mercredi 20 mars 2013

A teologia da práxis libertadora -- para entender o passado

A teologia da práxis libertadora
Jorge Pinheiro, Teologia Política, Paul Tillich, Enrique Dussel e a Experiência Brasileira, São Paulo, Fonte Editorial, 2006, pp. 158-170.

No final dos anos 60, quando a teoria do desenvolvimento começou a entrar em declínio,[1] a estratégia da revolução conquistou corações e mentes latino-americanos. Intelectuais e partidos políticos de esquerda abandonaram a proposta do desenvolvimento, bandeira levantada entre outros pela Comissão Econômica para América Latina -- CEPAL, ligada à ONU, e promovida pelo governo de John Kennedy através da Aliança para o Progresso, e seguiram os passos de Che Guevara e Fidel Castro. Dessa maneira, a guerrilha surgiu na Colômbia, Guatemala e Bolívia, e foi-se espalhando pelo resto da América Latina. Seguindo o sentido revolucionário que começou a incendiar o continente, teólogos protestantes, num primeiro momento, e católicos, posteriormente, optam pela estratégia da revolução. Teologicamente, o caminho da revolução levou a uma reflexão que privilegiou a construção teológica a partir da valorização da história, da cultura e da diversidade de formas de manifestação do encontro do ser humano com Deus.

A Teologia da Libertação surgiu assim como fruto de uma reflexão sobre problemas objetivos vividos na América Latina. Opressão e miséria são fenômenos documentados em todos os países latino-americanos. Mas tais fenômenos não são suficientes para explicar o surgimento de uma teologia e dos movimentos de libertação que cresceram a partir da vitória da revolução socialista em Cuba, em 1959. A existência da miséria não basta, é necessário que a pessoa oprimida perceba a necessidade de lutar pela própria libertação. Deve tomar consciência do estado de opressão e entender que tal situação pode ser vencida.[2]

“Para além do desenvolvimentismo está uma nova postura, que se transmite depois, rapidamente, à teologia, e será toda uma nova linguagem, uma interpretação econômica, política e, logicamente, teológica da libertação”.[3]

A expressão teologia da libertação definiu o sentido dessa reflexão, ao considerar que a libertação é o horizonte regulador da fala sobre Deus e que o Deus do discurso é fonte da libertação. Dessa maneira, nesta construção teológica, Deus se manifesta nos diferentes momentos do processo histórico. A teologia passa, então, a ser força geradora de ações que viabilizam uma práxis, oriundas das necessidades das circunstâncias sob as quais um povo está submetido.

“Por isso, a teologia adquire uma importância capital. Antes, nossos sacerdotes iam à Europa cursar Direito Canônico (...), depois fomos fazer sociologia, economia e política, mas agora se redescobriu que é na teologia onde se encontra a questão. Porque a teologia é a conscientização de todo o processo que se está vivendo; é na teologia que se deve começar a insistir, cada um, em todos os níveis, porque é necessário redescobrir os critérios interpretativos de nossa fé, para que, diante de situações novas, possamos também inventar soluções novas”. [4]

Assim, o conceito libertação, nos anos 1960/70, surge a partir da realidade cultural, social, econômica e política sob a qual se encontrava a América Latina. E é a partir do quadro vivido no continente que o conceito se consolida. Libertação, então, passa a ser toda “ação que visa criar espaço para a liberdade”.[5] Essa é a origem primeira e o contexto da reflexão teológica que se desenvolveu a partir de uma práxis concreta, num contexto político, social e cultural determinado. Nasceu, a teologia da práxis libertadora. Ou como afirmou Assman em 1972:

“Acabou-se o tempo do desenvolvimento e começou a era da libertação, pois que libertação é o novo nome do desenvolvimento. Partir desta situação histórica para refletir sobre a fé cristã não significa limitar o conceito de libertação ao plano econômico (embora aí esteja a prioridade). A libertação do homem no curso da história exige não só melhores condições de vida, uma mudança radical de estruturas, uma revolução social; exige algo mais: uma nova maneira de ser do homem, uma revolução cultural permanente”.[6]

Embora tenhamos elaborações como a da Conferência do Nordeste -- Cristo e o Processo Revolucionário Brasileiro[7], de 1962, e Towards a Theology of Liberation de Rubem Alves[8], foi no encontro da Conferência do Episcopado Latino-americano, realizado em Medellín, em 1968, que a Teologia da Libertação adquiriu direito de cidadania.[9] Partindo das propostas do Concílio Vaticano II, a conferência de Medellín faz três afirmações que nortearam o pensamento dessa teologia, que os países pobres estavam submetidos ao imperialismo; a igreja latino-americana vivia num meio social em processo revolucionário;[10] e que a igreja latino-americana deveria buscar sua transformação, diante da miséria e injustiça. Assim, a Conferência do Episcopado Latino-americano não viu a libertação reduzida à esfera espiritual, mas enquanto ação transformadora que se estende ao ser humano como totalidade, cobrindo as esferas das relações familiares, sociais e políticas. Se por um lado, as opressões do ser humano latino-americano direcionaram a teologia da libertação, por outro, ela também sofreu influência de teólogos europeus que procuraram interpretar a mensagem de Cristo e a história da salvação em base política. Esses teólogos, entre os quais podemos citar J. B. Metz, H. Cox e J. Moltmann negavam a interpretação escolástica e as abordagens existenciais e procuravam na práxis política uma interpretação da mensagem cristã. Ou como diz o próprio Metz:

“A salvação a que se refere a esperança da fé cristã não é uma salvação privada. A proclamação desta salvação empurrou Jesus para um conflito mortal com os poderes políticos de seu tempo. Sua cruz não está no privatissimum da esfera indivíduo/pessoa, e muito menos no sanctissimum da esfera puramente religiosa. Ela está além do umbral da reservada esfera privada ou da protegida esfera puramente religiosa. Ela está ‘fora’, como formula a teologia da Carta aos Hebreus. O véu do templo foi definitivamente rasgado. O escândalo e a promessa desta salvação são públicos”. [11]

Na busca de contribuições, a teologia da libertação procurou responder ao desafio de definir os problemas e os caminhos para o diálogo entre as populações pobres latino-americanas. E mesmo sem saber se tinha a capacidade de contribuir na solução destas crises, deve-se reconhecer que tentou. Pessoas e grupos interessados na superação das crises, mesmo aqueles que não compartilhavam de nenhuma crença religiosa, aproximaram-se da teologia da libertação por entender que a reorganização democrática da sociedade tinha a ganhar com as contribuições que vinham dela. Mas, se havia crise do mundo, se havia crise no Brasil, de onde a teologia devia partir? Dussel, numa reflexão sobre erros e acertos do passado, ressaltou a importância do esforço de se fazer uma teologia que enfrente as crises presentes. E caminhará a partir da complexidade do mundo do pobre, conceito este que levará a dois outros: vítima e excluído. Já que para ele exclusão, do latim exclusióne, é uma categoria sócio-econômica, cultural, de gênero, de cor, conforme expõe:

“É necessário levantar um princípio absolutamente universal que é completamente negado pelo sistema vigente que se globaliza: o dever de produção e reprodução da vida de cada sujeito humano, especialmente peremptório nas vítimas desse sistema mortal, que exclui os sujeitos éticos e só inclui o aumento do valor de troca”. [12]

Aqui o pobre é visto como vítima e excluído: é aquele que tem negada sua eticidade à vida. Assim, se exclusão é pobreza, é, no entanto, antes de qualquer coisa, morrer no começo, fome, doença, mortalidade infantil, marginalidade. É a negação do dom da vida. E a complexidade desse mundo não pode ser esquecida por aqueles que desejam fazer teologia e apresentar ao mundo a boa nova da salvação. Afirma, também, que há um esforço para silenciar o mundo do pobre-vítima-excluído. Esse esforço se faz presente através de ideologias que visam o mercado transcendentalizado. E esse engano dos capitalismos imperiais alargaram a brecha entre participantes do mercado e excluídos, impõe o pensamento único, e objetiva calar o excluído. A economia é colocada acima da ética, a política é negada enquanto relação e é pregada a morte das ações de transformação social, a fim de calar as vozes dos não incluídos no mercado transcendentalizado. Esta realidade foi vivida pela sociedade brasileira durante o governo militar. E um teólogo anglicano assim definiu este momento vivido pela América Latina e o Brasil:

“É a este vazio (...) que somos levados pela domi­nação do capitalismo de mercado. Politicamente, proclama-se que to­das as funções do Estado devem ser transferidas à empresa privada. O que temos de fato são governos civis que exercem seu poder através do uso de aparatos policiais e militares, O slogan é: O Estado social escraviza, o estado policial liberta. Hinkelammert cita o chefe da po­lícia secreta do Chile, que, no auge da sua imposição de políticas mone­taristas, disse: A segurança nacional é como a amor: nunca é demais. A metafísica do capitalismo empresarial é necessária para justificar este uso do terror do Estado contra os inimigos de livre empresa”.[13]

