dimanche 15 novembre 2015

A violência da globalização

Quando o fascismo e a intolerância ressurge na Europa, como resposta à crise cultural, econômica e social, este texto do filósofo francês Jean Baudrillard apresenta algumas questões que devem ser analisadas. Eis um bom desafio para essas dias de chuva. Jorge Pinheiro, véspera do 1º. de maio de 2012.

A violência da globalização
Por Jean Baudrillard

Seria a globalização uma fatalidade? De alguma forma, todas as outras culturas que não a nossa escapavam à fatalidade da troca indiferente. Onde se situará o limiar crítico da passagem ao universal e, depois, ao mundial? Que vertigem será esta que impulsiona o mundo para a abstração da Idéia, e esta outra vertigem que incita à realização incondicional da Idéia?

Porque o universal era uma Idéia. Quando se realiza no mundial, ela se suicida enquanto Idéia, enquanto fim ideal. Como o humano se tornou a única instância de referência e a humanidade imanente a si mesma passou a ocupar o vazio deixado por Deus morto, o humano agora reina sozinho, mas já não tem motivação final. Não tendo mais inimigo, engendra-o do interior e secreta todos os tipos de metástases inumanas.

Conquistas da modernidade e do progresso

Donde a violência do mundial - violência de um sistema que persegue qualquer forma de negatividade, de singularidade, inclusive a forma última de singularidade que é a própria morte - violência de uma sociedade em que estamos virtualmente proibidos de conflito, proibidos de morte - violência que, de certa maneira, põe fim à própria violência  e que trabalha para instalar um mundo livre de qualquer ordem natural, seja a do corpo, a do sexo, a do nascimento ou a da morte.

Mais do que de violência, seria necessário falar de virulência. Trata-se de uma violência que é viral - que atua por contágio, por reação em cadeia, e destrói, pouco a pouco, todas as nossas imunidades e nossa capacidade de resistência.

Entretanto, nada está decidido, e a globalização não ganhou por antecipação. Diante desse poder homogeneizante e dissolvente, se vê, em toda parte, levantarem-se forças heterogêneas - não só diferentes, mas também antagônicas. Por trás das resistências cada vez mais intensas à globalização, sociais e políticas, é preciso ver mais do que uma rejeição arcaica: uma espécie de revisionismo dilacerante quanto às conquistas da modernidade e do “progresso”, de recusa não apenas da tecno-estrutura mundial, como também da estrutura mental de equivalência de todas as culturas.

Este ressurgimento assume aspectos violentos, anômalos, irracionais em relação a nosso pensamento esclarecido - formas coletivas étnicas, religiosas, lingüísticas - mas, igualmente, formas individuais de perturbação do caráter ou neuróticas. Seria um erro condenar esses sobressaltos como populistas, arcaicos ou mesmo terroristas. Tudo o que faz um acontecimento hoje o faz contra essa universalidade abstrata - inclusive o antagonismo do islamismo com os valores ocidentais (pelo fato de ser a mais veemente contestação desses valores, é que, hoje, o Islã é seu inimigo número um).

Vingança de culturas singulares

Quem poderia impedir o sucesso do sistema mundial? Certamente não o movimento antiglobalização, que só tem por objetivo frear a desregulamentação. Seu impacto político pode ser considerável, mas o impacto simbólico é nulo. Essa violência é também uma espécie de peripécia interna que o sistema pode superar sem perder o controle da situação.

O que pode impedir o êxito do sistema não são alternativas positivas, são singularidades. Ora, estas não são positivas nem negativas. Não são uma alternativa; são de outra ordem. Não obedecem mais a um juízo de valor nem a um princípio de realidade política. Podem, pois, ser o melhor ou o pior.

Não é possível, portanto, confederá-las numa ação histórica conjunta. Impedem o sucesso de todo pensamento único e dominante, mas não são um contra-pensamento único - elas inventam seu jogo e suas próprias regras do jogo.

As singularidades não são necessariamente violentas, e algumas são sutis, como as da língua, da arte, do corpo ou da cultura. Mas há algumas violentas - como a do terrorismo. É a que vinga todas as culturas singulares que pagaram com seu desaparecimento a instauração desse único poder mundial.

