O TALMUD
História, Ética e Teologia
JORGE PINHEIRO, PhD
Entre os anos que vão da destruição do beit sheni (segundo templo) até a
derrota da revolta de bar Cochba (70 a 135), Israel vive um momento muito
especial em sua história, que recebe o nome de “período de Yavne”. Esse período
caracterizou-se por novas tentativas de reconquistar a independência por meios
militares e pela formação de um novo sistema de governo, que permitiu aos
judeus sobreviverem sem um Estado.
Um homem, o rabino Yochanan ben Zakai, inicia a
reconstrução da vida judaica, não mais em Jerusalém, mas em Yavne. Restabelece
as funções do sanhedrin (sinédrio),
fixa os meses e os anos bissextos, possibilitando a manutenção das festas
judaicas mesmo sem templo. Yavne transforma-se assim num centro da cultura
nacional judaica e de sua espiritualidade.
Anos mais tarde, o rabino Gamaliel, filho de um dos
líderes da revolta contra Roma, é reconhecido como líder da nação e substitui
ben Zakai, tornando-se chefe do sinédrio de Yavne. Tem início uma política de
unificação das diferentes seitas judaicas: sacerdotes saem de Yavne em direção aos
pontos mais distantes do galut
(diáspora), com a finalidade uniformizar doutrinariamente o povo judeu. O
contato com os cristãos é proibido e tem início de ambas as partes uma
separação histórica entre cristianismo e judaísmo.
Na Academia de Yavne são estabelecidas as
características das festas judaicas, agora sem sacrifícios e peregrinações
anuais. É realizada uma nova tradução do Tanach para o grego, já que a
Septuaginta, muito usada pelos cristãos, não incorporava a visão dos rabinos de
Yavne.
Outro nome que se destacará em Yavne é do rabino
Akiva ben Yossef. Viaja por quase toda a diáspora, da Gália, no Ocidente, à Babilônia, no
Oriente. Prega a Tanach e transforma-se em um de seus mais importantes
intérpretes. Após o fracasso da revolta de bar Cochba, é preso e condenado à
morte.
Vencida a última resistência judaica, o imperador
romano Adriano toma uma série de medidas que lembram em muito as leis de
Antíoco IV Epifanes: proíbe o estudo do Tanach, a prática da circuncisão e a
ordenação de novos rabinos. Derrotados e perseguidos, a grande maioria dos
judeus deixa a Judéia e refugia-se no Galil
(Galiléia), primeiro em Usha e posteriormente nas cidades de Tzipori e Tveria.
No Galil será estabelecido o centro da cultura judaica nos séculos II, III e
IV.
Nessa época, duas instituições, que já existiam,
passam a definir a vida política e religiosa judaica, a nessiut e o sanhedrin. A nessiut era a presidência, e seu ocupante
recebia o título de nassi, o
patriarca e era o líder máximo do povo judeu. Com pequenas exceções, o cargo de
nassi foi ocupado pelos descendentes do rabino Hilel, o sábio, que descendiam,
segundo a tradição, da linhagem do rei Davi. O nassi era eleito pelo sanhedrin
e o cargo era vitalício. Ao nassi cabia nomear os dirigentes das comunidades do
galut e recolher contribuições para a manutenção do governo judaico. Como desde
o século I, a lei escolar de Shimon ben Shetach definia a gratuidade e
obrigatoriedade da instrução primária para todos os meninos judeus, o nassi era
responsável por garantir que em cada cidade houvesse ao menos uma escola. O
patriarca também representava o povo junto ao império romano. O cargo de nassi
só vai ser extinto em 427.
Enquanto o nassi fazia as vezes de rei, o sanhedrin
fazia as vezes de parlamento, combinando os poderes legislativo e judiciário.
Nos dois séculos posteriores à derrota de bar Cochba, o sanhedrin reunia os
rabinos e principais eruditos da época. Os saduceus, que representavam a
aristocracia e a classe alta, já haviam desaparecido da vida judaica. A
orientação rabínica tinha o peso hegemônico dos fariseus. Assim, a atividade
principal do sanhedrin consistia em discutir as leis da Torah e intepretá-las e adaptá-las à nova realidade. Nesse sentido,
o sanhedrin passou a ser um beit midrash,
uma casa de estudo. Os rabinos realizavam discussões e debates e seus
discípulos acompanhavam com interesse a seqüência das argumentações. Mas nada
era anotado. Tudo era guardado de memória. Os rabinos mantinham, também, cursos
sobre assuntos de interesse cotidiano, de forma que as salas do sanhedrim
estavam sempre cheias de estudantes, futuros rabinos do povo judeu.
Além de funcionar como beit midrash, o sanhedrin
era também beit din elion, o supremo
tribunal.
