A teologia da práxis
libertadora
Jorge Pinheiro, Teologia Política, Paul Tillich, Enrique
Dussel e a Experiência Brasileira, São Paulo, Fonte Editorial, 2006, pp.
158-170.
No final dos anos 60,
quando a teoria do desenvolvimento começou a entrar em declínio,[1]
a estratégia da revolução conquistou corações e mentes latino-americanos.
Intelectuais e partidos políticos de esquerda abandonaram a proposta do
desenvolvimento, bandeira levantada entre outros pela Comissão Econômica para
América Latina -- CEPAL, ligada à ONU, e promovida pelo governo de John Kennedy
através da Aliança para o Progresso, e seguiram os passos de Che Guevara e
Fidel Castro. Dessa maneira, a guerrilha surgiu na Colômbia, Guatemala e
Bolívia, e foi-se espalhando pelo resto da América Latina. Seguindo o sentido
revolucionário que começou a incendiar o continente, teólogos protestantes, num
primeiro momento, e católicos, posteriormente, optam pela estratégia da
revolução. Teologicamente, o caminho da revolução levou a uma reflexão que
privilegiou a construção teológica a partir da valorização da história, da
cultura e da diversidade de formas de manifestação do encontro do ser humano
com Deus.
A Teologia da
Libertação surgiu assim como fruto de uma reflexão sobre problemas objetivos
vividos na América Latina. Opressão e miséria são fenômenos documentados em
todos os países latino-americanos. Mas tais fenômenos não são suficientes para
explicar o surgimento de uma teologia e dos movimentos de libertação que
cresceram a partir da vitória da revolução socialista em Cuba, em 1959. A existência da
miséria não basta, é necessário que a pessoa oprimida perceba a necessidade de
lutar pela própria libertação. Deve tomar consciência do estado de opressão e
entender que tal situação pode ser vencida.[2]
“Para além do desenvolvimentismo está uma
nova postura, que se transmite depois, rapidamente, à teologia, e será toda uma
nova linguagem, uma interpretação econômica, política e, logicamente, teológica
da libertação”.[3]
A expressão teologia da libertação definiu o
sentido dessa reflexão, ao considerar que a libertação é o horizonte regulador
da fala sobre Deus e que o Deus do discurso é fonte da libertação. Dessa
maneira, nesta construção teológica, Deus se manifesta nos diferentes momentos
do processo histórico. A teologia passa, então, a ser força geradora de ações
que viabilizam uma práxis, oriundas das necessidades das circunstâncias sob as
quais um povo está submetido.
“Por isso, a teologia
adquire uma importância capital. Antes, nossos sacerdotes iam à Europa cursar
Direito Canônico (...), depois fomos fazer sociologia, economia e política, mas
agora se redescobriu que é na teologia onde se encontra a questão. Porque a
teologia é a conscientização de todo o processo que se está vivendo; é na
teologia que se deve começar a insistir, cada um, em todos os níveis, porque é
necessário redescobrir os critérios interpretativos de nossa fé, para que,
diante de situações novas, possamos também inventar soluções novas”. [4]
Assim, o
conceito libertação, nos anos 1960/70, surge a partir da realidade cultural,
social, econômica e política sob a qual se encontrava a América Latina. E é a partir
do quadro vivido no continente que o conceito se consolida. Libertação, então,
passa a ser toda “ação que visa criar espaço para a liberdade”.[5]
Essa é a origem primeira e o contexto da reflexão teológica que se desenvolveu
a partir de uma práxis concreta, num contexto político, social e cultural
determinado. Nasceu, a teologia da práxis libertadora. Ou como afirmou Assman
em 1972:
“Acabou-se o tempo do desenvolvimento e
começou a era da libertação, pois que libertação é o novo nome do
desenvolvimento. Partir desta situação histórica para refletir sobre a fé
