lundi 2 mars 2015

Escolha e destino

ESCOLHA E DESTINO
Por uma teologia evangélica da vocação
Jorge Pinheiro

“Pois sabemos que todas as coisas trabalham juntas para o bem daqueles que amam a Deus, daqueles a quem ele chamou de acordo com o seu plano. Porque aqueles que já tinham sido escolhidos por Deus ele também separou a fim de se tornarem parecidos com o seu Filho. Ele fez isso para que o Filho fosse o primeiro entre muitos irmãos. Assim Deus chamou os que havia separado. Não somente os chamou, mas também os aceitou; e não somente os aceitou, mas também repartiu a sua glória com eles”. Romanos 8. 28-30.

Introdução

É difícil entender a profundidade do capítulo oito da epístola de Paulo aos Romanos se não entendemos a religiosidade helênica e seu conceito de destino.

A antiga religião dos deuses olímpicos, explica Naécia Simões, após a dissolução da pólis, deixou um vazio que as correntes filosóficas do mundo greco-romano procuraram preencher com maior espiritualidade, nos termos de uma necessidade religiosa não racional. Quando apareceu o cristianismo, tornou-se conveniente e necessário à mentalidade pagã “examinar esta fé que reúne adeptos tão fieis, avança por todas as terras e, curiosamente, com recursos intelectuais emprestados à própria tradição clássica, parece aplicar com eficiência as formas necessárias para fazer-se entender por todos, gentios e cristãos”.[1]

Para homens e mulheres da época de Paulo a questão do destino era tema crucial, porque acreditavam que deuses e demônios se divertiam com o sofrimento humano. E esse viver manipulado por deuses e demônios, os gregos e romanos chamavam de destino. Teologicamente, dentro da cosmovisão helênica, destino pode ser definido como potência  misteriosa e personificada que rege o devir universal, incluindo o curso da história humana, sem qualquer possibilidade de intervenção da vontade ou da previsão do ser humano. O destino era entendido como uma lei cega, fixada de antemão, que não se conhece e sob a qual todos estão sujeitos e dela não conseguem escapar. Traduzia uma negação, a impossibilidade da liberdade humana. Um bom exemplo é Édipo, o herói da tragédia grega.

A partir do destino demoníaco, o mundo helênico criou uma teologia de culpa e castigo, onde um profundo pessimismo atravessava o pensamento religioso da época, tanto no mitraísmo, quanto nos cultos de mistério.

O mitraísmo tinha como centro o culto ao deus Mitra, visto como intermediário entre os seres humanos e o Deus supremo. Havia nesta colocação algo similar ao credo cristão, com o qual concorreu, principalmente no terceiro século, ao tempo do Império Romano. Forte concorrente da fé nascente, por suas afinidades, o mitraísmo deixou fortes marcas de sua influência sobre as duas primeiras faces do cristianismo: o romano e o ortodoxo.

As religiões de mistério, místicas e de cultos extáticos, criavam nos seus devotos uma atitude muito propícia para a pregação cristã, porque alertavam para o fato de que por si só nenhuma criatura pode chegar a Deus. Mas esta verdade, sem a componente da graça, desembocava num labirinto: o que fazer? Mas, se por um lado, fatores propícios possibilitaram o diálogo, por outro também deixaram marcas nas correntes místicas do cristianismo medieval e moderno. Muitos teólogos entenderam esse processo. Tillich, por exemplo, em suas reflexões, nunca deixou de lado os aspectos universalizantes do fenômeno místico. “Essa preocupação com o místico aparece também nos textos editados de suas aulas sobre a história do pensamento cristão e dos movimentos teológicos dos últimos dois séculos. Por isso ele ressaltou as religiões de mistério na elaboração da teologia cristã primitiva”.[2]

Ameaçado pelo destino demoníaco, o mundo helênico ansiava por um destino salvador, necessitava graça. E essa é a discussão que Paulo entabula com a religiosidade helênica no capítulo oito de Romanos.

A liberdade do cristão


Em sua carta aos Romanos, Paulo analisa três questões centrais: do capítulo primeiro ao oito fala da justificação pela fé; do capítulo nove ao onze discute a separação temporal dos judeus e a inclusão dos gentios ao povo de Deus, e do capítulo doze ao dezesseis apresenta exortações práticas.

Ao analisar a justificação, Paulo mostra que a libertação humana repousa sobre a fé, proveniente da graça de Cristo e não de aspectos externos, seja a lei de Moisés ou os principados e potestades, o mundo do zodíaco e deuses e demônios da religiosidade helênica. Essa misericórdia de Deus não provém de aspectos externos, estejam eles no céu ou na terra, na vida ou na morte, porque o homem, em sua natureza, não tem como responder às exigências de Deus.

A graça provém de Cristo, que no seu amor e sacrifício, perdoa a alienação humana. A liberdade da vida cristã, que é espontaneidade e criatividade diante da lei, e vitória diante de principados e potestades, do mundo do zodíaco e de deuses e demônios, não depende do próprio homem, nem do que ele possa fazer, mas daquilo que Cristo fez por ele.

Temos no trecho em análise (Rm 8.28-30) dois blocos: um maior, que é o capítulo oito inteiro, cuja temática é a da vida cristã sob a lei do Espírito; e um bloco menor, 28-30, que trata do chamado e vocação do cristão.


O bloco maior nos dá a linha de pensamento de Paulo: uma seqüência de análises sobre a vida: emancipada (versos 1-11), exaltada (12-17), esperançosa (18-30) e exultante (31-39). Dessa maneira, no capítulo oito, o apóstolo traça o curso da vida cristã, na qual a graça triunfa sobre o destino demoníaco e os crentes experimentam a liberdade cristã.

É interessante notar que o texto de Romanos oito, em grego, começa com dois advérbios intercalados por uma partícula ilativa, que poderíamos traduzir: "Atualmente, por isso, nada em absoluto” pode condenar aqueles que estão em Cristo Jesus.

Essa partícula ilativa, que é um conectivo, está relacionada ao capítulo sete, onde Paulo mostra que lei e pecado[3] não são sinônimos, e que há uma grande diferença entre a natureza da lei e a natureza humana, entre o que é Espírito e o que é carnal. O corpo, com os membros que o compõem (7.24), interessa a Paulo enquanto instrumento da vida. Submetido à tirania da carne (7.5), à alienação e à morte (6.12+; 7.23), Paulo clama: quem me livrará? E dá "graças a Deus, por Jesus Cristo, nosso Senhor" (7.25). É a partir desse clímax, que o apóstolo dá seqüência ao texto, informando que "por isso", "hoje", "nada em absoluto" pode condenar os que estão em Jesus Cristo.

 

É a partir desta hermenêutica, delineada nos passos apresentados neste trabalho, que o trecho de Romanos 8.28-30 deve ser interpretado. Teremos, então, uma melhor compreensão daquilo que o apóstolo Paulo chama de "a lei do Espírito da vida em Jesus Cristo" e de sua importância no caminhar do cristão.

 

A dimensão trinitária


Escolha, chamado, vocação, missão e destino são conceitos cujos conteúdos têm núcleos de compreensão que se cruzam e se completam. Para entender tais conceitos, e em especial o de vocação, que Paulo apresenta em Romanos, vamos partir da relação existente entre a igreja e o relacionamento expresso na Trindade.

A igreja é unidade, diversidade e comunhão da comunidade cristã que traduz a unidade, diversidade e comunhão do Pai, Filho e Espírito Santo. Nesta linha de raciocínio, o Pai é o horizonte último, o Filho é a exemplaridade definitiva de como corresponder ao Pai, e a vida no Espírito é o ser cristão concreto.

Nesse sentido, explica Sobrino, a tarefa mais urgente da Cristologia, por causa da declaração doutrinária de que Cristo é o Filho de Deus, “não consiste tanto em re-interpretar in recto o dogma cristológico, o que continua sendo uma tarefa importante, e sim se re-situar o caminho do crente para que sua vida seja pro-seguimento de Jesus e assim ela seja também o processo de sua filiação concreta”.[4]

Por isso, muda também a relacionaridade da igreja com o mundo: a igreja não é mais o lado adulto, completo, da secularidade, mas sinal e instrumento, memorial para a libertação integral de homens e mulheres[5]. A partir desta compreensão devemos entender o sentido eclesial da vocação de pastores, ministros e missionários, e o sentido secular da vocação de trabalhadores, profissionais e empresários, enquanto pessoas chamadas à comunhão com a Santa Trindade de Deus. Cada vocação está ligada ao desígnio do Pai, à missão do Filho e à obra do Espírito Santo.