E assim, no correr desses anos, vai-se formando um novo
corpo de leis, derivadas da Torah, que não se encontram nela, mas que tinham
como finalidade dar respostas à nova realidade que surge com o fim na nação
judaica geograficamente estabelecida. Como a Torah é sagrada, nada é agregado a
ela para evitar que pudesse de alguma forma lhe fazer sombra. Por isso, a nova
legislação não é escrita em lugar nenhum.
Com o passar dos anos, esse corpo de leis torna-se
tão vasto e as condições da diáspora culturalmente tão complexas, que se tornou
necessário escrever o material acumulado até aquele momento. O primeiro texto
foi preparado ainda no período de Yavne. Os rabinos Akiva e Meir também
redigiram várias leis orais. Temos assim, a mishná
(repetição) do rabi Akiva e de outros.
Mas será no final do século II, sob a presidência
do nassi rabi Yehudá, da linhagem de Hilel, que foi editada de forma ordenada a
primeira Mishná, com a aceitação plena do sanhedrin. Ela incorporou trechos das
mishnaiot anteriores.
A Ética dos Pais
A Mishná contém seis partes chamadas shishá sedarim. Cada seder inclui diversas massechtot (tratados) e cada tratado se
divide em prakim (capítulos) e perek (parágrafos). Foi redigida em
hebraico e contém, ao todo, 63 tratados e 528 capítulos. Os seis livros que
formam a Mishná são: Zeraim (sementes),
que trata da agricultura e das orações; Moed
(festividades), sobre as leis do shabat e dos chaguim; Nashim (mulheres), contém as leis referentes ao casamento, ao
divórcio, ao adultério, etc.; Nezikin (prejuízos),
sobre a lei civil, criminal, contratos, fraudes, castigos, etc; Kodashim (coisas sagradas), trata da
ordem no culto do beit hamikdash e da kasrhrut; Toharot (purificação) sobre o cerimonial da purificação, banho
ritual (mikvá), etc.
No tratado Pirkei
Avot - Ética dos Pais, por exemplo, temos ensinamentos morais que tratam de
boa conduta, estudo, justiça e retidão, sintetizando séculos de cultura
judaica:
“Qual o justo caminho que um homem deve escolher
para si? Aquele que é uma honra para ele que o pratica e uma honra para ele de
parte dos homens. Se tão cuidadoso de um preceito leve quanto de um grave, pois
não sabes qual a recompensa dada aos preceitos. Considera a perda de um
preceito segundo a sua recompensa e o ganho de uma transgressão de acordo com
sua perda. Observa três coisas e não cairás em poder do pecado: sabe que está
acima de ti um olho que vê, um ouvido que ouve e que todos os teus feitos estão
escritos num livro.” (Rabi Yehudá ha Nassi).
“Bom é o estudo da Torah junto com a ocupação no
mundo, pois o labor em ambos faz esquecer o pecado e todo estudo da Torah
desacompanhado do trabalho resulta em nada e acarreta o pecado. E todos os que
se ocupam do trabalho comunitário se ocupem dele por amor do Nome dos céus,
pois o mérito dos seus pais os sustenta e sua justiça permanece para sempre. ‘E
quanto a vós, disse Deus, vos darei grande recompensa, como se vós mesmos os
tivésseis realizado’.” (Rabi Gamaliel, filho de Yehudá ha Nassi).
Após terminarem seus estudos primários, os meninos
que desejavam prosseguir seus estudos eram encaminhados para o Sanhedrin. Lá
estudavam a Mishná do rabi Yehudá e as compilações de histórias e tradições que
formaram o Midrash, a Tossefta e a Baraíta. Os professores, conhecidos como amoraítas, expositores, conforme ensinavam acrescentavam novas
interpretações aos textos dos tanaítas,
rabinos cujas discussões estão registradas na Mishná. As conclusões dos
amoraítas foram consideradas um complemento, Guemará, da Mishná do rabino Yehuda. Temos, então, a partir da
união desses tratados, o Talmud da Palestina ou Talmud Yerushalmi.
Derivado de dml
(ser instruído), Talmud traduz a idéia de aprendizado ou ensino. Seu ponto
de partida, como vimos é a lei oral, que segundo a própria tradição rabínica
repousa em Moisés, que teria recebido de Deus duas leis, a escrita e a oral.
Ambas se complementam, mas apenas os judeus têm a segunda.
No século IV, novos conflitos entre judeus e
romanos levam a destruição das cidades de Tzipori, Lud e Tveria. Milhares de
judeus são mortos ou vendidos como escravos. Choques políticos e
administrativos entre o Sanhedrin e o patriarca e as difíceis condições
econômicas levam o centro de Eretz Israel a sucumbir definitvamente. Há uma
maciça emigração de religiosos e amoraítas para a Babilônia.
