mardi 27 janvier 2015
Amar e ser amado
Diferentes interpretações de um mesmo tema
Jorge Pinheiro
Ai flores, ai,
flores do verde pio,
se sabedes novas do meu amigo?
ai, Deus, e u é?
se sabedes novas do meu amigo?
ai, Deus, e u é?
Ai flores, ai flores do verde
ramo,
aquel que mentiu do que pôs comigo?
ai, Deus, e u é?
aquel que mentiu do que pôs comigo?
ai, Deus, e u é?
[Julião Bolseiro, Cantiga de
amigo, do cancioneiro de Dom Diniz].
O Cântico dos
Cânticos é o
único livro da Bíblia que tem o amor como seu tema exclusivo. Seu título
poderia ser traduzido como A mais bela
das canções, o que faz juz a esta que é uma das mais bem escritas estórias
de amor de toda a literatura universal. Ao traduzir a rica imaginação oriental,
o texto fala de amada e amante, interligando os quadros com coros e falas de
grupos de personagens, como as filhas de
Jerusalém e os guardas.
O texto tem forte conteúdo erótico, parte da realidade
vivida por uma jovem camponesa, mostrando que estamos diante de um exemplar da
dramaturgia do período áureo da literatura poética hebraica. Várias
interpretações têm sido apresentadas para O
Cântico dos Cânticos.
Aqui, faremos a leitura do Cântico dos Cânticos
partindo de um conselho do intelectual inglês Daniel de Morley em suas memórias
de viagens, no século 12, conforme citado por Jacques Le Goff (Os
intelectuais na idade média, Lisboa, Editorial Estúdios Cor, 1973, pp. 25-26).
Morley conta que seguiu “as Artes, que esclarecem as
Escrituras, em vez de as saudar à passagem ou de as evitar, fazendo resumos.
Então, como nos dias de hoje é em Toledo que o ensino dos Árabes, que consiste,
quase exclusivamente nas artes do quadrivium, é dispensado às multidões,
apressei-me a partir, para aí ouvir as lições dos mais sábios filósofos do
mundo. Tendo alguns amigos pedido para eu voltar e tendo sido convidado a
deixar a Espanha, vim para Inglaterra com uma preciosa quantidade de livros”.
“Que ninguém se indigne se, tratando da criação do mundo,
eu invoco o testemunho não dos Padres da Igreja, mas de filósofos pagãos,
porque, ainda que estes não figurem entre os fiéis, algumas das suas palavras,
desde que sejam cheias de fé, devem ser incorporadas no nosso ensino. Nós que
também fomos misticamente libertados do Egito, o Senhor ordenou-nos que
despojássemos os Egípcios dos seus tesouros, enriquecendo com eles os Hebreus.
Despojemos, pois, conforme o desejo do Senhor, e com a sua ajuda, os filósofos
da sua sabedoria e da sua eloqüência, despojemos esses infiéis de modo a
enriquecermo-nos com os seus despojos na fidelidade”.
As
cantigas de amigo
Assim, queremos aprender com as cantigas de amigo, do
medieval ibérico, por terem semelhanças que podem nos ajudar a entender a
poesia de Cantares. As cantigas de amigo eram de autoria masculina,
assim como Cantares e, também, apresentavam um eu lírico feminino.
Para entender esta questão do
eu lírico feminino, é bom ler Magadelene Luise Frettloeh, O amor é forte
como a morte: uma leitura de Cânticos dos Cânticos com olhos de mulher (in:
Fragmentos de Cultura, Instituto de Filosofia e Teologia de Goiás, IFITEG,
Goiânia/GO, Brasil, 2002, vol.12, no. 4, pp .633-642).
Ela explica que é necessário
ler Cântico dos Cânticos em perspectiva de gênero, pois neste livro
canta-se o amor espontâneo entre uma mulher e um homem, um amor que é forte
como a morte. E que nos poemas do início e do final do livro há um protagonismo
feminino: “no decorrer da história da interpretação tentou-se soterrar essa
herança; hoje importa redescobri-la".