Esta dimensão trinitária da escolha e chamado mostra a ligação que existe entre a vocação, a vida e a espiritualidade[6]. Escolha e chamado direcionam a um relacionamento pessoal com Deus vivido no interior de uma comunidade concreta. A escolha é psiu de Deus. O chamado inicia um diálogo que pode levar a um encontro com Ele. Mas vocação é uma sedução, uma conquista do coração por parte de Deus, para uma vida de intimidade, de comunhão com Ele. É um casamento.

Por ser um relacionamento de intimidade com a Trindade, a vocação implica em santidade, plenitude da vida cristã e perfeição do amor. Vocação é, então, comportar-se como o Pai se comporta. A santidade é uma prerrogativa de Deus. Deus é santo porque é totalmente diferente dos seres humanos e do mundo, porque ama e acolhe as pessoas.

Somos chamados a participar da santidade divina. A santidade consiste em ser perfeito no amor e o amor é o distintivo dos cristãos. Ser santo significa fazer a diferença, responder aos desafios de cada época num serviço sem medidas. Mas esta mesma santidade é vivida de formas diferentes em razão da diversidade dos dons, dos serviços e dos ministérios.

Quando partirmos de Romanos 8.28, -- sabemos que todas as coisas trabalham juntas para o bem daqueles que amam a Deus, daqueles a quem ele chamou de acordo com o seu plano– vemos que em Deus todas as coisas, circunstâncias, projetos e sonhos, trabalham juntas para cumprir um propósito, dentro de um plano de Deus.

Por isso, vocação não é isolamento, mera busca de satisfações ou realização pessoal. Não é apenas construção de projetos pessoais, mas dar a vida pela defesa da vida. Vocação é amar, é servir, é relacionar-se com a Trindade, a partir do encontro, da relação com o próximo. É responder ao chamado inserindo-se na vida da comunidade. É tomar parte ativa na construção do Reino.

Na vocação somos comunidade, participamos na vida e na missão da igreja. Estes são elementos que não podem ser esquecidos, nesta contemporaneidade marcada pelo individualismo.

Vocação enquanto chamado à comunhão e participação nos leva a descobrir, como elemento essencial do chamamento, a vida de fraternidade. Faz parte da vocação o compromisso de reproduzir na igreja e no mundo o tipo de relacionamento que existe na Trindade de Deus. A participação na comunhão trinitária exige comunhão fraterna entre nós. Não pode ser sincero um relacionamento de comunhão com Deus quando não se traduz no relacionamento com os irmãos.

Não é autêntica a vocação que não se abre à solidariedade. A Trindade permanece como modelo da comunhão que deve brotar da vivência da nossa vocação. Esta vida de comunhão é o que dá autenticidade a nossa vocação. Ela é o sinal mais claro de que estamos vivendo realmente numa intensa comunicação com a Trindade.

Humanos e cristãos


O capítulo 8.29 de Romanos nos diz que “aqueles que já tinham sido escolhidos por Deus ele também separou a fim de se tornarem parecidos com o seu Filho. Ele fez isso para que o Filho fosse o primeiro entre muitos irmãos”. Ou seja, fomos escolhidos e chamados pela graça para sermos parecidos com seu Filho, realizarmos um serviço, uma missão.

Devemos ser imagem do Pai, imagem do Filho, imagem do Espírito, e é isto que faz com que a vocação seja comunhão com a Trindade, que se traduz na experiência do cristão na igreja e no mundo. Segundo teólogos como Bonhoeffer e Schillebeeckx, a pergunta humana da experiência deve sempre ser posta em correlação com a resposta da fé. Essa correlação só é obtida se a pergunta humana pode ser configurada como pergunta que tenha sentido, a respeito da realidade e da experiência, à qual se segue uma resposta humana que tenta articular um sentido, mas que recebe somente da resposta cristã uma superabundância de sentido, um sentido último e definitivo.[7] Quando falamos de vocação, tal correlação pode ser traduzida em três dimensões, que marcam a vida do vocacionado. Nenhuma destas dimensões subsiste em separado, mas estão correlacionadas.

Para Oliveira[8], a primeira dessas dimensões, a humana, é o chamado a ser pessoa humana. Isto quer dizer que, antes de qualquer coisa, o vocacionado tem que ser gente, com todas aquelas qualidades que caracterizam o ser humano enquanto imagem de Deus. Uma atenção particular deve ser dada à capacidade de relacionar-se bem com as demais pessoas, já que a pessoa humana foi criada por Deus como ser social. Como já vimos acima, a vocação é sempre dialogal. Ela só se concretiza nas relações interpessoais, sejam elas as da família, da amizade, das comunidades pequenas ou grandes de que participa o ser humano. Não é possível falar de vocação, deixando de lado as exigências da natureza humana.

A segunda dimensão, a cristã, é o chamado a viver a santidade através de uma participação ativa na vida da comunidade. É o viver em comunhão com Cristo na comunhão e cooperação com os demais. Esta dimensão da vocação se traduz numa tríplice missão: profética, sacerdotal e real.[9] Isto leva à dignidade de todas as vocações e de todos os membros do corpo de Cristo. Existe uma variedade de vocações, de dons, mas todos possuem a mesma dignidade. Ninguém é superior a ninguém, ninguém é melhor do que ninguém. Isto mostra que, em Cristo, a partir do serviço e da obediência, todos temos a mesma missão. 

A terceira dimensão, a particular, é toda vocação, que mesmo sendo vivida na comunidade e a serviço da comunidade, é personalizada.[10] Cada cristão responde a escolha e chamado do Pai de acordo com os dons recebidos do Espírito Santo. A vocação particular é a forma concreta que permite a cada cristão dar sua contribuição para a construção do reino de Deus. Esta dimensão particular da vocação remete à singularidade de cada pessoa. Mas há diversidade também de aptidões, de qualidades pessoais, como as circunstâncias diferentes nas quais brotam e se desenvolvem os chamados de Deus. Mas mesmo realizando de forma pessoal a vocação comum, o cristão deve direcioná-la para a comunidade. Se o Espírito Santo distribui os dons a cada um conforme ele quer, Ele o faz para o bem e uso de todos.

Missão e destino


De volta a Romanos (8.30) vemos que Deus chamou os que havia separado. Não somente os chamou, mas também os aceitou; e não somente os aceitou, mas também repartiu a sua glória com eles”. Ora, a escolha e chamado do Pai, a aceitação através do sacrifício vicário de Jesus é completada na glória da ação do Espírito Santo sobre nossas vidas.

Por isso, o dinamismo da vocação está ligado à escolha e ao chamado, à missão e ao plano de Deus para cada um de nós. Nesta dinâmica, os dons são diferentes capacitações entregues para a realização de serviços diferentes, a partir de diferentes modos de agir, suscitados pelo Espírito e destinados à edificação da comunidade cristã. Poderíamos dizer então que os dons são capacitações do Espírito que tornam o cristão apto para o exercício da própria vocação em favor de toda a comunidade.

Os dons são potencialidades para a execução de serviços concretos, atividades concretas, que possibilitam a vivência de uma determinada vocação particular. Existe, pois, pluralidade de dons. Para cada forma de vocação pode existir uma diversidade de dons. Enquanto meios concretos de atuação de uma determinada forma de vocação, os dons não são apenas dons extraordinários concedidos a pessoas extraordinárias. Eles são elementos que fazem parte do cotidiano da comunidade e não apenas privilégio de alguns.

Dons e vocação não são fins em si mesmos. Existem para a missão. Por isso toda reflexão sobre a vocação requer pensar missão. Dentro de uma teologia evangélica da vocação é preciso destacar a missionariedade da Igreja. Toda a igreja está sujeita à missão. Esta missionariedade deve ser vivida em todos os níveis. Missão não é somente evangelizar, anunciar a salvação, mas viver a boa nova da libertação operada por Cristo dentro da situação atual do mundo, ajudando à humanidade a fazer a história, a contribuir para uma nova criação, construindo no aqui e no agora uma sociedade nova e diferente.

