dimanche 2 décembre 2018

Notas antropofágicas ... Jean de Léry e a questão huguenote-tupinambá

Jean de Léry, meu irmão: 
notas antropofágicas sobre a questão Huguenote-Tupinambá

Jorge Pinheiro dos Santos*

Resumo
Neste artigo – “Jean de Léry, meu irmão. Notas antropofágicas sobre a questão huguenote-tupi- nambá” – procuramos analisar os encontros e desencontros do pensamento reformado calvinista com a cultura tupi-guarani nas ilhas de Laje e Sirigipe, na baía de Guanabara, costa do Rio de Janeiro, entre os anos de 1555 e 1560, a partir do texto de Jean de Léry, L’Histoire d’un Voyage faict en la terre du Brésil, singular e fundamental para a compreensão daquele momento histórico.

Palavras-chave: Calvinismo; questão huguenote/tupinambá; Jean de Léry.  

Jean de Léry, my brother: Anthropophagi Notes on
Huguenote-Tupinamba Question

Abstract
In this research – “Jean de Lery, my brother. Notes on the question anthropophagic Huguenot-Tupinambá” we tried to analyze the similarities and differences of thought with the reformed Calvinist and Tupi-Guarani culture on the islands of Laje and Sirigipe in Guanabara Bay, Rio de Janeiro coast, between the years 1555 and 1560, from the text of Jean de Lery, L’Histoire d’un Voyage en la Terre du faict Brésil, unique and fundamental to the understanding of that historical moment. It should be emphasized that the book of Lery, since its first edition in 1578 (La Rochelle, Antoine Chuppin, MDLXXVIII), with reprints in French and Latin in 1585, 1586, 1592, in “Collection des Grands Voyages” by Théodore Bry, 1594, 1599, 1600), is until now a publishing success.

Keywords: Calvinism; huguenote/tupinamba question; Jean de Léry
* Dr. em Ciências da religião pela Universidade Metodista de São Paulo e Prof. da Faculdade Teológica Batista de São Paulo
Estudos de Religião, v. 25, n. 41, 152-164, jul./dez. 2011 • ISSN Impresso: 0103-801X – Eletrônico: 2176-1078
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Jean de Léry, mi Hermano: Notas antropofágicas sobre
la cuestión hugonote-tupinambá Resumen
En este artículo -- “Jean de Léry, mi hermano. Notas antropofágicas sobre la cues- tión huguenote-tupinambá” -- pretendemos analizar las similitudes y diferencias del pensamiento de la Reforma calvinista con la cultura tupí-guaraní en las islas de Laje y Sirigipe en la bahía de Guanabara, en la costa del Río de Janeiro, entre los años 1555 y 1560, a partir del texto de Jean de Léry, L’Histoire d’un Voyage en la Terre du faict Brésil, singular y fundamental para la comprensión de aquél momento histórico. Pabras clave: Calvinismo; cuestión hugonote/tupinambá; Jean de Léry.

Nota Um
Pensar o século XVI, o fim da Idade Média e o projeto colonial francês no litoral do Rio de Janeiro, nos leva à pergunta sobre um desencontro civili- zatório. Nem sempre é necessário perguntar-se pelos rastros de um fenômeno histórico, mas quando não temos respostas para uma realidade que se apre- senta nova, então é necessário sair atrás desses rastros: é, então, necessário procurar por tais rastros do pensamento político-religioso nas pessoas e nas comunidades. E é esse caminho, que parte da Teologia da Cultura, que nos direciona na análise dos tupinambás.
Sem uma utopia do humano, de suas forças e tensões, não se pode dizer nada sobre as fundações políticas do pensamento e do ser religioso. Sem uma teoria do humano não se pode construir uma teoria das orientações políticas e religiosas. Mas, o tupinambá, e aqui estamos falando da cultura tupi-guarani, embora colado à mata, é pessoa e, por isso, ser dividido. Não importa saber onde termina a mata e onde começa o tupinambá, não importa que a passa- gem entre mata e tupinambá se tenha feito através de transições ou por um salto. O importante é que em determinado momento, a diferença ficou clara.
O tupinambá tem consciência de si mesmo, distingue-se da mata en- quanto ser que se desdobra, tornando-se pessoa consciente de si mesma. A mata ignora esta divisão, por isso o tupinambá não é uma combinação de duas partes autônomas, tais como mata e corpo, mas um só ser, fendido em sua unidade. Estas determinações gerais levam a algumas considerações no que se refere à pesquisa do tupinambá e da cultura tupi-guarani. Elas negam qualquer dedução da cultura tupi-guarani enquanto puro movimento reflexo frente à mata.
Porque os pensamentos políticos e religiosos vêm do ser humano en- quanto unidade, a relação entre huguenote e tupinambá está enraizada no ser que ambos são. É por isso que não se pode entender essa correlação
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entre pensamento huguenote e cultura tupi-guarani sem contextualizar seu enraizamento no ser humano enquanto ser imbricado a pulsões e interesses, constrangimentos e aspirações constituintes do humano. Mas também é im- possível separar o huguenote de sua consciência, ou ver o tupinambá como simples subproduto do ser tupi-guarani.