Diante das pressões reais do estado autoritário no Brasil, a teologia se fez práxis e procurou construir um caminho da liberdade. E a expressão maior dessa tentativa de construção foram as Comunidades Eclesiais de Base. Em janeiro de 1979, D. Adriano Hipólito, bispo de Nova Iguaçu fazia um balanço das CEBs:

“Hoje são quase 50 mil Comunidades Eclesiais de Base, organizando cerca de um milhão e quinhentas mil pessoas, no Brasil. Elas identificam o pecado-raiz de toda a opressão: ... esse grande pecado é agora social e se chama sistema capitalista, concluiu o III Encontro Intereclesial de Comunidades de Base, em julho de 78 na Paraíba. Já não se contam mais nos dedos as Comissões Diocesanas de Justiça e Paz. A Igreja Católica foi, talvez, o primeiro setor organizado, com peso efetivo na sociedade brasileira, a empunhar a bandeira de luta pelos direitos humanos. Ligada às parcelas mais exploradas do povo, sofrendo a perda de padres e freiras perseguidos e mortos, a Igreja se organizou para combater as ameaças à Justiça e à Paz. Deixa, enfim, o regaço dos poderosos, não sem contradições e conflitos dentro de sua própria estrutura”.[14]

Logicamente, diante de um Partido dos Trabalhadores em formação, principalmente por parte dos agrupamentos socialistas, havia desconfiança ao engajamento da igreja na luta pelos direitos dos oprimidos, por causa de sua tradição heteronômica. Mas para o bispo e teólogo não havia razões para tal desconfiança.

“A Igreja, na sua essência, é comunidade de fé, de esperança e de amor. Sua maior eficiência, fermentadora e renovadora da comunidade humana, sempre dependeu de seu comportamento e de sua atuação com comunidades. Sem dimensão comunitária a Igreja não é Igreja. Sem abertura para os problemas da comunidade/sociedade, a Igreja não está em condições de realizar sua missão, ser continuação da ação libertadora de Jesus Cristo, ser sinal de esperança para o homem angustiado e sofredor. É verdade que nem sempre a consciência comunitária da Igreja funcionou com tanta clareza. Houve períodos históricos em que os cristãos, inclusive em nível de hierarquia, se deixaram envolver demasiadamente pelos interesses de grupos do poder, e assim se acomodaram. Essas colocações são importantes para entender o interesse da Igreja pelos problemas da humanidade e os instrumentos que ela criou, como por exemplo as Comunidades Eclesiais de Base (CEB), as Comissões de Justiça e Paz, etc... Não visam dominar, elas visam servir melhor”.[15]

Diante disso, para os socialistas, durante anos circunscritos à clandestinidade e ao exílio, uma questão deveria ser esclarecida: o que são de fato essas comunidades católicas?

“Comunidade: as pessoas se aproximam livremente, se sentem responsáveis, descobrem e atuam nos mais diversos elementos de interesse comum. Eclesial: o ponto de partida e de chegada, os elementos formadores e aglutinadores, os métodos de ação, etc, são os mesmos da Igreja. Base: a comunidade de base tem como princípio fundamental o relacionamento primário das pessoas: pessoas que se conhecem, que se estimam, se complementam, se ajudam mutuamente. Todos atuamos em nível de base. A CEB, embora não seja constituída para fazer política, tem de se preocupar com os problemas políticos e tem parte ativa no processo político. Tem a preocupação de integrar as pessoas da base no processo social, como direito/dever da pessoa humana, e de levá-la à participação consciente e crítica”.[16]

Foi essa visão das CEBs, fruto da reflexão teológica da práxis libertadora, que levou a uma aliança de parte da catolicidade com a formação do Partido dos Trabalhadores, conforme argumentava o bispo de Nova Iguaçu:

“Para participar do processo social, o Povo precisa de instrumentos válidos e eficientes. Entre esses instrumentos estão, por exemplo, os sindicatos e os partidos políticos. Os sindicatos devem ser órgãos de participação eficiente na defesa dos direitos dos seus sindicalizados. Estão a serviço dos trabalhadores como comunidade de trabalho que constrói a Pátria, e não a serviço de grupos do poder, de demagogos e pelegos. O Estado onipotente conseguiu, também no Brasil, corromper a filosofia dos sindicatos, reduzindo-os a instituições de beneficência e lazer. (...) Um partido trabalhista que corresponde realmente a uma grande corrente do pensamento popular, na classe dos trabalhadores será, mais cedo, ou mais tarde, uma necessidade imperiosa. (...) Mas um Partido Trabalhista que esteja entregue a liderança dos trabalhadores, e não seja manipulado por uma elite burguesa que deseja apenas conquistar o poder”.[17]

E se tal aliança é possível, está colocada a discussão das relações entre cristianismo e socialismo. E tem início uma aproximação entre católicos e socialistas que vai marcar a construção do pensamento desse novo partido. 

“Sem disfarçar as divergências em pontos fundamentais, podemos admitir uma luta comum por uma causa comum: a justiça social. Quero crer que sem o Cristianismo como pano de fundo, o Socialismo não se explica suficientemente. Muitos elementos do socialismo são de fato cristãos”.[18]

Assim para o bispo, a história da catolicidade é passível de críticas. Muitas vezes, suas opções e alianças com os grupos de poder fizeram com que se afastasse e dificultasse seu relacionamento com parte da população excluída de bens e possibilidades. Tal situação potencializou o distanciamento entre o cristianismo e o socialismo. Mas, segundo Paul Tillich, o socialismo erra quando nega a existência da base solidária e comunitária do ideal cristão[19]. Assim, a Teologia da Libertação e as Comunidades Eclesiais de Base possibilitaram, no contexto brasileiro, o diálogo e a aproximação necessários ao partido em construção. E os socialistas aprenderam a entender as contradições da hierarquia e a fazer alianças com os católicos:

“Qualquer que seja o resultado da reunião, a luta entre as tendências conservadoras da Igreja e os setores progressistas vai continuar. Ela não é um fenômeno apenas superestrutural, ela reflete um processo mais amplo de lutas sociais, e faz parte da movimentação política das massas latino-americanas, hoje num processo irreversível de construção de sua própria história. (...) Se os homens são aquilo que fazem, a Igreja está sendo aquilo que seus sacerdotes têm praticado. E essa prática de discussão e organização das bases de nossa sociedade nós precisamos compreender e avaliar”.[20]

Não somente a lutar juntos, a novidade é que começaram a pensar juntos, a pensar a catolicidade com seus acertos e desacertos.

“(...) se analisarmos o caminho da Igreja através de todos os seus documentos e o nível do seu comprometimento histórico, desde a encíclica “Rerum Novarum” do Papa Leão XIII, promulgada em l931, até o discurso do Papa João Paulo II em Monterrey, na sua chegada ao continente para a abertura da Conferência. Porém, até onde o comprometimento da Igreja chegou, não era possível acreditar numa meia-volta, e num retorno às omissões cúmplices com as classes dominantes. Daí que as interpretações, que viam em Puebla um plebiscito para a “teologia da libertação”, falharam totalmente. Há, sem dúvida, no interior da Igreja, a corrente simpática a um alinhamento direto com as classes dominantes, mas a grande maioria do episcopado presente no México sabe que as decisões do Medellín foram demasiadamente profundas para serem abolidas por um ato de vontade”. [21]

As contradições existiam, mas a questão era: será possível contar com um setor do catolicismo nesta construção de um partido de trabalhadores? Paulo J. Krischke, na época exilado brasileiro que lecionava na Universidade Autônoma do México e era integrante do Latin American Research Unit, respondeu à pergunta mostrando que os socialistas não podiam descartar a possibilidade de que setores da hierarquia tentassem despolitizar as bases da igreja e esvaziar o projeto das CEBS.

