Amar e ser amado,
Diferentes interpretações de um
mesmo tema
Jorge Pinheiro, PhD
Ai
flores, ai, flores do verde pio,
se sabedes novas do meu amigo?
ai, Deus, e u é?
se sabedes novas do meu amigo?
ai, Deus, e u é?
Ai
flores, ai flores do verde ramo,
aquel que mentiu do que pôs comigo?
ai, Deus, e u é?
aquel que mentiu do que pôs comigo?
ai, Deus, e u é?
[Julião
Bolseiro, Cantiga de amigo, do cancioneiro de Dom Diniz].
O Cântico dos Cânticos é o único livro das escrituras judaicas que
tem o amor como seu tema exclusivo. Seu título poderia ser traduzido como A mais bela das canções, o que faz juz a
esta que é uma das mais bem escritas estórias de amor de toda a literatura
universal. Ao traduzir a rica imaginação oriental, o texto fala de amada e
amante, interligando os quadros com coros e falas de grupos de personagens, como
as filhas de Jerusalém e os guardas.
O texto tem forte conteúdo
erótico, parte da realidade vivida por uma jovem camponesa, mostrando que
estamos diante de um exemplar da dramaturgia do período áureo da literatura
poética hebraica. Várias interpretações têm sido apresentadas para O Cântico dos Cânticos.
Aqui, faremos a leitura do Cântico
dos Cânticos partindo de um conselho do intelectual inglês Daniel de Morley
em suas memórias de viagens, no século 12, conforme citado por Jacques Le Goff
(Os intelectuais na idade média, Lisboa, Editorial Estúdios Cor, 1973,
pp. 25-26).
Morley conta que seguiu “as Artes, que esclarecem as Escrituras, em
vez de as saudar à passagem ou de as evitar, fazendo resumos. Então, como nos
dias de hoje é em Toledo que o ensino dos Árabes, que consiste, quase
exclusivamente nas artes do quadrivium,
é dispensado às multidões, apressei-me a partir, para aí ouvir as lições dos
mais sábios filósofos do mundo. Tendo alguns amigos pedido para eu voltar e
tendo sido convidado a deixar a Espanha, vim para Inglaterra com uma preciosa
quantidade de livros”.
“Que ninguém se indigne se, tratando da criação do mundo, eu invoco o
testemunho não dos Padres da Igreja, mas de filósofos pagãos, porque, ainda que
estes não figurem entre os fiéis, algumas das suas palavras, desde que sejam
cheias de fé, devem ser incorporadas no nosso ensino. Nós que também fomos
misticamente libertados do Egito, o Senhor ordenou-nos que despojássemos os
Egípcios dos seus tesouros, enriquecendo com eles os Hebreus. Despojemos, pois,
conforme o desejo do Senhor, e com a sua ajuda, os filósofos da sua sabedoria e
da sua eloqüência, despojemos esses infiéis de modo a enriquecermo-nos com os
seus despojos na fidelidade”.
As cantigas de amigo
Assim, queremos aprender com as
cantigas de amigo, do medieval ibérico, por terem semelhanças que podem nos
ajudar a entender a poesia de Cantares. As cantigas de amigo eram de
autoria masculina, assim como Cantares e, também, apresentavam um eu
lírico feminino.
Para
entender esta questão do eu lírico feminino, é bom ler Magadelene Luise
Frettloeh, O amor é forte como a morte: uma leitura de Cânticos dos Cânticos
com olhos de mulher (in: Fragmentos de Cultura, Instituto de Filosofia e
Teologia de Goiás, IFITEG, Goiânia, 2002, vol.12, no. 4, pp .633-642).
Ela
explica que é necessário ler Cântico dos Cânticos em perspectiva de
gênero, pois neste livro canta-se o amor espontâneo entre uma mulher e um
homem, um amor que é forte como a morte. E que nos poemas do início e do final
do livro há um protagonismo feminino: “no
decorrer da história da interpretação tentou-se soterrar essa herança; hoje
importa redescobri-la".
Assim, encontramos tanto no Cântico dos Cânticos como nas Cantigas
de Amigo a questão do amante ausente: a amada estava a espera dele ou tinha
sido abandonada. Ambas poéticas traduzem a força do Eros humano. Outra característica
marcada das cantigas de amigo era o fato de estar dirigida às amigas, a mãe ou
irmãs, ou as forças da natureza e, em alguns casos, a Deus. A ambientação,
rural ou urbana, estava sempre distante do castelo do senhor feudal.