cristã não significa limitar o conceito de libertação ao plano econômico
(embora aí esteja a prioridade). A libertação do homem no curso da história
exige não só melhores condições de vida, uma mudança radical de estruturas, uma
revolução social; exige algo mais: uma nova maneira de ser do homem, uma
revolução cultural permanente”.[6]
Embora tenhamos
elaborações como a da Conferência do
Nordeste -- Cristo e o Processo Revolucionário Brasileiro[7],
de 1962, e Towards a Theology of
Liberation de Rubem Alves[8],
foi no encontro da Conferência do Episcopado Latino-americano, realizado em
Medellín, em 1968, que a Teologia da Libertação adquiriu direito de cidadania.[9]
Partindo das propostas do Concílio Vaticano II, a conferência de Medellín faz
três afirmações que nortearam o pensamento dessa teologia, que os países pobres
estavam submetidos ao imperialismo; a igreja latino-americana vivia num meio
social em processo revolucionário;[10]
e que a igreja latino-americana deveria buscar sua transformação, diante da
miséria e injustiça. Assim, a Conferência do Episcopado Latino-americano não
viu a libertação reduzida à esfera espiritual, mas enquanto ação transformadora
que se estende ao ser humano como totalidade, cobrindo as esferas das relações
familiares, sociais e políticas. Se por um lado, as opressões do ser humano
latino-americano direcionaram a teologia da libertação, por outro, ela também
sofreu influência de teólogos europeus que procuraram interpretar a mensagem de
Cristo e a história da salvação em base política. Esses teólogos, entre os
quais podemos citar J. B. Metz, H. Cox e J. Moltmann negavam a interpretação
escolástica e as abordagens existenciais e procuravam na práxis política uma
interpretação da mensagem cristã. Ou como diz o próprio Metz:
“A salvação a que se refere a esperança
da fé cristã não é uma salvação privada. A proclamação desta salvação empurrou
Jesus para um conflito mortal com os poderes políticos de seu tempo. Sua cruz
não está no privatissimum da esfera indivíduo/pessoa, e muito menos no
sanctissimum da esfera puramente religiosa. Ela está além do umbral da
reservada esfera privada ou da protegida esfera puramente religiosa. Ela está
‘fora’, como formula a teologia da Carta aos Hebreus. O véu do templo foi
definitivamente rasgado. O escândalo e a promessa desta salvação são públicos”. [11]
Na
busca de contribuições, a teologia da libertação procurou responder ao desafio
de definir os problemas e os caminhos para o diálogo entre as populações pobres
latino-americanas. E mesmo sem saber se tinha a capacidade de contribuir na
solução destas crises, deve-se reconhecer que tentou. Pessoas e grupos
interessados na superação das crises, mesmo aqueles que não compartilhavam de
nenhuma crença religiosa, aproximaram-se da teologia da libertação por entender
que a reorganização democrática da sociedade tinha a ganhar com as
contribuições que vinham dela. Mas, se havia crise do mundo, se havia crise no
Brasil, de onde a teologia devia partir? Dussel, numa reflexão sobre erros e
acertos do passado, ressaltou a importância do esforço de se fazer uma teologia
que enfrente as crises presentes. E caminhará a partir da complexidade do mundo do pobre, conceito
este que levará a dois outros: vítima e excluído. Já que para ele
exclusão, do latim exclusióne, é uma
categoria sócio-econômica, cultural, de gênero, de cor, conforme expõe:
“É necessário
levantar um princípio absolutamente universal que é completamente negado pelo
sistema vigente que se globaliza: o dever de produção e reprodução da vida de
cada sujeito humano, especialmente peremptório nas vítimas desse sistema
mortal, que exclui os sujeitos éticos e só inclui o aumento do valor de troca”. [12]
Aqui o pobre é
visto como vítima e excluído: é aquele que tem negada sua eticidade à vida.