A missão é para o mundo e se desenvolve no mundo, é sempre uma missão de compromisso efetivo com o bem da pessoa humana na sua totalidade. A missão leva o cristão a aproximar-se, com os olhos e com o coração, daqueles que sofrem. Por ser serviço à humanidade, vocação e missão possuem uma dimensão pessoal e uma dimensão comunitária. Pessoal, enquanto cada crente tem o seu jeito de vivenciar a missionariedade da igreja. Comunitária porque esta missionariedade foi confiada à igreja, enquanto comunidade convocada e reunida pela Trindade.

Esta realidade nos obriga a entender que a iniciativa divina do chamado é dirigida à pessoa humana livre. É indispensável por isso entender a questão do destino na sua relação com a dinâmica do chamado do Senhor.

Dentro da visão paulina, destino, no sentido de que os limites estão dados de antemão, é a correlação entre lei e espontaneidade. Destino traduz uma relação dialética com liberdade: destino e liberdade são polaridades; destino implica que a liberdade está sujeita à lei; destino implica que liberdade e lei são interdependentes e complementares. Para Paul Tillich, liberdade e destino formam uma polaridade ontológica, onde a descrição da estrutura ontológica básica e seus elementos atingem tanto sua realização, quanto seu ponto decisivo: “O homem é homem porque tem liberdade. Mas ele tem liberdade só em interdependência polar com o destino”.[11]

Analisando o conceito cristão palestino de destino, exposto por Paulo, podemos dizer que há uma interdependência entre lei e espontaneidade, de tal forma que destino e liberdade se encontram intrinsecamente entrelaçados. Só quem tem liberdade tem um destino, explica Tillich. “As coisas não têm destino porque não têm liberdade. Deus não tem destino, porque ele é liberdade. A palavra destino aponta para algo que está para acontecer a alguém; ela tem conotação escatológica. Isso a qualifica a estar em polaridade com liberdade. Ela aponta não para o oposto da liberdade, mas para suas condições e limites”.[12]

A certeza de que o destino cristão está prenhe de graça tem um significado realizador e não destruidor e, por isso não é demoníaco, ao contrário, é a peça-chave do pensamento de Paulo, quando coloca Cristo acima do destino. Ao fazer isso, Paulo está dizendo que a compreensão plena do destino não está ao alcance do homem, pois há nele uma componente escatológica que escapa ao conhecimento humano.

A verdade incondicional de Deus não está ao nosso alcance. Em nós humanos há sempre um elemento de aventura e risco em cada enunciado da verdade. Mas mesmo assim, podemos e devemos correr este risco, sabendo que este é o único modo em que a verdade pode ser revelada aos seres finitos e históricos.

Quando mantemos uma relação com o Cristo eterno e deixamos de temer a ameaça do destino demoníaco, aceitamos o lugar que cabe ao destino em nossa vocação. Podemos reconhecer que desde o princípio nossa vocação esteve submetida ao destino e que muitas vezes desejou livrar-se dele, mas nunca conseguiu.

Na análise cristã do destino, Cristo e o tempo de Deus estão relacionados. Cristo leva ao tempo de Deus. Cristo envolve e domina os valores universais, a plenitude do tempo, a verdade e o destino da existência. Na vida do cristão a separação entre Cristo e a existência chegou ao fim. Cristo alcançou a existência, penetrou no tempo e no destino. E isso aconteceu não como algo extrínseco ao Cristo, mas porque é a expressão de seu próprio caráter, de sua liberdade.

É necessário, porém, entender que tanto existência quanto conhecimento humano estão submetidos ao destino e que o eterno reino da verdade só é acessível ao conhecimento que transcende o destino: a revelação.     

Dessa maneira, ao contrário do que pensavam os gregos, todo ser humano possui potencialidades, enquanto ser, para realizar seu destino. Quanto maiores as potencialidades do ser, que crescem à medida que é envolvido e controlado pelo Cristo, mais profundamente está implicado seu conhecimento do destino.

Partindo da liberdade que nos foi dada, enquanto imago Dei, nosso destino, que deve ser entendido como manifestação do desígnio do Pai, da missão do Cristo e da obra do Espírito Santo, é o projeto de Deus para nossa vida. Destino é servir à Trindade, num tempo novo, que emerge das crises e desafios de nossos dias. Quanto mais nos aproximamos da compreensão de nosso destino, no sentido de estar colocado, de ser proposto, tanto mais seremos livres. Então, nosso trabalho, nossa vocação será plena de força e verdade.

O projeto de Deus para uma pessoa não é algo estático, mas um chamado que é feito através de mediações concretas. Deste modo a pessoa pode dizer sim, fazendo acontecer a história da libertação, ou dizer não, distanciando-se da missão e do destino que nasceram do projeto de amor do Pai, do Filho e do Espírito.

Igreja e vocações


No que tange às vocações particulares, convém observar que a vocação do cristão é a vocação comum da qual dependem as vocações ministeriais e seculares. Tal vocação de vida consagrada se fará antes de tudo a partir da dimensão simbólica da mesma: somos chamados a contextualizar o significado do ser cristão na vida da comunidade onde vivemos e dentro da qual nos relacionamos. A questão da especificidade de vocação, na igreja e na sociedade, passa por ser seguidor radical de Jesus, profeta e sinal visível da radicalidade do Evangelho.

A vocação de pastores, ministros e missionários, e de trabalhadores, profissionais e empresários deve determinar o específico destes ministérios. Por exemplo, ainda é forte o monopólio por parte de pastores, ministros e missionários. A teologia deve contribuir para a superação da visão privatista presente na formação ministerial. Da mesma maneira, a vocação secular de trabalhadores, profissionais e empresários deve ser entendida como aquela de serviço à unidade da comunidade. Embora a vocação particular do ministério pastoral seja a presidência da igreja.

As dificuldades, no que respeita às vocações, estão ligadas a uma compreensão insuficiente do que é igreja. Por isso, é indispensável uma reflexão sobre o que é igreja.

Devemos começar por uma pergunta: qual o modelo de igreja ao qual nos referimos quando falamos em vocação? Aqui voltamos ao início do texto, onde entendemos igreja como corpo reunido na unidade do Pai, do Filho e do Espírito Santo. Tal visão de igreja contribui para que todos os seus membros vivam em estado de vocação e de missão, sentindo-se convocados pelo Pai para o serviço ao Reino.

Somente uma igreja que é imagem da Trindade pode tomar-se espaço para o surgimento e desenvolvimento de vocações. Isto porque nela os crentes constituem um só corpo em Cristo, com dignidade e variedade de funções, com espaço para a comunhão e participação. Numa igreja assim existe a presença de instrumentos e de organismos que permitem o engajamento dos crentes e abrem caminho para o surgimento das vocações. Aqui os jovens encontram um terreno eficaz para o amadurecimento humano, cristão e apostólico.

Tal igreja é mãe das vocações. Sente-se chamada e ao mesmo tempo convocada a chamar. Tem consciência de ser uma comunidade de pessoas chamadas que, por sua vez, torna-se apelo vivo da Trindade. Este modelo de igreja que comunga e participa se identifica com as vocações de que é constituída. Nela os crentes recebem o chamamento ao sacerdócio universal e à santidade. Nela surgem, por dom do Espírito Santo, os chamamentos especiais para os ministérios e profissões, para a consagração eclesial e secular, e para a vida missionária. Ela é a reunião de todos quantos, em comunhão com o seu pastor e entre si, são chamados pelo Pai a seguirem o Senhor Jesus, de acordo com os dons do Espírito. E porque há identificação, todos se sentem responsáveis pelas vocações.

A igreja onde as vocações podem brotar escuta o clamor da comunidade e vive em processo de renovação. Não reclama privilégios, mas vive na sociedade a sua missão profética, denunciando as injustiças e anunciando o kairós evangélico de uma sociedade nova, humana e fraterna. Tal igreja é capaz de dialogar com a sociedade pluralista, sem abandonar sua doutrina e propósitos. É uma igreja servidora, ministerial (minus stare), onde todos são chamados a servir.

Uma igreja onde os crentes descobrem a realidade em que vivem, os chamados aos ministérios eclesiais (pastores, ministros, missionários) e o sentido das vocações seculares (trabalhadores, profissionais, empresários) de que a comunidade tem necessidade, faz-se igreja necessária. E os compromissos de hoje podem se tornar prelúdio de uma consagração definitiva. Na igreja que está voltada para sua comunidade, os jovens e adultos não são crentes passivos, mas agentes, participantes e responsáveis, protagonistas, de acordo com os dons e as possibilidades de cada um.

