vendredi 24 avril 2015

2.612 minutos antes

2.612 minutos antes

28.

Bendita seja a eternidade de nossa descendência. Envia a redenção aos povos. Bendita seja a eternidade de nossa descendência.

Yoffe fala sobre a identidade humana. Zlabya, como estamos a falar de memórias da família, quero que pense comigo uma questão: quem é o ser humano e o que caracteriza a nossa existência. É um assunto complicado, mas importante para quem deseja agir e construir o mundo.

Estou na sala de casa, de paredes brancas, enrugadas, sentado em uma almofada, bem à moda safardi. E penso: a busca pela justiça passa por colocarmos no seu devido lugar a questão da identidade humana. Veja você, será que a existência se reduz a um conjunto de sensações, de emoções? Não podemos admitir a identidade de uma pessoa se ela não puder ser percebida pelos sentidos? Se for assim, o cérebro é a causa da identidade e qualquer outra hipótese é inútil.

Vou entrar com toda a cautela na conversa. É gostoso conversar com um descendente sábio. Se no corpo humano existem apenas fenômenos sucessivos, sem laço que ligue o passado ao presente, como se explicam o hábito, a associação de ideias e a memória? Ora, é necessário admitir que existe em nós uma realidade que vai além do cérebro e se liga aos atos que praticamos. Esta realidade é a própria identidade que expressa a existência de cada um de nós. E se existe a existência, tenho que perguntar o que ela é. Tomando como modelo a complexidade do mundo, prefiro dizer que devemos ver que existem duas hipóteses: a existência se projeta na eternidade ou só existe o momento presente e o resto é aparência e virtualidade? Como combinar uma indigestão com o sentido pleno da vida? Somos substância extensa, divisível e palpável, seguimos e vamos além do momento. A existência é essa extensão e cada pessoa tem identidade na existência. Não é uma unidade numérica, mas una na sua diversidade. Mesmo quando a gente envelhece a identidade permanece. Somos um ao longo do tempo e é esta unidade na existência que me confere identidade. 

Talvez você por ser um descendente sábio, me questione: certo, Yoffe, você defende o princípio da existência que se projeta na eternidade. Você está dizendo que eu sou hoje e também amanhã. Um pedaço de mim envelhece, se desgasta, mas a identidade permanece. Não concordo com isso! Eu sei muito bem que o cérebro está ligado à vida mental. Se uma pessoa sofre uma lesão cefálica é quase certo que vai sofrer algum tipo de dano psicológico. O funcionamento do cérebro, as emoções e a memória estão relacionados. Embora não possamos genericamente correlacionar os estados psicológicos com os estados cerebrais, sabemos que tal correlação existe. Por isso eu digo que a vida mental tem origem no cérebro e que a existência enquanto extensão não existe.

jeudi 23 avril 2015

2.613 minutos antes

2.613 minutos antes
Yoffe ShemTov

Nada como conversar com gente inteligente, querido descendente. Por isso, deixe-me aprofundar os argumentos. A existência está unida ao momento e participa da vida, inclusive para realizar as suas operações. Mas, também é independente nas suas funções. Deste modo, a existência pensa e deseja. Assim, a existência não está imersa no tempo presente, é independente sob diversos aspectos. Lembro-me de que Aristóteles, o mestre grego, dizia que um ser se conhece por suas operações. Ora, de onde vêm as ideias? Ser inteligente, pensar, são atividades da pessoa ou da existência? É a existência que trabalha a inteligência. A matéria está presa às leis da matéria, mas a existência por ser extensiva tem maior liberdade diante dos impulsos da sensibilidade. A existência goza de livre arbítrio. A simplicidade que caracteriza os fenômenos da inteligência impede que afirmemos que o cérebro seja a causa do pensamento. Mas, é verdade, a inteligência precisa de um cérebro saudável para se expressar. 

Estou vendo, querido descendente, você desenhar rabiscos no ar. Diga o que você acha. E o descendente constrói um diálogo, que já não é virtual, mas tomou forma e lugar.

Yoffe, ancestral amado, há uma parte do seu argumento que eu gosto, aquela em que você fala da liberdade humana. Só que para falar de livre arbítrio não é necessário falar de existência. Você disse que a existência é extensa, una e indivisível, então como ela pensa, como se relaciona com os cérebros? Além disso, você não explicou o que torna uma existência a mesma ao longo do amanhã e do depois de amanhã? 

Deixemos Brianda falar também. De maneira nenhuma aceitaria ficar fora da conversa. E Brianda diz: Bem, caríssimos, creio que aqui os argumentos se esgotam e explicam os diferentes caminhos que buscamos para encontrar a justiça. Aqui está a divergência: o cérebro é ou não é o instrumento de que se vale a existência para expressar os pensamentos extensos? E se tomarmos como ponto de partida o sábio Aristóteles, quando disse que pensamos sem órgãos, que o entendimento não está ligado a nenhum órgão, e que pode trabalhar e existir separado do corpo... 

