Reflexões sobre a construção histórica da luta contra a opressão na Modernidade
– uma introdução
Por Jorge Pinheiro
Nascer brasilíndio ou afrobrasileiro, por causa da
herança escravocrata, está relacionado com a possibilidade da pobreza. Os povos
brasilíndios e afrobrasileiros lutam diáriamente para a garantia da
subsistência e de melhores condições de vida. Lutam por cidadania. Compreender a
realidade do racismo é combater as formas de exclusão social, que se traduzem na
expropriação de bens e possibilidades, ou seja, na exclusão da cidadania.
Analisar desde um ponto de vista teológico a herança
escravocrata nos remete a origem do pensamento libertário, que no Ocidente
moderno tem base religiosa e mais precisamente cristã. Nesse sentido, temos um
roteiro e bases teóricas que permitem a abordagem teológica do pensamento libertário
na experiência brasileira e, mais concretamente, nas lutas dos povos brasilíndios e afrobrasileiros.
E podemos teoricamente fazer esta abordagem a partir das relações entre
ser e consciência, das relações entre massa e mobilização, e das relações entre
mito e utopia. E ver que, a partir da história do Ocidente, no final da Idade Média
foram lançadas as bases dos pensamentos libertários contemporâneos, quando
grupos romperam com as estruturas da sociedade medieval e começaram a fazer um
caminho que teve por base a autonomia.
Nesse sentido, o
pensamento libertário, que se expressa de diferentes formas, é um movimento de
oposição, paradoxal, que confrontou e confronta a sociedade burguesa, mas
uniu-se e une-se à sociedade burguesa na luta contra às expressões feudais e
patriarcais da sociedade. Entender esta raiz do pensamento libertário ajuda a
compreender as raízes do pensamento político moderno. Assim, em nossa teologia
política, seguindo referenciais como o teólogo teuto-estadunidense Paul Tillich,
nosso primeiro referencial é o ser.
Ou seja, optamos
por fazer uma fenomenologia política quando analisamos questões como a origem
do pensamento político autoritário e opressor, enquanto mito, e a partir daí
procuramos trazer à tona os elementos não reflexivos do pensamento político
conservador. E a partir da análise do pensamento conservador procuramos
explicar o surgimento do pensamento libertário, da democracia e do socialismo.
Matrizes da luta
contra a opressão na Modernidade
O pensamento libertário é produto da expansão econômica e espiritual, lentamente
gestada, que se impôs com a Renascença e a Reforma e, posteriormente, com o
desenvolvimento do capitalismo. O libertário moderno, em suas várias
expressões, surgiu como oposição à cultura
autoritária e opressora da Idade Média e sedimentou suas bases nas criações
culturais autônomas dos dois últimos séculos.
A luta contra o autoritarismo e a opressão só pode ser compreendida a
partir desta expansão e suas conquistas estão ligadas a este desenvolvimento.
Deve-se entender, porém, que é do
interior do cristianismo que brota o ideal da liberdade. Por isso, ao fazer a
análise dos fundamentos do pensamento libertário nas lutas dos povos negros no
Brasil devemos, metodologicamente, entender sobre quais princípios repousam.
A organização econômica e espiritual da Idade Média esteve fundada sobre
um sistema de centralização da autoridade que associava natureza e sobrenatural,
sujeitando comunidades e povos a tal cosmovisão.
A partir do Iluminismo, tal postura foi duramente questionada, e no domínio econômico e político, e por
extensão no espiritual, nada deixou de ser questionado pela consciência
pensante. As formas de autoridade e governo, as definições econômicas e os sistemas
de fé sofreram o assalto da autonomia, que não teve nenhum respeito pelas
autoridades, quer humanas ou ditas divinas.
Os sistemas de autoridade começaram a desabar, para alegria de muitos e
tristeza de outros. E se reconheceu que a vida humana não podia ser pensada sem
autonomia, e os ideais de liberdade se fizeram presentes. Povos expropriados de
bens e direitos tiveram um mesmo desejo: conquistar a liberdade das mãos do
autoritarismo fosse ele imanente ou transcendente.