Um dos maiores cancioneiros do
medieval ibérico foi Julião Bolseiro e um de seus poemas, que intercala este
artigo, expressa esse eu lírico feminino, que se lamenta porque o amante
desapareceu e ela não sabe onde se encontra.
O amor entre os dois,
diferentemente do amor cortês, vigiado, expressa a força do natural e
espontâneo no amor humano, pois a cantiga parece insinuar que houve um
relacionamento físico entre os amantes.
Nesta cantiga de amigo, a
ambientação é rural, e não somente distante do castelo do senhor feudal, mas
com presença marcante da natureza.
Se
sabedes novas do meu amado
aquel que mentiu do que mi á jurado?
ai, Deus, e u é?
aquel que mentiu do que mi á jurado?
ai, Deus, e u é?
Vós me
preguntades polo voss' amigo?
E eu ben vos digo que é são e vivo:
ai, Deus, e u é?
E eu ben vos digo que é são e vivo:
ai, Deus, e u é?
Salomão, o herói
Uma interpretação, quase unânime
entre antigos rabinos e os pais da Igreja, considera o rei Salomão o herói da
estória. Dentro desta perspectiva, o roteiro seria mais ou menos assim: o rei
possuía um vinhedo na região de Efraim, 80 quilômetros ao norte de Jerusalém
(8:11). Essas terras estavam arrendadas (8:11) a uma viúva e seus quatro filhos
(dois rapazes e duas moças, cf. 6:13, 1:5 e 6). A Sulamita, a mais bonita das
filhas, era responsável pela casa e também cuidava dos rebanhos (1:8).
Certo dia, o rei, disfarçado
para não ser reconhecido, visitou o vinhedo e ficou impressionado com a beleza
da moça. Ela tomou Salomão por um pastor de ovelhas e este lhe dirigiu palavras
de amor, prometendo voltar no futuro e lhe trazer presentes (1:8-11). À noite,
a moça sonhava com a volta do amado, chegando mesmo, em determinado momento a
pensar que ele estava chegando (3:1). Mais tarde, ele volta. Mas, agora, não
como camponês e sim como rei de Israel (3:6 e 7). Segue-se, então, o casamento
e seus desdobramentos.
Partindo desse roteiro temos
cinco poemas
Título e prólogo - Cap. 1:1-4
1. O desejo e a satisfação da
jovem camponesa - Caps. 1:5-2:7
2. A visita do amado e o sonho
da moça - Caps. 2:8-3:5
3. A festa de casamento e as
canções do rei - Caps. 3:6-5:1
4. A tardia recepção da amada e
sua busca prolongada - Caps. 5:2-6:3
5. Sulamita e seu amado
conversam - Caps. 6:4-8:4.
Epílogo e últimas adições - Cap.
8:5-8:14.
Para
o teólogo chileno Samuel Fernández Eysaguirre. A manifestis, ad occulta,
Las realidades visibles como único camino hacia las invisibles en el comentario
al Cantar de los Cantares de Orígenes (in: Anales de la
Facultad de Teología. Universidad Católica,
Campus Oriente, Santiago, 2000, vol. 51, no. 2, pp.135-159) a leitura
literalista levou os teólogos da Igreja antiga a um beco sem saída:
"Una lectura meramente literal del Cantar de los Cantares presentaba
graves dificultades a la sensibilidad religiosa de la antigüedad. El libro
exalta, al menos en su sentido inmediato, el amor humano y abunda, como pocos
textos bíblicos, en descripciones de los miembros del cuerpo. Y por otra parte,
el Cantar no menciona
explícitamente a Dios. El sentido literal del texto no parecía edificar
moralmente a sus lectores. Era posible preguntarse ¿qué hace en las Escrituras
un libro que no habla de Dios? Las serias dificultades que presentaba su
lectura literal, sumadas al carácter poético del Cantar, favorecían fuertemente una interpretación de tipo
simbólica, interpretación que se impuso tanto en el ámbito judío como
cristiano. Las dificultades recién descritas llevaron a algunos rabinos a dudar
de la canonicidad del Cantar...".
Vós
me preguntades polo voss' amado?
E eu ben vos digo que é viv' e são:
ai, Deus, e u é?
E eu ben vos digo que é viv' e são:
ai, Deus, e u é?