Mas nosso descendente não se deu por vencido. Até esse momento não tinha se sentado. Caminhava devagar pela sala, fitou Brianda, a avó, com carinho e teceu sua argumentação: 

Bem, já que a avó Brianda citou Aristóteles, quero trazer para esta conversa uma hipótese. Na verdade, uma parábola: um príncipe interrogou-se sobre como seria viver como um sapateiro. E um sapateiro sonhou em ter uma vida de príncipe. Um dia eles tiveram a oportunidade de trocar todas as características mentais de ambos. O sapateiro passou a ter a memória, conhecimento e atributos pessoais do príncipe, cujas características mentais migraram para o sapateiro. Depois da troca, a pessoa que agora é sapateiro lembrou-se ter sido um príncipe que desejava experimentar a vida de sapateiro. Ele disse: “Puxa, satisfiz minha curiosidade!” Reconheceu-se como príncipe e não como sapateiro. E vice-versa. Será isso mesmo? 

Mas a estória se complica, isto porque o príncipe havia cometido um crime horrível, e para escapar da condenação resolveu recorrer à troca de cérebros. Após a troca, o crime foi descoberto, e os guardas vieram buscar o culpado. Sem saberem o que aconteceu, prenderam a pessoa que agora é o príncipe, que começou a gritar se dizendo inocente. A pessoa que agora é o sapateiro, que se reconheceu como o príncipe criminoso, saltou de alegria por ter escapado da condenação. Ora, se foi assim, era uma enorme injustiça, pois quem deveria ser condenado era a pessoa que agora é o sapateiro e não a pessoa que agora é o príncipe. Veja, avô Yoffe, a nossa identidade obedece à continuidade do cérebro. Uma pessoa no passado permanece idêntica a ela mesma no futuro se forem mantidas a memória e as características individuais dela. O príncipe que agora é o sapateiro é de fato o príncipe e, por isso, aquele que agora é o sapateiro é culpado pelos crimes do príncipe, uma vez que lhe é psicologicamente contínuo. E este deveria ser o veredicto correto: o sapateiro com o cérebro do príncipe é quem deveria ser condenado.

Opa, percebi o ponto fraco do argumento do descendente e resolvi, então, complicar a estória: Mas eu desejo acrescentar uma pergunta a sua estória, meu querido descendente: e se pudéssemos duplicar um cérebro e colocá-lo em corpos diferentes. Esses dois corpos seriam pessoas iguais ou diferentes? E se fossem diferentes, onde estaria a base da identidade da pessoa, o que faria dela uma pessoa diferentes da outra? Logicamente, não o cérebro, mas a existência que cada uma passaria a viver a partir dos cérebros colocados nos corpos. Com isso, quero dizer que a identidade de uma pessoa não reside no cérebro apenas, mas na existência que se vive. Ou seja, é a existência que constrói o nosso cérebro. Por isso, descendente creio que talvez haja um ponto de contato entre nós. Talvez essa existência seja aquele sopro inicial lançado em nossas narinas pela eternidade, que será construção no caminhar de nossas experiências, emoções, sentimentos. E se for assim até mesmo a identidade é uma construção, algo que nos pertence enquanto potência.

O descendente caminhou devagar em direção a uma almofada grande. Procurou uma posição confortável e ouviu com atenção os argumentos do avô. Com deleite se lembrou de uma estória que falava do humano pobre e do humano rico. Essa estória traz imagens ilustrativas de julgamento e recompensa. Era uma estória construída para sábios e religiosos. Os sábios não pensavam existir vida eterna no sentido de recompensa e julgamento, apoiando-se na visão de que o repouso eterno é o lugar de todos os que morreram, sem diferenciação. Mas a estória estava dirigida também aos religiosos, que esperavam a instalação do reino eterno. As palavras tiveram uma audiência específica. A ênfase das palavras era referente ao julgamento e não à recompensa. Porque a penalidade do juízo não é o contraponto da recompensa, mas do reino do eterno. Nestes termos, as palavras também visavam os sábios.

mercredi 22 avril 2015

2.614 minutos antes

Yoffe Pinheiro ben ShemTov

O reinar da eternidade já chegou e começou no ontem, está no hoje e se projeta no amanhã. Esta vida no reinar da eternidade é a vida das eternidades, que começa aqui e continua para sempre. Como a vida do reino é deixar que o eterno reine nas gentes, a recompensa é a continuação do reinar da eternidade. A morte não interfere no reinar, apenas modifica a esfera de sua atuação. O ser humano após a morte tem suas emoções, histórias e memórias guardadas eternidade a dentro, a espera do ser levantado que lhe abrirá os céus e terra novos -- na intimidade do reinar da eternidade ou na separação do que é eterno. Para tratar a estória do humano pobre e do humano rico, é necessário ver que as palavras estão dirigidas a pessoas para evocar respostas. Assim, é necessário compreender o contexto das palavras a quem estava sendo dirigida e com que objetivo foram empregadas. Algumas questões devem ser colocadas de antemão. O contexto maior começa fazendo uma diferenciação entre a prática dos religiosos e a forma de vida do reinar eterno. Há críticas ao espírito da religiosidade. A crítica enfatiza o tipo de vida do reinar da eternidade, a vida das eternidades, por sua qualidade. A crítica questiona a confiança de quem tem certeza de que estará presente no grande banquete do reino eterno: são os pobres, os coxos e os cegos que se encaminham ao banquete, porque as pessoas mais óbvias da lista de convidados estão preocupadas com outros assuntos.