Nota Dois
A consciência estrutura o ser huguenote enquanto ser social, em cada um de seus elementos, inclusive as sensações pulsantes mais primárias. Mas, quando se tenta desfazer laços passa-se ao largo da primeira e mais importan- te característica daquilo que é humano, de que há uma consciência inadequada ao ser, uma falsa consciência, que, no entanto, não invalida a unidade do ser e da consciência. Isto porque não é possível haver falsa consciência quando o que é designado não é conhecido.
A consciência ajustada é uma consciência que emerge da pessoa e ao mesmo tempo a determina. Não pode ser uma coisa sem ser a outra, porque o humano é uma unidade na divisão, e desta unidade nascem as raízes do pensamento político e religioso. O ser humano, quer seja o huguenote recém desembarcado no litoral do Rio de Janeiro ou o tupinambá estabelecido na mata atlântica, se encontra enquanto realidade dada, assim como seu ambiente.

Nota Três
O desafio para quem analisa símbolos,1 quer ideológicos, quer utópi- cos, é o próprio exercício da leitura. O desejo de conservar a linguagem, como ela se nos apresenta numa primeira leitura, pode levar a uma solução oposta àquela que se pretende. Considerar o simbólico como desprovido de relevância é, em última instância, separar ideologia e utopia. Um exame da ideologia e da utopia, afirma Ricoeur, revela duas características comuns aos dois fenômenos.
Em primeiro lugar, ambos estão no ponto mais alto dos fenômenos ambíguos. Cada um tem um lado negativo e um lado positivo, destrutivo e construtivo, uma dimensão constitutiva e uma dimensão patológica. Em segundo lugar, têm em comum que em ambos o aspecto patológico vem em primeiro lugar, o que nos leva a proceder de forma regressiva, a partir da superfície das coisas2.
Mas ideologia e utopia são constrututoras da imaginação social e estão
presentes na realidade social, assim quando uma tradição passa a ser apenas
um conjunto fechado costumamos dizer que compreendemos a referida
TILLICH, Paul, Teologia da Cultura, pp. 100-104. RICOEUR, Paul, L ́idéologie et utopie, p. 17.
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tradição. Mas ao fazer assim, na verdade, eliminamos a possibilidade ir além da superfície de tal tradição e restaurar seu emaranhado de intenções. Lo- gicamente, uma leitura tem como ponto de partida e exige como garantia a compreensão do primeiro discurso.

