidos de nefesh. Embora a expressão nefesh apareça 755 vezes nas Escrituras hebraicas e seja traduzida seiscentas vezes na Septuaginta por “psyché”, garganta e estômago podem ser tomados por paradigma e transmitem a idéia de necessidade, de algo difícil de ser saciado. Nesse sentido, a palavra alma nos dá uma tradução incompleta, pois a idéia é que “Iaveh Deus formou o ser humano do pó da terra e insuflou em suas narinas o seu hálito e o ser humano se tornou um ser vivente que necessita Dele para ser saciado”.

Nefesh não traduz algo bom ou mal, mas a realidade das necessidades fundamentais e imprescindíveis da alma humana, que ao não serem ou não estarem preenchidas por Deus produzem alienação, individualismo, descrença, ignorância e idolatria. Mas como o sopro de Deus pode ter gerado um ser humano com tal índole de insaciabilidade? Se entendermos a nefesh como o órgão das necessidades vitais, dos movimentos emocionais da alma, somos levados a entender o pensamento sintético hebreu ao ver a nefesh como síntese da própria vida. Assim, as necessidades humanas criadas pelo próprio Deus só podem ser saciadas por Ele.

“Quem me encontra, encontrou a vida e alcançou benevolência de Iaveh. Quem não me acha, faz violência à sua nefesh. Todos os que me odeiam, amam a morte”. Provérbios 8.39 e seguintes.

No relato de Gênesis 2.7 o ser humano é definido como nefesh hayah, um ser vivente, que necessita ser saciado. Quando integrado ao seu Criador, nefesh é transbordamento e transparência do Espírito de Deus, que indica transbordamento e transparência no humano, daquilo que relaciona o que está em cima com o que está em baixo. Mas essa natureza também se vai constituir enquanto expansão dos significados da imagem de Deus, em graça e amor. “Ele soprou” traduz o fato de que as coisas do intelecto e do coração expressam-se através dos órgãos da fala, em especial, garganta e boca, que possibilitam o sopro. 

Nefesh como substantivo ganhou vários sentidos, sendo garganta um deles, e assim é usado em Provérbios 23.2, quando diz “põe uma faca à tua garganta, se fores uma pessoa de grande apetite”. A garganta ou goela é por onde entra e sai a respiração, o ar. O ser vivente, então, ganhou a designação nefesh, ser respirador. No caso do humano refere-se basicamente à forma que o espírito e a inteligência, sem forma em si, assumiu ao animar o corpo. Esse padrão simboliza a interioridade da natureza humana. Portanto, para que o humano possa dar intensidade e profundidade a sua inteligência precisa de amor e graça, que nascem da interioridade de Iaveh. Em Gênesis 2.7, “ele soprou” significa que Aquele que soprou o fez numa determinada direção e com objetivo definido. Aqui, direção e objetivo traduzem destinação.

Esse é o destino do humano: ter sua nefesh integralmente saciada por seu Criador e a partir daí relacionar-se com Ele, com o universo, com seus semelhantes e consigo mesmo. Nesse caso, temos uma nefesh em equilíbrio, plena do Espírito de Deus, o que se traduz em integridade holística, pluralidade social, sabedoria, conhecimento e abertura à transcendência. A ruptura dessa integridade produz alienação, individualismo, descrença, ignorância e idolatria. A antropologia da nefesh em Gênesis nos fala sobre a imagem de Deus e nos dirige a uma pesquisa teológica do humano, da humanidade, da pessoa e da comunidade, da pessoa e da ordem social, da pessoa enquanto excluído, da pessoa enquanto eleito, da humanidade e seu destino, ou seja, da vida para o mundo, do amor para o próximo e da criação para todos.

Diante disso, devemos nos perguntar que princípios podem nortear tal pesquisa teológica? Sem dúvida, o princípio arquitetônico, enquanto revelação, fé objetiva, base e eixo da teologia. E logicamente o princípio hermenêutico, ou seja, a interpretação dos aspectos históricos e lingüísticos dessa revelação. Devemos partir, logicamente, da razão filosófica, que produz ordenação, mas não devemos esquecer a razão científica, enquanto leitura fenomenológica da natureza da antropologia e nem da razão ordinária, enquanto universalidade do senso comum. É bom lembrar, que toda análise metodológica, consciente ou inconscientemente, no correr da história da teologia, tem levado inexoravelmente a diferentes compreensões do fato teológico. Isto porque o princípio arquitetônico depende do que colocamos como base da estruturação geral da revelação e porque o princípio hermenêutico parte sempre de uma ou de múltiplas visões filosóficas que podem ser utilizadas como instrumentos de interpretação da história da revelação. 