Assim, encontramos tanto no Cântico dos Cânticos como nas Cantigas de Amigo a questão do amante
ausente: a amada estava a espera dele ou tinha sido abandonada. Ambas poéticas
traduzem a força do Eros humano. Outra característica marcada das cantigas de
amigo era o fato de estar dirigida às amigas, a mãe ou irmãs, ou as forças da
natureza e, em alguns casos, a Deus. A ambientação, rural ou urbana, estava
sempre distante do castelo do senhor feudal.
Um dos maiores cancioneiros do medieval ibérico foi Julião
Bolseiro e um de seus poemas, que intercala este artigo, expressa esse eu
lírico feminino, que se lamenta porque o amante desapareceu e ela não sabe onde
se encontra.
O amor entre os dois, diferentemente do amor cortês,
vigiado, expressa a força do natural e espontâneo no amor humano, pois a
cantiga parece insinuar que houve um relacionamento físico entre os amantes.
Nesta cantiga de amigo, a ambientação é rural, e não somente
distante do castelo do senhor feudal, mas com presença marcante da natureza.
Se sabedes novas do meu amado
aquel que mentiu do que mi á jurado?
ai, Deus, e u é?
aquel que mentiu do que mi á jurado?
ai, Deus, e u é?
Vós me preguntades polo voss'
amigo?
E eu ben vos digo que é são e vivo:
ai, Deus, e u é?
E eu ben vos digo que é são e vivo:
ai, Deus, e u é?
Salomão,
o herói
Uma interpretação, quase unânime entre antigos rabinos e
os pais da Igreja, considera o rei Salomão o herói da estória. Dentro desta
perspectiva, o roteiro seria mais ou menos assim: o rei possuía um vinhedo na
região de Efraim, 80 quilômetros ao norte de Jerusalém (8:11). Essas terras
estavam arrendadas (8:11) a uma viúva e seus quatro filhos (dois rapazes e duas
moças -- cf. 6:13, 1:5 e 6). A Sulamita, a mais bonita das filhas, era
responsável pela casa e também cuidava dos rebanhos (1:8).
Certo dia, o rei, disfarçado para não ser reconhecido,
visitou o vinhedo e ficou impressionado com a beleza da moça. Ela tomou Salomão
por um pastor de ovelhas e este lhe dirigiu palavras de amor, prometendo voltar
no futuro e lhe trazer presentes (1:8-11). À noite, a moça sonhava com a volta
do amado, chegando mesmo, em determinado momento a pensar que ele estava
chegando (3:1). Mais tarde, ele volta. Mas, agora, não como camponês e sim como
rei de Israel (3:6 e 7). Segue-se, então, o casamento e seus desdobramentos.
Partindo desse roteiro temos cinco poemas:
Título e prólogo - Cap. 1:1 a 1:4
1. O desejo e a satisfação da jovem camponesa - Caps. 1:5
a 2:7
2. A visita do amado e o sonho da moça - Caps. 2:8 a 3:5
3. A festa de casamento e as canções do rei - Caps. 3:6 a
5:1
4. A tardia recepção da amada e sua busca prolongada -
Caps. 5:2 a 6:3
5. Sulamita e seu amado conversam - Caps. 6:4 a 8:4.
Epílogo e últimas adições - Cap. 8:5 a 8:14.