Despeito feroz entre culturas

Não se trata, portanto, de um “choque de civilizações”, mas de um confronto - quase antropológico - entre uma cultura universal indiferenciada e tudo o que, em qualquer área, conserva algo de uma alteridade irredutível.

Para o poder mundial, tão radical quanto a ortodoxia religiosa, todas as formas diferentes e singulares constituem heresias. Por esta razão, estão condenadas a entrar, querendo ou não, na ordem mundial ou a desaparecer. A missão do Ocidente (ou melhor, do ex-Ocidente, visto que há muito deixou de ter valores próprios) é submeter, por todos os meios, as múltiplas culturas à lei da equivalência.

Uma cultura que perdeu seus valores só pode se vingar nos valores das outras. Inclusive as guerras - como a do Afeganistão - visam primeiro, para além das estratégias políticas ou econômicas, a normalizar a barbárie, a obrigar todos os territórios a se alinharem. O objetivo é dominar toda e qualquer região refratária, colonizar e domesticar todos os espaços selvagens, tanto no espaço geográfico quanto no universo mental.

A instalação do sistema mundial resulta de um despeito feroz: o de uma cultura indiferente e de baixa definição em relação a culturas de alta definição; o dos sistemas desencantados, que perderam a intensidade, em relação a culturas de alta intensidade; o das sociedades dessacralizadas em relação a culturas ou formas sacrificiais.

Humilhação contra humilhação

Para tal sistema, qualquer forma refratária é virtualmente terrorista. É o caso ainda do Afeganistão. Que, num território, todas as permissões e liberdades “democráticas” - a música, a televisão, inclusive o rosto das mulheres - possam ser proibidas, e que um país possa tomar o contrapé total do que chamamos de civilização - qualquer que seja o princípio religioso invocado -, tudo isso é insuportável para o resto do mundo “livre”.

Não se considera que a modernidade possa ser renegada em sua pretensão universal. Que ela não seja vista como a evidência do bem e o ideal natural da espécie, que se conteste a universalidade de nossos costumes e de nossos valores - ainda que por algumas mentes imediatamente caracterizadas como fanáticas -, tudo isso é um crime em relação à visão do pensamento único e do horizonte consensual do Ocidente.

Esse confronto só pode ser compreendido à luz da obrigação simbólica. Para compreender o ódio do resto do mundo em relação ao Ocidente, é preciso inverter todas as perspectivas. Não se trata do ódio daqueles de quem se tirou tudo e aos quais nada se retribuiu mas, sim, do ódio daqueles a quem tudo se deu sem que eles pudessem retribuir. Não é, portanto, o ódio da espoliação e da exploração, é o ódio da humilhação.

E é a este que responde o terrorismo do 11 de setembro: humilhação contra humilhação. O pior para a potência mundial não é ser agredida ou destruída, é ser humilhada. E a potência foi humilhada pelo 11 de setembro, porque os terroristas lhe infligiram, então, alguma coisa que ela não pode retribuir. Todas as represálias são apenas um aparelho de coação física, ao passo que ela foi desfeita simbolicamente.

A guerra responde à agressão, mas não ao desafio. O desafio só pode ser aceito humilhando o outro em resposta (mas, de modo algum, esmagando-o sob bombas, nem trancando-o como cães em Guantânamo).

Saturação da existência

A base de qualquer dominação é a ausência de contrapartida - sempre segundo a regra fundamental. O dom unilateral é um ato de poder. E o “império do bem”, a violência do bem, consiste exatamente em dar - sem contrapartida possível. Consiste em ocupar a posição de Deus. Ou do Senhor, que deixa a vida ao escravo em troca de seu trabalho (mas o trabalho não é uma contrapartida simbólica; portanto, as únicas respostas, afinal, são a revolta e a morte). Deus, pelo menos, dava espaço para o sacrifício.

Na ordem tradicional, sempre existe a possibilidade de retribuir - a Deus, à natureza ou a qualquer outra instância, sob a forma do sacrifício. É o que garante o equilíbrio simbólico dos seres e das coisas. Não temos, hoje, mais ninguém a quem retribuir, a quem restituir a dívida simbólica - e é essa a maldição de nossa cultura.