Assim, se exclusão é pobreza, é, no entanto, antes de qualquer coisa, morrer no
começo, fome, doença, mortalidade infantil, marginalidade. É a negação do dom
da vida. E a complexidade desse mundo não pode ser esquecida por aqueles que
desejam fazer teologia e apresentar ao mundo a boa nova da salvação. Afirma,
também, que há um esforço para
silenciar o mundo do pobre-vítima-excluído. Esse esforço se faz presente
através de ideologias que visam o mercado transcendentalizado. E esse engano
dos capitalismos imperiais alargaram a brecha entre participantes do mercado e
excluídos, impõe o pensamento único, e objetiva calar o excluído. A economia é
colocada acima da ética, a política é negada enquanto relação e é pregada a
morte das ações de transformação social, a fim de calar as vozes dos não
incluídos no mercado transcendentalizado. Esta realidade foi vivida pela
sociedade brasileira durante o governo militar. E um teólogo anglicano assim
definiu este momento vivido pela América Latina e o Brasil:
“É a este vazio (...) que somos levados
pela dominação do capitalismo de mercado. Politicamente, proclama-se que todas
as funções do Estado devem ser transferidas à empresa privada. O que temos de
fato são governos civis que exercem seu poder através do uso de aparatos
policiais e militares, O slogan é: O Estado social escraviza, o estado policial
liberta. Hinkelammert cita o chefe da polícia secreta do Chile, que, no auge
da sua imposição de políticas monetaristas, disse: A segurança nacional é como
a amor: nunca é demais. A metafísica do capitalismo empresarial é necessária
para justificar este uso do terror do Estado contra os inimigos de livre
empresa”.[13]
Diante das
pressões reais do estado autoritário no Brasil, a teologia se fez práxis e
procurou construir um caminho da liberdade. E a expressão maior dessa tentativa
de construção foram as Comunidades Eclesiais de Base. Em janeiro de 1979, D.
Adriano Hipólito, bispo de Nova Iguaçu fazia um balanço das CEBs:
“Hoje são quase 50 mil Comunidades
Eclesiais de Base, organizando cerca de um milhão e quinhentas mil pessoas, no
Brasil. Elas identificam o pecado-raiz de toda a opressão: ... esse grande
pecado é agora social e se chama sistema capitalista, concluiu o III Encontro
Intereclesial de Comunidades de Base, em julho de 78 na Paraíba. Já não se
contam mais nos dedos as Comissões Diocesanas de Justiça e Paz. A Igreja
Católica foi, talvez, o primeiro setor organizado, com peso efetivo na
sociedade brasileira, a empunhar a bandeira de luta pelos direitos humanos.
Ligada às parcelas mais exploradas do povo, sofrendo a perda de padres e
freiras perseguidos e mortos, a Igreja se organizou para combater as ameaças à
Justiça e à Paz. Deixa, enfim, o regaço dos poderosos, não sem contradições e
conflitos dentro de sua própria estrutura”.[14]
Logicamente,
diante de um Partido dos Trabalhadores em formação, principalmente por parte
dos agrupamentos socialistas, havia desconfiança ao engajamento da igreja na
luta pelos direitos dos oprimidos, por causa de sua tradição heteronômica. Mas
para o bispo e teólogo não havia razões para tal desconfiança.
“A Igreja, na sua essência, é comunidade
de fé, de esperança e de amor. Sua maior eficiência, fermentadora e renovadora
da comunidade humana, sempre dependeu de seu comportamento e de sua atuação com
comunidades. Sem dimensão comunitária a Igreja não é Igreja. Sem abertura para
os problemas da comunidade/sociedade, a Igreja não está em condições de
realizar sua missão, ser continuação da ação libertadora de Jesus Cristo, ser
sinal de esperança para o homem angustiado e sofredor. É verdade
que nem sempre a consciência comunitária da Igreja funcionou com tanta clareza.