Para o teólogo chileno Samuel
Fernández Eysaguirre. A
manifestis, ad occulta, Las realidades visibles como único camino hacia las
invisibles en el comentario al Cantar de los Cantares de Orígenes (in: Anales de la Facultad de Teología. Universidad
Católica - Campus Oriente, Santiago, Chile, 2000, vol. 51, no. 2, pp.135-159) a
leitura literalista levou os teólogos da Igreja antiga a um beco sem saída:
"Una lectura meramente literal del Cantar de
los Cantares presentaba graves dificultades a la sensibilidad religiosa de
la antigüedad. El libro exalta, al menos en su sentido inmediato, el amor
humano y abunda, como pocos textos bíblicos, en descripciones de los miembros
del cuerpo. Y por otra parte, el Cantar no menciona explícitamente a
Dios. El sentido literal del texto no parecía edificar moralmente a sus
lectores. Era posible preguntarse ¿qué hace en las Escrituras un libro que no
habla de Dios? Las serias dificultades que presentaba su lectura literal,
sumadas al carácter poético del Cantar, favorecían fuertemente una
interpretación de tipo simbólica, interpretación que se impuso tanto en el
ámbito judío como cristiano. Las dificultades recién descritas llevaron a
algunos rabinos a dudar de la canonicidad del Cantar...".
Vós me preguntades
polo voss' amado?
E eu ben vos digo que é viv' e são:
ai, Deus, e u é?
E eu ben vos digo que é viv' e são:
ai, Deus, e u é?
E eu ben vos digo que é são e
vivo
e seerá vosc' ant' o prazo saido:
ai, Deus, e u é?
e seerá vosc' ant' o prazo saido:
ai, Deus, e u é?
E eu ben vos digo que é viv' e
são
e s[e]erá vosc' ant' o prazo passado:
ai, Deus, e u é?
e s[e]erá vosc' ant' o prazo passado:
ai, Deus, e u é?
Salomão, o vilão
Outra interpretação, formulada pelo teólogo Heinrich
Ewald, no século 19, vê no amante um pastor de quem a jovem estava noiva, antes
de ser capturada e levada para o harém de Salomão, por um de seus servos.
Depois de ter resistido com sucesso a todas as tentativas do rei para
conquistar sua afeição, ela é libertada e se reúne a seu amado, com quem
aparece na cena final.
A jovem relembra o amado (1:2 e 3). Pede que ele a leve de
volta logo, pois o rei a introduziu nas seduções da corte (1:4). Suas
recordações do amado a perturbam (1:7). O rei tenta seduzi-la com jóias (1:11)
e perfumes (1:12), mas ela prefere o cheiro do campo que lembra o corpo do
amado (1:13 e 14). A moça se recorda de uma visita feita por ele e de um sonho
que se seguiu (2:8 - 3:5). Depois disso, ela é novamente visitada e louvada por
Salomão (3:6 - 4:7). Diante da persistente ofensiva do rei, antecipa seu
casamento com o jovem camponês (4:8 - 5:1). Sua vida e seus sonhos estão
impregnados com as lembranças do amado (5:2 - 6:3). Salomão mais uma vez tenta
conquistar Sulamita (6:4 - 7:9). Ela, no entanto, mantém sua fidelidade ao
pastor e resiste às tentativas do rei (7:10 - 8:3). Diante disso, Salomão a
liberta, verificando que é impossível conquistar a moça.
Dentro desta perspectiva, é
interessante ler Cântico dos Cânticos, O fogo e a ternura de Ney Brasil
Pereira e Pablo Andiñach, (Col. Comentário Bíblico, Petrópolis/São Leopoldo,
Editora Vozes/Editora Sinodal, 1998, 128p., in: Estudos Bíblicos. Editora
Vozes, Petrópolis/RJ, Brasil, 2000. no. 65, p9.81-84).
Para os dois teólogos, os
poemas do Cântico foram redigidos, em sua redação final, por uma mulher. Seria,
portanto, o único livro bíblico de uma autora. Isso dá ao comentário um cunho
especial, uma vez que se assume que ela, a autora, tenha deixado nos poemas sua
marca feminina e seu modo peculiar de viver a sexualidade e a vida. Ao mesmo
tempo, a autora teria feito uma crítica sutil, mas firme, ao modelo salomônico
de sexualidade, marcado pela frivolidade e a poligamia.