Não que nela seja impossível o dom e, sim, que nela o contra-dom é impossível, visto que todas as vias sacrificiais foram neutralizadas e desmontadas (resta apenas uma paródia de sacrifício, visível em todas as formas atuais da condição de vítima).

Estamos, desse modo, na situação implacável de receber, receber sempre, não mais de Deus ou da natureza, mas através de um dispositivo técnico de troca generalizada e de gratificação geral. Tudo nos é virtualmente dado e, queiramos ou não, temos direito a tudo. Estamos na situação de escravos aos quais se deixou a vida e que estão ligados por uma dívida insolúvel.

Tudo isso pode funcionar durante muito tempo graças à inserção na troca e na ordem econômica mas, num dado momento, a regra fundamental a vence, e a essa transferência positiva corresponde, inevitavelmente, uma contratransferência negativa, uma ab-reação violenta a essa vida cativa, a essa existência protegida, a essa saturação da existência. Tal reversão assume a forma de uma violência aberta (o terrorismo faz parte dela), ou da negação impotente, característica de nossa modernidade, do ódio de si e do remorso - todas paixões negativas que são a forma degradada do contra-dom impossível.

Veredicto e condenação da sociedade

Aquilo que detestamos em nós, o obscuro objeto de nosso ressentimento, é esse excesso de realidade, esse excesso de poder e de conforto, essa disponibilidade universal, essa realização definitiva - o destino que, no fundo, o “grande inquisidor” reserva às massas domesticadas em Dostoievski. Ora, é exatamente isso que os terroristas criticam em nossa cultura - donde a repercussão que o terrorismo encontra e o fascínio que exerce.

Tanto quanto no desespero dos humilhados e dos ofendidos, o terrorismo se baseia, por exemplo, no desespero invisível dos privilegiados da globalização, em nossa própria submissão a uma tecnologia integral, a uma realidade virtual esmagadora, a um domínio das redes e dos programas que traça, talvez, o perfil involutivo da espécie inteira, da espécie humana tornada “mundial” (a supremacia da espécie humana sobre o resto do planeta não seria à imagem da supremacia do Ocidente sobre o resto do mundo?). E esse desespero invisível - o nosso - é irremediável, pois decorre da realização de todos os desejos.

Se o terrorismo decorre, pois, desse excesso de realidade e de seu prazo impossível, dessa profusão sem contrapartida e dessa resolução forçada dos conflitos, então a ilusão de extirpá-lo como um mal objetivo é total, dado que, sendo como é, em seu absurdo e em seu contra-senso, ele é o veredicto e a condenação que esta sociedade emite em relação a si mesma.


Tradução: Iraci D. Poleti

Jean Baudrillard é filósofo, autor, dentre outros livros, de “La Guerre du Golfe n’a pas eu Lieu” (1991), “Le Crime Parfait” (1994) e “L’Esprit du Terrorisme” (2002), todos editados pela Galilée. Este texto foi extraído de seu novo ensaio, “Power Inferno” (ed. Galilée, Paris, 94 páginas).

jeudi 12 novembre 2015

Imago Dei -- Um convite para você e os amigos


Um legado provocante
Paula Coatti[1]


Jorge Pinheiro sintetiza nesta obra todo o seu legado político, teológico, filosófico e pastoral, de forma provocante, instigando qualquer leitor a sair de sua zona de conforto. Um conteúdo inteligentemente orquestrado, integrando aspectos da dialética materialista histórica, com a psicologia social crítica da construção intersubjetiva indivíduo-sociedade mediada pela linguagem, mergulhando na mística judaica do ensino de sabedoria. Propõe as hermenêuticas da complexidade e a da crítica às ideologias para a compreensão antropológica do Cristo: aquele de genealogia desconhecida e geografia marginal, um “sem terra-prometida”, o revolucionário radical, o Messias prometido. Resgata a proposta do evangelho de fazer-se a revolução pela ética e não por armas, proposta de diálogo consensual, base da verdadeira democracia. Mas para isto é necessário compreender o diálogo como revelação de Deus na tratativa com o humano, convidando à percepção das subjetividades na construção simbólica, onde o kairós viabiliza no chronos a manifestação do princípio protestante da não aceitação das desigualdades sociais, marca da subjugação da brasilidade. Um convite perturbador e ousado à Igreja brasileira, de reinventar-se para recuperar a integralidade missiológica, decretando o fim da consciência cartesiana, denunciando a apatia que tem aprisionado o sal impedindo-o de salgar a Terra Brasilis. Só poderia iniciar e terminar com citações do Inferno, da Divina Comédia de Dante Alighieri, pois, para bom entendedor, meia palavra basta.