Houve períodos históricos em que os cristãos, inclusive em nível de hierarquia,
se deixaram envolver demasiadamente pelos interesses de grupos do poder, e
assim se acomodaram. Essas colocações são importantes para entender o interesse
da Igreja pelos problemas da humanidade e os instrumentos que ela criou, como
por exemplo as Comunidades Eclesiais de Base (CEB), as Comissões de Justiça e
Paz, etc... Não visam dominar, elas visam servir melhor”.[15]
Diante disso, para os socialistas, durante anos
circunscritos à clandestinidade e ao exílio, uma questão deveria ser
esclarecida: o que são de fato essas comunidades católicas?
“Comunidade: as pessoas se
aproximam livremente, se sentem responsáveis, descobrem e atuam nos mais
diversos elementos de interesse comum. Eclesial: o ponto de partida e de
chegada, os elementos formadores e aglutinadores, os métodos de ação, etc, são
os mesmos da Igreja. Base: a comunidade de base tem como princípio fundamental
o relacionamento primário das pessoas: pessoas que se conhecem, que se estimam,
se complementam, se ajudam mutuamente. Todos atuamos em nível de base. A CEB,
embora não seja constituída para fazer política, tem de se preocupar com os
problemas políticos e tem parte ativa no processo político. Tem a preocupação
de integrar as pessoas da base no processo social, como direito/dever da pessoa
humana, e de levá-la à participação consciente e crítica”.[16]
Foi essa visão das CEBs, fruto da reflexão teológica da
práxis libertadora, que levou a uma aliança de parte da catolicidade com a
formação do Partido dos Trabalhadores, conforme argumentava o bispo de Nova
Iguaçu:
“Para participar do processo social, o
Povo precisa de instrumentos válidos e eficientes. Entre esses instrumentos
estão, por exemplo, os sindicatos e os partidos políticos. Os sindicatos devem
ser órgãos de participação eficiente na defesa dos direitos dos seus sindicalizados.
Estão a serviço dos trabalhadores como comunidade de trabalho que constrói a
Pátria, e não a serviço de grupos do poder, de demagogos e pelegos. O Estado
onipotente conseguiu, também no Brasil, corromper a filosofia dos sindicatos,
reduzindo-os a instituições de beneficência e lazer. (...) Um partido
trabalhista que corresponde realmente a uma grande corrente do pensamento
popular, na classe dos trabalhadores será, mais cedo, ou mais tarde, uma
necessidade imperiosa. (...) Mas um Partido Trabalhista que esteja entregue a
liderança dos trabalhadores, e não seja manipulado por uma elite burguesa que
deseja apenas conquistar o poder”.[17]
E
se tal aliança é possível, está colocada a discussão das relações entre
cristianismo e socialismo. E tem início uma aproximação entre católicos e
socialistas que vai marcar a construção do pensamento desse novo partido.
“Sem disfarçar as divergências em pontos
fundamentais, podemos admitir uma luta comum por uma causa comum: a justiça
social. Quero crer que sem o Cristianismo como pano de fundo, o Socialismo não
se explica suficientemente. Muitos elementos do socialismo são de fato cristãos”.[18]
Assim para o bispo, a história da catolicidade é passível de
críticas. Muitas vezes, suas opções e alianças com os grupos de poder fizeram com que se afastasse e dificultasse seu
relacionamento com parte da população excluída de bens e possibilidades. Tal
situação potencializou o distanciamento entre o cristianismo e o socialismo.
Mas, segundo Paul Tillich, o socialismo erra quando nega a existência da base
solidária e comunitária do ideal cristão[19].