Por uma teologia evangélica da vocação

A partir do que vimos vale a pena analisar alguns elementos que podem balizar a construção de uma teologia evangélica da vocação.

Em primeiro lugar, deve ficar claro que as experiências humana e cristã são realidades correlatas ao chamado para as vocações particulares. Por isso, a vocação de pastores, ministros, missionários e de trabalhadores, profissionais e empresários, enquanto chamado de Deus que se realiza na igreja e na comunidade, deve fundar-se numa teologia evangélica e numa práxis em sintonia com nossos princípios e doutrinas.

Partindo desta avaliação é preciso entender que partimos do Deus triúno e da teologia do amor que tal comunhão implica: vocação é relacionamento, o que implica em dar valor à experiência humana e à espiritualidade cristã, mas também dar atenção à questão da inculturação e aos desafios da contemporaneidade. Vivemos um tempo de transição, caracterizado por atitudes ambivalentes. As transformações da sociedade revelam a inadaptação de muitas igrejas, presas à tradição, e a necessidade de novos projetos de existência humana.

E por fim, é preciso definir o específico de cada vocação, dando valor à participação de toda a igreja enquanto corpo de Cristo. Isto traduz a necessidade de se encontrar uma metodologia adequada para cada situação, lugar e grupo de pessoas.

Considerações finais

O cristianismo é a vitória sobre a cosmovisão da religiosidade helênica de que estamos debaixo das forças de deuses e demônios, traduz a idéia de que o mundo é uma criação divina.

É a negação radical do caráter demoníaco da existência em si. Dá à existência um valor essencialmente positivo e valoriza os acontecimentos da ordem temporal. Com o cristianismo, a ordem do tempo não leva apenas ao transitório e perecível, mas também à possibilidade de algo totalmente novo, um propósito e um fim que dá pleno significado à vida humana.

No cristianismo o tempo triunfa sobre o espaço. O caráter irreversível do tempo bom substitui o tempo cíclico, transitório e perecível do pensamento helênico. A partir desse kairós, a presença de Cristo entre nós, destino outorga graça, que traz libertação no tempo e na história. O mundo helênico e sua interpretação da vida foram superados e com eles o pessimismo da religiosidade helênica.

Agora depositamos nossa certeza nas palavras de Paulo em Romanos 11.29, quando diz que “Deus não muda de idéia a respeito de quem ele escolhe e abençoa”. E a partir do chamado e vocação entregues por Deus a nós, realizemos nossa missão, destino glorioso que traduz o desígnio do Pai, a missão do Filho e a obra do Espírito Santo nas nossas vidas, e através delas, na igreja e na sociedade.

Bibliografia recomendada


BRUCE, F.F. Romanos, introdução e comentário. Odayr Olivetti, trad., São Paulo, Vida Nova e Mundo Cristão, 1991.
CULLMANN, Oscar. A formação do Novo Testamento, 5a. ed., Bertoldo Weber, trad., São Leopoldo, Sinodal, 1990.
FRANZMANN, Martin H. Carta aos Romanos, Mário e Gládis Rehfeldt, trads., Porto Alegre, Concórdia, 1972.
LAFON, Guy, Saint Paul, épitre aux romains, Les Editions du Cerf, 1953 e 1973, Paris, GF-Flammarion, 1987.
LEENHARDT, Franz J. Epístola aos Romanos, Waldyr Carvalho Luz, trad., São Paulo, ASTE, 1969.
OLIVEIRA, José Lisboa Moreira de, Nossa Resposta ao amor, teologia das vocações específicas, São Paulo, Editora Loyola.
TENNEY, Merril C. O Novo Testamento sua origem e análise, 2. ed., São Paulo, Vida Nova, 1972.
TILLICH, Paul, La dimension religieuse de la culture, Paris, Genebra, Québec, Les Editions du Cerf, Editions Labor et Fides, Presses de l´Université Laval, 1990.
____________, L´Etre nouveau, tradução de J. M. Saint, Planète, Paris, 1969, do texto original: The New Being, Charles Scribner's Sons, 1955.
____________, Teologia Sistemática, São Leopoldo, São Paulo, Editora Sinodal, Edições Paulinas, 1984.




Jorge Pinheiro é professor da Faculdade Teológica Batista de São Paulo. É Pós-Doutor pela Universidade Metodista de São Paulo e pela Universidade Presbiteriana Mackenzie, Doutor e Mestre pela Universidade Metodista de São Paulo e Graduado em Teologia pela Faculdade Teológica Batista de São Paulo É pastor na Igreja Batista em Perdizes.
[1] Gilda Naécia Simões, “Cristianismo Primitivo e Paidéia Grega”, jornal O Estado de S. Paulo, 21/9/1975. In Seminário Internacional Cristianismo, Filosofia, Educação e Arte, FEUSP, setembro 2001.
[2] Leonildo Silveira Campos, “Os Novos Movimentos Religiosos no Brasil Analisados a Partir da Perspectiva da Teologia de Paul Tillich”, revista eletrônica Correlatio, no. 3.
[3] “O regime da lei no Antigo Testamento era bom, mas temporário (Gn. 3.24, 4.1+), e foi planejado para o mundo da carne e o pecado. Com a morte e a ressurreição de Jesus o regime da lei foi superado. O cristão está livre da lei, assim como Cristo que teve seu corpo carnal feito corpo espiritual (Rm 7.4-6, cf. 1Co 15.45). O cristão não está mais debaixo da lei, mas debaixo da graça (Rm 6.14). E a graça é grátis (Gl 5.1, 13). Na medida em que se é cristão, filho de Deus guiado pelo Espírito (Rm 8.14), a única lei que lhe convém é aquela que Paulo chama de a lei do Espírito (Rm 8.2), não só dada pelo Espírito, mas vivida no crente através do Espírito, que segundo Tomás de Aquino, não é simples norma externa, mas princípio de ação, atividade do Espírito no cristão”. Guy Lafon, Epitre aux Romains, Flammarion, Paris, 1987, p. 59.  
[4] J. Sobrino, Cristologia desde América Latina, Esbozo a partir del seguimiento del Jesús histórico, México DF, CRT, 1976 (2a. ed. ver. 1977), p. 91.
[5] I. Ellacuría, Conversión de la iglesia al Reino de Dios para anunciarlo y realizarlo em la historia, Santander, Sal Terrae, 1985, pp. 179-261.
[6] José Lisboa Moreira de Oliveira, “Teologia e Eclesiologia da Vocação”, revista Espírito no. 65, (jan/mar 1996, pp. 22-31).
[7] E. Schillebeeckx, L`intelligenza della fede: interpretazione e critica (1972), Roma, Paoline, 1975, p. 102.
[8] José Lisboa Moreira de Oliveira, op. cit., pp. 22-31.
[9] Idem op. cit., pp. 22-31.
[10] Ibidem, op. cit., pp. 22-31.
[11] Paul Tillich, Teologia Sistemática, Editora Sinodal, Edições Paulinas, São Leopoldo, São Paulo, 1984, p. 156.
[12] Paul Tillich, idem, op. cit., p. 158.

lundi 23 février 2015

Halakha humana

Halakha humana – uma leitura judaica
Jorge Pinheiro

Théodore Monod disse que não somos meio termo, mas complemento. Não somos cinza, mas preto e branco. Na verdade, os escritos judaicos da Era Comum nos dizem que o Eterno construiu o ser humano e, em seguida, retirou-se para que este humano pudesse ocupar com liberdade o seu lugar. Dessa forma, o ser humano é autônomo por natureza, tem livre-arbítrio e, portanto, responsabilidade. 

Os escritos judaicos, entregues no caminhar da diáspora, entendem que o Eterno aposta na perfectibilidade do ser humano. A criação, vista dessa forma, não está completa, o ser humano continua a criação. Por isso, a construção da espiritualidade é a chave para o futuro humano. É o que leva à criação perfeita. Textos, como os da Cabala, quando falam do acesso ao mundo do Espírito, perguntam: "Você se tornou o que você é?" 

O ser humano é criador de si mesmo. Sua vida é uma viagem com a finalidade do tornar-se. Ele deve saltar do "conhece a ti mesmo" para "tornar-se quem ele é" e "descobrir para que serve". É a viagem que leva à perfeição, e a liberdade é uma viagem dentro de si mesmo, que deve ser realizada através do corte da pedra, símbolo do ser humano, do material em direção ao espiritual. 