Ou seja, quer queiramos ou não, a ideologia define a hermenêutica, pois o saber sempre está sob o risco de ser arrebatado pela ideologia, já que a ideologia permanece à espreita enquanto código de interpretação. Enquanto intelectuais temos amarras, pontos de apoio, somos transportados pela substância ética. 

Aqui reside a dificuldade, toda teologia é transitória. Reflete um momento de compreensão da revelação e de sua história. Mas, em nosso trabalho, utilizaremos a antropologia que as Escrituras nos oferecem como um instrumental hermenêutico para compreender o homo brasiliensis. Isto porque embora não seja antropologia, a teologia nos oferece um roteiro antropológico legítimo. No centro da fé cristã se encontra Jesus Cristo, Deus e ser humano, revelador do divino e do humano. E se a teologia fala da divindade, ela fala a homens e mulheres, fala sobre um Deus que encarnou e que ama os homens e mulheres. Está a serviço do humano. Não podemos fugir a essa realidade, por isso, teologicamente, nosso objetivo é fazer a partir da própria compreensão do humano uma leitura da imagem de Deus que responda aos questionamentos e necessidades teológicas das brasilidades. 

No livro das origens lemos: “agora vamos fazer os seres humanos, que serão como nós, que se parecerão conosco. Eles terão poder sobre os peixes, sobre as aves, sobre os animais domésticos e selvagens e sobre os animais que se arrastam pelo chão”. (Gênesis 1.26). Ora, se todo o universo é o mundo do ser humano, conforme afirmam os dois relatos da criação e o salmo oito, em que sentido o ser humano é a imagem de Deus? Como Deus conferiu ao humano essa correspondência?

A partir da antropologia bíblica podemos ver que em primeiro lugar o homo sapiens é fruto de uma intervenção de Deus. Há uma concessão de encargo que diferencia o ser humano do resto da criação. Ele é apresentado como um momento sublime, especial, como um ser que coroa toda a ação criadora de Deus. Ele recebe responsabilidade e poder de decisão. Em relação a esta discussão, considero elucidativa a exposição que apresenta a imagem de Deus através de três concepções: substantiva, ou seja, física e psicológica; relacional, ou seja, com um tropismo à transcendência e possibilidade de relacionamento com Deus; e funcional, que se dá através da ação cultural do ser humano. 

Acredito, porém, que privilegiar uma dessas concepções em detrimento das outras duas é perder a riqueza do ser humano enquanto imagem de Deus. Por isso, aqui correlacionamos as três concepções, já que formam uma totalidade. Em segundo lugar, Deus deixa claro a finalidade da decisão de criar um ser pessoal, segundo sua imagem. Tal ser deverá ter uma relação especial com o restante da criação. Deus cria e entrega ao ser humano sua criação. Este ser pessoal deverá estar sobre ela, numa relação de trabalho, produção e administração. O ser humano relaciona-se com a criação e através do uso e de suas descobertas em relação a ela, mantém uma permanente relação com Deus. Em terceiro lugar, a imagem de Deus é traduzida na relação que mantém com as criaturas, já que é uma relação de domínio. Ele reina sobre o universo produzido pelo poder criador de Deus. 

Mas aqui há um detalhe sutil: este direito de domínio não lhe é próprio, ele reina enquanto imagem de Deus. Ele não é proprietário, nem tem autonomia irrestrita sobre a criação. Imagem de Deus traduz também abertura à transcendência. Aqui estão dados os elementos que nos permitem entender porque faz parte da humanidade o abrir-se à transcendência e viver com ela. Há um deslumbramento permanente diante do absoluto, do sobrenatural e do mistério. Estamos diante de um ser que pode pensar o que não está aqui e agora, e que pode refletir sobre o que vai além da realidade factual. E é por poder pensar tais realidades que não podem ser vistas, que o ser humano enquanto imagem de Deus pode refletir sobre a eternidade e relacionar-se com o transcendente. Assim, ao ser feito imagem de Deus, o próprio Deus transfere à humanidade a capacidade de relacionar-se com Ele.

Adão é um ser plural. Esse ser humano de que fala Gênesis 1.26, que deve ser uma imagem de Deus, não é uma pessoa em particular, pois a continuação do texto fala que eles dominem. Assim, estamos diante da criação da humanidade e o domínio do universo não é dado a uma pessoa, mas a comunidade dos homens. Ninguém pode ser excluído da autoridade de domínio dada por Deus à humanidade. Da mesma maneira, em Gênesis 1.27 temos uma outra característica fundamental dessa mesma humanidade: ela é formada por homens e mulheres. Para alguns teólogos, como Karl Barth, tal explicação de Gênesis 1.27b, de uma humanidade formada por dois sexos, é apresentada por Deus “quase à maneira de definição”. 

Logicamente, há uma intenção para que o texto bíblico se aprofunde em tais minúcias. É a de apresentar como o universo criado deveria ser administrado: através da convivência de seres que se completam e se amam. Ou seja, esse ser plural só poderia exercer o domínio através da comunidade, completando-se como homem e mulher.