[1] Paula Coatti é Doutora em Psicologia Social pela PUC de São Paulo, com especialização em Identidade Humana; Mestre em Teologia pela Escola Superior de Teologia de São Leopoldo (RS). É docente na Faculdade Teológica Batista de São Paulo, na FLAM, Faculdade Latino-Americana de Teologia Integral, e no Seminário do Betel Brasileiro.

mercredi 11 novembre 2015

Olhares judaicos, de reflexão, sobre Jesus

 

Judeus estudam Jesus

Prof. Dr. Jorge Pinheiro


Intelectuais e pensadores judeus nos últimos decênios iniciaram um caminho de aproximação e diálogo para entender o pensamento de um judeu chamado Jesus. Aqui vamos examinar brevemente o trabalho de três deles.

 

 

 

1.     David Flusser

 

Entre esses intelectuais podemos citar David Flusser, que foi professor de Novo Testamento e Cristandade antiga na Universidade Hebraica de Jerusalém. Em 1968 foi publicado o seu texto "Jesus em Auto-Testemunhos e Documentos de Imagens", onde diz que Jesus nasceu em Nazaré, era primogênito, e teve quatro irmãos e irmãs. E que foi batizado nos anos 28/29 e morreu entre os anos de 30 e 33. É interessante que Flusser não nega a virgindade de Maria, ao menos explicitamente. Em sua biografia de Jesus, Flusser relata a formação dele, a tensão com a família, que só aceita sua pregação após a morte dele. Flusser refere-se ao batismo e a dotação do espírito como um evento histórico. Considera João, o batista, como o Elias escatológico e que, com Jesus, o reino de Deus teria começado.

Para Flusser, Jesus não foi teórico racionalista e, embora tivesse se voltado contra a teimosia dos piedosos bitolados, ele enfatizou o lado moral dos mandamentos, mas não propôs a sua abolição. Assim, para Flusser, Jesus foi um judeu que se sentiu enviado aos judeus. Os fariseus aparecem em Flusser, outra vez, como referência simbólica, e não historicamente, e são absolvidos de qualquer culpa na morte de Jesus. Flusser coloca a mensagem Jesus como produto periférico ao pensamento dos essênios, mas sem afirmar que Jesus tenha sido essênio. A questão do reino de Deus foi um ponto central da proclamação de Jesus, na qual estavam embutidas uma constelação de valores e não somente aqueles de dimensão social. Por isso, considera que a escatologia se realiza através de Jesus.

Em seu o livro "A Cristandade, uma religião judaica", Flusser fala de Maria, das raízes judaicas da Cristandade, da expectativa messiânica de Jesus, de Paulo e da missão como chamado à fraternidade. Reafirma que Jesus teria visto João como Elias e que Jesus teria sido o único judeu antigo a pregar o início do reino de Deus. Ele teria se visto como Messias. E diz que nos últimos anos empregou força e diligência para mostrar, tanto em hebraico como em inglês, que Jesus se viu realmente como o Messias, o Filho de Homem por vir. Segundo Flusser, Jesus teria mudou a escatologia judaica, ao afirmar que primeiro se realiza o reino do Céu e só depois vem o juízo final. Flusser enfatiza a importância da atividade terrena de Jesus, faz a defesa da messianidade de Jesus como o Filho do Homem, mas descarta a morte expiatória. Apresenta Jesus como judeu, antes e depois da ressurreição. E, assim, apresenta o judeu Jesus como único, divino, Messias. Flusser, dessa maneira, cria a possibilidade de diálogo.