O caminho religioso não pode estar separado da revolução permanente do espírito humano, já que o sentido do renascimento promissor e a revolução permanente do espírito são desafios universais. Ambos negam todo dogmatismo totalitário que confronta o pensamento livre. 

Duas noções fundamentais, a do ser e a do devir, estão intimamente ligadas às ideias de caminho religioso e revolução permanente do espírito. Só o Eterno é único. Na tradição judaica, quando falamos "Ser" estamos a falar do Eterno. Mas os humanos caminham no sentido de se tornarem ser. Precisam caminhar sua viagem, simbólica, do material e religioso em direção ao espiritual, a fim de integrar, interiorizar a simplicidade sublime do Ser Eterno. É nesse sentido que o caminhar deve gerar harmonia, paz que leva à coexistência de progresso e tradição. 

Nesse sentido, a comunidade religiosa, enquanto associação de grupo, não deve ser obstáculo para o caminho espiritual, ao contrário, compreendido o conceito de comunidade, de estar junto para repartir o pão, tal comunhão não deve desenvolver ambição, orgulho ou reflexo xenófobo, mas abertura para o mundo. Seu significado não é excluir a fraternidade, mas estendê-la da comunidade em direção a todos os humanos. O objetivo é difícil, mas não há esperança se não perseveramos em direção ao sucesso.
 
Aprender a liberdade é o primeiro momento dessa construção, comemorada na Páscoa, enquanto caminhar em esperança. Caminhamos em direção ao outro e para cima. Esta tradição foi transmitida aos judeus pela Torá, e está presente nos 613 mandamentos, em que se baseiam a coesão da comunidade judaica. 

O caminhar associado a revolução permanente do espírito deve levar a uma espiritualidade sem dogmas. É um caminhar baseado na fraternidade universal. Donde, tradição e progresso pode fazer sentido na existência do humano, enquanto elo da cadeia da vida. 

Nesse caminhar descobrimos, conforme nos foi revelado, que o Eterno é  impensável, incognoscível, impenetrável, mas presente no universo em todos os seus planos. O Eterno não pode ser nomeado. A única designação autêntica é precisamente a rejeição de qualquer definição é "ein Sof", aquele que não tem fim, Eterno. O Espírito absoluto é essência por si só. O Eterno é o único, única manifestação visível do invisível. Mas a harmonia universal resulta da complementaridade dos opostos. A vida é um ponto na eternidade. 

Devemos ser, todos nós humanos, aqueles que esperam pelo mundo do Espírito. E o amor é a chave para a vida. Pois, amar uns aos outros é reconhecer a centelha divina dentro do outro, e ajudá-lo a entender e a exaltar o sentido pleno da vida. 

Nesse sentido, o amor permite reconhecer a dignidade do trabalho. Semeia as sementes da revolta contra a injustiça e a opressão, inclusive religiosa. Reconhece o fato de que o sofrimento é um desequilíbrio do mundo. Mas, temos consciência, de que o amor não pode ser rebaixado, enquanto concepção que degrada a dignidade do ser humano. Ou seja, amar uns aos outros, não é fé, não é destino, é ato de encontrar o entusiasmo da partilha com todos e todas.

É isso aí. O judaísmo permanece presente na construção do pensamento ocidental, leigo e religioso. Boa discussão.

vendredi 6 février 2015

Lições da estrada de Emaús

A ressurreição -- bênção da integridade de Deus

Lucas 24.13-33. Leia com calma. Devagarzinho.

1. O passado e o futuro -- Quando pensamos na ressurreição pensamos em duas coisas: lá atrás na história, o Eterno ressuscitou Jesus. E lá na frente, um dia, o Eterno vai nos ressuscitar. Assim a ressurreição tem passado e futuro. São duas colunas: passado e futuro. Mas e hoje? Será que a ressurreição tem alguma coisa a ver com o meu presente?

2. Os limites da existência -- "E a nossa esperança era que fosse ele quem iria libertar o povo de Israel. Porém já faz três dias que tudo isso aconteceu".

A morte personifica os limites instransponíveis da existência. A morte personifica: o medo existencial, o fim da esperança, a perda do sentido da vida.

Com a morte de Jesus morreu algo na vida dos discípulos... Assim como a morte do esposa mata algo na esposa, a morte do amigo mata algo amigo, a morte de Jesus matou nos discípulos a vida que dava sentido à vida de cada um deles. Foi isso que aconteceu com aqueles discípulos de Emaús: vagavam à noite pela estrada da vida, cabisbaixos, derrotados. A vida não tinha mais sentido para eles. E é assim que acontece conosco muitas vezes: andamos desesperançados, derrotados pela realidade que esmaga a vida e destrói o futuro.

3. O novo nasce pela fé na ressurreição -- "Então Jesus lhes disse: - Como vocês demoram a entender e a crer em tudo o que os profetas disseram! Pois era preciso que o Messias sofresse e assim recebesse de Deus toda a glória".

Jesus transpôs a barreira dos limites impostos a existência. O novo nasce quando nos reunimos com o irmão ao redor da mesa, ouvimos a Palavra e repartimos o pão.

'Mas eles insistiram com ele para que ficasse, dizendo: Fique conosco porque já é tarde, e a noite vem chegando. Então Jesus entrou para ficar com os dois. Sentou-se à mesa com eles, pegou o pão e deu graças a Deus. Depois partiu o pão e deu a eles. Aí os olhos deles foram abertos, e eles reconheceram Jesus".

Vencemos as crises quando redescobrimos o sentido da fé na ressurreição. Isso acontece quando nos reunimos com o irmão, ouvimos a Palavra e repartimos o pão. Por isso, a ressurreição não é um dado do passado e um futuro de esperança. É um fato presente, uma bênção da integridade do Deus Eterno para nossa vida presente. A ação do Eterno que no passado trouxe Jesus à vida é a mesma que a cada dia te dá força.

Mas lembre-se: não é um ato solitário a descoberta da fé na ressurreição. É um ato solidário, que implica em ouvir a Palavra e repartir o pão. A ressurreição de Jesus é a expressão permanente do compromisso irrevogável do Deus Eterno conosco. Um forte abraço, JP.


mercredi 4 février 2015

Sobre o não-ser para viver o ser

A filosofia grega em Eclesiastes e 1 Coríntios 15
Prof. Dr. Jorge Pinheiro, cientista da Religião

Sobre o não-ser para viver o ser
1.             Caminhando com Qohélet

Compreendi que não há nada melhor do que a gente ter prazer naquilo que faz. Esta é a recompensa. Pois como é que podemos saber sobre o não-ser?” -- perguntou Qohélet. 

Qoh procurou a felicidade e a paz. Foi objetivo e prático na avaliação de seu tempo e constatou que o evento humano está sujeito à lei da alternância, que vai além da explicação imediata: o humano não tem domínio sobre as dinâmicas que governam a morte e a vida. E procurou refúgio na sofia grega. O texto hebraico de Qohélet, com a presença de palavras aramaicas e persas, sugere autoria anônima, situada entre 450 e 200 antes de Cristo, e se apresentou com a apodadura de Salomão.

Qoh procurou entender o ser e o não-ser -- aquilo que está fora, além da existência -- no jogo de seus movimentos. Percebeu que não tinha controle sobre o movimento dos fenômenos do universo e viu que era preciso respeitar o espaço e o tempo para poder existir dentro do ritmo dos eventos.

Mas ele não foi o único a pensar nessas coisas. A pergunta pelo não-ser, presente na história do humano desde que ele é sapiens, levou à pergunta pelo sentido do ser. Qohélet -- em português Eclesiastes e, segundo Haroldo de Campos, O-que-sabe -- de forma magnífica, quase à maneira de Nietzsche, trabalhou o tema da morte e da vida e nos levou a pensar sobre a única realidade a que de fato temos acesso: a existência -- terreno afetivo e emocional que produz e repousa sobre a riqueza material das humanidades. Qoh numa abordagem existencial discute o ser, sua integralidade e potencialidades.

Mas ele não foi o único a pensar a não-existência e a existência. Górgias (480-375 a.C.) traduziu no pensamento pré-socrático a dúvida sobre o não-ser e, por extensão, sobre o ser. Disse que se existisse alguma coisa, seria ser ou não-ser, ou ser e não-ser juntos. E se o não-ser existe, ele é e não-é ao mesmo tempo. Mas é absurdo dizer que alguma coisa existe e não-existe ao mesmo tempo. Para Górgias, em formulação matemática (pv¬p)v(p^¬p), a proposição “pv-p” é verdadeira. Mas “v” é verdadeiro se e somente se “p” for verdadeiro. Na lógica proposicional do filósofo pré-socrático temos, então, a negação de “p”. Donde, o não-ser não existe. Górgias disse mais do que isso, mas essa constatação, o não-ser não existe, é o que nos interessa nesse momento.