O último patriarca importante será Hilel II, que é
também conhecido por ter realizado os cálculos do calendário judaico, utilizado
até os dias de hoje.
Na Babilônia, os emigrantes palestinos juntaram-se
à comunidade judaica, que desde os tempos das deportações realizadas por
assírios e babilônicos, manteve-se nas cidades de Nehardea, Mahoza, Pumbedita e
Sura. É interessante notar, que nessas cidades havia uma rede de ensino
primário judaico de alto nível, que o melhor do pensamento palestino tinha
migrado para elas e que os reis sassânidas, então no auge de seu poder,
aceitavam muito bem a presença judaica na Babilônia.
Rav Ashi, líder da academia de Sura, inicia a
compilação do material religioso existente, organiza sua exposição e distribui
o material conforme os critérios definidos. Anos mais tarde, quando os
sacerdotes zoroastristas iniciam uma dura perseguição religiosa aos judeus,
Ravina, o último dos amoraítas babilônicos e chefe da academia de Sura, dá
seqüência ao trabalho de Rav Ashi. Surge, então, uma obra monumental, o Talmud
babilônico.
Temos então dois talmudim, o Talmud Yerushalmi e o Talmud Bavli.
Assim, os sábios cujas discussões estão registradas
na Mishná viveram em Eretz Israel na época dos fariseus, entre os anos 100 a.C.
e 200 d.C. Após a finalização da Mishná, outros mestres realizaram novos
comentários e readaptações da Mishná, dando origem a um complemento, a Guemará.
Este segundo trabalho foi realizado simultaneamente em Israel (entre os anos
200 d.C. e 350 d.C.) e na Babilônia (entre os anos 200 d.C. e 500 d.C.). No entanto,
a Guemará babilônica é considerada mais importante.
A Teologia do Talmud
Essa obra traduz setecentos anos de trabalho, cita
estudos e conclusões de mais de mil rabinos, mas tem por base apenas três
fundamentos:
1. Existe apenas um Deus verdadeiro, justo e bom.
2. A Torah, dada por Ele, contém toda a verdade e a
justiça.
3. O homem deve fazer o possível para ser
verdadeiro, justo e bom. E a melhor maneira de chegar a essas metas é
investigar e cumprir a Torah.
Dessa maneira, o Talmud foi um guia para o povo
judeu nos terríveis anos do galut e nas perseguições da Idade Média. A lei em
seu sentido estrito, mais conhecida como halachá,
manteve a coesão do povo. E tudo aquilo que não é lei, ou seja, as histórias,
lendas, fábulas, contos, biografias, provérbios, receitas, matemática,
astronomia e medicina, a agadá,
serviu como fonte inesgotável de inspiração para a cultura e folclore judaicos.
Em parte essa tradição de estudo deu ao povo judeu um alto nível cultural, que
manteve mesmo nos momentos mais sombrios da história humana.
Os rabinos costumam dizer que para se nadar no mar
do Talmud e não se afogar, é necessário saber nadar muito bem, ou seja,
conhecer profundamente a Torah. O Talmud é uma imensa enciclopédia onde todos
os assuntos se encontram misturados.
O pensamento judaico é oriental, totalmente
diferente do pensamento grego. O judeu começa a falar de um assunto, discorre
sobre diversos outros, responde a perguntas que não têm nada a ver com o tema
central, e no final da conversa volta ao assunto inicial. Isso leva a teologia
ocidental, acostumada à lógica aristotélica, a evitar navegar mais
profundamente nas águas do Talmud. Além disso, para o leitor comum, o Talmud
apresenta outra dificuldade, está escrito em três idiomas: hebraico bíblico nas
citações do Tanach, hebraico da
Mishná na Mishná e aramaico na Guemará. Para levar o judeu da alta Idade Média
a mergulhar com mais confiança no Talmud, o exegeta Rashi (rabino Shlomo
Itzhaki), ao redor do ano 1.100, na França, elaborou uma série de comentários
que ainda hoje são de grande ajuda para os estudiosos modernos.
Assim, podemos definir a teologia do Talmud através
do seguinte conceito: o conhecimento da idéia de Deus entre os judeus viveu uma
revelação crescente. Mas na época do beit sheni o conceito de Deus era bem
semelhante ao de hoje: um ser infinitamente poderoso, bom, criador dos céus e
da terra, e juiz supremo dos homens. No entanto, nenhum homem pode ser julgado
pelas suas ações, se dois fatores não foram levados em conta: a liberdade de escolha e a existência de uma
lei que diga o que é certo e o que é errado. Para os rabinos do Talmud não
adianta a pura vontade de escolher o bem. Por isso, a Torah é um presente de
Deus, permitindo ao homem transformar sua boa vontade em práxis.