Assim, a Teologia da Libertação e as Comunidades Eclesiais de Base
possibilitaram, no contexto brasileiro, o diálogo e a aproximação necessários
ao partido em
construção. E os socialistas aprenderam a entender as
contradições da hierarquia e a fazer alianças com os católicos:
“Qualquer que seja o resultado da
reunião, a luta entre as tendências conservadoras da Igreja e os setores
progressistas vai continuar. Ela não é um fenômeno apenas superestrutural, ela
reflete um processo mais amplo de lutas sociais, e faz parte da movimentação
política das massas latino-americanas, hoje num processo irreversível de
construção de sua própria história. (...) Se os homens são aquilo que fazem, a Igreja
está sendo aquilo que seus sacerdotes têm praticado. E essa prática de
discussão e organização das bases de nossa sociedade nós precisamos compreender
e avaliar”.[20]
Não somente a
lutar juntos, a novidade é que começaram a pensar juntos, a pensar a catolicidade
com seus acertos e desacertos.
“(...) se analisarmos o caminho da Igreja
através de todos os seus documentos e o nível do seu comprometimento histórico,
desde a encíclica “Rerum Novarum” do Papa Leão XIII, promulgada em l931, até o
discurso do Papa João Paulo II em Monterrey, na sua chegada ao continente para
a abertura da Conferência. Porém, até onde o comprometimento da Igreja chegou,
não era possível acreditar numa meia-volta, e num retorno às omissões cúmplices
com as classes dominantes. Daí que as interpretações, que viam em Puebla um
plebiscito para a “teologia da libertação”, falharam totalmente. Há, sem
dúvida, no interior da Igreja, a corrente simpática a um alinhamento direto com
as classes dominantes, mas a grande maioria do episcopado presente no México
sabe que as decisões do Medellín foram demasiadamente profundas para serem
abolidas por um ato de vontade”. [21]
As
contradições existiam, mas a questão era: será possível contar com um setor do
catolicismo nesta construção de um partido de trabalhadores? Paulo J. Krischke,
na época exilado brasileiro que lecionava na Universidade Autônoma do México e
era integrante do Latin American Research Unit, respondeu à pergunta mostrando
que os socialistas não podiam descartar a possibilidade de que setores da hierarquia tentassem despolitizar as bases da
igreja e esvaziar o projeto das CEBS.
“(...) na medida em que o período atual
de transição e conflitos abertos com o governo tiver sido superado. Porém, se
tal superação realmente se concretizar, com a “volta dos militares aos
quartéis, dificilmente se poderia exigir das bases da igreja mobilizadas
politicamente, uma “volta dos cristãos à Igreja”, ou seja, unicamente para suas
atividades religiosas... Como vimos em Gramsci, “uma concepção ativa do mundo”
(ao contrário do fanatismo sectário de uma doutrina de segurança nacional)
conduz necessariamente a uma expressão partidária e ao questionamento do poder,
sempre que seja essa uma “religião historicamente necessária”, quer dizer, que
corresponda ao desenvolvimento orgânico da sociedade. Além disso, o exercício
das atividades internas da igreja não é incompatível com sua expressão exterior
face a uma prática política pluralista. Antes (...) elas se reforçam
mutuamente. Já vai longe o tempo em que a igreja podia aspirar a uma unidade
monolítica, ou ao controle disciplinar da maioria da instituição eclesiástica.
Assim, o surgimento de setores religiosos sensibilizados politicamente gera um
potencial de atuação partidária, que pode ser canalizado tanto por orientações
de esquerda, como de direita ou de centro, porém, principalmente por tendências
terceiristas ou centristas, dadas as características da ideologia social-cristã
e sua forte penetração recente entre a liderança e as bases da Igreja”.[22]
Assim, socialistas
e políticos de esquerda aprenderam a acompanhar com atenção o movimento
pendular da hierarquia católica. Em análise de conjuntura no jornal Versus,
escrevemos sobre a possibilidade de que a Igreja viesse a apoiar o novo
partido, pois cada vez mais se distanciava da idéia de construir um partido
democrata-cristão.