“(...) na medida em que o período atual de transição e conflitos abertos com o governo tiver sido superado. Porém, se tal superação realmente se concretizar, com a “volta dos militares aos quartéis, dificilmente se poderia exigir das bases da igreja mobilizadas politicamente, uma “volta dos cristãos à Igreja”, ou seja, unicamente para suas atividades religiosas... Como vimos em Gramsci, “uma concepção ativa do mundo” (ao contrário do fanatismo sectário de uma doutrina de segurança nacional) conduz necessariamente a uma expressão partidária e ao questionamento do poder, sempre que seja essa uma “religião historicamente necessária”, quer dizer, que corresponda ao desenvolvimento orgânico da sociedade. Além disso, o exercício das atividades internas da igreja não é incompatível com sua expressão exterior face a uma prática política pluralista. Antes (...) elas se reforçam mutuamente. Já vai longe o tempo em que a igreja podia aspirar a uma unidade monolítica, ou ao controle disciplinar da maioria da instituição eclesiástica. Assim, o surgimento de setores religiosos sensibilizados politicamente gera um potencial de atuação partidária, que pode ser canalizado tanto por orientações de esquerda, como de direita ou de centro, porém, principalmente por tendências terceiristas ou centristas, dadas as características da ideologia social-cristã e sua forte penetração recente entre a liderança e as bases da Igreja”.[22]

Assim, socialistas e políticos de esquerda aprenderam a acompanhar com atenção o movimento pendular da hierarquia católica. Em análise de conjuntura no jornal Versus, escrevemos sobre a possibilidade de que a Igreja viesse a apoiar o novo partido, pois cada vez mais se distanciava da idéia de construir um partido democrata-cristão.

“(...) até agora os cardeais e bispos brasileiros têm-se pronunciado contra a formação de um partido ligado à Igreja. E há razões para isso. Primeiro porque a Igreja no Brasil não está coesa ideologicamente A corrente democrata-cristã vai desde um Franco Montoro até a um Nei Braga, desde um dom Paulo Arns ou um dom Hélder Câmara até a um dom Sigaud. E juntar tudo isso num único partido seria problemático. Além disso, há a experiência internacional, naqueles lugares onde a Igreja lançou partidos políticos e estes fracassaram cai também o prestígio da Igreja. O exemplo mais complicado dessa situação é a própria Itália, onde a Santa Sé não sabe como se livrar do peso que é o Partido Democrata Cristão. Por isso, a tendência maior é que a Igreja jogue no seu papel atemporal, e tenha elementos nos mais diferentes partidos. Aliás, é o que tem feito desde 1945: apresentar uma cara antiditatorial e democrática, sem lançar-se como opção política definida”.[23]

Dessa maneira, a teologia e sua práxis passaram a fazer parte das discussões da esquerda, que viu nas Comunidades Eclesiais de Base aquilo que lhe faltava, meios de chegar às massas empobrecidas do país. Ao mesmo tempo, as esquerdas descobriram que a massa de trabalhadores sindicalizados era católica e tinha ligações com as CEBs. Tais realidades eram indiscutíveis e possibilitaram não somente um diálogo entre católicos, uma minoria protestante, os sindicatos e as esquerdas, mas ações e mobilizações conjuntas que caminharam em direção à criação de um partido de classe.





[1] A teoria do desenvolvimento delineou nos anos 60 um novo tipo de relações entre países ricos e países do Terceiro Mundo, de mais cooperação e assistência. Foi defendida por organismos internacionais e, também, por bispos e teólogos latino-americanos. “Medellín se encontra hoje no que chamamos de passagem do desenvolvimentismo para a teologia da libertação. O que significa o desenvolvimentismo? Que existem sociedades desenvolvidas e sociedades subdesenvolvidas, logo é necessário desenvolver as segundas. Mas o desenvolvimentismo pensa que deve-se desenvolvê-las segundo o modo e o modelo das desenvolvidas. (...) Isso é o que pensa o desenvolvimentismo e está um pouco presente ainda em Medellin”. Enrique Dussel, Caminos de la liberación latinoamericana I, Buenos Aires, Latinoamérica Libros, 1972, p. 108.  
[2] Enrique Dussel, História da la Iglesia en América Latina, medio milenio de coloniaje y liberación (1492-1992), Madri/México, Mundo Negro-Esquilla Misional, 1992, p. 218-220.
[3]  Enrique Dussel, Caminos de la liberación latinoamericana I, op. cit., p. 109.
[4] Enrique Dussel, Caminos de la liberación latinoamericana I, op. cit., p. 170.
[5] Leonardo Boff, Teologia do cativeiro e da libertação, Petrópolis, Vozes, 1980, p. 87.
[6] Hugo Assman, Religione, oppio o strumento di liberazione?, IDOC-Mondatori, Verona, 1972, p. 164.
[7] A Conferência do Nordeste teve três blocos de trabalhos publicados pela Confederação Evangélica do Brasil: os estudos da I Reunião de Consulta sobre a Responsabilidade Social da Igreja, realizada de 15 a 18 de novembro de 1955, e publicado em março de 1956; os documentos preparatórios da Conferência do Nordeste, em especial os textos de Celso Furtado e de Joaquim Beato; e os dois cadernos, Cristo e o Processo Revolucionário Brasileiro, publicados em 1962. Na sequência apresentamos os trabalhos publicados, por data, autor (ou grupo de estudo) e título: 1955, CEB/CIS, “Estudos sobre a  responsabilidade social da igreja”; 1962, Almir dos Santos, “Cristo e o processo revolucionário brasileiro”; 1962, Celso Furtado, “Reflexões sobre a pré-revolução brasileira”; 1962, Celso Furtado, “O NE no processo revolucionário brasileiro”; 1962, Edmundo K. Sherrill, “A missão total da Igreja numa sociedade em crise”; 1962, Ernst Schilieper, “A Igreja e a sua responsabilidade social”; 1962, Gilberto Freire, “O artista: servo dos que sofrem”; 1962, João Dias de Araújo, “A revolução do reino de Deus”; 1962, Joaquim Beato, “Ideologia cristã como base para a ação social da Igreja”; 1962, Joaquim Beato, “Os profetas em épocas de transformações políticas e sociais”; 1962, Juarez R. B. Lopes, “Resistências à mudança social no Brasil”; 1962, Paulo Singer, ‘”Mudanças sociais na história contemporânea”; 1962, Sebastião G. Moreira, “Cristo, a única solução para o Brasil”; 1962, Grupo de Estudo, “Fronteira econômica, Grupo urbano”; 1962, Grupo de Estudo, “Fronteira econômica, Grupo industrial”; 1962, Grupo de Estudo, “Fronteira econômica, Grupo rural”; 1962, Grupo de Estudo, “Fronteira cultural, Grupo educacional”; 1962, Grupo de Estudo, “Fronteira cultural, Grupo de arte e comunicação”; 1962, Grupo de Estudo, “Fronteira estudantil, Grupo estudantil”; 1962, Curt Kleemann, “Encerramento da Conferência do Nordeste”; 1962, Apêndice, ‘Cidadania responsável nas situações históricas”.
[8] Rubem Alves, Da Esperança, Campinas, Papirus Editora. Towards a Theology of Liberation, Corpus Book, Washington, 1969. Trad. João-Francisco Duarte Jr.
[9] R. Vidales, Acquisizioni e compiti della teologia latinoamericana, Roma, Concilium, 1974, nº 4, p. 154.
[10] “Os teólogos apenas analisam a situação social, política e econômica do nosso mundo contemporâneo e apenas constatam a existência dessa luta de classes que é sempre deplorada por eles. Nenhum teólogo da libertação achará o evangelho classista no sentido sociológico moderno. Por outro lado, seríamos cegos se não percebêssemos no evangelho a clara condenação dos ricos e a mais clara ainda opção pelos pobres”. Jaci Maraschin, “A Teologia da Libertação torna-se adulta”, in A maioridade da Teologia da Libertação, Estudos de Religião nº 6, abril de 1989, pp. 7-8.
[11] J. B. Metz, Sulla teologia del mondo, 1968, p. 11.
[12] Enrique Dussel, Ética da Libertação na idade da globalização e da exclusão, Petrópolis, Editora Vozes, 2000, p. 573.
[13] Timothy J. Gorringe, O Capital e o Reino, ética teológica e ordem econômica, São Paulo, Paulus, 1997, Quarta Parte, Dois Caminhos, pp. 211-227.
[14] Entrevista de D. Adriano Hipólito a Renato Lemos e Marcos Magalhães, “O mandamento da liberdade”, São Paulo, Versus no 28, 01.1979, pp.14-15. Na abertura da entrevista os editores do jornal Versus, da Convergência Socialista, afirmam: “A velha Igreja ainda pesa. Esse processo de descolamento se dá em toda a América Latina. Desde Medellin, há 10 anos, nasce uma igreja combativa, voltada para os problemas das sociedades pobres e dependentes. É aí que aparecem Pedro Casaldáliga, Tomás Balduíno, D. Pelé, Benedito Uchoa, Cândido Padim. Para um jornal que se coloca junto às lutas populares este é um debate fundamental. Qual é o papel da Igreja hoje? O que acontecerá em Puebla? Dentro de alguns dias, centenas de religiosos se encontrarão no México, para decidirem o destino de suas comunidades, arduamente trabalhadas durante anos e anos. O Papa vai a Puebla: rompe-se a tradição anticlerical da revolução mexicana, mas, é certo, podemos esperar a aberta interferência de um Vaticano endividado, atolado na falta do dinheiro, recebendo ajuda americana, e alemã... um papa polonês, um golpe nos estados operários, golpe nas comunidades de base?”
[15] Renato Lemos e Marcos Magalhães, artigo cit., p.15.
[16] Ainda segundo D. Hipólito: “A CEB aberta, integra-a quem quiser viver e agir em dimensão comunitária. É através da educação de seus membros, empregando o método da reflexão bíblica-oração, orientada para a via concreta: conscientização para a participação tanto na atuação interna da comunidade e da Igreja, como na atuação social. A CEB não é uma sociedade secreta, por isso não tem medo de serviços secretos, nem de perseguição. É típico de uma ideologia de segurança e de desenvolvimento ter medo da conscientização e da participação ativa do Povo, e por isso mesmo olhar como subversivas as atividades da Igreja e das CEBs”. Renato Lemos e Marcos Magalhães, artigo cit., p.15.
[17] “Olho a nossa América Latina. Apesar de certas aparências, nossos povos vivem à margem do processo social. Uma elite, voltada inteiramente para a Europa, para os EUA, para a Rússia, continua hoje o imperialismo colonial de séculos passados. Só que agora o colonizador é interno. Apesar da chamada independência política os nossos povos precisam ainda ser liberados, e ter os meios de participar intensamente da vida nacional. Medellin quis dar um impulso forte para o aceleramento deste processo integração e participação. Nossa esperança é que a planejada Terceira Conferência, em Puebla, intensifique mais ainda o esforço de Medellín”. Renato Lemos e Marcos Magalhães, artigo cit.,  p.15.
[18] E D. Hipólito continua, argumentando sobre a possibilidade do diálogo: “Disse o sociólogo alemão Werner Sombart: ‘há mais de cem tipos de socialismos’. Certamente com vários tipos será possível uma aproximação do Cristianismo. É por isso que as palavras de Pio XI no Quadragésimo Anno: ‘Ninguém pode ser ao mesmo tempo socialista e cristão’ (que em determinado momento histórico visava ao socialismo radical, em sua forma extremada) têm de ser entendidas corretamente. O Socialismo teve de adaptar-se, e moderar-se no contato com a realidade concreta, que é sempre muito diferente do mundo dos filósofos e dos ideólogos. A História, mestra da vida, corrigiu graves erros do Socialismo primitivo, como está corrigindo (cf. Eurocomunismo e também as formas políticas dos diversos países comunistas) o Marxismo. Para nós, os cristãos, vale sempre o princípio de não absolutizarmos os momentos históricos, que de sua natureza, são sempre contingentes e mutáveis. Isto vale para a Política, para a Economia, para a Cultura, para as diversas Religiões. Isto vale também para a própria história do Cristianismo”. Renato Lemos e Marcos Magalhães, artigo cit., p.15.
[19] Paul Tillich, “Rapport au Consistoire in Christianisme et socialisme”, Écrits socialistes allemands (1919-1931), Les Éditions du Cerf, Éditions Labor et Fides, Les Presses de l’Université Laval, 1992, pp.3-8.
[20] Renato Lemos e Marcos Magalhães, artigo cit., pp.14-15
[21] Vanderlei José Maria, “A Igreja, a sociedade civil e o movimento popular no Brasil”, São Paulo, Versus no 30, 03.1979, p. 14.
[22] Paulo J. Krischke, “A Igreja, a sociedade civil e o movimento popular no Brasil”, São Paulo, Versus no 30, 03.1979, p. 15.
[23] Jorge Pinheiro, “O príncipe do rancho”, São Paulo, Versus no 33, 06.1979, pp. 28-32. 