E para onde aponta o domínio? Todo o universo é o mundo do ser humano, por isso há a total desmitização da natureza. Não há astros divinos, terra divina, nem animais divinos. Todo o universo pode tornar-se o ambiente do ser humano, seu espaço, que ele pode adaptar às suas necessidades e administrar. E como ele consegue isso? Através da cultura, enquanto processo social e objetivo de sujeição da natureza, e através da necessidade de expansão e domínio, pessoal e subjetivo, que é peculiar a todo homem e mulher livres. 

Mas, o afastamento de Deus fez com que a humanidade perdesse sua capacidade de ser imagem de Deus viva e eficaz. Seu caráter inicial está distorcido e o mal perpassa todas suas ações. Assim, o ser humano lançou-se ao domínio de seus iguais, inclusive através do derramamento de sangue; suprimiu o equilíbrio e a mútua ajuda entre homem e mulher; mitificou a ciência e técnica; e lançou-se à destruição da própria natureza. Cristo é “a verdadeira imagem do Deus invisível” (Colossenses 1.15, cf. 2 Coríntios 4.4) e a Ele cabe fazer, a nível escatológico, aquilo que à humanidade tornou-se impossível. “Foi-me dado todo o poder no céu e na terra, por isso, indo, fazei discípulos em todas as nações...” (Mt 28.18).

mardi 24 janvier 2017

Consagre as obras das tuas mãos



Sermão do Pr. Jorge Pinheiro
Domingo à noite, 15.01.2017
Igreja Batista em Perdizes

Nebo, mestre da loucura e palavras mortas

Por Jorge Pinheiro

Noite alta, o demônio Nebo, mestre da loucura e palavras mortas, ficou pensando na viagem e na última coisa que seu parceiro Shedu, morador das ruínas de Edom, dissera antes de se retirar para o oco de sua figueira: “Demônio bem sucedido trabalha em equipe. Nós estamos incompletos. Astarote é a parte que falta para criarmos o inferno que desejamos”. Palavras difíceis, como poderia catalogá-las?

Detesto essa terra, mas adoro essa hora da meia-noite. Pensou. Sem lua, sem aragem, esse silêncio de tudo. Essa é a hora dos meio-tons. Não está gelado, mas faz frio. Está escuro, mas não completamente. Existe o mais e o menos. É a hora mais difícil para os humanos. Eles ficam inseguros, procurando algo que se mova, que faça um ruído. Ao menos uma folha, mas nada. E eu também fico quieto, acompanhando a ordem natural do momento. É certo que o céu está cheio de nuvens, que brincam de fantasmas com as estrelas. Mas eles nem percebem. São seres medrosos.

Às vezes, vem uma nuvem gorda, roliça de gula, e engole um punhado de estrelas. E fica mais escuro. É aí que as árvores e seus galhos secos começam a se espreguiçar. É o momento. Vem um vento frio, desses que saem do fundo do inferno. Sacudo a solidão eterna, espicho as pernas, vou até a cidade da desolação e começo a falar com os mortos.

Sou filho de Merodach e Sarpanitu. Vivi e fui adorado em Borsipa, mas na primavera desse país, Shedu ia passando pela beira do grande rio do deus-morto, quando ouviu um soluço fino. Um lamento do fundo das trevas. Era eu. Tinha sido desterrado, exorcizado para os confins do inferno. Depois de muitas eras, vim para o cinturão de fogo. É aqui, a 2.660 metros, bem no alto, rodeado de neve, a minha casa, hueñunauca, há 12 mil anos acendo o Osorno.

E lá em baixo, no Llanquihue, refletido no lago, vê-se a silhueta do vulcão que esquenta as minhas noites geladas. Sua presença imponente domina a paisagem.

Quem olha para a maravilha, mal pode imaginar os estragos que eu orquestro. Na primavera, quando os loucos se apaixonam, derreto o gelo e formo um violento aluvião de barro, cinza, lava e troncos, que arrasta tudo que encontra pela frente. Depois da corrida do vulcão, deixo fluir a lava, que incendeia tudo por onde passa. Fiz isso em 1851 e foi um sucesso, mas agora tenho outros planos.

Gosto do gelo das geleiras. Esta é a minha casa, a casa do demônio. E foi por esses vulcões que entrei no mundo da violência e da morte, pelas mãos do meu amigo Shedu, o demônio das onze horas.

Posso estar velho e passar as noites aterrorizando os humanos que encontro, mas tenho bom ouvido. Gosto de colecionar as palavras, tirando delas todo sentido, misturando tudo num saco de gatos -- que linda expressão --, e depois soprar nos ouvidos desatentos, convencendo salvos e perdidos de que tudo o que se ouve reflete apenas a loucura do mundo dos homens.