A partir dessa interpretação temos outro roteiro:
1. No palácio, a moça relembra o amado e é assediada por
Salomão - Caps. 1:1 a 2:7
2. Lembra-se de uma visita do jovem e de um sonho - Caps.
2:8 a 3:5
3. Sulamita mais uma vez é visitada e elogiada por Salomão
- Caps. 3:6 a 4:7
4. Resiste às investidas do rei e antecipa seu casamento -
Caps. 4:8 a 5:1
5. A moça relata outro sonho e descreve seu amado - Caps.
5:2 a 6:3
6. Salomão mais uma vez tenta conquistar Sulamita - Caps.
6:4 a 7:9
7. Saudosa e fiel, a moça anseia a companhia do amado -
Caps. 7:10 a 8:3
8. Enfim, recebe alforria, e retorna para casa com seu
esposo - Cap. 8:4 a 8:14.
O amor é mais forte
Em meio às várias
interpretações, é bom relembrar, como diz Isidoro Mazzarolo, Cântico dos
Cânticos - Uma leitura política do amor (1a. ed., Mazzarolo
Editor, Rio de Janeiro/RJ, Brasil, 2002. 249 p.), que "o livro dos Cânticos
está entre as grandes obras da sabedoria bíblica ao propor uma visão do ser
humano, homem e mulher, como duas criaturas colocadas no universo e dotadas de
liberdade e dignidade".
Assim, a mensagem de amor
permanece. E talvez possamos dizer, como nos lembram as Cantigas de Amigo, que
esta é a grande mensagem do livro.
samedi 24 janvier 2015
Política i religió
Yoffe ShemTov
És Doctor postgrau en Ciències de la religió de la Universidade Metodista de São Paulo (2011) i la Universidade Presbiteriana Mackenzie (2008), Doctor en Ciències de la religió de la Universidade Metodista de São Paulo (2006), Màster en Ciències de la religió de la Universidade Metodista de São Paulo (2001) i llicenciat en teologia per la Baptista teològica College a São Paulo (2001). Professor a temps complet a São Paulo Bautista col legi teològica i periodista professional. Actes a l'àrea de Ciències de la religió, especialitzada en la relació entre política i religió; filosofia, teologia i cristianisme.
lundi 19 janvier 2015
O menino e o rifle
Fomos chamados à liberdade. O que significa isso?
Bem, talvez falar de corvos, gaviões e passarinhos ajude...
O menino e o rifle
Jorge Pinheiro
Em 1965, Pier Paolo Pasolini, um
dos gênios do cinema italiano, filmou Gaviões e passarinhos, história
que vi como metáfora sobre liberdade e consciência política. Numa estrada vazia, um senhor (Totó) e
seu filho (Ninetto Davoli) encontram um corvo que fala. O corvo os transforma
em dois monges franciscanos e eles são obrigados a pregar para gaviões e
passarinhos. O próprio Pasolini diria:
“Nunca criei um filme tão desarmado, frágil e delicado
como esse. Ele não se parece com meus filmes anteriores e não se parece com
nenhum outro filme... Seu surrealismo tem pouco a ver com o surrealismo
histórico, mas fundamentalmente com o surrealismo das fábulas”.
O filme é uma parábola sobre a crise do socialismo,
representada pelo corvo, na Itália dos anos 50. “Totó e Ninetto representam os
italianos inocentes, que não se envolvem na história, que conquistam a primeira
noção de consciência ao encontrar o marxismo no semblante do corvo”, afirmou
Pasolini.
Ter vivido parte da infância em
fazenda, no sul de Minas, foi um privilégio que marcou minha vida, não somente
fornecendo memórias para a velhice, mas plasmando conteúdo que amo e defendo: a
liberdade.
Talvez seja essa compreensão
telúrica da liberdade, que fez de mim, já na alta maturidade, batista, e me
permitiu construir uma ponte entre o pensamento liberal inglês e o socialismo
religioso de Paul Tillich.