Assim, a autonomia iniciou o reinado da razão. Depois de
um milênio e meio, a razão humana não viu limites para sua expansão. Penetrou a
vida cultural e social, e a partir das novas descobertas e reflexões propôs sistemas
novos de governo e regime. Depois de séculos de arbítrio, as pessoas quiseram dar
formas racionais ao mundo. A vida econômica, por exemplo, também deveria ser
formulada racionalmente, e não seria para o prazer de poucos, indivíduos ou
povos, que deveria se fazer a lei, mas a humanidade inteira, sujeito e objeto
dos processos econômicos, é quem deveria fazê-lo a partir de critérios
racionais.
A autonomia substituiu a autoridade, e a razão precisava construir um
mundo sem arbítrio. A razão precisava
ser separada da exclusiva e imediata decisão humana e colocada a serviço das
necessidades objetivas. Donde, na
Modernidade, a fé transforma-se em fé na razão: uma fé que adquire força graças
à uma amarração metafísica objetiva, dogma fundamental de milhões de pessoas.
Foi o processo histórico que fez o mundo conformar-se à razão e levou dezenas
de lutas a se tornarem vitoriosas. E foram essas vitórias que deram cara ao
mundo que conhecemos como moderno. A fé na razão está fundamentada, de fato, sobre
os resultados conquistados pelas ciências da natureza. Mas com as ciências da
natureza veio a cultura moderna. Preparada de várias maneiras, ela surgiu com força
na Renascença e levou milhões de pessoas a
uma afirmação positiva deste mundo, antes desdenhado e rebaixado por um
outro mundo, onírico e místico.
Os outros mundos empalideceram diante da validade universal das leis da
natureza, da redescoberta da beleza do real na arte, diante da consciência de
unidade do finito e do infinito na filosofia da natureza. E assim a imanência
ressoou no Humanismo e na filosofia das Luzes, no idealismo alemão, da mesma
maneira que o pensamento libertário se uniu à consciência da autonomia e à fé no
poder formador da razão na construção de um sentimento unitário do mundo e da
vida. Se o pensamento libertário é, nesse sentido, uma herança da cultura ocidental, ele tem, no entanto, uma originalidade que não se restringe aos
conceitos, mas à experiência vivida.
O conceito de humanidade, que manifesta a vitória da idéia de solidariedade,
não teve no desenvolvimento da burguesia mais que uma realização precária. A
consciência da humanidade foi neutralizada pela consciência de classe, pela
educação para as elites e pela dependência nacional.
A humanidade se colocou antes de tudo no campo das confissões, adotou
formas contrárias a idéia de uma transformação racional do mundo. Foi pela
pressão sobre os trabalhadores nos primeiros decênios do capitalismo, que
nasceu a consciência solidária, no
coração do qual está o sentimento universal de humanidade, que se opõe à
ideologia de que o ser humano é meio e não fim.
O combate contra o feudalismo, contra o capitalismo, contra o
nacionalismo e contra o confessionalismo católico e protestante constituiu a
expressão negativa da consciência incondicional de humanidade, que derruba
barreiras e reconhece o humano em cada pessoa.
Mas autonomia e movimentos libertários são processos históricos que se
complementam, embora não sejam idênticos. O processo de autonomia vivido pela
sociedade européia no período que se abriu a partir do Iluminismo e que pôs em
xeque o autoritarismo e a opressão, serviria de base para as ações libertárias.
Autonomia é o momento supremo da imanência e da razão, e é a partir daí que o
pensamento libertário construiu um sentimento unitário do mundo e da vida,
embora sua originalidade não se limite aos conceitos, mas à experiência vivida,
como afirmei anteriormente.
A luta dos trabalhadores contra a alienação e a exclusão social gerou consciência
solidária e sentimento universal de humanidade. Mas, ainda assim, ao se limitar
ao campo da autonomia, sem uma atitude que permitisse à incondicionalidade
apoderar-se da própria autonomia, o pensamento libertário deixou aberto o
caminho para o autoritarismo e o arbítrio.