E eu
ben vos digo que é são e vivo
e seerá vosc' ant' o prazo saido:
ai, Deus, e u é?
e seerá vosc' ant' o prazo saido:
ai, Deus, e u é?
E eu
ben vos digo que é viv' e são
e s[e]erá vosc' ant' o prazo passado:
ai, Deus, e u é?
e s[e]erá vosc' ant' o prazo passado:
ai, Deus, e u é?
Salomão, o vilão
Outra interpretação, formulada
pelo teólogo Heinrich Ewald, no século XIX, vê no amante um pastor de quem a
jovem estava noiva, antes de ser capturada e levada para o harém de Salomão,
por um de seus servos. Depois de ter resistido com sucesso a todas as
tentativas do rei para conquistar sua afeição, ela é libertada e se reúne a seu
amado, com quem aparece na cena final.
A jovem relembra o amado (1:2-3).
Pede que ele a leve de volta logo, pois o rei a introduziu nas seduções da
corte (1:4). Suas recordações do amado a perturbam (1:7). O rei tenta seduzi-la
com jóias (1:11) e perfumes (1:12), mas ela prefere o cheiro do campo que lembra
o corpo do amado (1:13-14). A moça se recorda de uma visita feita por ele e de
um sonho que se seguiu (2:8-3:5). Depois disso, ela é novamente visitada e
louvada por Salomão (3:6-4:7). Diante da persistente ofensiva do rei, antecipa
seu casamento com o jovem camponês (4:8-5:1). Sua vida e seus sonhos estão
impregnados com as lembranças do amado (5:2-6:3). Salomão mais uma vez tenta
conquistar Sulamita (6:4-7:9). Ela, no entanto, mantém sua fidelidade ao pastor
e resiste às tentativas do rei (7:10-8:3). Diante disso, Salomão a liberta,
verificando que é impossível conquistar a moça.
Dentro
desta perspectiva, é interessante ler Cântico dos Cânticos, O fogo e a
ternura de Ney Brasil Pereira e Pablo Andiñach, (Col. Comentário Bíblico,
Petrópolis/São Leopoldo, Editora Vozes/Editora Sinodal, 1998, 128p., in:
Estudos Bíblicos. Editora Vozes, Petrópolis/RJ, Brasil, 2000. no. 65,
p9.81-84).
Para
os dois teólogos, os poemas do Cântico foram redigidos, em sua redação final,
por uma mulher. Seria, portanto, o único livro das escrituras judaicas de uma autora. Isso dá
ao comentário um cunho especial, uma vez que se assume que ela, a autora, tenha
deixado nos poemas sua marca feminina e seu modo peculiar de viver a
sexualidade e a vida. Ao mesmo tempo, a autora teria feito uma crítica sutil,
mas firme, ao modelo salomônico de sexualidade, marcado pela frivolidade e a
poligamia.
A partir dessa interpretação
temos outro roteiro
1. No palácio, a moça relembra o
amado e é assediada por Salomão - Caps. 1:1-2:7
2. Lembra-se de uma visita do jovem
e de um sonho - Caps. 2:8-3:5
3. Sulamita mais uma vez é
visitada e elogiada por Salomão - Caps. 3:6-4:7
4. Resiste às investidas do rei
e antecipa seu casamento - Caps. 4:8-5:1
5. A moça relata outro sonho e descreve
seu amado - Caps. 5:2-6:3
6. Salomão mais uma vez tenta conquistar
Sulamita - Caps. 6:4-7:9
7. Saudosa e fiel, a moça anseia
a companhia do amado - Caps. 7:10-8:3
8. Enfim, recebe alforria, e
retorna para casa com seu esposo - Cap. 8:4-8:14.
O amor é mais forte
Em
meio às várias interpretações, é bom relembrar, como diz Isidoro Mazzarolo, Cântico
dos Cânticos, Uma leitura política do amor (1a. ed., Mazzarolo
Editor, Rio de Janeiro, 2002. 249 p.), que "o livro dos Cânticos
está entre as grandes obras da sabedoria bíblica ao propor uma visão do ser
humano, homem e mulher, como duas criaturas colocadas no universo e dotadas de
liberdade e dignidade".
Assim,
a mensagem de amor permanece. E talvez possamos dizer, como nos lembram as
Cantigas de Amigo, que esta é a grande mensagem do livro.