Acontece que a Torah, afirmam os talmudistas,
apesar de sua transcendência e revelação, está histórica e culturalmente
situada no momento em que foi escrita. É preciso um midrash (hermenêutica) para
que seus ensinamentos e sua ética possam ser compreendidas e utilizadas pelo
judeu de outras atualidades. Vejamos, agora, um exemplo da teologia do Talmud,
em dois trechos de um midrash do texto de Ex 20:2.
“Eu sou o
Senhor teu Deus. Por que os Dez Mandamentos não foram ditos no começo da
Torah? Eles fornecem uma parábola. A que isso pode ser comparado? Ao seguinte:
Um rei que entrou em uma província disse ao povo: Posso ser vosso rei? Mas o
povo lhe disse: Fizeste algo bom para nós para que nos governeis? Que ele fez
então? Construiu-lhes a muralha da cidade, introduziu o abastecimento de água
para eles, e lutou suas batalhas. Então quando ele lhes disse: Posso ser vosso
rei? Eles lhe disseram: Sim, sim. Da mesma maneira, Deus. Ele trouxe os
israelitas para fora do Egito, dividiu o mar para eles, fez descer o maná para
eles, fez subir um poço para eles, trouxe codornas para eles. Lutou por eles a
batalha com Amaleque. Então Ele lhes disse: Eu serei vosso rei. E eles Lhe
disseram: Sim, sim. Rabi disse: Isto proclama a excelência de Israel. Pois,
quando todos eles estavam diante do Monte Sinai para receber a Torah, todos se
decidiram igualmente a aceitar o reinado de Deus alegremente. Além disso, foram
garantia um para o outro. E não foi somente no que diz respeito a atos públicos
de Deus, revelando-Se-lhes, desejou fazer Seu pacto com eles, mas também no que
diz respeito a atos secretos, como está dito: As coisas encobertas são para o
Senhor nosso Deus e as reveladas...” (Dt 29:28). Mas eles Lhe disseram: No que
se refere a atos públicos, estamos prontos a fazer um pacto contigo, mas não
faremos um pacto contigo com referência atos secretos, para que nenhum de nós
cometa um pecado secretamente e a comunidade inteira seja considerada
responsável por ele”.
(...)
“Outra interpretação: Eu sou o Senhor teu Deus. Quando o Santíssimo, louvado seja,
levantou-se e disse: Eu sou o Senhor teu
Deus, a terra tremeu, como está dito: “Ó Senhor, saindo Tu de Seir,
caminhando Tu desde o campo de Edom, a terra estremeceu” (Jz 5:4). E continuou
a dizer: “Os montes vacilaram diante do Senhor” (v.5). E também diz: “A voz do
Senhor é poderosa. A voz do Senhor é cheia de majestade” (Sl 29:4) até “E no
seu Templo cada um diz: Glória!” (v. 9). E até suas casas estavam plenas do
esplendor da Shekiná. Naquele tempo todos os reis das nações do mundo se
reuniram e vieram a Balaam, filho de Beor. Eles lhe disseram: talvez Deus
esteja para destruir Seu mundo com um dilúvio. Ele lhes disse: Sois uns tolos!
Há muito tempo Deus jurou a Noé que não mais traria um dilúvio sobre o mundo,
como está dito: Porque isto será para mim como as águas de Noé, pois jurei que
as águas de Noé não inundariam mais a terra”(Is 54:9). Então eles lhe disseram:
Talvez Ele não traga um dilúvio de água, mas Ele pode trazer um dilúvio de
fogo. Porém ele lhes: Ele não vem trazer um dilúvio de água nem um dilúvio de
fogo. Simplesmente o Santíssimo, louvado seja, vem dar a Torá ao Seu povo. Pois
está dito: “O Senhor dará força ao Seu povo...” (Sl 29:11). Logo que ouviram
isto dele, todos voltaram as costas e cada um foi para o seu lugar. E assim
todas as nações do mundo foram convidadas a aceitar a Torah, a fim de que não
tivessem escusa para dizer: Se nos houvessem convidado, teríamos aceitado.
Pois, veja, elas foram convidadas e se recusaram a aceitar a Torah. (...)”.
Bibliografia Mínima Recomendada
Guinsburg, J., Do Estudo e da Oração, São Paulo,
Editora Perspectiva, 1968.
Gundry, Robert H., Panorama do Novo Testamento, São Paulo,
Edições Vida Nova, 1991.
Berezin, Rifka, Caminhos do Povo Judeu, vol II, São
Paulo, Fed. Israelita do Est. de SP, 1988.
Scholem, Gershom, A Mística Judaica, São Paulo, Editora
Perspectiva, 1972.