Quando olhamos as
lutas libertárias brasileiras a partir da crítica ao eurocentrismo, podemos
dizer que hoje se repete o que sucedeu há quinhentos anos com a conquista da
América: o europeu, e por extensão o estadunidense, constituiu o sentido do ser
brasileiro, encontrado a partir da totalidade de sentido européia. Na verdade,
o habitante do Brasil, brasilíndios e
afrobrasileiros, não foi descoberto como outro, mas como o mesmo já conhecido
e, em seguida ocultado, negado e transformado em objeto do ego moderno.
O ponto
fundamental dessa crítica é que a Europa, num primeiro momento, e os Estados
Unidos depois descobriram um novo espaço geográfico, compreendeu-o como
horizonte fundamental do ser do centro, campo de batalha no qual exerce uma
práxis de dominação. Tal formulação desconstrói o sistema ontológico da
dominação, a partir da exterioridade do outro como sujeito ético, como rosto e
como corporeidade, que grita e clama por justiça. Os excluídos do sistema
cultural ocidental devem ser tomados como partes de uma rede sócio-cultural, de
um novo modelo de racionalidade, ético-crítica.
Diante das
massas crescentes de deserdados que tomam consciência de sua negação originária
como subjetividade excluída ou objetivada dentro do sistema dominante, os poderosos
utilizam a guerra e, se admitem o diálogo, é no interior de sua comunidade de
comunicação hegemônica, que não garante a reprodução e o desenvolvimento da
vida humana. A teologia deve pensar a realidade mundial além da fronteira do
centro, que distingue entre populações dotadas de direitos e poderes e
populações excluídas e utilizadas como instrumentos manipuláveis.
Se entendermos
esse processo de construção da dominação, podemos analisar o processo de
gestação das lutas contra a opressão
a partir da passagem da heteronomia à autonomia e, posteriormente, à teonomia,
enquanto ciclos que procuram romper a lógica de ferro da dominação.
Os levantes
revolucionários das massas são encontrados em movimentos políticos e raciais, em
movimentos religiosos, e nos movimentos econômicos das ações libertárias.
Embora esses movimentos possam ser encontrados em diversas épocas, também o são
em diferentes esferas da cultura. Mas sempre são movimentos de libertação: já
que é parteira de escravos, de povos excluídos, de trabalhadores assalariados e,
no Brasil, também de brasilíndios e afrobrasileiros, que o capitalismo
pós-moderno leva a uma dinâmica de massa que transborda a história.
Nesse sentido,
podemos dizer que tarefas locais e estratégicas estão colocadas para aqueles
que pensam e agem na contra-corrente:
1.
Somar-se às lutas
dos povos excluídos de bens e direitos
2.
Exigir que todos as
conquistas cidadãs se estendam a essas populações
3. Correlacionar essas lutas e reivindicações com as demais bandeiras levantadas
por organismos estudantis, das classes trabalhadoras e sindicatos, de forma que
democracia e liberdade sejam intensamente vividos por todos os brasileiros
deserdados de bens e direitos
4.
E fazer dessas
lutas permanentes um ideal solidário do povo brasileiro.
Referências
Alessia
Ansaloni
A nova Conquista:
análise de um filósofo periférico, Universidade de Bolonha.
Paul Tillich
As
duas raízes do pensamento político, Potsdam 1933, Gesammelte Werke, II, pp.
219-365.
La dimension religieuse de la culture,
1919-1926, Paris, Géneve, Québec, Les Éditions du Cerf, Éditions
Labor et Fides, Les Presses de l’Université Laval, 1990; Christianisme et
Socialisme, Écrits socialistes allemands, 1919-1931, Paris, Géneve, Québec,
Les Éditions du Cerf, Éditions Labor et Fides, Les Presses de l’Université
Laval, 1992; Écrits contre les nazis, 1932-1935, Paris, Géneve, Québec,
Les Éditions du Cerf, Éditions Labor et Fides, Les Presses de l’Université
Laval, 1994.
Christianisme et Socialisme I in Christianisme et Socialisme, Écrits socialistes allemands
(1919-1931), Les Éditions du Cerf, Éditions Labor et Fides, Les Presses de
l’Université Laval, 1992, pp.23-30.
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