Voltemos à minha infância. Meu tio Ary tinha uma
Winchester 44 na casa da fazenda. E eu olhava para aquela arma com respeito e
paixão. Eu e milhares de pessoas mundo afora.
Os rifles Winchester 44,
conhecidos como papo amarelo, foram populares no interior do Brasil e
nos Estados Unidos: símbolo de uma época, como a pistola Colt e os cavalos quarto de milha.
Conta-se que Lampião, quando
começou sua vida guerrilheira, usava uma Winchester 44, que os sertanejos
chamavam de cruzeta. Segundo o historiador
Frederico Pernambucano de Mello:
Lampião tinha uma paixão pelo
rifle cruzeta, não somente por ser arma de estréia, mas também por ter
permitido criar um processo de aceleração de tiros. Ele conseguiu transformar a
arma em um modelo automático. A transformação permitia que o rifle, quando
usado, produzisse um clarão que, segundo os sertanejos, alumiava como um
lampião.
A Winchester era mágica e eu
amava ver meu tio usando-a contra alvos imóveis: latas velhas e garrafas. Mas,
certa tarde, um gavião começou a piar e a fazer círculos no céu. O gavião,
accipiter nisus, é uma ave de rapina pequena, de cauda comprida e
vôo certeiro. Pia forte, assustando suas presas, geralmente pequenos
pássaros e pintos soltos na pastagem.
E era isso mesmo que aquele
gavião estava planejando: atacar os pintinhos que, juntos com a galinha,
corriam de um lado para o outro, em pânico.
Meu tio pegou a Winchester, que
reinava numa das paredes da sala, e me chamou. Fomos para a varanda e ele
começou a seguir os círculos do gavião. Esperou. Quando o gavião mergulhou em
direção aos pintos ele atirou.
E eu vi o gavião explodir em
penas.
Onde nos leva a liberdade quando
não temos consciência do que ela significa? A
vida em liberdade significa a aceitação da exigência incondicional de realizar
a verdade e fazer o bem.
Ao
reconhecer a existência de uma situação-limite, de ameaça à vida e à
existência, devemos entender que:
(1)
não podemos virar as costas ao mundo; (2) aquilo que é eterno deve ser expresso
em relação à situação presente; (3) a realidade da graça deve ser expressa com
ousadia e risco; (4) e o poder transformador do Evangelho deve expressar uma fé
não superficial, que vai à raiz.
Por
isso, como na parábola de Pasolini, somos chamados a pregar para gaviões e
passarinhos. Somos livres em Cristo: chamados a viver o desafio incondicional
de realizar a verdade e fazer o bem.
samedi 17 janvier 2015
Olhos azuis
Memórias de Jorge
Pinheiro, no início dos anos 1960, quando adolescente, em Copacabana.
Os
olhos azuis de Jussara
“Já que (...) não posso infundir
a fé no coração de ninguém, não posso, nem devo obrigar ou coagir ninguém a
isso, pois Deus opera isso sozinho e vem habitar anteriormente no coração. Por
isso, se deve deixar a palavra livre e não querer juntar nossa obra a ela: nós
certamente temos o ius verbi, mas não a executionem. Cabe-nos
pregar a palavra, mas as conseqüências pertencem unicamente ao agrado de Deus”. Lutero, reformador do século 16.
Rua
Santa Clara. Posto 4
O sol está de derreter asfalto.
Dá para fritar ovos na avenida Atlântica. Tio Walter joga peteca com os amigos.
E Lolita, minha jovem tia, de maiô cavado nas costas, lembra a personagem de
Nabukov, ao menos na minha cabeça de adolescente.
-- Luís, passa Dagelle nas minhas
costas.
Obediente, gosto dessa mistura do
cheiro do bronzeador com a maresia, cumpro à risca, devagar, a ordem recebida.