Nota Quatro
O pensamento de liberdade entre os tupis-guaranis repousava nas origens, traduzidas nas revelações de seus heróis civilizadores3: fundadores míticos que lhes transmitiram conhecimentos e formataram afinidades sociais entre as diferentes tribos do grupo tupi-guarani. Um desses heróis, presente na tradição ancestral tupinambá era Monan, que a leitura francesa disse se assemelhar ao Deus judaico-cristão. Mas, ao lado de Monan existia outro, designado Maire, alguém que muda as coisas. Seria conhecedor daquilo que está oculto às pessoas e foi essa parceria entre Monan e Maire que teria in- troduzido a agricultura entre os ancestrais dos tupinambás.
Monan e Maire deram aos ancestrais os vegetais necessários para a alimentação dos tupinambás e lhes revelaram os segredos das plantas alimen- tícias, separando os vegetais úteis dos nocivos, mostrando como poderiam usá-los, inclusive, como medicina. Mas segundo essa leitura cristã, também coube à dualidade Monan-Maire o papel civilizador no que tange aos costu- mes e à construção de uma ética. O fato de Monan-Maire ou Maire-Monan aparecerem sempre juntos, como correlação necessária, também possibilitou a leitura de que dentro da mitologia tupinambá estaríamos diante de um herói único, fusão de duas personalidades complementares.
É importante salientar o papel transformador de costumes desse super- -herói de duas faces que, por vezes, levantou sobre si a cólera dos homens que recebiam o seu castigo. A vida de Maire-Monan foi rica em peripécias e fruto de sua passagem marcante e contraditória foi condenado à morte. Conta-se que o convidaram para uma festa e o obrigaram a saltar por cima de três fogueiras. Depois de ter sido bem sucedido na primeira, Maire-Monan desmaiou na segunda e foi consumido pelas chamas. O estalo de seu crânio queimando produziu o trovão, enquanto as labaredas da fogueira criavam raios. Essas mesmas virtudes de que se revestiam a memória de Maire-Monan foram encontradas depois entre os tupis na figura de Pai Çumé.4
Os dados coletados por Nóbrega e Simão de Vasconcelos viam em
Çumé a figura de Tomé, o apóstolo da dúvida, que há dois mil anos teria
sido um herói civilizador em terras dessa ocidentalidade. A tradição católica
antiga nos fala de Tomé como o apóstolo que teria percorrido a Índia, a
THEVET, André in MÉTRAUX, Alfred, A Religião dos Tupinambás, pp. 197-201. PINHEIRO, Jorge, Deus é brasileiro, as brasilidades e o Reino de Deus, pp. 102-105.
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China e algumas ilhas da Oceania. Entretanto, o nome deste apóstolo também aparece entre os nossos tupis e isso nos serve de útil indicação.
A questão dos heróis civilizadores nos remete à questão da espiritua- lidade dos brasis, mas reconstruí-la não é fácil, primeiro porque se trata de diferentes povos, com culturas diversas, segundo porque, devido à movimen- tação destes povos pelo território brasileiro, os seus costumes e também a suas crenças sofreram modificações através do tempo.

Nota Cinco
A intenção francesa era fundar uma colônia no Brasil, a fim de fazer frente a expansão espanhola e portuguesa nas Índias Ocidentais e no Novo Mundo, onde calvinistas pudessem praticar o seu catolicismo reformado e evangelizar os brasis. Três navios partiram de Le Havre, com mais de quatrocentos colonos, a maioria ex-presidiários indultados por se juntarem à aventura de Villegagnon. E assim chegaram ao Brasil em novembro de 1555. Villegagnon construiu, então, o forte Coligny em uma ilha na baía de Guanabara e passou a usar o título de vice-rei da França Antártica.
As relações com os brasis da região se mostraram tão boas, que Ville- gagnon e os colonos passaram a frequentar as festas, travaram contato com a estrutura social igualitária5 dos brasis, e muitos colonos acabaram por optar por essa nova forma de vida.
A França Antártica a princípio foi tolerante com os costumes dos brasis e as opções dos colonos, mas, com o tempo, Villegagnon percebeu que estava a perder seus homens. Estes passaram a ter companheiras tupinambás, a viver nas aldeias e adotavam a cultura dos brasis. Foi, então, que Villegagnon, por razões militares e de ocupação do território, proibiu todo comércio com os brasis, os acasalamentos e exigiu que seus colonos abandonassem as aldeias e voltassem ao forte. Ora, exigência quase impossível de ser respeitada, afinal aqueles homens tinham sido libertos das prisões franceses com a proposta de viajar para um novo mundo de aventuras inimagináveis.
Segundo Lestringant, a rebelião eclodiu no início de fevereiro de 1556, apenas três meses após a chegada de Villegagnon à baía de Guanabara. Ela foi liderada por um normando, que tinha sido obrigado a abandonar sua mulher brasil por não ter-se casado formalmente com ela. A disciplina rigo- rosa imposta às tropas de mercenários, ex-condenados e aventureiros, que formaram a maior parte da colônia, aliada à comida ruim, ao trabalho pesado de terraplenagem da ilha e à proibição, sob da pena de morte, de envolverem- -se com as brasis que cruzavam nuas em canoas as águas limítrofes ao forte,