lundi 18 mars 2013

A opção evangélica -- para entender o passado

A opção evangélica
Fonte: Jorge Pinheiro, Teologia e Política, Paul Tillich, Enrique Dussel e a Experiência Brasileira, São Paulo, Fonte Editorial, 2006, pp. 181-184.

Em seu artigo “A Bíblia cativa, Cristo no céu e a igreja ausente”, de 1989, Mendonça cita o teólogo presbiteriano norte-americano Richard Shaull, ao falar da efetividade do sacerdócio universal dos crentes na oportunidade que os ativistas das Comunidades Eclesiais de Base tinham no exercício de seus dons:

(...) "os católicos romanos revivesceram uma das maiores ênfases da Reforma Protestante do século XVI e a estão agora pondo em prática de uma maneira que os protestantes nunca foram capazes de fazê-lo". [1]

Partindo da afirmação de Shaull, Mendonça explicava as causas da perda de espaço por parte das igrejas protestantes históricas para a Igreja católica e para as pentecostais como fruto de uma crise eclesiológica. Esta crise estaria decorrendo do vazio cristológico, do desajuste entre a história da salvação e o momento histórico, e da pressão ideológica oriunda do primeiro mundo e que realimentava essa defasagem histórica. E Mendonça afirmava:

"O grande debate que se processa nas igrejas girando em torno das teses fundamentalistas contra o comunismo, (...) embora em linguagem teológica, não passa de teses ideológicas que se esforçam por desviar a atenção das igrejas das grandes massas desvalidas. A grande crise eclesiológica reside no fato de que as igrejas não estão se dando conta disso". [2] 

Em nosso estudo, verificamos que a situação descrita por Mendonça remonta a processos históricos que tiveram origem nas próprias contradições do transplante do protestantismo para o Brasil. E que no correr do século XX, essas contradições se aprofundaram, consolidando tendências. Optamos, então, por analisar as raízes de uma das denominações protestantes, a batista brasileira,[3] por acreditar que a partir dela, respeitados os diferentes modelos missionários, podemos entender melhor a opção do cristianismo protestante durante os anos do bonapartismo militar. 

A primeira igreja batista brasileira foi fundada em 1882 em Salvador, embora nessa época já existissem duas outras organizadas por sulistas norte-americanos, residentes na região de Santa Bárbara do D'Oeste e Americana, em São Paulo. Foram os casais de missionários norte-americanos Willian Buck Bagby e Anne Luther Bagby, e Zacharias Clay Taylor e Kate Stevens Crawford Taylor, que deram início ao movimento batista no Brasil. Iniciaram sua missão em Salvador, na Bahia. Chegaram ali no dia 31 de agosto de 1882 e no dia 15 de outubro, fundaram a primeira igreja batista brasileira com cinco membros: os dois casais de missionários norte-americanos e o ex-padre Antônio Teixeira. Essa origem, no entanto, remonta ao escravismo norte-americano, conforme analisa Elizete da Silva [4]:

A denominação [5] Batista também foi atingida pelo divisionismo ocasionado pelas atitudes frente à escravidão. Em 1845, os batistas norte-americanos separaram-se conforme o posicionamento contra a escravidão. Organizou-se a Convenção Batista do sul para abrigar as igrejas que admitiam o trabalho escravo, representando delegações de oito estados do sul escravista. [6] Foi a Convenção Batista do Sul dos EUA que estabeleceu a denominação Batista em solo brasileiro. (...) A guerra de Secessão, na década de 1860, concretamente demonstrou a divisão vigente na sociedade e no protestantismo norte-americano. "Nos Estados Livres, a ascensão dos evangélicos de mentalidade reformista tinha dado um novo sentido de direção e de propósito moral a uma classe média ascendente tentando se adaptar a uma nova economia de mercado. O Sul com seus degredados trabalhadores cativos e seus brancos pobres e preguiçosos - parecia estar, para a maioria dos nortistas, num processo de violação flagrante da ética trabalhista protestante e do ideal da concorrência aberta". [7] 

Após a derrota do sul, muitos confederados, inclusive ex-combatentes, vieram tentar a sorte no Brasil, especialmente em São Paulo. A relação entre a religião e a vida política, para os agentes da imigração norte-americana para o Brasil era olhada de forma maneira bastante estreita, já que parte deles, pastores protestantes, a exemplo do Rev. B. Dunn, via o país como uma nova Canaã, a terra prometida onde os confederados derrotados poderiam reconstruir suas vidas, seus lares e suas propriedades, incluindo a mão-de-obra escrava. Em seu livro Brazil, The Home for Southieners, Dunn apresentou o país dessa maneira, o que ajudou os sulistas olharem o Brasil como uma alternativa segura. O médico M. F. Gaston, por exemplo, veterano do Exército Confederado e originário da Carolina do Sul, que escreveu Hunting a Home in Brazil, faz no livro um relato minucioso das vantagens que os sulistas encontrariam aqui. O sudeste brasileiro, com terras quase virgens, era apresentado como possibilidade para bons empreendimentos. Ele disse, após ter visitado as terras da região de Campinas, que “as vantagens para o cultivo do algodão nessa região dão-lhe primazia sobre a parte meridional dos Estados Unidos. O elemento adicional do trabalho escravo está aqui apto a trazer resultados que não podem ser assegurados pelo trabalho assalariado nos Estados Sulistas; e tão logo os negros se tenham familiarizado com o modo adequado de trabalhar o algodão, poderemos antecipar uma produção excedendo a qualquer uma que já tenha sido realizada nos Estados Unidos”.[8] 