Meus primos Marcus e Júlio, à
beira d’água, fazem seus castelos de areia, que a arrebentação, feroz
realidade, desfaz um a um. Como formigas insistem, gritam e dançam, quando uma
onda maior alisa a areia.
Maria, minha mãe, fez para mim um
calção que é uma bandeira. Pegou uma blusa estampada de rosas grandes e como
costura muito bem fez um calção lindo, o mais colorido de toda a praia. Mas
caiu bem.
E minha turma, uma gang
atribulada, quase todos do Externato Duque de Caxias, elogiou. Minha namorada,
Jussara, me agarrou pelo braço e saímos... Eu com ela, ela com o rebelde dela.
Jussara tem 14 anos, faz balé e
mora na rua Serzedelo Correia. Eu tenho 16 e fui aluno de latim do professor
Pompílio da Hora no Atheneu São Luís, no Catete. O velho Pompílio me adorava,
eu era o melhor aluno de latim que ele tinha. Mas, certa vez, me expulsou da
sala. E me fez sair pela janela, aos gritos:
-- Você não é digno de sair pela
porta.
Pulei. E quando já estava fora,
me fez voltar à sala, com um ensinamento estranho:
-- Não viva de tal maneira, que
possam dizer para você: “Puxa, nunca imaginei que você fizesse isso”.
Pompílio, primeiro negro
brasileiro a ser nomeado embaixador na África, dando lições de transgressão a
seu pupilo.
Jussara me agarra pela cintura,
rindo e apontando para o mar. A gang brinca de boto furando as ondas...
Morena de olhos azuis, ela não é
bonita, é linda. Minha vida toda se resume nisso: futebol de areia todas as
tardes depois das quatro, toda televisão que dá para ver, muito livro e Jussara
para me levar ao cinema. E saímos na maior pinta. Eu de rancheira e camisa de
ban-lon branca e ela de vestido de fustão rodado. Depois do cinema, comemos waffles
ali na avenida Nossa Senhora de Copacabana.
Os anos 60 começam a desabrochar.
Lá em casa, Walter e Lolita deram adeus ao JK, um pouco preocupados com os ares
que sopram. Tio Walter prefere o Lott, mas o povo vai de Jânio. O jeitão do
magrela não me agrada. É o homem da caspa de talco, do sanduíche de mortadela e
da Vila Maria, em São Paulo.
Toda minha família sempre foi
juscelinista, até o tio Walter que é austríaco e veio para cá no meio da
guerra. Magro, um metro e noventa, cabelos lisos e negros, foi atleta do
Flamengo. Remava. Foi capataz de fazenda. Levou um tiro de um peão, na barriga.
Casou-se com minha tia Iracema, que era estilista e dona de loja no centro.
Depois da morte de Iracema veio Lolita, filha de mãe espanhola e pai italiano.
Bailarina. É vinte anos mais nova que o Walter. E doze anos mais velha do que
eu. É amiga, confidente, tia e, às vezes, mãe. Esta última função é a que menos
gosto.
Alguns anos depois da morte de
meu pai, Walter e Lolita me adotaram. Os dois filhos, Marcus e Júlio, vieram
mais tarde.
Hoje, tio Walter tem loja de moda,
um Jaguar 53, usa tanga na praia, um escândalo que Lolita aprova, e joga
religiosamente peteca com os amigos domingo de manhã aqui no Posto 4, em
Copacabana.
-- No que você está pensando?
Está tão calado – pergunta Jussara.
-- O azul dos teus olhos é mais
bonito que o azulão besta do mar.
-- Bobo!
-- É verdade. Prefiro esse azul
aqui àquele lá.
-- Bobo duas vezes. Aquele lá é
maior. Olha, nem fim tem...
-- É, mais o teu eu posso levar
comigo.
-- Só se eu deixar...
-- E você deixa?
-- Depende...
-- De que?
-- Ué, para onde?...
-- Quero o azul dos teus olhos
como farol, que baila, na ilha, no meio do mar...
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