5 RIBEIRO, Darcy, O povo brasileiro, A formação e o sentido do Brasil, p. 34.

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levaram à conspiração contra Villegagnon.6 Não podemos nos esquecer que esses franceses tinham encontrado nessa França Antártica, com espaços sem fim, mulheres brasis e sexo sem constrangimentos. Tinham descoberto que a alegria é a prova dos nove.

Nota Seis
O cunhadismo traduziu um processo de inserção civilizatória, fruto desse relacionamento dos índios com os franceses, que gerou, em apenas cinco anos, mais de mil mamelucos, que viviam ao longo dos rios que de- ságuam na baía da Guanabara e na atual ilha do Governador, onde estava a ser implantada a França Antártica.
Esse processo de inserção civilizatória, de tamanha força, trouxe para dentro do pensamento francês uma questão fundante, o da estrutura de pa- rentesco. Essa estrutura de parentesco, aparentemente nova e revolucionária, traduzia uma forma já existente no Mediterrâneo, sem, contudo, apresentar a radicalidade tupinambá. Era a matrifocalidade.
A matrifocalidade não é um subsistema do matriarcado, mas um sistema dependente do patriarcado que, por sua vezes, o reproduz. O patriarcado é estrutura baseada na distinção dos sexos, masculino/feminino, apresentados como complementares, mas vividos em assimetria de poder e, em muitos casos, concordes na proibição da sexualidade homoerótica, embora esse não fosse o caso entre os tupinambás. O matriarcado propriamente dito não existia nem no Mediterrâneo, nem entre os tupinambás. Assim, não falamos de matriarcado entre os tupinambás, mas trazemos da antropologia o con- ceito de matrifocalidade que fornece sentidos para compreender os laços de parentesco do cunhadismo tupinambá.
A matrifocalidade tupinambá deve ser entendida como construção e expansão da utopia da cunhã, que concentrava poder entendido como força simbólica circulante, que se fundamentava em presença conquistada na traje- tória da própria tribo. Essa presença se traduzia na definição de espaço que era fruto do prestigio adquirido na comunidade, já que recebia o estatuto de referência coletiva pela sua trajetória e pelo tipo de funções desempenhadas, de parteira de todos os parentes da tribo, responsável por trazer à tribo, com suas próprias mãos, todos os filhos das novas gerações.
A relação do cunhadismo, assim, não se fundamentava sobre o homem, mas na universalidade da cunhatã, pois ela era a mãe de todos os pais. Nessa estrutura, havia uma ruptura da ideologia da paternidade. O pai não era mais pai, nem o filho era filho do pai, mas da mãe. Nesse sentido, tal descons- 6
LESTRINGANT, Frank, Le huguenot et le sauvage, L ́Amérique et la controverse coloniale en France au temps des guerres de religion, p. 46.
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trução levava radicalmente à ruptura da estrutura de parentesco patrilinear conhecida pelos franceses, e propunha para os “línguas” a universalidade da maternidade supracultural.