A propaganda desses agentes da imigração surtiu efeito: cerca de dois mil e quinhentos sulistas se deslocaram para São Paulo. A esperança de encontrar terras em abundância com mão-de-obra escrava mobilizou famílias inteiras. E assim chegaram as primeiras famílias batistas à colônia de Santa Bárbara D’Oeste. Porém, nem todos os batistas aqui chegados eram favoráveis à escravidão. Na verdade, os batistas tiveram duas atitudes frente à ela: os primeiros colonos eram favoráveis e foram proprietários de escravos. Já os missionários e os batistas brasileiros em geral, após a abolição, em 1888, condenaram o escravismo como incompatível com a fé cristã. Essas diferentes atitudes demonstram as dificuldades que tinham para tratar do assunto. Em Santa Bárbara D’Oeste, primeiro núcleo batista, o trabalho escravo existiu como mão-de-obra usada na agricultura e em tarefas domésticas. Os colonos batistas eram senhores de escravos, a exemplo da senhora Ellis, dona de um sítio e que providenciara hospedagem nos primeiros meses ao casal de missionários W. Bagby, fundador da Primeira Igreja Batista do Brasil. Conforme o diário da senhora Bagby, “depois de dormir uma noite na capital paulista, os missionários tomaram o trem para Santa Bárbara, onde chegaram sob forte aguaceiro. Na estação os aguardavam os enviados da senhora Ellis, com dois cavalos e um escravo, para carregar a bagagem. A estrada até o sítio estava bem lamacenta mas ao chegar, foram carinhosamente recebidos”. [9]

Conforme conta Crabtree, a Junta de Richmond, nos EUA, ao avaliar, em 1859, as possibilidades de envio de missionários para o Brasil, admitiu que havia similaridades entre os dois países e uma vantagem que deixaria os missionários norte-americanos bem aclimatados em terras brasileiras, o fato de, em ambos os países, haver escravidão: “o Brasil era como os Estados Unidos, tem escravos e os missionários enviados pela Convenção Batista do Sul não podiam sentir-se constrangidos a combater a escravatura e assim envolver-se na política do país”. [10] E o missiólogo batista Donaldo Price confirma as razões de tal escolha:

"Os primeiros batistas que aqui chegaram, chegaram como imigrantes, não como missionários. Chegaram depois da derrota sulista na guerra entre os estados, ou a guerra civil norte americana. E queriam vir para uma nação que ainda tivesse escravatura, assim escolheram o Brasil". [11]

Mas, se a Convenção Batista do Sul dos Estados Unidos trouxe para o Brasil uma tradição conservadora, há uma outra matriz, liberal, no pensamento batista que remonta às suas origens inglesas.

(...) "desde os primórdios do protestantismo no Brasil, seus seguidores estiveram associados a movimentos liberais, os quais favoreceram sua radicação. Há, portanto, entre o liberalismo brasileiro e o protestantismo uma afinidade de propósitos em muitos pontos". [12] 

As pressões conservadoras, no entanto, tornaram-se permanentes no pensamento batista do sul dos Estados Unidos, no correr do século XIX, com a adesão à doutrina da exclusividade batista em termos de fidelidade neotestamentária, que ficou conhecida como landmarquismo. [13] Assim, apesar de sua origem liberal e de seu passado de lutas em favor das liberdades civis, democráticas e do cidadão na Inglaterra e nas colônias norte-americanas nos séculos XVII e XVIII, as igrejas batistas do sul dos Estados Unidos, no século XIX, acabaram cedendo às pressões do landmarquismo, fundamentando o pensamento conservador dentro das igrejas ligadas à Convenção Batista do Sul dos Estados Unidos. E foi a existência e permanência desse paradoxo, pensamento landmarquista, conservador e fundamentalista e pensamento democrático e liberal que possibilitou o diálogo entre a igreja batista brasileira e o bonapartismo militar. E essa convergência aconteceu a partir da postura e ações dos batistas brasileiros em relação à presença dos Estados Unidos. [14] 

Pelas páginas do Jornal Batista evidencia-se que aquele país foi apresentado como um modelo político e religioso para a América Latina. A outra América era tratada como um novo Israel, com papel especial no plano de Deus para a história global, em função de sua formação protestante. A partir daí as relações entre os dois países devem ser incrementadas. [15] Assim, o pensamento batista brasileiro, expresso em órgãos como O Jornal Batista, não traduziu apenas o liberalismo inglês do século XVII. Ao receber uma influência direta dos batistas do sul dos Estados Unidos, miscigenou-se e gerou o que chamamos de pensamento liberal-conservador. Mesquida [16] explica esta dialética que uniu a educação protestante de origem missionária à sociedade brasileira no final do século XIX e no correr da primeira metade do século XX, a partir de quatro hipóteses: (1) do desejo das elites liberais do sudeste brasileiro de se aproximarem dos Estados Unidos e de imitarem seu modelo político, econômico e cultural; (2) do interesse norte-americano de exercer hegemonia cultural, econômica e política no Brasil; (3) do fato de que a maçonaria contribuiu para a implantação dos protestantes no Brasil; (4) devido à desestruturação da sociedade brasileira nos últimos trinta anos do século XIX, fato que ofereceu oportunidade a atores sociais internos e externos de minar a ordem econômica, política e social. Estas contradições, que construíram o pensamento liberal de viés conservador do protestantismo batista, são analisadas por Martins [17] Segundo a pesquisadora,

"a inter-relação entre o social e o religioso, durante os anos 70 e 80, nas igrejas batistas de Ribeirão Preto mostra que a população pesquisada percebe, de modo geral, a ausência de alterações no aspecto doutrinário (estritamente religioso), poucas e superficiais alterações adaptativas no aspecto estrutural e orgânico, e muitas decorrentes de alterações sócio-culturais observadas na membresia. (...) A percepção da secularização se evidencia pela disponibilidade entre liderança religiosa e membresia. Esta disparidade decorre da postura individualista da membresia na busca do atendimento de suas necessidades religiosas e materiais, rejeitando a ação política como forma de atendimento dessas necessidades. A liderança religiosa, por outro lado, vê no atendimento das necessidades materiais e/ou religiosas da membresia a possibilidade de ação política independentemente do momento de crise que deve ser o responsável pela rejeição sócio-política encontrada na membresia". [18]

A pesquisa realizada em Ribeirão Preto oferece elementos para entender o perfil do pensamento batista brasileiro nos anos 70 e 80. Nada muda em relação à eclesiologia e à doutrina, mas no nível das relações sócio-políticas, ao mesmo tempo em que à membresia é oferecido um discurso de afastamento da ação política, os dirigentes da igreja batista mantêm um estrito vínculo com o poder bonapartista. Assim, os batistas brasileiros, a partir das contradições inerentes ao seu próprio pensamento político, de matriz liberal-conservadora, caminharam para a realização de uma aliança não explicita com o bonapartismo militar, a partir de suas relações históricas e ideais com os Estados Unidos. [19] Mas este não foi um processo linear. Antes do golpe militar de 1964, setores da igreja batista traduziam seu liberalismo a partir de uma leitura do evangelho social, proposto por pensadores batistas norte-americanos como Rauschenbusch. Afirma Burity:

"'A despeito de serem os batistas historicamente arredios aos posicionamentos político-ideológicos, foi dentre eles que surgiu uma das mais concretas demonstrações de como os protestantes liam a realidade brasileira. Trata-se do Manifesto dos Ministros (MM), apresentado à nação brasileira e à denominação Batista em particular, em setembro de 1963, publicado no jornal denominacional, O Jornal Batista, e na revista da mocidade, Juventude Batista, assinado pela Ordem dos Ministros Batistas do Brasil (OMBB)". [20] 

No Manifesto publicado pelo O Jornal Batista em 14 de setembro de 1963, a Ordem dos Ministros Batistas do Brasil, entidade que congregava os pastores que serviam às igrejas da Convenção Batista Brasileira, em assembléia geral, realizada em Vitória, apresentou uma proposta que traduzia anseios diante do imperativo social vivido pela nação. É certo que tal Manifesto não refletiu o conjunto dos batistas brasileiros, pois, conforme analisa Burity,

"para a estrutura organizacional dos batistas, rigorosamente falando, não há nenhuma fala representativa do conjunto dos membros das igrejas, pelo fato de não haver o peso de um colegiado superior, como ocorre em denominações como a Metodista, a Presbiteriana, a Luterana, etc. Teoricamente, cada congregação é autônoma e vincula-se à Convenção Batista Brasileira sem ser a ela submetida. Trata-se de uma federação de igrejas. Um pronunciamento em nome da denominação só é possível por delegação explícita de poder para tal através da Convenção, reunida em assembléia". [21]

Mas, sem dúvida, expressou sentimentos de parte de sua liderança. Por sua importância para o estudo das contradições internas do pensamento batista brasileiro diante do bonapartismo militar, consideramos importante apresentar aqui trechos do documento.