Falar sobre a vida não é fácil, já que eu estou do outro lado. Mas é minha especialidade. A memória humana é uma colcha de sensações. Eles sempre se lembram da dor das pedras. O momento suave é fugidio, escorrega na lembrança, mas o chute fica grudado. Assim são eles. Suas lembranças estão escritas no corpo: a mentira dita casualmente, o roubo rápido e furtivo, o aborto que ninguém soube. Tudo fica escrito. Até as marcas da saudade não se apagam. E para eu soprar no ouvido deles, basta uma leitura lenta, quase uma tradução de cada cicatriz, de cada marca.

Aprendi a caçar os fantasmas humanos. Mergulho no charco de suas vidas, farejo sentimentos escondidos, estraçalho lembranças esquecidas, ressuscito cadáveres antigos e mal cheirosos. Não há matagal ou pântano que eu não atravesse para chegar à uma boa história de desespero.

Quem me ensinou esta especialidade demoníaca foi Shedu. No início ele me disse que o mundo das palavras mortas fica aqui, entre ruínas, e que, por isso, não havia razão para eu me afastar. Bastava aprender, com ele, a viajar na memória dos humanos. Sempre levo comigo uma bolsa. É a bolsa onde guardo as palavras que vou achando no meio do caminho. São palavras fáceis, como exatamente, que parece precisa, mas que transformo numa centopéia lânguida. Ou palavras difíceis, como formidável, que vira uma trilha de formigas incendiadas. São palavras de pobre, como guspe, frio e maleita. São palavras quatrocentonas, como treme-treme e sezão. Junto todas elas e à noite vou tirando-as do saco.

Tenho o meu catálogo, que é infinito como as estrelas do azulão. E aí, sozinho, vou colocando cada uma delas na sua forma. E ficam todas sem alma: as más, as boas, as alegres, as tristes, as grandes, as pequenas, as gordas, as finas, as de morte. E vou formando frases, que classifico de furtivas, de paixão e destruidoras. O demônio é formidável é, logicamente, uma frase furtiva, pois compara o velho Nebo a uma centúria de formigas flamejantes. Na Semana Santa vou comungar é uma frase de paixão, pois se refere à morte de um deus. E a paixão e a morte são irmãs-gêmeas. Ninguém está vendo é uma das minhas frases prediletas, é destruidora. É a porta de entrada da minha casa.

Ao contrário de nós demônios, na vida dos homens sempre ocorre um encontro de grande significado, encontro que modifica o prumo de seus sonhos. Lembro-me de um jornalista carioca, que na madrugada de 23 de abril, dia de Ogum, foi fazer uma reportagem na floresta da Tijuca. Ele trabalhava na revista Manchete. Era auto-suficiente e não tinha dúvidas quanto à sua capacidade profissional. Vivia com uma jovem, bisneta de escravos, e, no fundo do seu coração, queria ser o dono do mundo. Nessa época, eu, Shedu e Astarote trabalhávamos juntos. Tínhamos organizado uma grande festa.

Era noite de lua cheia. Corpos endemoniados tinham montado gigantescos labirintos, que terminavam num círculo formado por toras de madeira. Representavam os mortos: os esquecidos e os lembrados. No meio do círculo, muita comida. Do fundo da terra e do oco das árvores saiam sons lindos e terríveis. Sons de cantar, dançar e de fazer sexo. Nunca me esqueço. O luar cobriu a floresta. Astarote vestida de teias e chorando a sinfonia quatorze de Shostakovitch penetrou no labirinto e depositou um feto, a pequena Gaia, numa cova rasa. Eu, cheio de palavras, resfolegando e soltando fumaça pelas narinas, recitava uma pequena carta de Artaud, poeta maldito: "... somos a força da vida, mas esta não é eterna, seja ou não o hálito de deus (...), o que respira não é eterno, e até o hálito-deus tem seu tempo contado".

E como não fazíamos há muito tempo, utilizando corpos expropriados, comemos, bebemos, dançamos e fizemos o sexo dos malditos, loucos e suicidas. Foi então que apareceu o rapaz. Ele olhou, mas não viu. Nós vimos, lembramos velhas histórias e falamos. Astarote, toda sensual, chamou:

-- Luís, entra na roda.

Ele levou um susto. Não entendeu como sabíamos o nome dele. Mas cheio de orgulho, aceitou conversar.

-- Quem é você?

Astarote respondeu:

-- Você sabe, entra na roda e vem dançar comigo.

Na verdade, o corpo de Astarote era lindo aos olhos humanos. Usava um vestido vermelho rodado, todo trabalhado em renda branca. Sorria para ele, dançava fazendo o vestido levantar. Sob a luz da lua, a cena era encantadora. Os atabaques batiam no ritmo do coração. O ar era de sensualidade e magia. Cuidadoso, mas cheio de autoconfiança, o rapaz respondeu:

-- Não posso entrar aí. Sou filho de Ogum. Meu orixá não permite, ele é o senhor da guerra.