Bibliografia

David Flusser, Jesus, São Paulo, Editora Perspectiva, 2002.
Nesse texto, Flusser utiliza a mais moderna metodologia científica no campo da análise textual, filológica, documental e arqueológica na qual a leitura dos Evangelhos se faz à luz dos Manuscritos do Mar Morto, da literatura pseudo-epigráfica e apocalíptica em conjunto com a do Velho Testamento, da tradição oral judaica, da cristologia e das fontes greco-latinas da historiografia clássica, este livro do historiador David Flusser apresenta um painel da reconstituição do semblante verossímil do judeu de Nazaré e a feição objetiva da realidade que lhe foi subjacente e o projetou na transcendência - a do judaísmo do século primeiro nas suas correntes conflitantes de pensamento religioso.

David Flusser, Judaísmo e as origens do Cristianismo, vols. 1 e 2, São Paulo, Imago, 2001.
No primeiro volume, Flusser objetiva eliminar preconceitos inatos e promover uma melhor compreensão das antigas fontes das duas religiões universais: o judaísmo e o cristianismo. Dentro desta perspectiva, o autor fixa como objetivo principal tratar de alguns problemas relativos ao judaísmo antigo e ao cristianismo primitivo. E no segundo volume, mostra que como o cristianismo surgiu entre os judeus, foi, portanto, um dia, parte do judaísmo. É esta busca por uma melhor compreensão das antigas fontes de duas religiões universais que encontramos neste livro. O autor elimina os preconceitos analisando a influência e essência das doutrinas de forma direta a partir de Jesus. O livro ainda traz alguns artigos eruditos que foram publicados em periódicos.

 

 

2. Geza Vermés

 

O judeu Geza Vermés, historiador britânico, estudou o Jesus histórico. Começou as suas exposições com dados sobre a pessoa de Jesus, e o apresentou como carpinteiro, professor, curador taumaturgo e exorcista, que atuou na Galiléia. Analisou também os títulos de realeza de Jesus: profeta, Senhor, Filho de Homem, Filho de Deus. E acabou por entrar no debate sobre a pessoa do Cristo. E fez isso a partir da literatura do intertestamento e dos rabinos. Para Vermes, é difícil dizer se, de fato, Jesus aceitou os títulos messiânicos ou se essa apropriação se dá posteriormente com o surgimento da igreja cristã.

Para Vermes, em todo o caso, Jesus poderia ser enquadrado num amplo espectro das personagens judaicas de seu tempo. Vermés não faz conjecturas sobre a motivação dos cristãos de apresentarem Jesus como o Messias, mas considera que esse seria um processo natural, já que o Evangelho era perfeito, mas a obstinação dos judeus em recusá-lo como Messias, a maior de todas as promessas divinas a Israel, foi o ponto alto de um erro, e este foi o motivo principal para que seus privilégios fossem transferidos aos não-judeus.

E quem foi o responsável por esta transição foi Paulo, pois a partir do momento em que foi reconhecido como apóstolo dos gentios (Rm 11.13; At 9.15), e sua missão dirigida aos não-judeus foi aprovada pela liderança da igreja em Jerusalém (At 15), a orientação original da atividade de Jesus foi radicalmente transformada. Não-judeus entraram na igreja em grande número, e ela fez, em conformidade com o modelo de conversão existente no Judaísmo daquela época, o seu melhor para satisfazer as novas exigências. Outra transformação decisiva, que tocava na substância em conseqüência do transplante do movimento cristão ao solo gentílico, atingia o status da Torá, que representava para Jesus a fonte da inspiração e o critério do seu modo de viver. Apesar de não ser esta a posição de Jesus, ela foi declarada não só facultativa, mas abolida. A Torá, que ele compreendia com simplicidade e aprofundamento, e que transpunha com integridade, foi definida por Paulo como um instrumento de pecado e morte. E Paulo se tornou por uma virada que criou o grande abismo entre Judaísmo e Cristandade.

Assim, para Vermes, a do cristocentrismo contra o teocentrismo de Jesus separaria, então, os cristãos dos judeus, mas não os judeus de Jesus. Pois Jesus de carne e sangue, visto e ouvido na Galiléia e em Jerusalém, intransigente e persistente no seu amor a Deus e ao próximo, estava convencido de que poderia contagiar os seus semelhantes pelo exemplo e ensino, com o seu apaixonado relacionamento ao Pai no Céu. E com o pássaro do tempo o judeu simples dos Evangelhos passou para o segundo plano e cedeu lugar à magnífica e majestosa figura do Cristo da igreja.