"Reconhecemos ser um privilégio dos batistas brasileiros a infindável responsabilidade de contribuir não somente para a solução dos problemas que no momento assoberbam o nosso povo, como também para a determinação do seu destino histórico. Não o afirmamos apenas porque sejamos uma parcela apreciável desse mesmo povo, mas porque entendemos ser essa participação inerente à missão de 'sal da terra e luz do mundo', que o Senhor mesmo nos outorgou. (...) Entenderam-no assim também Guilherme Carey, o pai das missões modernas e corajoso batalhador contra o sistema das castas na Índia, Roger Williams, o pioneiro da liberdade religiosa em nosso continente, Walter Rauschenbusch, o arauto das implicações sociais do Evangelho, Martin Luther King Jr., o campeão da luta pelos direitos da minoria negra oprimida, e tantos outros batistas ilustres através dos tempos". [22]

No Manifesto, os pastores batistas, embora dissessem reconhecer a importância e o significado das instituições, afirmavam que a legitimidade de qualquer regime, sistema ou instituição, está condicionada às possibilidades que criam para a plena realização da pessoa e de sua humanidade. Dessa maneira, se apresentaram como defensores da liberdade em todas as suas formas de expressão: liberdade de consciência, de religião, de imprensa, de associação, de locomoção, bem como da autodeterminação dos povos desde que livremente manifesta. Para eles, tais concepções de direitos e deveres da pessoa humana estavam presentes na Constituição Federal de 1946, na carta das Nações Unidas e na Declaração dos Direitos do Homem, e deveriam ser universalmente aplicados, de maneira “a banir da face da terra a exploração do homem pelo homem ou pelo Estado, em qualquer das suas formas, e os totalitarismos de toda espécie, assegurando-se a prática da verdadeira democracia”. [23] 

Os pastores signatários do Manifesto alertaram a denominação Batista e, por extensão, à nação, para a inadequação da estrutura social, política e econômica do país e sugeriram a necessidade de um exame objetivo da realidade brasileira, com a finalidade de reestruturação da sociedade em moldes que possibilitassem o atendimento das aspirações e necessidades do povo. 

Essa necessidade ressalta da verificação (...) da irracional aplicação dos recursos públicos, que deveriam antes se destinar, mais liberalmente, aos ministérios da Saúde, Educação e Agricultura, para a solução de problemas sociais angustiantes; da sobrevivência de regimes feudais de propriedade e exploração da terra; da generalizada pobreza das populações carecentes do alimento indispensável à sobrevivência; da injustiça na distribuição das riquezas e da utilização destas para o cerceamento das liberdades essenciais; da inadequada exploração das nossas riquezas naturais, cujo aproveitamento não só deveríamos intensificar, como fazer revestir-se de significação social; do crescente empobrecimento do patrimônio nacional pela remessa para o exterior dos lucros extraordinários auferidos em nosso país; da corrupção que tem campeado nos pleitos eleitorais, na prática policial (quer preventiva, quer corretiva), na previdência social, no preenchimento de cargos públicos, na aplicação dos recursos sindicais, etc. [24]

Condenaram, ainda, a repressão policial aos movimentos populares da cidade e do campo, que devriam antes que nada ser “carinhosamente estudados para que viessem a ser orientados construtivamente para o bem geral, através do atendimento das suas justas reivindicações”, como também aos “movimentos de greve, que se constituem em instrumento legítimo de reivindicação social e de preservação dos direitos dos trabalhadores”. E, traduzindo um anseio de parte do povo brasileiro, defenderam a realização de reformas de base, que foram assim nominadas: “a) reforma agrária, que venha atender às reivindicações do homem do campo explorado; b) reforma eleitoral, que venha liquidar as circunstâncias que possibilitam e estimulam os nossos maus costumes políticos; c) reforma administrativa, que ponha termo ao nepotismo, ao filhotismo e à ineficiência tão generalizada quanto onerosa dos serviços públicos; d) reforma da previdência social, que venha pôr em funcionamento as nossas leis sociais com o pleno reconhecimento e o efetivo atendimento dos direitos dos que trabalham”. [25]

Mas as pressões contra o pensamento liberal de esquerda expresso no Manifesto dos Ministros batistas, tanto externas como internas, foram fortes e cresceram dentro da denominação os setores que faziam a leitura conservadora do liberalismo batista. E assim, os batistas foram girando à direita e lançaram uma Campanha Nacional de Evangelização que teve claros argumentos políticos para sua organização:

"a urgência dessa hora requer uma cruzada nessas proporções. As crises na atual conjuntura nacional e mundial exigem uma mobilização total e apressada de todas nossas forças". [26]
A discussão política tornou-se acalorada dentro do Jornal Batista. Os setores conservadores, alinhados com a oposição ao governo de João Goulart, ganharam espaço e expressão. Assim, discutiu-se até se Jesus foi revolucionário ou reacionário:

"Se temos o Novo Testamento por regra de fé e prática e a Jesus como nosso exemplo, por que, como ele, não nos colocamos acima das paixões políticas? Estamos como igrejas tentando diretamente influenciar na política e isto Jesus não fez! Na suposição de estarmos sendo influenciados pelo Velho Testamento, cabe então dizer que até agora a nossa mensagem não está sendo dirigida nem ouvida pelos opressores, mas pelos oprimidos. Estamos colocando em suas bocas termos de reivindicações sociais, protestos pelas injustiças, semeando ódio e discórdias. Falamos aos crentes que se assentam nos toscos bancos de nossas igrejas, na sua quase totalidade paupérrimos e sem qualquer influência na administração pública. Isto Amós não fez; nem Paulo! Onde então a fonte de nossa inspiração revolucionária?" [27]

E o jornal lançou um apelo ao povo brasileiro, afirmando que sombras se estendiam sobre a vida política brasileira e que a hora era incerta. E diante disso, perguntava “como pode Deus nos abençoar enquanto falamos de revolução sangrenta e nos preparamos para matar nosso vizinho, amigo, e colega, e até o nosso irmão se for necessário, para estabelecer a só chamada justiça social?” [28] E o pensamento batista foi-se atrelando à pregação feita pelos teóricos da Guerra Fria. Num artigo sobre o comunismo, Natanael Rangel, um dos mais expressivos articulistas de O Jornal Batista na época, dizia:

"Em 1903 Lenine fundou o movimento conhecido como bolchevismo com o apoio de dezessete companheiros. No ano de 1917, o mesmo Lenine conquistou a Rússia com um partido de aproximadamente 40 mil membros. Por volta de 1959 o partido de Lenine havia conquistado um bilhão de pessoas. Em uma geração o comunismo ateu arrebanhou para a esfera sob seu controle mais de um terço da população do mundo. Há hoje no mundo cinco crianças aprendendo nas escolas pormenores sobre o comunismo ateu, para cada criança recebendo quaisquer ensinamentos, seja onde for, a respeito de Cristo. Tais fatos são atemorizantes, mas inelutavelmente verdadeiros, é o que revela o Dr. Fred Schwarz em “Você pode confiar nos comunistas”, livro que a crítica vem consagrando como um dos mais completos e mais perfeitos sobre o comunismo. Para o Dr. Schwarz, batista de convicção, o comunismo não é apenas um sistema político e um sistema econômico mas também uma filosofia de vida que se opõe a todo e qualquer sistema religioso. Vale a pena ler “Você pode confiar nos comunistas”, à venda na Casa Publicadora Batista por apenas Cr$330,00". [29]

E aqueles que defendiam o Evangelho social, principalmente os estudantes universitários, passaram a ser tachados de comunistas. 