Era mentira, nós sabíamos. Ele não tinha nenhum acordo com nenhum dos nossos. Mas nós adoramos a mentira. Ah! Se ele pudesse ouvir nossas gargalhadas. Quisemos saltar dentro dele. Era uma casa nova, quase limpa, se comparada às que tínhamos. Partimos para o ataque, mas uma espada flamejante nos impediu.

-- Ele pertence ao Deus criador dos céus e da terra. Aceitou o Senhor e o Senhor o recebeu. Estão proibidos de fazer nele morada e de tocar na vida dele. Esta é uma ordem do Senhor dos senhores, diante do qual se dobrará todo o joelho, tanto no céu, na terra, como embaixo da terra.

Aquela luz brilhava demais. Feriu nossos olhos, apavorou nossos corações, lembrou-nos da condenação eterna. Nossa festa tinha chegado ao fim. O ódio estremeceu os corpos que ocupávamos. Urramos, gritamos e fizemos com que se lançassem uns contra os outros. Depois, semimortos, os abandonamos ali. A partir daquele momento, resolvemos estraçalhar a vida daquele que nos perturbara.

Nenhum encontro é casual. Há sempre aquele que busca. Só que nem sempre o que se encontra entra na forma da imaginação. Descobri que a carne sente o gosto da madeira e do metal, mas também do ódio e da mentira.


No verão, quando sopra aquele vento quente da madrugada, saio pelos montes, atravessando paredes e casas. Transformo o calor no frio da morte, mato a esperança com uma palavra de medo, destruo a aliança com um sopro de adultério. Sobrevôo as árvores, matas e rios, envolvo tudo em trevas, tudo que vejo, imagino ou pressinto. As folhas que se mexeram sem minhas ordens, a mancha escura da nuvem que corre fugaz, o pensamento feito ladrão, que assalta e mata. E o tempo, para que serve? Eu o transformo na memória da solidão. Minhas palavras são punhais assassinos. Elas amedrontam a noite e congelam o dia. E eu fico encantado, como num conto de fadas. Afinal, sou Nebo, mestre da loucura, um demônio muito especial, cheio de malícia e de palavras mortas.

lundi 23 janvier 2017

O delírio bashert

O DELÍRIO BASHERT

Jorge Pinheiro, PhD

A propósito de introdução 

Em iídiche temos a palavra bashert (באַשערטque significa destino. Ela é usada para um cônjuge escolhido por Deus. É a basherte, feminino, ou o basherter, masculino. Também pode ser usada para expressar o destino aparente, como uma profunda amizade, ou o destino de um acontecimento. No uso moderno, pessoas solteiras dizem que estão procurando seu bashert, ou seja, a alma gêmea que irá complementá-las. 


Mas aqui vou construir um segundo conceito para bashert, como o da pessoa que se considera destinada no sentido religioso fundamentalista. Que tenta enfiar suas crenças goela abaixo das pessoas que se aproximam delas. É pró-ativa e numa conversa, ao ver que está perdendo terreno, se torna agressiva e até mesmo violenta.

É interessante notar que a idéia de progresso, na Modernidade, considerava que a realidade social devia estar em permanente desenvolvimento. Tudo tinha que progredir, tinha que gerar novidade. E se não fosse assim, seria ultrapassada pela voracidade da mudança. Embora parte dessa visão tenha sido diluída na pós-modernidade, em relação à religião, gentes ainda agem assim. Ou seja, esquece-se de que a fé é profundidade do ser e, como se diria faz um certo tempo, troca o motorneiro pelo ilustre passageiro.

Creio que as bases que possibilitam a postura esta bashert são a perversão da compreensão da fé e a aceitação sem críticas de idéias e lideranças religiosas. 

1. O falso encantamento

A postura bashert, conforme denominamos neste contexto, presente em instituições que fomentam o confronto religioso, geralmente prosperam a partir do encantamento, da soberba intelectual e da subversão da razão.

Quando falamos em encantamento não estamos falando de um mundo mágico, mas nos referimos a pessoas que desejam se esconder delas próprias. É o encantamento da pessoalidade real e a tentativa de construção de uma identidade ahistórica e irreal. Ora, o encantamento da pessoalidade está intimamente ligado à culpa, ao medo e subversão da razão, e se traduz na vivência de um mundo de aparências, virtual. E para que a construção de pessoalidades mascaradas tenha sucesso, os recursos de marketing, mídia e propaganda são essenciais. Mas não podemos esquecer a soberba. 