Nota Sete
A metáfora do jaguar é uma das imagens mais ricas na discussão da originalidade da antropofagia tupinambá. No diálogo entre o chefe tupinam- bá Cunhambebe e Hans Staden,7 quando o chefe dos arawetés se deliciava diante de um cesto de carne humana, ele perguntou a Staden se não gostaria de participar do repasto. Staden disse: “Um animal irracional não come um outro parceiro, e um homem deve devorar um outro homem?”. O tupinambá retrucou: “Yauára inchê” -- sou jaguar.8
A resposta de Cunhambebe é uma metáfora. Para o guerreiro ele era um jaguar a devorar a perna de um inimigo. Claro está, alerta Viveiros de Castro, que era um jaguar possuidor da tecnologia do fogo, já que comia carne moqueada. Mas o importante aqui era que Cunhambebe não comia um semelhante e nem carne crua.
A metáfora de Cunhambebe mostra um aspecto importante da originali- dade antropofágica: o guerreiro se faz animal carnívoro. E a metáfora traduz elementos sobre o jaguar na cultura tupi-guarani. Aqui, jaguar e tupinambá são realidades que se confrontam, mas se relacionam. O jaguar come pessoas, come carne, mas nem sempre o tupinambá consegue comer o jaguar.
A sua antropofagia era um tornar-se fera, mas com a posse e o domínio do fogo. O modo de falar de Cunhambebe determinava seu modo de comer, que era modo de pensar; tornar-se jaguar, além disso, parece, mais uma qualidade do ato, não do sujeito.9
A originalidade consiste em que o guerreiro não pode ser influenciado por nada diferente da relação jaguar/tupinambá. O jaguar-metáfora é perda provisória de sentido, mas é história que visa o horizonte da reapropriação do próprio sentido.
A diferenciação entre cultura e natureza, que Lévi-Strauss mostrou ser o tema maior da mitologia ameríndia, não é um processo de diferenciação do humano a partir do animal, como em nossa cosmologia evolucionista. A condição original comum aos humanos e animais

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AGNOLIN, Adone, “Antropofagia ritual e identidade cultural entre os Tupinam- bá”, Revista de Antropologia, vol. 45, no.1, São Paulo, 2002.

STADEN, Hans, Viagem ao Brasil, p. 114.

VIVEIROS DE CASTRO, E. Araweté: os deuses canibais, pp. 625-626.
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não é a animalidade, mas a humanidade. A grande divisão mítica mostra menos a cultura se distinguindo da natureza que a natureza se afastando da cultura: os mitos contam como os animais perderam os atributos herdados ou mantidos pelos humanos.10
A originalidade da antropofagia define a liberdade como autonomia que não recebe a lei de outro. A impossibilidade da troca da heteronomia hugue- note pela autonomia tupinambá exige troca de condicionamento: significou não receber a lei de outro alguém, mas procurar a lei na internalidade da própria cultura tupi-guarani.11
Por isso, a metáfora se mostrou estranha ao olhar e ao contato, ao conceito e à consciência huguenote. Isto quer dizer, o gesto livre do jaguar/ tupinambá é algo não determinado ou que se exclui. Este é o centro refe- rencial da noção de liberdade na antropofagia tupinambá.

Nota Oito
Lestringant diz que para a França, tudo começou pelo Brasil: que foi aí, nessa geografia, que aprendeu, se não a colonizar, ao menos o comércio com os povos do Novo Mundo. Foi no Brasil que experimentou com sucesso a técnica do uso de “intérpretes”, truchements, através de jovens marinheiros colocados nas tribos indígenas, usados como intermediários para a coleta de madeira e a captura de macacos e araras. Enfim; no Brasil, os marinheiros franceses entraram na familiaridade do Novo Mundo.12
Nesse mundo aparentemente às avessas, a estrutura de parentesco tupinambá soava como liberdade dos laços de sangue, do biológico e dos condicionamentos culturais da patriarcalidade européia. E foi através do cunhadismo que os jovens truchements encontraram uma ponte de diálogo com essa cultura herética e revolucionária dos tupinambás, a estrutura de paren- tesco matrifocal, que tinha como possibilidade de construção o parentesco definido pelo gozo, mas também por seu oposto, o abandono.
Tal postura levou à escolha adotiva e, nesse sentido, apontava para a liberdade, mas também em oposição, à escravidão, ambas, liberdade e escra- vidão em relação à natureza e às construções daí decorrentes.
Fruto da boa vida no paraíso dos brasis, os colonos não concordaram com seu vice-rei, se revoltaram, e aliados aos brasis, agora seus parentes, passaram a tramar o assassinato de Villegagnon. Diante de guerrilha que se avizinhava, o vice-rei recorreu ao amigo Calvino que, por esses tempos, exi-
  1. 10  VIVEIROS DE CASTRO, Eduardo, “Os pronomes cosmológicos e o perspec- tivismo ameríndio”, Mana v.2 n.2, Rio de Janeiro, out. 1996.
  2. 11  RIBEIRO, Darcy, op. cit., p.34.
  3. 12  LESTRINGANT, Frank, op. cit., p. 45.
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lara-se em Genebra, e pediu para mandar reforço religioso a fim de restaurar a moral e os bons costumes. E, em setembro de 1556, quatorze huguenotes, entre os quais dois pastores, Chartier e Richer, e um jovem muito promissor, Jean de Léry, deixaram a Suíça, embarcaram em Honfleur, sob a liderança de Du Pont de Corguilleray, e chegaram ao forte de Coligny em março 1557.