É interessante que Qoh apresentou o não-ser, aquilo que está fora, além da existência, de uma maneira que nos lembra Górgias. Disse que ninguém se lembra do que aconteceu no passado e que até as coisas que acontecerão no futuro também vão ser esquecidas. Que ninguém se lembra dos sábios, assim como ninguém se lembra dos imbecis, pois no futuro todos seremos esquecidos. Há tempo para nascer e tempo de morrer, mas todos caminham para um mesmo lugar, pois tudo vem do pó e tudo volta ao pó.

Disse, ainda, que felicitava os que já morreram mais do que os que estavam vivos. E considerou que mais vale o dia da morte do que o dia do nascimento. Ou, mais vale ir a uma casa em luto do que ir a uma casa em festa. Que ninguém é senhor do dia da própria morte e que nessa guerra não há trégua. Por isso, um cão vivo vale mais que um leão morto, já que os vivos sabem que irão morrer; mas os mortos não sabem de nada e não tem recompensa nenhuma: sua memória já está no esquecimento. O amor, ódio e ciúmes pereceram com eles. E nunca mais participarão de qualquer coisa que se faz debaixo do sol.

A consciência do não-ser remete ao sentido do ser. E aqui há uma diferença básica com Górgias, porque para ele a negação do não-ser é também a negação do ser e, por isso, fez três afirmações que marcaram o pensamento lógico-matemático e balizaram o ceticismo: não dá para dizer que algo existe; se alguma coisa existe não temos como conhecer sua existência; caso o ser exista não temos como explicar sua existência aos outros.

Já o argumento de Qoh, a partir do não-ser, afirma o sentido do ser, único conhecido. A negação do não-ser de Qoh expressa o desejo de ser em abundância, enquanto está, porque tem por limites as bordas do tempo de ser. O ser existe, mas tem espaço e tempo – hoje diríamos é existencial e histórico. Por isso, é melhor o sentido do ser, a intensidade das ações do ser do que ficar na espera do não-ser. Assim, quando o não-ser sinalizar que está chegando e se aproximar, teremos o prazer de ter sido plenamente, com intensidade, de forma abundante.

E, por isso, Qoh nos aconselha a aproveitar a vida, a ir em frente. A comer com prazer e beber alegremente o nosso vinho, pois a eternidade já aceitou deliciada o nosso bem-fazer. Sejamos felizes, diz O-que-sabe. Enquanto vivermos na fumaça desse mundo, curtamos a vida com a pessoa amada, pois essa é a recompensa pelo nosso fazer debaixo do sol. E o que tivermos para fazer, façamos ótimo, porque o não-ser é nada e no nada nada se faz, e no não-ser não existe pensamento, nem conhecimento, nem sabedoria. E depois do ser, vamos repousar no nada.

O fazer da existência vale a pena. A eternidade aprecia esse bem-fazer humano, que tem seu próprio tempo, que integra a existência de cada ser na história dos fazeres humanos. É por isso que Bereshit, o primeiro texto na Torah, apresenta um ponto zero. O tempo zero vai do entardecer à meia-noite. É quando o sol desilumina o nosso espaço de forma gradual. O tempo do não-ser não é uma fratura do tempo, é tempo da história. Qoh não contempla a passagem do tempo, mas a vinda do tempo. O tempo significa nada ou pouco para o eterno, mas há um sentido de tempo para o humano. A conclusão de Qoh é que temos de ser no tempo para dar valor à eternidade que brota do nada do não-ser.

Nossa herança greco-judaica
Prof. Dr. Jorge Pinheiro, cientista da Religião

Pede-se ser levantado
2.             Do não-ser à anástase

Você está falando de bens materiais, de coisa frágil. Se você tem certeza de que esses bens ficarão sempre com você, fique com eles sem partilhar com ninguém. Mas se você não é o senhor absoluto deles, se tudo que você tem depende mais da sorte do que de você mesmo, por que este apego a eles?”. [Menandro, O Misantropo. Site: Oficina de teatro. WEB: www.oficinadeteatro.com].

Betty Fuks no seu livro Freud e a Judeidade, a vocação do exílio (Rio de Janeiro, Jorge Zahar Editor, 2000 (pp. 127-133) conta que Freud, um dia depois do sepultamento do pai, sonhou com um cartaz onde estava escrito: “Pede-se fechar os olhos”. Mais tarde, em carta a Fliess, o pai da psicanálise falou dos sentidos subjetivos da frase: “era parte da minha auto-análise, minha reação diante da morte de meu pai, vale dizer, diante da perda mais terrível na vida de um homem”.

Não vou entrar nos detalhes das leituras que o próprio Freud fez da frase que apareceu em seu sonho. Diria ao leitor que vale a pena ler Freud e a Judeidade. Pretendo aqui levantar uma proposta de Fuks: “há que ler o desejo: sem terra, sem pátria e sem objeto, ele vaga por um deserto, cujas trilhas conduzem o leitor à experiência limite mais-além do que aparece na imagem”. É a partir dessa hermenêutica, que vamos ler trechos do final da primeira carta aos coríntios de Paulus, o pequeno, apóstolo temporão de Iesous.

“... Foi sepultado e foi despertado do sono no terceiro dia, de acordo com o escrito”.

A frase acima e a continuação do texto é uma das mais importantes sobre a egeiro e anástasis, duas expressões gregas não substancialmente diferentes, que sintetizam a teologia da anástase dos cristãos do primeiro século. As traduções posteriores, e creio que dificilmente poderiam ser diferentes, criaram um padrão de imagem que dificultam a experiência do ir além. Por isso, fomos obrigados antes da tradução transversa fazer a desconstrução histórico-filosófica da anástase.

As leituras da anástasis e egeiró remontam a Homero e ao grego antigo e com seus sentidos correlatos axanástasis, anhistémi e anazaó, que podem ser traduzidas por “ficar de pé”, “ser levantado” e “voltar à vida”, foram fundamentais para a construção do conceito anástase, amplamente utilizado pelas ciências do espírito. Mas é com Platão, na literatura filosófica, que vamos encontrar um debate fundamental para a teologia da anástase, quando apresenta a alma enquanto semelhança do divino e o corpo enquanto semelhança do que é físico e temporário.

Platão, em Fédon (Coleção Os Pensadores, São Paulo, Nova Cultural, 1987), num diálogo entre Sócrates e seus amigos defendeu a idéia da imortalidade da alma. Sócrates foi condenado à morte por envenenamento, mas não teve medo, por crer ser a alma imortal. Para Platão, as almas possuem semelhanças com as formas, que são realidades eternas por trás do mundo físico, natural. Nesse sentido, para Platão, o corpo morre, mas a alma não. Ele parte do padrão cíclico da natureza, frio/ quente/ frio, noite/ dia/ noite. Assim, os mortos despertam numa nova vida depois da morte: caso contrário, a vida desapareceria.

E dirá através de Sócrates em Fédon: “(...) perguntemos a nós mesmos se acreditamos que a morte seja alguma coisa? (...) Que não será senão a separação entre a alma e o corpo? Morrer, então, consistirá em apartar-se da alma o corpo, ficando este reduzido a si mesmo e, por outro lado, em libertar-se do corpo a alma e isolar-se em si mesma? Ou será a morte outra coisa? (...) Considera agora, meu caro, se pensas como eu. Estou certo de que desse modo ficaremos conhecendo melhor o que nos propomos investigar. És de opinião que seja próprio do filósofo esforçar-se para a aquisição dos pretensos prazeres, tal como comer e beber?

Paulus conhecia a discussão filosófica grega acerca da anástase, já que isso se evidencia em seus escritos, principalmente no trecho que estamos analisando, mas é certo que construiu seu conceito também levando em conta a tradição judaica, acrescentando novidades ao debate teológico. Existem referências ao ser trazido de volta à vida nas escrituras hebraico-judaicas. Mas a preocupação judaica era existencial, como vimos em Qohélet. Mais do que remeter a um futuro distante, embora tais leituras estejam presentes na teologia de alguns profetas, as histórias de anástase relacionadas aos profetas Elias e Eliseu falam do aqui e agora. Aliás, este último, mesmo de depois de morto, trouxe à vida um defunto que foi jogado sobre sua ossada. Ao tocar os ossos de Eliseu, o morto ficou vivo de novo e se levantou. Esse caminho será a novidade da compreensão cristã/ helênica da anástase.