Bibliografia

Geza Vermes, Jesus e mundo do judaísmo. São Paulo: Loyola, 1996.
Os estudos contidos neste livro levam mais longe a investigação realizada nos livros de Geza Vermes, Jesus, o judeu e Os Manuscritos do Mar Morto e lançam luz sobre muitas questões importantes e controversas do período. Os tópicos incluem a importância dos Manuscritos do Mar Morto para os estudos judaicos e os estudos do Novo Testamento; a necessidade dos estudos judaicos para a interpretação do Novo testamento; e a compreensão que Jesus tinha de si mesmo. Este volume contém em particular as Conferências Riddell Memorial, "O Evangelho de Jesus, o Judeu", que representam uma continuação de Jesus, o judeu.

Geza Vermes, As várias faces de Jesus, São Paulo, Editora Record, 2006.
Vermes reorienta o conhecimento comum sobre Jesus com essa pesquisa provocante. Sua obra propõe uma nova abordagem, conferindo o mesmo peso ao Novo Testamento e aos escritos judaicos não-bíblicos. O objetivo é explorar os diferentes perfis do personagem que definiu dois milênios da fé cristã para analisar como e por que aquele palestino carismático foi elevado à condição divina de Cristo. O autor nos remete aos primórdios do cristianismo, permitindo a compreensão das condições históricas ocultas nos textos dos evangelhos mais antigos ao privilegiar o evangelho mais recente, o de João.

O autor de As Várias Faces de Jesus considera Cristo, a Igreja primitiva e o Novo Testamento como parte de uma interpretação do judaísmo. Ao despir as interpretações teológicas do contexto dos evangelhos, ele procura revelar a verdadeira identidade, a figura humana de Jesus, e esclarece como os Seus ensinamentos foram passados da versão original à nossa civilização.

Geza Vermés, O autêntico Evangelho de Jesus, São Paulo, Editora Record, 2006.
O autor relaciona, compara, classifica e examina diferenças entre os ditos atribuídos a Jesus nos Evangelhos Sinópticos (Mateus, Marcos e Lucas) ao longo de nove capítulos. Assim, analisa temas essenciais do cristianismo como a oração, a Última Ceia, os momentos próximos à morte e a ressurreição de Cristo, as maldições, o exorcismo e as bem-aventuranças preservadas em formas distintas pelos evangelistas.

 

 

3. David H. Stern

 

O rabino David H. Stern publicou nos Estados Unidos uma tradução do Novo Testamento introduzindo anotações a partir das raízes judaicas presentes nos textos. Em seu trabalho, o conceito “promessa e cumprimento” tem importância central. Jesus cumpriu as promessas do Antigo Testamento. Textos como os de Gn 3.15; 12.3; 17.19; 21.12; 28.14 ou Nm 24.17-19 e ainda muitos outros, remetem a Jesus. O Novo Testamento é visto, então, como a Nova Torá. O fim desta Torá é o Messias, que oferece justiça a cada um que confia nele.


Bibliografia

David H. Stern, O Novo Testamento Judaico, São Paulo, Editora Vida, 2007.
Porque esta versão do Novo Testamento difere das demais? Porque este Novo Testamento Judaico deixa transparecer sua judaicidade originária e essencial. Todas as outras versões do Novo Testamento em português — há literalmente dezenas — apresentam sua mensagem na abordagem lingüística, cultural e teológica dos não-judeus cristãos.

E o que há de errado com isso? Nada! Ainda que o Evangelho seja de origem judaica, ele não existe só para os judeus, mas também para os não-judeus. O próprio Novo Testamento deixa isso muito claro, portanto, é apropriado que sua mensagem seja comunicada aos não-judeus de forma a lhes impor o mínimo possível de outra bagagem cultural. E esta abordagem tem sido bem-sucedida: milhões de não-judeus depositaram sua confiança no Deus de Avraham, e Yitz’chak e Ya‘akov e no Messias judeu, Yeshua.