“(...) até
agora os cardeais e bispos brasileiros têm-se pronunciado contra a formação de
um partido ligado à Igreja. E há razões para isso. Primeiro porque a Igreja no
Brasil não está coesa ideologicamente A corrente democrata-cristã vai desde um
Franco Montoro até a um Nei Braga, desde um dom Paulo Arns ou um dom Hélder
Câmara até a um dom Sigaud. E juntar tudo isso num único partido seria
problemático. Além disso, há a experiência internacional, naqueles lugares onde
a Igreja lançou partidos políticos e estes fracassaram cai também o prestígio
da Igreja. O exemplo mais complicado dessa situação é a própria Itália, onde a
Santa Sé não sabe como se livrar do peso que é o Partido Democrata Cristão. Por
isso, a tendência maior é que a Igreja jogue no seu papel atemporal, e tenha
elementos nos mais diferentes partidos. Aliás, é o que tem feito desde 1945:
apresentar uma cara antiditatorial e democrática, sem lançar-se como opção
política definida”.[23]
Dessa maneira, a
teologia e sua práxis passaram a fazer parte das discussões da esquerda, que
viu nas Comunidades Eclesiais de Base aquilo que lhe faltava, meios de chegar
às massas empobrecidas do país. Ao mesmo tempo, as esquerdas descobriram que a massa
de trabalhadores sindicalizados era católica e tinha ligações com as CEBs. Tais
realidades eram indiscutíveis e possibilitaram não somente um diálogo entre
católicos, uma minoria protestante, os sindicatos e as esquerdas, mas ações e
mobilizações conjuntas que caminharam em direção à criação de um partido de
classe.
[1] A teoria do desenvolvimento delineou nos anos 60 um novo tipo de
relações entre países ricos e países do Terceiro Mundo, de mais cooperação e
assistência. Foi defendida por organismos internacionais e, também, por bispos
e teólogos latino-americanos. “Medellín se encontra hoje no que chamamos de
passagem do desenvolvimentismo para a teologia da libertação. O que significa o
desenvolvimentismo? Que existem sociedades desenvolvidas e sociedades
subdesenvolvidas, logo é necessário desenvolver as segundas. Mas o
desenvolvimentismo pensa que deve-se desenvolvê-las segundo o modo e o modelo
das desenvolvidas. (...) Isso é o que pensa o desenvolvimentismo e está um
pouco presente ainda em Medellin”. Enrique Dussel, Caminos de la liberación
latinoamericana I, Buenos Aires, Latinoamérica Libros, 1972, p. 108.
[2] Enrique
Dussel, História da la
Iglesia en América Latina, medio milenio de coloniaje y
liberación (1492-1992), Madri/México, Mundo Negro-Esquilla Misional, 1992,
p. 218-220.
[3] Enrique Dussel, Caminos de la liberación
latinoamericana I, op. cit., p. 109.
[4] Enrique Dussel, Caminos de la liberación
latinoamericana I, op. cit., p. 170.
[5] Leonardo Boff, Teologia
do cativeiro e da libertação, Petrópolis, Vozes, 1980, p. 87.
[6] Hugo Assman, Religione, oppio o
strumento di liberazione?, IDOC-Mondatori, Verona, 1972, p. 164.