“Somos arautos de que o ungido foi levantado do meio dos mortos: como alguns podem dizer que não há o ser erguido dos mortos? E, se não há o despertar do sono da morte, também o ungido não foi levantado. E se o ungido não foi levantado, é inútil o que falamos e também inútil a nossa crença. Somos então testemunhas falsas, porque anunciamos que Deus ergueu o ungido. Mas se ele não foi levantado, os mortos também não são erguidos. E se os mortos não são erguidos, o ungido também não o foi. E, se o ungido não foi erguido, a nossa crença é inútil e vocês continuam a vagar sem destino. E os que foram colocados para dormir no ungido estão destruídos”.

Outras fontes de Paulus foram o profeta Daniel e outras literaturas intertestamentárias, que trabalham com a idéia de “despertar subitamente do sono”. Th.-G Chifflot e R. De Vaux, na versão francesa de La Sainte Bible (Les Editions Du Cerf, Paris, 1973. Tradução: A Bíblia de Jerusalém, Ed. Paulinas, São Paulo, 1985, p. 1347) situam o livro de Daniel no período helênico por entender que é uma edição de antigos fragmentos do período babilônico, compilados, organizados e contextualizados ao momento histórico descrito no capítulo onze. Nesse capítulo, as guerras entre lágidas e selêucidas, assim como as investidas de Antíoco IV Epífanes contra Jerusalém e o templo são narradas com riquezas de detalhes. Ao contrário do que acontece nos livros proféticos anteriores, aqui o autor cita fatos aparentemente insignificantes, querendo demonstrar que é uma testemunha ocular da história. Dessa maneira, a edição que conhecemos do livro de Daniel deve ser situada no período da grande perseguição de Antíoco IV Epífanes, possivelmente entre os anos de 167 e 164 a.C., segundo Th.-G. Chifflot e R. De Vaux, jã citados. A partir desse enquadramento, os capítulos 7 a 12 de Daniel, enquanto edição são chamados de “vaticinia ex eventu”, dado que o autor viveu depois e não antes dos fatos históricos que descreve. Esses capítulos são uma reação contra a declarada helenização da Judéia e das perseguições em curso, mas, paradoxalmente, uma forma de pensamento afetado pela civilização helenística.

A partir da segunda metade do livro, o autor trabalha sobre dois temas registrados na primeira metade: que o judeu deve ser fiel a Deus em meio à tentação e à provação; e que Deus defende o servo leal que prefere morrer a violar os mandamentos. Nos seis capítulos finais, o sábio (ou grupo de sábios, cujos escritos foram compilados por um redator) retoma o conteúdo das visões que teve em relação à profanação do templo, em 167 a.C., e o erguimento da “abominação desoladora”. Assim, durante o período dos macabeu muitas idéias novas afloraram em meio à vida judaica, entre elas a esperança da recompensa escatolõgica apresentada pelas profecias apocalípticas, como em 2Macabeus 7, Daniel 12:2-3 e Escrito de Damasco 4:4, que se traduzem concretamente na anástase.

Assim, os elementos novos da compreensão paulina da anástase já aparecem delineados no profeta Daniel: “Muitos dos que dormem no pó da terra despertarão, uns para a vida eterna, e outros para vergonha e horror eterno. Os que forem sábios, pois, resplandecerão como o fulgor do firmamento; e os que a muitos conduzirem à justiça, como as estrelas, sempre e eternamente”. Paulus, porém, acrescentará uma leitura existencial à compreensão de Daniel, dirá que a morte, o maior de todos os odiados pela espécie humana, será privada de força.

“Caso o ungido só sirva para esta vida, somos as pessoas mais dignas de lástima. Mas o ungido foi levantado dentre os mortos e foi o primeiro fruto dos que foram colocados para dormir. Porque se a morte chegou pela humanidade, também o ungido dará à luz nova vida. Como morre a espécie, no ungido ela recebe vida. E isso acontece numa ordem: o ungido é o primeiro fruto, depois os que pertencem ao ungido, quando ele aparecer. E veremos o limite, quando o ungido entregar o reino a Deus e Pai, e tornar inoperante o império, os poderes e os exércitos. Convém que seja rei até derrubar os odiados por terra. O último odiado a ser privado de força é a morte, porque o resto já foi colocado debaixo de seus pés”.

É interessante que Paulus em seu texto sobre a anástase cita o filósofo, dramaturgo e poeta grego Menandro (342-291 a.C.), que num verso disse: “as más companhias corrompem os bons costumes”. Paulus gostava de teatro e de comédias. E voltando ao Misantropo: “insisto que, enquanto você é dono deles, você deve usá-los como um homem de bem, ajudando os outros, fazendo felizes tantas pessoas quantas você puder! Isto é que não morre, e se um dia você for golpeado pela má sorte você receberá de volta o mesmo que tiver dado. Um amigo certo é muito melhor que riquezas incertas, que você mantém enterradas”.

Que Paulus recorreu à tradição hebraico-judaica fica claro quando cita o profeta Oséias literalmente: “eu os remirei do poder do inferno e os resgatarei da morte? Onde estão ó morte as tuas pragas? Onde está ó morte a tua destruição?”. Mas há uma correlação entre Platão e a tradição hebraico-judaica, que pode ser lida nesta carta de Paulus. Isto porque, como afirma Fuks, o leitor desconstrói, pois ler não é repetir o texto: é um modo de transformação e de criação. Por isso, digo que ler é um ato de anástase. E Paulus trabalhou de forma brilhante o termo, tanto nas suas leituras e estudos, como na reconstrução do próprio conceito.

“Que farão os que se batizam pelos mortos, se os mortos não são chamados de volta à vida? Por que se batizam então pelos mortos? Por que estamos a cada hora em perigo? Protesto contra a morte de cada dia. Eu me glorio por vocês, no ungido Iesous a quem pertencemos. Combati em Éfeso contra animais ferozes, mas o que significa isso, se os mortos não podem ressurgir? Comamos e bebamos, porque amanhã morreremos. Mas não vamos nos enganar: as más companhias corrompem os bons costumes”.

Na sequência da tradição hebraico-judaica, ou como diz Fuks, “os antigos hebreus não estavam trabalhados, como nós, pela necessidade de abstração, de síntese e de precisão na análise conceitual do real, herança dos gregos”, Paulus está preocupado com o corpo, com a vida.

“Mas alguém pode perguntar: como os mortos são trazidos à vida? E com que corpo? Estúpido! O que se semeia não tem vida, está morto. E, quando se semeia, não é semeado o corpo que há de nascer, mas o grão, como de trigo ou qualquer outra semente. Deus dá o corpo como quiser, e a cada semente o corpo que deve ter. Nem toda a carne é uma mesma carne, há carne humana, de animais terrestres, de peixes, de aves. E há corpos celestes e corpos terrestres, uma é a dignidade dos celestes e outra a dos terrestres. Diferente é o esplendor do sol do esplendor da lua e das estrelas. Porque uma estrela difere em brilho de outra estrela. Assim também o ser levantado dentre os mortos. Semeia-se o corpo perecível; levantará sem corrupção. Semeia-se na desgraça, será levantado em excelência. Semeia-se em debilidade, será erguido vigoroso. Semeia-se corpo controlado pela psique, ressuscitará corpo espiritual. Se há corpo controlado pela psique, também há corpo espiritual”.

Para Paulus, anástase leva à uma teologia da vida que nasce do corpo. Mas, não é simplesmente ter de volta a vida do corpo material, tanto que em certo momento Paulus diz que “deveremos ser a imagem do homem do céu”.

“Assim também está escrito: o primeiro ser humano, terrestre, foi feito ser-que-deseja, o futuro humano será um espírito-cheio-de-vida. Mas o que não é espiritual vem primeiro, é o natural, depois vem o espiritual. O primeiro ser humano, da terra, é terreno; o segundo humano, a quem pertencemos, é celestial. Como é o da terra, assim são os terrestres. E como é o celeste, assim são os celestiais. E, como somos a imagem do terreno, assim seremos também a imagem do celestial”.