O Novo Testamento é um livro judeu. Entretanto, chegou o tempo de restaurar a judaicidade do Novo Testamento. Pois o Novo Testamento é de fato um livro judeu — escrito por judeus, que trata majoritariamente de judeus e que tem por público alvo judeus e não-judeus. É correto adaptar um livro judeu para a melhor apreciação dos não-judeus, mas não ao preço de suprimir sua judaicidade inerente. O Novo Testamento Judaico evidencia suas características judaicas a partir do título, da mesma forma que o nome Judeus por Jesus une duas idéias consideradas incompatíveis e completamente dissociadas por algumas pessoas. Entretanto, essa separação não pode existir. A figura central do Novo Testamento, Yeshua o Messias, Era um judeu nascido de judeus em Beit-Lechem, cresceu entre os judeus em Natzeret, ministrou aos judeus na Galil, morreu e ressuscitou na capital judia, Yerushalayim — tudo isto em EretzYisra’el, a terra dada por Deus ao povo judeu.

Além disso, Yeshua ainda é judeu, porque ainda está vivo, e em nenhum lugar a Escritura afirma ou sugere que ele tenha cessado de ser judeu. Seus doze seguidores mais íntimos eram judeus. Durante anos todos os seus talmidim eram judeus, alcançando o número de “dezenas de milhares” só em Yerushalayim. O Novo Testamento foi escrito inteiramente por judeus (Lucas era, ao que tudo indica, um prosélito do judaísmo); e sua mensagem é dirigida “especialmente ao judeu, mas também ao não-judeu”. Os judeus levaram o Evangelho aos não-judeus, e não o inverso. Sha’ul, o principal emissário aos não-judeus, foi durante toda a sua vida um judeu praticante, como evidencia o livro de Atos. De fato, a principal questão no início da comunidade messiânica (“igreja”) não era se um judeu poderia crer em Yeshua, mas se um não-judeu poderia se tornar cristão sem se converter ao judaísmo. A expiação vicária do Messias tem sua raiz no sistema sacrificial judaico. A ceia do Senhor origina-se da Páscoa judaica. A imersão (“batismo”) é uma prática judaica. Yeshua disse: “A salvação vem dos judeus”.

A própria Nova Aliança foi prometida pelo profeta judeu Jeremias. O próprio conceito do Messias é exclusivamente judeu. A bem da verdade, o Novo Testamento completa o Tanakh, as Escrituras hebraicas outorgadas por Deus ao povo judeu; de forma que o Novo Testamento sem o Antigo é tão possível quanto o segundo pavimento de uma casa sem o primeiro, e o Antigo sem o Novo é como uma casa sem teto. Além do mais, muito do que está escrito no Novo Testamento é incompreensível à parte do contexto judaico. Eis aqui um exemplo, extraído de muitos outros. Yeshua disse literalmente no Sermão do Monte: “Se o seu olho for mau, todo o seu corpo estará em trevas”. O que é um “olho mau”? Alguém que desconheça o pano de fundo judeu poderia supor que Yeshua estivesse falando sobre algum tipo de encantamento. Todavia, em hebraico, possuir um ‘ayin ra‘ah, “olho mau”, significa ser sovina; ao passo que ter um ‘ayin tovah, um “olho bom”, equivale a ser generoso. Yeshua está simplesmente incentivando a generosidade e desestimulando a avareza. E esse entendimento combina muito bem com os versículos do contexto: “Onde estiver seu tesouro, aí também estará seu coração [...] você não pode ser escravo de Deus e do dinheiro”.

Contudo, a melhor demonstração do caráter judaico do Novo Testamento é também a prova mais convincente de sua veracidade, ou seja, o número de profecias do Tanakh — todas muitos séculos mais velhas que os acontecimentos registrados no Novo Testamento — cumpridas na pessoa de Yeshua de Natzeret. A probabilidade de que qualquer pessoa pudesse se encaixar em dezenas de condições proféticas por mero acaso é infinitesimal. Nenhum candidato farsante ao messiado, como Shim‘on Bar-Kokhva ou Shabtai Tzvi, cumpriu mais que umas poucas. Yeshua cumpriu todas as 52 profecias referentes à sua primeira vinda. As restantes serão cumpridas quando ele retornar em glória. Dessa forma, o Novo Testamento Judaico considera normal pensar no Novo Testamento como algo judeu.