[7] A Conferência do Nordeste teve três blocos de
trabalhos publicados pela Confederação Evangélica do Brasil: os estudos da I
Reunião de Consulta sobre a Responsabilidade Social da Igreja, realizada de 15 a 18 de novembro de 1955, e
publicado em março de 1956; os documentos preparatórios da Conferência do
Nordeste, em especial os textos de Celso Furtado e de Joaquim Beato; e os dois
cadernos, Cristo e o Processo
Revolucionário Brasileiro, publicados em 1962. Na sequência apresentamos
os trabalhos publicados, por data, autor (ou grupo de estudo) e título: 1955,
CEB/CIS, “Estudos sobre a responsabilidade social da igreja”; 1962,
Almir dos Santos, “Cristo e o processo
revolucionário brasileiro”; 1962, Celso Furtado, “Reflexões sobre a pré-revolução brasileira”;
1962, Celso Furtado, “O NE no
processo revolucionário brasileiro”; 1962, Edmundo K. Sherrill, “A missão total da Igreja numa sociedade em
crise”; 1962, Ernst Schilieper, “A
Igreja e a sua responsabilidade social”; 1962, Gilberto Freire, “O artista: servo dos que sofrem”; 1962,
João Dias de Araújo, “A revolução do
reino de Deus”; 1962, Joaquim Beato, “Ideologia cristã como base para a ação social da Igreja”; 1962,
Joaquim Beato, “Os profetas em épocas
de transformações políticas e sociais”; 1962, Juarez R. B. Lopes, “Resistências à mudança social no Brasil”; 1962,
Paulo Singer, ‘”Mudanças sociais na
história contemporânea”; 1962, Sebastião G. Moreira, “Cristo, a única solução para o Brasil”; 1962,
Grupo de Estudo, “Fronteira econômica, Grupo urbano”; 1962, Grupo de Estudo,
“Fronteira econômica, Grupo industrial”; 1962, Grupo de Estudo, “Fronteira
econômica, Grupo rural”; 1962, Grupo de Estudo, “Fronteira cultural, Grupo
educacional”; 1962, Grupo de Estudo, “Fronteira cultural, Grupo de arte e
comunicação”; 1962, Grupo de Estudo, “Fronteira estudantil, Grupo estudantil”;
1962, Curt Kleemann, “Encerramento da
Conferência do Nordeste”; 1962, Apêndice, ‘Cidadania responsável nas situações históricas”.
[8] Rubem
Alves, Da Esperança, Campinas, Papirus Editora. Towards a Theology of Liberation, Corpus Book, Washington, 1969. Trad. João-Francisco Duarte Jr.
[9] R. Vidales, Acquisizioni e compiti
della teologia latinoamericana, Roma, Concilium, 1974, nº 4, p. 154.
[10] “Os
teólogos apenas analisam a situação social, política e econômica do nosso mundo
contemporâneo e apenas constatam a existência dessa luta de classes que é
sempre deplorada por eles. Nenhum teólogo da libertação achará o evangelho
classista no sentido sociológico moderno. Por outro lado, seríamos cegos se não
percebêssemos no evangelho a clara condenação dos ricos e a mais clara ainda
opção pelos pobres”. Jaci Maraschin, “A Teologia da Libertação torna-se adulta”,
in A maioridade da Teologia da Libertação, Estudos de Religião nº 6, abril
de 1989, pp. 7-8.
[11] J. B. Metz, Sulla teologia del mondo, 1968, p. 11.
[12] Enrique
Dussel, Ética da Libertação na idade da globalização e da exclusão,
Petrópolis, Editora Vozes, 2000, p. 573.
[13] Timothy J. Gorringe, O Capital e o Reino, ética
teológica e ordem econômica, São Paulo, Paulus, 1997, Quarta Parte, Dois
Caminhos, pp. 211-227.
[14] Entrevista de D. Adriano Hipólito a Renato Lemos e
Marcos Magalhães, “O mandamento da
liberdade”, São Paulo, Versus no 28, 01.1979, pp.14-15. Na
abertura da entrevista os editores do jornal Versus, da Convergência
Socialista, afirmam: “A velha Igreja
ainda pesa. Esse processo de descolamento se dá em toda a América Latina. Desde
Medellin, há 10 anos, nasce uma igreja combativa, voltada para os problemas das
sociedades pobres e dependentes. É aí que aparecem Pedro Casaldáliga, Tomás
Balduíno, D. Pelé, Benedito Uchoa, Cândido Padim. Para um jornal que se coloca
junto às lutas populares este é um debate fundamental. Qual é o papel da Igreja
hoje? O que acontecerá em Puebla? Dentro de alguns dias, centenas de religiosos
se encontrarão no México, para decidirem o destino de suas comunidades,
arduamente trabalhadas durante anos e anos. O Papa vai a Puebla: rompe-se a
tradição anticlerical da revolução mexicana, mas, é certo, podemos esperar a
aberta interferência de um Vaticano endividado, atolado na falta do dinheiro,
recebendo ajuda americana, e alemã... um papa polonês, um golpe nos estados
operários, golpe nas comunidades de base?”