Então Brianda deu um salto de sua almofada e falou rápido, como se não quisesse ser interrompida por ninguém: temos um acordo. Seu argumento é: se um louco pudesse ter transplantado o cérebro lesado por um outro que fosse são, com certeza pensaria de modo correto. Isto porque a desordem e a deterioração dos órgãos não lesam a inteligência em si mesma, mas somente a privam das condições e meios requeridos para o seu funcionamento normal. Pode-se dizer, então, que o cérebro é a interface entre o espírito e o mundo material.

Oba, não estou só. Aristóteles e os nossos ancestrais não admitiam nas pessoas dois princípios de vida, mas afirmavam que além da atividade consciente e psicológica, a existência inteligente possui também a faculdade de presidir às funções fisiológicas. Desta maneira, a existência seria o único princípio de toda a atividade vital das pessoas -- da vida vegetativa e sensitiva mas, também, da vida propriamente espiritual. A correlação íntima que existe entre as diversas operações da existência pensante, inteligência, sensibilidade e vontade, prova a unidade substancial do princípio de onde elas se originam. Esta mesma correlação se verifica entre as operações as funções orgânicas e psicológicas.

E nesse momento, o descendente fez um dueto com o avô: Uma comoção violenta da existência pode parar a circulação do sangue ou pode gerar o medo que paralisa. Mas pode também, ao contrário, levar à confiança que sustenta as forças físicas. Ou seja, os distúrbios físicos atuam sobre nosso estado moral, e isso é reciproco. Demonstrada a união da existência, como se faz esta união?

E eu acrescento: A pessoa não existe fora da existência. Da existência, o corpo recebe a sua unidade, a organização, a vida e atividades próprias, numa palavra, tudo o que faz dele humano. Assim, o corpo apenas se separa da existência pela morte, quando perde todos estes caracteres, todas as suas determinações específicas, dissolvendo-se nos elementos químicos de que foi formado. Quanto à existência, sem dúvida, existirá, na sua trajetória que engloba todos os humanos, sem corpo não há as faculdades que exigem o concurso dos órgãos corporais, como a imaginação, a percepção externa e a sensibilidade. Deste modo, o corpo é a matéria e a existência é a forma, e a união do corpo com a existência constrói um todo substancial e verdadeiro. É esta união no ser que faz da existência e do corpo um só princípio de ação, que faz com que não haja ação humana na qual o corpo não faça a sua parte, nem ação humana tão humilde e material que não repercuta na existência.

Talvez por não ter tantas oportunidades de uma conversa franca com Yoffe, devido as limitações do espaço-tempo, o descendente se mostrou curioso diante dos argumentos do avô. E disse agora com carinho: É certo, entendo, com a morte o corpo se dissolve. Acontecerá o mesmo com a existência e morreremos inteiramente? O que é a eternidade?

Vejo essa pergunta, querido descendente, como um clamor da existência. Considero, e desejo que essas reflexões ecoem através de todos vocês que leem, pensam e agem, que no eterno está a sobrevivência pessoal e substancial, a identidade permanente da existência, que conserva as suas faculdades de amar e conhecer, sem as quais não há felicidade humana. No eterno, a existência mantém a consciência da sua identidade, com as lembranças e responsabilidades do ontem que permanece, sem as quais não poderia haver nem recompensa nem julgamento: em uma palavra, não existiria o princípio da justiça do eterno. O corpo se desagrega e se dissolve logo que se separa do seu princípio de unidade, da sua forma substancial que é a existência. A existência do ser como é não pode decompor-se, nem se desagregar, permanece no coração do eterno. Este é o argumento ontológico da premissa de que a existência se projeta na eternidade. Se há o eterno e sua lei moral, a justiça exige que o crime seja punido e a virtude seja recompensada.


Neste mundo, nem a natureza, nem a sociedade, nem a própria consciência dispõem de atributos suficientes para recompensar plenamente a virtude ou punir adequadamente o vício. É necessário, portanto, que haja projeção da existência onde a justiça seja plenamente satisfeita e a ordem seja estabelecida. Este é o argumento moral, que demonstra a projeção da existência, mas não prova que esta existência seja ilimitada na sua duração. O argumento psicológico, que prova a perseverança da existência humana, assenta sobre o princípio de que o eterno não se contradiz, por isso ao dar um fim a um ser, lhe dá também os meios de o atingir. Tudo na natureza do humano aponta para o fato de que é criado para atingir a felicidade. Mas, se não pode alcançá-la neste cosmo, deve haver outra realidade onde tal projeto se concretize. E como a felicidade pressupõe expansão sem limites, segue-se que a realidade futura teria esta qualidade.