No caso protestante, o bashert considera a mensagem do evangelho simples demais. A justificação através do sacrifício expiatório de Jesus é coisa pouca. Um bashert protestante, auto-suficiente, não aceita sua miserabilidade, não necessita sentar-se aos pés do Cristo e aprender com ele.

É característica típica de um bashert protestante reivindicar alguma nova descoberta ou revelação. Mesmo quando declara que aceita os ensinamentos das Escrituras, quase sempre dilui essa afirmação em alguma revelação nova, que cancela o ensino das Escrituras. Com isso, diz que elas são apenas uma parcela da revelação de Deus e, que, em materia de doutrina e fe, o Cristo continua a falar à parte das Escrituras.

As Escrituras do Novo Testamento ensinam que a liberdade é outorgada como resultado da fé em Jesus Cristo. Podemos citar Rm 5:1, 3:23-25, 4:4-5, Gl 2:16, Ef 2:8-9 entre os muitos textos neotestamentários sobre esta questão. Bashert não pensa assim: troca a justificação pela salvação por associação e pela salvação através de obras. No primeiro caso, está salvo quem está ligado a determinado líder ou instituicao bashert. No segundo caso, o que a pessoa faz é o que conta. O que pode ser traduzido em horas passadas em trabalhos, doação de dinheiro, penitências, recitação de cânticos. Através da associação coercitiva e de um número de obrigações, pessoas deixam-se escravizar.

2. O buraco negro do futuro

Outra característica bashert é a incerteza da salvação. Interessados que estão no dinheiro, realização pessoal e poder, bashert usa como arma a incerteza sobre a salvação. Lança por terra a promessa bíblica e fundamental, que encontramos em I Pe 1:3-6, Ef 1:13, Hb 6:19, II Tm 1:12, II Co 5:1, Fp 1:23, Fp 3: 20-21, Cl 1:13, Cl 3:4, I Ts 4:17, entre outros textos. O futuro é um buraco negro para o bashert. 

Um líder bashert geralmente se apresenta como possuidor de alguma natureza divina, que deve inspirar a adoração de seus seguidores. E mesmo quando se mostra humilde, gasta rios de dinheiro em promoção pessoal, a fim de fazer seu nome brilhar diante dos olhos de seus seguidores. É muito comum ver um líder que se apresentar como detentor de dons especiais de oração, cura e milagres. Nega a doutrina do sacerdócio universal dos crentes e se coloca como mediador entre Deus e as pessoas (I Tm 2:5, Hb 4:14-16, Hb 10: 19-22).

Uma característica comum ao bashert é a mudança doutrinária. Suas doutrinas não param de sofrer alterações, a fim de adaptarem-se às novas situações, ou a novos argumentos. Essa aparente falta de consistência doutrinária é um recurso. O líder bashert ao recorrer a constantes mutações doutrinárias está, de fato, procurando colocar de lado a racionalidade, a lógica e a inteligência das pessoas, apelando a sentimentos e emoções religiosas vazias. A intenção é confundir e não esclarecer. Assim, a tendência bashert é o afastamento da verdade vivida nas Escrituras Sagradas.

No início da era cristã, a partir do segundo século, a igreja enfrentou o gnosticismo, que negava a humanidade de Cristo. E logo depois, o arianismo, que negava a divindade de Jesus. Em ambos os casos, apresentavam uma Cristologia defeituosa. Hoje, o bashert repete os erros do passado. 

Outro erro bashert comum é tomar um aspecto da fé cristã e colocá-lo como destaque em relação ao conjunto do cristianismo. Podem ser usos e costumes --véus, vestidos longos para as mulheres e ternos escuros para os homens --, que passam a definir a comunhão entre os irmãos, ou qualquer outro tipo de excentricidade teológica -- dom de línguas extáticas, dom de profecia.

Bashert, quase sempre, reduz seus seguidores a alguma forma de escravidão psicológica. O medo é a sua matéria-prima. Assim, ao invés de promover a liberdade cristã (Jo 8:36, II Co 3:17, Rm 14:5, I Co 7:23, Gl 5:1), cria um partido fundamentalista. E faz uma leitura particular da fidelidade cristã. Riqueza e bens passam a pertencer à igreja enquanto instituição de um líder ou grupo de líderes. Visa a formação de patrimônio no mundo da comunicação de massas, comercial e financeiro. Inescrupulosamente, vende privilégios, curas, dons ou poderes para seus seguidores. Muitas vezes, pressiona os fiéis até a exaustão econômica, levando famílias inteiras ao empobrecimento.

Quando um basher considera-se ungido, inevitavelmente, se levanta contra o restante da comunidade cristã, acusando todos os demais de falsos pastores. Isso gera violentos choques entre lideranças e igrejas. Este líder bashert, por ser sectário, nega de fato o papel do Cristo como o caminho da salvação e de cada cristão como crente e sacerdote, que se relaciona com Deus unicamente através da mediação de Jesus.