"Dou logo nome aos bois. Trata-se dos agentes internos e externos da União Cristã de Estudantes do Brasil, particularmente de suas células acadêmicas – as associações cristãs acadêmicas. Aquilo que em 1927 era uma União de Estudantes para o trabalho de Cristo, hoje não passa de mais um órgão bem disfarçado do Comunismo Internacional. (...) Aí começa o chavão comunista. Condena-se a manutenção do estado atual e mobiliza-se a juventude para a luta contra a exploração e a miséria. Ninguém poderá ser neutro e ficar do lado da democracia e da livre iniciativa. A mocidade deve levantar-se contra os esquemas estruturais importados, isto é: contra os Estados Unidos da América do Norte. O que se pretende é retirar os jovens de nossas igrejas locais, para lança-los nas mãos dos agitadores comunistas. E a isto se dá o nome de ´testemunho cristão´. Uma obra perniciosa. Lobo sob manto de ovelha. Já é tempo de desmascarar o embuste comunista da UCEB". [30]

Mas da mesma maneira que inimigos externos foram atacados, inimigos internos eram descobertos e denunciados. O que obrigou até mesmo à Comissão de Ação Social da Convenção Batista ter de explicar que não apoiava a revolução. Na reunião de seu quorum local, realizada a 14 de dezembro de 1963, tomou a Comissão de Ação Social da Convenção Batista Brasileira conhecimento das considerações feitas pelo pastor Delcyr de Souza Lima em artigo intitulado “Rabo de Foguete” (O Jornal Batista, 14.12.1963):

"Como bem se poderá verificar pelo texto gravado (e que será proximamente impresso), nunca falou o pastor Dr. Lauro Bretones de evangelho importado, ou usou qualquer expressão que honestamente pudesse justificar a idéia de que se pretende atrelar a Igreja à Revolução. (...) pela sua grosseria e pelo seu absurdo deixamos de comentar, embora a repilamos com veemência, a insinuação de que atuamos no seio da Denominação com o mesmo espírito, métodos e propósitos dos agitadores comunistas. Confiamos na nobreza e na inteligência de nossos irmãos. E prosseguimos, olhos postos na gloriosa visão do Reino de deus! Pela Comissão de ação Social, Hélcio da Silva Lessa, relator". [31]

Veio o golpe e os batistas brasileiros construíram um profícuo relacionamento com o bonapartismo militar. E o Manifesto dos Ministros batistas passou a ser visto como demonstração de não ortodoxia, pois se articulara com o pensamento liberal de esquerda. Uma demonstração de como o texto foi percebido pela corrente crescentemente hegemônica entre os batistas brasileiros foi o editorial de O Jornal Batista do dia cinco, assim como o do dia 12 de abril de 1964, em que o presidente da Ordem dos Ministros batistas, José dos Reis Pereira, procura desmontar a argumentação do Manifesto, ele que tinha sido um de seus signatários. [32]

Segundo o reverendo Jaime Wright tal postura de alinhamento com os militares tinha uma lógica, a de que os evangélicos, de um modo geral, sempre aspiraram a uma rápida ascensão econômica e social. [33] E com o golpe militar deram-se as condições para esta ascensão social. E, por isso, em 1964, os evangélicos foram os primeiros a apoiar o golpe. 

"No centro de São Paulo, vi constrangido do meu escritório um grupo de estudantes do Mackenzie saindo às ruas no dia dois de abril dando vivas à revolução". [34]

"Em todos os setores da repressão que visitei sempre encontrei evangélicos (...). O chefe do SNI (extinto Serviço Nacional de Informações) em São Paulo era um presbítero. O chefe do CIE (Centro de Informações, hoje Centro de Inteligência do Exército) era um presbiteriano. (...) Certa vez, o diretor do DOPS (Departamento de Ordem Política e Social), em São Paulo, me disse que a repressão não estava preocupada com protestantes de modo geral, mas com os católicos. ´Os protestantes trazem seus probleminhas e ficamos sabendo de tudo´, disse-me o diretor". [35] 

Azevedo afirma que a celebração do indivíduo, no pensamento protestante em geral e do protestantismo batista em particular, é uma resposta moderna ao problema do lugar do ser humano na sociedade. 

No entanto, esta resposta convive com valores pré-modernos. Entre os batistas, a autonomia (rejeição a qualquer axiologia de origem exterior e transcendente) convive com a teonomia e mesmo com a eclesiologia. [36] 

Esses valores facilitaram o alinhamento da igreja batista brasileira ao pensamento bonapartista militar. Tal alinhamento consolidou-se a partir de duas matrizes presentes na formação dos batistas brasileiros: uma de origem liberal e outra conservadora, a ideologia salvacionista, expressão teológica do landmarquismo, que se fortaleceu diante das pressões do imperialismo e da Guerra Fria. Tal realidade levou parte expressiva dos pastores batistas e por extensão da denominação a reafirmarem esses conteúdos conservadores e optarem por uma práxis solidária com o regime bonapartista. Esse posicionamento foi reforçado por contradições internas da denominação, não resolvidas nas décadas anteriores, que são as do permanente choque entre a ideologia salvacionista e a teologia do evangelho social. 

Apesar da aparente neutralidade e omissão diante da repressão, torturas e arbitrariedades do regime, seria um erro uniformizar a atuação de batistas e protestantes. [37] Sem negar o apoio dado ao regime militar bonapartista, é necessário ver que tal fenômeno não era monolítico e isento de contradições. Ou como explica Freston:

"O protestantismo como baluarte da ditadura. Nessa fase, a sociologia do protestantismo é dominada por brasileiros de origem protestante, mas rompidos com suas igrejas. Escrevendo durante o regime militar, sua produção salientava a alienação protestante. (...) Enquanto a Igreja Católica no Brasil se transformou em defensora da democracia, as igrejas protestantes passaram a ser vistas como baluartes do regime. No título de uma obra do período, a associação já não era protestantismo e democracia, mas Protestantismo e Repressão". [38]

Dessa maneira, como afirmou Mendonça, [39] os católicos durante o governo militar, não sem contradições internas, reviveram uma das ênfases da Reforma Protestante do século XVI, o sacerdócio universal dos crentes através da ação militante e evangelizadora das Comunidades Eclesiais de Base, opondo-se ao autoritarismo do regime militar bonapartista. Em contrapartida, os protestantes históricos, com exceções, conforme nota Freston, [40] perderam-se na heteronomia, o que os levou à perda de espaço diante da Igreja católica e das igrejas pentecostais. Esta crise foi vivida pela igreja batista brasileira. Mas, depois de 1985, com a queda do regime militar, as igrejas históricas, e a Batista em particular, procuraram posicionar-se diante da democratização do país. 

“O trabalho de nossas igrejas e de nossa denominação precisa de frequente avaliação, a fim de evitar a esterilidade do tradicionalismo. Isso especialmente se torna necessário na área de métodos, mas também se aplica aos princípios e práticas históricas em sua relação à contemporânea”.[41] 

Dessa maneira, nessa era de revolução e transformações sociais, a Igreja católica construiu uma doutrina social que partiu do princípio da vida. Seu critério de justiça de qualquer política passou a ser, então, o grau de defesa que ela faz da vida humana, se favorece a dignidade e respeita os direitos humanos. Este princípio norteia o catolicismo social com respeito à guerra, à paz e à vida social. Outro princípio é o da solidariedade, visto como normativo da possibilidade de um mundo novo, já que é expressão moral de interdependência, não importa quais sejam as diferenças de raça, nacionalidade, ou poder econômico. E um terceiro é o da opção preferencial pelos pobres, no sentido de que os excluídos têm o primeiro direito de reivindicação perante as práticas humanas. 

À essa leitura do catolicismo social juntou-se o Evangelho social dos protestantes europeus e norte-americanos, a partir da leitura bíblica da responsabilidade social e do socialismo utópico. A ação combinada, mas desigual em ações e tempos, dessas duas visões levaram ao cristianismo social, que se expressou enquanto Teologia da Libertação na América Latina e, no Brasil, também através de movimentos organizados pela base, que vieram a influenciar o pensamento socialista no Partido dos Trabalhadores. É importante ressaltar que os protestantes históricos no correr do regime militar, com exceções, perderam-se na heteronomia, mas que, depois de 1985, essas igrejas, e a Batista em particular, posicionaram-se diante da democratização do país, levantando o princípio protestante da autonomia e o princípio democrático da liberdade política, afirmando que as igrejas têm que aceitar a responsabilidade da autocrítica, pois é prejudicial negar às pessoas o direito de discordar, ou considerar que os métodos das igrejas são perfeitos.

Assim, a teologia e sua ação fizeram parte das discussões da esquerda brasileira, que viu nas Comunidades Eclesiais de Base aquilo que lhes faltava, meios de chegar às massas. Ao mesmo tempo, as esquerdas descobriram que os trabalhadores sindicalizados eram católicos e tinham ligações com as CEBs. Tais realidades possibilitaram um diálogo entre católicos, setores protestantes, os sindicatos e as esquerdas, mas também ações e mobilizações conjuntas que levaram na direção da criação de um partido de classe.