[15] Renato Lemos e Marcos Magalhães, artigo cit., p.15.
[16] Ainda segundo D. Hipólito: “A CEB aberta, integra-a quem quiser viver e agir em dimensão
comunitária. É através da educação de seus membros, empregando o método da
reflexão bíblica-oração, orientada para a via concreta: conscientização para a
participação tanto na atuação interna da comunidade e da Igreja, como na
atuação social. A CEB não é uma sociedade secreta, por isso não tem medo de
serviços secretos, nem de perseguição. É típico de uma ideologia de segurança e
de desenvolvimento ter medo da conscientização e da participação ativa do Povo,
e por isso mesmo olhar como subversivas as atividades da Igreja e das CEBs”.
Renato Lemos e Marcos Magalhães, artigo cit., p.15.
[17] “Olho a
nossa América Latina. Apesar de certas aparências, nossos povos vivem à margem
do processo social. Uma elite, voltada inteiramente para a Europa, para os EUA,
para a Rússia, continua hoje o imperialismo colonial de séculos passados. Só
que agora o colonizador é interno. Apesar da chamada independência política os
nossos povos precisam ainda ser liberados, e ter os meios de participar
intensamente da vida nacional. Medellin quis dar um impulso forte para o aceleramento
deste processo integração e participação. Nossa esperança é que a planejada
Terceira Conferência, em Puebla, intensifique mais ainda o esforço de Medellín”.
Renato Lemos e Marcos Magalhães, artigo cit.,
p.15.
[18] E D. Hipólito continua, argumentando sobre a
possibilidade do diálogo: “Disse o
sociólogo alemão Werner Sombart: ‘há mais de cem tipos de socialismos’.
Certamente com vários tipos será possível uma aproximação do Cristianismo. É
por isso que as palavras de Pio XI no Quadragésimo Anno: ‘Ninguém pode ser ao
mesmo tempo socialista e cristão’ (que em determinado momento histórico visava
ao socialismo radical, em sua forma extremada) têm de ser entendidas
corretamente. O Socialismo teve de adaptar-se, e moderar-se no contato com a
realidade concreta, que é sempre muito diferente do mundo dos filósofos e dos
ideólogos. A História, mestra da vida, corrigiu graves erros do Socialismo
primitivo, como está corrigindo (cf. Eurocomunismo e também as formas políticas
dos diversos países comunistas) o Marxismo. Para nós, os cristãos, vale sempre
o princípio de não absolutizarmos os momentos históricos, que de sua natureza,
são sempre contingentes e mutáveis. Isto vale para a Política, para a Economia,
para a Cultura, para as diversas Religiões. Isto vale também para a própria
história do Cristianismo”. Renato Lemos e Marcos Magalhães, artigo cit.,
p.15.
[19] Paul Tillich, “Rapport au Consistoire in Christianisme
et socialisme”, Écrits socialistes allemands (1919-1931), Les
Éditions du Cerf, Éditions Labor et Fides, Les Presses de l’Université Laval,
1992, pp.3-8.
[20] Renato
Lemos e Marcos Magalhães, artigo cit., pp.14-15
[21] Vanderlei José Maria, “A Igreja, a sociedade civil e o movimento popular no Brasil”,
São Paulo, Versus no 30, 03.1979, p. 14.
[22] Paulo J. Krischke, “A Igreja, a sociedade civil e o movimento popular no Brasil”,
São Paulo, Versus no 30, 03.1979, p. 15.
[23] Jorge
Pinheiro, “O príncipe do rancho”,
São Paulo, Versus no 33, 06.1979, pp. 28-32.
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