Um dos recursos favoritos do bashert é aglutinar numa miscelânea teológica doutrinas religiosas diferentes e antagônicas. Muitas vezes, tem uma piedosa aparência cristã e fala das coisas que conhecemos. Outras vezes, traz para o evangelho modismos sociológicos e políticos, colocando um sinal de igual entre o que o Evangelho é, a boa nova da salvação pela fé na expiação vicária de Cristo, e o que ele implica em termos sociais.

A maneira de conclusão

Diante da expansão bashert temos uma responsabilidade crescente. É preciso conhecer a fé cristã. O cristão deve ser preparado para viver a sua fé, e as igrejas devem ensinar que os cristãos não podem soltar-se pela vida, na onda da euforia existencial. Somos chamados à teologia da vida simples (I Pe 5:8).

Não podemos fugir à responsabilidade de defender a fé. E fazemos isso vivendo o testemunho dela. Reconhecemos as bases e fundamentos daquilo que professamos e a proclamação nasce deste viver, e não de um postura bashert. É assim que apresentamos ao mundo o legado que nos foi entregue por Jesus de Nazaré.




vendredi 20 janvier 2017

Patrifocalidade e experiência mística

A patrifocalidade judaica

De acordo com os rabinos especialmente da corrente reformada, a família judia como aparece na Torá é patrifocal, e os costumes seguem a tradição religiosa do marido e não da mulher. Por isso, não se poderia falar em tradição matrilinear dentro do judaísmo. A matrilinearidade, então, será um idéia que surgirá mais tarde, e que nunca se tornou uma norma unânime para todos os judeus. Aliás, podemos dizer que a matrilinearidade foi introduzida por rabinos ucranianos nos pogroms de Kirovohrad, em Kiev, em abril 1881, depois do assassinato de Alexander II. O objetivo da medida era dar às crianças de legitimidade social, já que muitos estupros tiveram lugar nessa época.

Mas, podemos dizer que a transmissão matrilinear no judaísmo foi codificada pela primeira vez no Talmude, no Kidushim 68 TB, no Tratado da Mishná. O princípio da transmissão matrilinear, foi assim discutido no Talmude de forma a deixar para que definições posteriores pudessem optar ou não pela matrilinearidade. Se fizermos uma leitura da Torá em sua literalidade vemos que as pessoas são apresentados por sua ascendência paterna, como é o caso, de Josué, filho de Nun, e de Rachel, filha de Labão, por exemplo. Mas encontramos também Bethuel, filho de Milca, e Dinah, filha de Leah. As leis da herança e partilha de terras são baseadas no pai, daí o episódio inédito das filhas de Tzelofehad. E a herança sacerdotal e levítica é transmitida exclusivamente pelo pai.

Alguns historiadores conservadores, como rabino Shaye Cohen, afirmam que o princípio da matrilinear foi introduzido na Mishná, e rompeu com a lei da patrilinearidade. Ou seja, podemos dizer, apesar dos exemplos dados acima, da citação do nome de mães, que o princípio da matrilinear é desconhecido na Torá e nos escritos do primeiro século da Era Comum. 

Michael Corinaldi, professor de direito na Universidade de Haifa, no entanto, nos apresenta algumas razões que devem ser levadas em conta para que a transmissão matrilinear seja base da nacionalidade. Em primeiro lugar, o fundamento biológico, já que a identidade da mãe é certa, e a do pai pode ser questionada. Em segundo lugar, o fundamento sociológico, pois a educação é transmitida pela mãe. E não podemos esquecer, sob este ponto de vista, que a identidade judaica é muito dependente da educação. E, em terceiro lugar, o fundamento político durante as guerras judaico-romana, quando os filhos das mulheres judias estupradas pelos romanos eram reconhecidos como judeus e não romanos.

Há ainda outros fatores que devem ser levados em conta, como o fundamento demográfico, já que muitos judeus morreram na guerra, e foi decidido, então, que as crianças nascidas como judeus, fossem consideradas filhas de pais estrangeiros. E há ainda o fundamento jurídico, já que no direito romano, as crianças nascidas romanas, de mães não romanas, recebiam a cidadania da mãe e eram excluídas da herança do pai e não recebiam os benefícios de um filho de cidadania romana. E a lei talmúdica segue esse pensamento, quando considera que o filho ilegítimo de mãe judia tinha o direito de usufruir seus direitos como cidadão de Eretz Israel. 

Ou seja, nos casos de casamentos mistos, a criança herdaria o judaísmo através da mãe. Em casos normais, herdaria o estado do pai. O judaísmo objetivo da mãe, no entanto, seria o pré-requisito para que isso acontecesse, o que nos leva a pensar que a transmissão matrilinear está presente em qualquer caso.