Mas o pensamento grego, platônico, está presente na anástase paulina, já que a eternidade não é construída em cima da carne e do sangue. Vemos aqui a dualidade entre a realidade física e o mundo das formas. O dualismo metafísico de Paulus admite aqui duas substâncias que regem o ser humano, no mundo natural, a psique, e no mundo pós-anástase, o pneuma. E dois princípios, nesse sentido bem próximo a Platão, o bem e o mal.

“E agora digo que a carne e o sangue não podem herdar o reino de Deus, nem a corrupção herdar a eternidade. Digo um mistério: nem todos vamos adormecer, mas seremos transformados. Num momento, num abrir e fechar de olhos, ante a última trombeta, porque a trombeta soará, os mortos serão levantados incorruptíveis, e seremos transformados. Convém que o corrompido seja tornado eterno, e o que é mortal seja tornado imortal. E, quando o que é corruptível se vestir de eternidade, e o que é mortal for transformado em imortal, então será cumprida a palavra que está escrita: a morte foi conquistada definitivamente. Onde está, ó morte, a tua picada? Onde está, ó inferno, a tua vitória? Ora, a picada da morte é o desviar-se do caminho da honra e da justiça, e a força do erro é a lei. Mas a alegria que Deus dá é a vitória por Iesous, o ungido, a quem pertencemos. Sejam firmes e persistentes, abundantes no serviço daquele a quem pertencemos, conscientes de que o trabalho árduo e duro não é desprezado por aquele a quem pertencemos”.

Assim, se voltarmos à análise do conceito anástase no capítulo 15 da primeira carta aos coríntios, tomando como ponto de partida o desafio de Fuks: “há que ler o desejo: sem terra, sem pátria e sem objeto, ele vaga por um deserto, cujas trilhas conduzem o leitor à experiência limite mais-além do que aparece na imagem”, vemos que Paulus traduziu para as novas gerações o desejo grego/judaico, humano, da anástase: “Pede-se ser levantado”.




vendredi 30 janvier 2015

Pinheiro, Portugal

A família Pinheiro tem seu sobrenome em origem toponímica cuja antiguidade recua pelo menos ao século XIII, uma vez que já neste século surgem indivíduos a usá-lo. Como já mencionado, os Pinheiros são uma família Marrana, ou seja, de origem judia,porém, mudou seu nome para fugir da perseguição dos cristãos da idade média aos judeus que viviam na península Ibérica. Estes adotavam sobrenomes de árvores ou montes para assim poderem se identificar como judeus sem serem perseguidos.

Com o tempo alguns judeus realmente se converteram ao cristianismo, ou seja, passaram a acreditar na doutrina religiosa cristã, e assim aconteceu com os Pinheiros.

A maior expressão disso, foi a vida do mais famoso dos antigos Pinheiros, "Dom Pedro de Afonso Pinheiro", um cavaleiro da "Ordem de Avis", que defendeu a região de Rebordões dos Mouros, liderando grupos e batalhas, até finalmente os expulsar por completo em 1314 todos os Islâmicos da área, e assim, ser conhecido como um dos grãos Mestres da "Ordem de Avis".

Em reconhecimento as suas vitórias recebeu do Rei de Portugal o Brasão de Armas da Casa Pinheiro, onde o azul está sobre a prata e divide-se em três parte, uma o leão vermelho representando a coragem, a força, o combate, e a honra, na outra, três cruzes representando a cristandade e lembrando o seu momento do seu maior sacrifício que foi a crucificação de Jesus, o terceiro, cinco pinheiros representando toda a família.

Desta família Pinheiro se originaram várias famílias, continuou se o ramo somente dos Pinheiros, mas gerou-se também os Pinheiro de Andrade e os Pinheiros Barcelos, ainda, descenderam vários ramos familiares com outros títulos como o da família Outiz. cujo o primeiro ascendente foi um do netos de Dom Pedro de Afonso Pinheiro, o Cavaleiro Gomes Nunes de Outiz, nome que foi buscar à Quinta de Outiz de que foi senhor. [1]

Este Gomes Outiz foi cavaleiro de um escudo e uma lança, como informa o conde D. Pedro Afonso, conde de Barcelos, na sua obra chamada Livro de Linhagens do conde D. Pedro (1340-1344), uma recompilação da genealogia das principais famílias nobres de Portugal inseridas no contexto peninsular e universal[2] ,[1] e neto de Pedro Afonso Pinheiro, pessoa a quem o rei Afonso III de Portugal nascido na cidade de Coimbra a 5 de Maio de 1210 e falecido na mesma cidade em 16 de Fevereiro de 1279,[3] havia dado propriedades na cidade de Santarém. Este Pedro Afonso Pinheiro, como informam as linhagens genealógicas, terá sido filho de Afonso Pinheiro, que foi morador no Minho no ido ano 1301, local onde por honra defendia o lugar de Rebordões, localidade da freguesia de Insalde, concelho de Paredes de Couraça.

O já mencionado Gomes Nunes de Outiz, foi casado com D. Felicia Fernanades Camelo, filha que foi de Fernão Gonçalves Camelo e de D Constança pires de Arganelo. Estes tiveral três filhos, Estevão Gomes de Outiz, senhor que foi da Quinta de Outiz e Pedro Gomes Pinheiro, com geração extinta e Tristão Gomes Pinheiro, casado na cidade de Barcelos. O mencionado Estevão Gomes de Outiz, foi pai de Gil Esteves de Outiz, senhor que foi da Quinta de Outiz, cavaleiro da Casa Real e vassalo do rei D. Fernando I de Portugal, que foi o nono rei de Portugal, nascido em Lisboa, 31 de Outubro de 1345e falecido em 22 de Outubro de 1383, e do do rei D. João I de Portugal, nascido em Lisboa a 11 de Abril de 1357 e falecido na mesma cidade a 14 de Agosto de 1433), Destes recebeu, dando-lhe D. Fernando I, a terra da Cunha, o uso do castelo e a renda dos seus casais na cidade de Guimarães. Deu-lhe também a vila e terra do Prado, esta confirmada por D. João I, que também lhe doou várias outras propriedades corria o ano de 1385.

Estas doações de El-rei, foram devidas a Gil Esteves de Outiz, já mencionado ter tomado armas pelo rei de Portugal contra o Reino de Castela. Dado esse fato, o rei deu-lhe o Couto e honrou a Quinta de Oliveira, na Vila do Prado.

Deste Gil Esteves Outiz, é descendente D. Mor Esteves Pinheiro, que sucedeu parte importante da casa paterna, tendo sido casada com Martim Lopes, este que foi Ouvidor Geral das terras do Duque Afonso I, Duque de Bragança, (Veiros - Estremoz, 10 de Agosto de 1377 - Chaves, 15 de Dezembro de 1461) foi o 8º conde de Barcelos, 2º conde de Neiva e o 1º Duque de Bragança, filho de D. João I de Portugal. Segundo alguns genealogistas, foi também alcaide da Vila de Barcelos.

Os Pinheiros trazem o seguinte Brasão de Armas: De prata com cinco Pinheiros arrancados, de verdes, postos em sautor. Timbre: Um pinheiro dos escudo.

Os Pinheiros de Andrade trazem o seguinte: De prata com cinco pinheiros arrancados de verde, postos de sautor e chefe do mesmo, carregado por uma banda de vermelho, perfilada a ouro, abocada por duas serpes do mesmo. Por timbre: Apresentam um pinheiro de verde, saindo da boca de uma serpe em ouro e posto em pala.

Os Pinheiros Barcelos[4] usam: De vermelho com um pinheiro de sua cor, arrancado de prata com frutos de ouro e um leão no mesmo. À esquerda do escudo em posição rampante, virado para o tronco de árvore.

Bibliografia

Grande Enciclopédia Portuguesa e Brasileira - 50 vols. Editorial Enciclopédia, Lisboa, vol. 1 - pág. 809.

Referências

Armorial Lusitano, edic. Zairol, Lad. 4ª edc. 2000, pág. 437 e 438. Dep. Legal nº 149062/00. ISBN 972-9362-24-6
A prosa medieval portuguesa A prosa medieval portuguesa, Séc XIII-XIV. HALP N.4 (1997)
Brasões da Sala de Sintra-3 vols. Anselmo Braamcamp Freire, Imprensa Nacional-Casa da Moeda, 2ª Edição, Lisboa, 1973, vol. I-pg. 4.