Há três áreas adicionais nas quais o Novo Testamento Judaico pode ajudar em relação a tikkun-ha‘olam (“conserto do mundo”): o anti-semitismo cristão, a recusa judaica de receber o Evangelho e a separação entre a igreja e o povo judeu.

1. O anti-semitismo cristão. Inicialmente, um círculo vicioso de anti-semitismo cristão se alimenta do Novo Testamento. O Novo Testamento não contém nenhuma forma de anti-semitismo, mas desde os primeiros dias da igreja, os promotores desse conceito têm distorcido o Novo Testamento para justificar-se e se infiltrar na teologia cristã. Alguns tradutores do Novo Testamento, ainda que não tenham sido anti-semitas, absorveram a teologia anti-semita e produziram traduções antijudaicas. Os leitores dessas traduções acabaram assumindo posturas anti-semitas e hostis ao judaísmo. Alguns desses leitores se tornaram teólogos que refinaram e desenvolveram o caráter anti-semita da teologia cristã (eles poderiam até mesmo não ter consciência desse sentimento); ainda outros se tornaram ativistas em prol do anti-semitismo e perseguiram os judeus, pensando agradar a Deus enquanto procediam assim. Este círculo vicioso precisa ser quebrado. O Novo Testamento Judaico é uma tentativa de remover erros teológicos anti-semitas multisseculares e destacar positivamente sua judaicidade.

2. A desconfiança judaica em relação ao Evangelho. Em segundo lugar, apesar de mais de cem mil judeus messiânicos habitarem em países de língua inglesa, é óbvio que a maior parte do povo judeu não aceita Yeshua como Messias. Ainda que as razões possam incluir a perseguição cristã aos judeus, as cosmovisões seculares que cedem pouco espaço para Deus ou um messias, e a recusa de se arrepender dos pecados — o motivo principal é o sentimento de que o Evangelho lhes é irrelevante. Este sentimento se origina parcialmente do modo pelo qual o cristianismo representa a si mesmo, mas também da alienação induzida pela maior parte das versões do Novo Testamento. Com a ornamentação cultural cristã gentílica e suas justificativas teológicas antijudaicas, fizeram com que muitos judeus pensassem ser o Novo Testamento um livro não-judeu sobre uma divindade dos não-judeus.

O Jesus apresentado por eles diz pouco a respeito da vida judaica. Torna-se difícil para o judeu experimentar Yeshua o Messias como ele realmente é — amigo de todo judeu. Ainda que o Novo Testamento Judaico não consiga eliminar todas as barreiras entre os judeus e a confiança no seu Messias, ele remove alguns obstáculos lingüísticos, culturais e teológicos. O judeu que ler o Novo Testamento Judaico poderá experimentar Yeshua como o Messias prometido pelo Tanakh ao povo judeu; e poderá perceber que o Novo Testamento é tão importante para os judeus quanto para os não-judeus; e será confrontado com a mensagem integral da Bíblia, os dois Testamentos juntos, como verdadeiros, importantes e dignos de aceitação, a chave para a salvação pessoal e de seu povo.

3. A separação entre a comunidade messiânica e o povo judeu. Em último lugar, séculos de rejeição judaica de Yeshua e de rejeição cristã em relação aos judeus produziu a situação na qual nos encontramos: cristianismo é cristianismo, e judaísmo é judaísmo e os dois jamais se encontrarão. Além disso, muitos judeus e cristãos estão satisfeitos com essa situação. Entretanto, não é vontade divina a existência separada de dois povos de Deus. Os cristãos não-judeus que reconhecem sua união a Yisra’el, e não sua substituição, e os judeus messiânicos plenamente identificados com o povo e o Messias judeu, Yeshua, devem trabalhar conjuntamente para reunificar o grande cisma da história mundial, a divisão existente entre a igreja e o povo judeu. O Novo Testamento Judaico tem um papel a desempenhar na grande tarefa de reunir os dois grupos de forma a preservar a identidade judaica na comunidade messiânica, na qual judeus e não-judeus honram a Deus e seu Messias de acordo com o Tanakh e o Novo Testamento.


Expo Cristã, São Paulo, 13 de setembro de 2007.

Este é um texto antigo que deve se atualizado com a produção teórica de filósofos e pensadores judeus que fizeram esse caminhar de estudo e aproximação entre a fé judaica e o cristianismo.