Já a determinação da nacionalidade israelense a partir da mãe é o oposto do que é feito na maioria dos países. Mas há uma pressão crescente a favor a exclusividade da herança matrilinear, principalmente por parte dos movimentos judaicos progressistas, presentes nos países anglo-saxões. Tal leitura no entanto não nega os ensinos do Talmude, mas se baseia numa adaptação aos tempos atuais. Para muitos rabinos, especialmente do judaísmo reformado, a família hebraica como aparece na Torá é patrifocal, então, nada indicaria uma obrigação fechada exclusivamente na matrilinearidade. Esses rabinos aconselham a conversão da mãe não-judia, para dessa maneira facilitar a educação dos filhos dentro do judaísmo. Tal princípio, da transmissão matrilinear ou patrilinear foi adotada oficialmente nos EUA em 1983 e é válido também na Inglaterra. 

Assim, embora com presença forte da matrilinearidade, o judaísmo continua a ser uma religião patriarcal. O sexo extraconjugal é proibido, as mulheres adúlteras eram apedrejadas, e deviam usar o véu para não ser fator de sedução. A segregação das mulheres em Israel ainda é praticada, o sangue menstrual é demonizado, e a circuncisão estabelece o direito sagrado do pai.

A experiência mística

A Torá diz que o Pai, visto e lido como o Eterno, dá como ele quer, quando ele quer, para quem ele quer. Esta experiência judaica traz embutida algumas informações importantes sobre o Pai, ele é pessoal e livre para tomar as decisões que quiser. Ao escolher o povo de Israel como sua testemunha na história, o Pai particularizou um povo para o bem de todas as nações. E foi assim que decidiu revelar o mistério guardado no coração de cada criatura, apesar do egoísmo presente nos corações. O mistério é que todos somos portadores de uma dignidade inalienável, nativa e universal.

E se o Pai dá livremente, ele recebe livremente. O dar do Pai é o mesmo para todos, já que ele dá a si próprio, mas cada pessoa recebe o dom de forma singular, porque o encontro com o Pai é sempre pessoal e pessoalizado. O que é uma pessoa? Quem é uma pessoa? Fora do Pai, não está sob a autoridade humana decidir quem é pessoa e quem não é. Na Torá, a experiência expressa o que todos os humanos percebem, sabem, sentem, o mistério de Pai. E todos os humanos reconhecem, de forma diferentes, que é um risco todo e qualquer encontro com ele. E as palavras confiança, fé, posicionamento traduzem esse trágico e inusitado encontro, é experiência compartilhada por todos que, através do tempo e espaço, reconheceram fragilidade e vulnerabilidade diante do Pai. 

O encontro com o Pai é sempre místico, oferece um momento de aventura que transcende o humano. Por isso, místico é o ato de procurar igualar o dar do Pai com uma abertura total, para receber pessoalmente na medida maior da liberdade aquilo que ele entrega. Por isso, o extraordinário da experiência mística, que parte da experiência ordinária com um superar inimaginável da riqueza da vida e da realidade, cria sempre um momento de graça. É a graça mística presente em todo encontro com o Pai. Essa graça, presente do Pai, é sobrenatural, pois é mistério divino que opera em nós. E assim o Pai renova a natureza humana, porque o dom recebido de Pai chama a uma resposta corajosa, fiel e pessoal, sem a qual não pode haver aliança e novo sentido de vida. E o selo da autenticidade está no trabalho abnegado que a visita do Pai nos leva a realizar.

Para o místico, o conhecimento de Pai não é uma abstração, mas um acontecimento decisivo, um encontro que clama por resposta. Existe encontro místico quando o racionalista ou cético em todos nós é derrotado. O Pai não pode ser reduzido a uma realidade puramente externa, ou pior a uma divindade bloqueada nas imagens congeladas de um catecismo colorida ou conhecimentos higienizado. O Pai, o primeiro, conhece e ama o ser humano misticamente, cada ser humano. A revelação do "Eu Sou" não termina com a confissão de fé que diz "você é", mas na amizade com ele que leva a dizer: "Eu estou com você".

É por isso que os místicos costumam comparar sua experiência com a de amantes ou cônjuges que constroem relacionamentos, em que são envolvidos total e completamente. Eles se tornam-se, pelo encontro, um com o outro. Com o Cântico dos Cânticos, com Teresa de Ávila e Edith Stein podemos dizer que a união mística é o resultado tanto que suga e quer o amor eros, como o amor do Pai, que olha com piedade sua criatura como caritas e ágape. No ponto onde estes dois amores se encontram, a união pode ser realizada. 

Assim, podemos descrever o lugar e o desafio da experiência mística: é a união no coração do ser humano e seu Pai. Neste contexto, as uniões pessoais que se pode fazer com Pai são singularidades, como a de Shaul, o rabino de Tarso.