Citações

[1] Richard Shaull, “Heralds of a new reformation”, 1984, p. 125, in Antonio G. Mendonça, “A Bíblia cativa, Cristo no céu e a Igreja ausente”, São Bernardo do Campo, Estudos de Religião, Ano VI, no. 6, 04.1989, p. 178.
[2] Antonio G. Mendonça, “A Bíblia cativa, Cristo no céu e a Igreja ausente”, op. cit., p. 181.
[3] Segundo o censo nacional do IBGE (2000), os batistas são a segunda maior população evangélica do país, com 3.162.700 pessoas, perfazendo 12,07% do total, logo depois da Igreja Assembléia de Deus, com 8.418.154 pessoas e 32,12% do total. Atlas da Filiação Religiosa e indicadores sociais, Petrópolis, Rio de Janeiro, Edições Loyola e Editora da Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro, 2003.
[4] Elizete da Silva, “Visões Protestantes Sobre a Escravidão”, São Paulo, Rever, ISSN 1677-1222, PUC, 2003. Site: www.pucsp.br/rever/rv1_2003/t_silva (Acesso em 12.12.2003).
[5] “Denominação é uma estrutura administrativa, composta de igrejas locais, submetidas a um conselho superior ou confederadas, caracterizada por um corpo de doutrinas e uma forma de governo peculiares e que se distingue das demais. Assim, fala-se de denominação batista, presbiteriana, metodista, etc”. Joanildo A. Burity, “A redenção total: a construção protestante da realidade brasileira”, p. 30.
[6] Kenneth Scott Latourette, História del Cristianismo, s/l, Casa Bautista de Publicaciones,1977, t.2 , p.677.
[7] Robert Divine it alli, América Passado e Presente, Rio de Janeiro, Nórdica.1992, p.328.
[8] Bárbara Stein, “O Brasil Visto de Selma”, Alabama, in Revista do Instituto de Estudos Brasileiros, nº 03 USP. p. 49.
[9] Rute F. Mathews, Ana Bagby a Pioneira, Rio de Janeiro. Casa Publicadora Batista, 1972, p.24.
[10] A.R. Crabtree, História dos Batistas do Brasil até 1906, Rio de Janeiro, Casa Publicadora Batista, 1962, p. 58.
[11] Donaldo Price, “A implantação das Assembléias de Deus no Brasil e dos Batistas Brasileiros: um contraste entre dois modelos missionários”, São Paulo, Teológica, Ano 3, no. 4, 2o. semestre 2001, p. 39.
[12] Israel Belo de Azevedo, A celebração do indivíduo, a formação do pensamento batista brasileiro, Piracicaba, Editora Unimep, 1996, p. 302.
[13] Em 1838, o pastor inglês G. H. Orchard publicou Uma História Concisa dos Batistas Estrangeiros, em dois tomos. Com seu trabalho, Orchard pretendeu mostrar que a Igreja Batista existe desde o Pentecostes. Em 1855, a edição americana foi publicada por J. R. Graves, um dos expoentes do movimento landmarquista. O trabalho de Orchard transformou-se então em base teórica do movimento. Por esta razão, o livro teve mais influência na América do Norte do que na Inglaterra. Orchard ficou conhecido como o pai dos sucessionistas. É verdade, que Thomas Crosby e Joseph Ivimey, assim como David Benedict, prepararam o terreno para o landmarquismo, mas foi Orchard quem elaborou a teoria. Vinculou elementos isolados e sem preocupar-se com as normas e padrões da investigação histórica montou a cadeia da sucessão batista. 
[14] Israel Belo de Azevedo, A celebração do indivíduo, a formação do pensamento batista brasileiro, op. cit., p. 302. 
[15] Israel Belo de Azevedo, A celebração do indivíduo, a formação do pensamento batista brasileiro, op. cit., p. 302. 
[16] Peri Mesquida, Hegemonia norte-americana e educação protestante no Brasil, Juiz de Fora/São Bernardo do Campo, Editora da UFJF e Editeo, 1994.
[17] Miriam Ferreira Martins, Relações entre o social e o religioso: um estudo da inserção das Igrejas Batistas de Ribeirão Preto (SP) no processo de secularização, dissertação de Mestrado, Serviço Social, PUC-SP, 1992.
[18] Miriam Ferreira Martins, Relações entre o social e o religioso: um estudo da inserção das Igrejas Batistas de Ribeirão Preto (SP) no processo de secularização, op. cit., p. IV.
[19] Israel Belo de Azevedo, A celebração do indivíduo, a formação do pensamento batista brasileiro, op. cit., p. 299.
[20] Joanildo A. Burity, “A redenção total: a construção protestante da realidade brasileira”, op. cit., p. 27.
[21] Joanildo A. Burity, “A redenção total: a construção protestante da realidade brasileira”, op. cit., p. 33.
[22] “Manifesto dos Ministros Batistas do Brasil”, O Jornal Batista, Ano LXIII, Rio de Janeiro, 14.09.1963, no. 37, primeira página.
[23] “Manifesto dos Ministros Batistas do Brasil”, artigo citado.
[24] “Manifesto dos Ministros Batistas do Brasil”, artigo citado.
[25] Pela Ordem dos Ministros Batistas do Brasil assinou sua diretoria: Presidente José dos Reis Pereira; 1o Vice-Presidente José Lins de Albuquerque; 2o Vice-Presidente Hélcio da Silva Lessa; Secretário-Geral Tiago Nunes Lima; 1o Secretário Irland Pereira de Azevedo; 2o Secretário José dos Santos Filho; Tesoureiro Otávio Felipe Rosa; Bibliotecário Tércio Gomes Cunha; Procurador David Malta Nascimento. “Manifesto dos Ministros Batistas do Brasil”, artigo citado.
[26] Lester Carl Bell, “Uma Campanha Nacional, por que?”, O Jornal Batista, Ano LXIII, Rio de Janeiro, 28.09.1963, No. 38.
[27] Natanael Rangel, “É Jesus, revolucionário ou reacionário?”, O Jornal Batista, Ano LXIII, Rio de Janeiro, 16.11.1963, no. 46, p. 8.
[28] Aurélio Gianneta, “Apelo do povo brasileiro”, O Jornal Batista, Ano LXIII, Rio de Janeiro, 16.11.1963, no. 46, p. 8.
[29] Natanael Rangel, “E o comunismo vai progredindo”, O Jornal Batista, Ano LXIII, Rio de Janeiro, 16.11.1963, no. 46, p. 8.
[30] Delcyr de Souza Lima, “Trincheira, Na defesa da doutrina”, O Jornal Batista, Ano LXIV, Rio de Janeiro, 18.01.1964, no. 4, p. 4.
[31] O Jornal Batista, Ano LXIV, Rio de Janeiro, 18.01.1964, no. 4, p. 4.
[32] Duncan A Reily, História documental do protestantismo no Brasil, São Paulo, ASTE, 1984, pp. 324-329.
[33] Em 1970, os evangélicos eram 5,17%, conforme dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística, IBGE,.2000. Site: www.ibge.gov.br. (Acesso em 12.12.2004)
[34] “A tortura é uma doença”, entrevista de Jaime Wright a Jorge Antonio Barros, Vinde, republicado em Enciclopédia Digital Direitos Humanos. Site: www.dhnet.org.br/denunciar/tortura/textos/barros. (Acesso em 12.12.2004). 
[35] Jaime Wright, “A tortura é uma doença”, entrevista citada. 
[36] Israel Belo de Azevedo, A celebração do indivíduo, a formação do pensamento batista brasileiro, op. cit., p. 309.
[37] “O mundo evangélico é dividido. Não há uma unidade institucional sobrepondo-se às divergências, como no catolicismo. Há uma imensa diversidade organizacional, teológica, litúrgica e política. Se alguém não gosta de algum aspecto de sua igreja, pode ir para outra, ou mesmo fundar uma nova, sem sair do mundo evangélico. É o princípio da auto-gestão e do livre-mercado. De certa forma, ‘evangélico’ (ou ‘protestante’) é uma categoria residual, é o que sobrou do campo cristão depois da Igreja Católica e das Igrejas Ortodoxas, um tipo de Terceiro Mundo”. Paul Freston, Fé Bíblica e Crise Brasileira, São Paulo, ABU Editora, 1992, p. 78.
[38] Paul Freston, “Dilemas Políticos do Protestantismo Latino-Americano”, Universidade Federal de São Carlos, VIII Jornadas sobre Alternativas Religiosas na América Latina, São Paulo, 22-25.09.1998. Para a referência “Protestantismo e Represão” ver Rubem Alves, Religião e repressão, São Paulo, Teológica, Loyola, 2005.
[39] Antonio G. Mendonça, “A Bíblia cativa, Cristo no céu e a Igreja ausente”, op. cit., p. 178.
[40] Paul Freston, “Dilemas Políticos do Protestantismo Latino-Americano”, texto citado.
[41] “A autocrítica”, Rumo e prumo, São Paulo, Ordem dos Pastores Batistas do Brasil, secção do Estado de São Paulo, Convenção Batista do Estado de São Paulo, 2004-2005, p. 20.