Nota Nove
No encontro do pensamento calvinista com a cultura tupi-guarani es- tamos diante de algo novo, que não existia antes, que poderia produzir uma consciência diferente das originais de cada grupo. A realidade daquilo que huguenotes e tupinambás eram estava a priori colocada, era algo próprio. Mas, agora tínhamos uma tensão entre o ser-próprio huguenote e tupinambá e o ser-posto frente a frente no litoral do Rio de Janeiro. Aqui a origem não liberta. Não se pode dizer que eram e que não são mais. Sem dúvida, eram puxados pela origem, que os segurava firme, fazendo-os submergir. E se a origem é o que estabelecia como algo huguenote e tupinambá, ser-posto frente a frente supunha caminhar para a morte ou em direção ao novo.
O calvinismo não se dava simplesmente como processo de adequação da mente de Léry ao novo que lhe era apresentado. Impunha o processo cognoscitivo que este novo tivesse uma leitura ideológica: uma relação em que Léry operasse como portador da utopia e o novo como ideologia. O calvinismo do jovem huguenote não se processava entre realidades ahistóricas, mas em relação espacial e temporal, exigindo que a interação entre ele e a realidade se estruturasse em algo maior, alguma coisa além de ambos, não causal, mas essencial.
Calvino considerou a natureza, palco da glória de Deus. Mas naquele momento de França Antártica, na experiência de Jean de Léry, as cenas dessa peça estavam a ser pintadas enquanto utopia do jardim huguenote.
A utopia do jardim marcou o sonho huguenote no século XVI. Esse jardim foi visto como refúgio diante das perseguições.13 E o jardim de Léry se fez tupinambá e brasileiro, lugar de encontro de huguenotes e tupi-guaranis, onde o protestantismo pensava cumprir uma missão, carpir o mato bravo do teatro da glória de Deus. O jardim e a cultura da terra traduziam, assim, uma vocação divina, entregue lá atrás a Adão. Mas o estar no jardim dos tupinam- bás fazia aflorar uma questão: estariam os brasis irremediavelmente perdidos?
Na verdade, considera Jean-François Zorn, o próprio Léry se faz esta pergunta. De onde vieram esses selvagens? E sua resposta está baseada na interpretação do texto de Gênesis 9.18-27, que fala do assentamento dos
13 RHODES, Michel. « Le jardin huguenot, refuge et laboratoire », in Les jardins : utopie huguenote ?, Foi et Vie, revue de culture protestante, julho 2008, no. 3, vol. CVII, pp. 5-20.
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três filho de Noé: Sem, Cão e e Jafé. Para Léry, como para os historiado- res espanhois da época, esses americanos eram descendentes de Cão, povo maldito e abandonado por Deus. Embora admita que tal hipótese possa ser discutida, Lery a valida usando um argumento teológico, a partir da doutrina da dupla predestinação: se os tupinambás são gente pobre, isto se dá porque são pessoas vazias e desprovidas de qualquer bom sentimento que provenha de Deus. Seria tal consideração, pergunta Zorn, fatal para a evangelização dos brasis? Não necessariamente, embora Léry tenha se encontrado numa situação de fronteira diante de sua teologia calvinista e o afeto que nutria pelos brasis.
Direi, inicialmente, a fim de proceder com ordem, que os selvagens do Brasil, habitantes da América, chamados tupinambás, entre os quais residi durante quase um ano e com os quais tratei familiarmente, não são maiores nem mais gordos que os europeus; são porém mais fortes, mais robustos, mais entroncados, mais bem dispostos e menos sujeitos a moléstias, havendo entre eles muito poucos coxos, disformes, aleijados ou doentios. Apesar de chegarem muitos a 120 anos (sabem contar a idade pela lunação), poucos são os que na velhice têm os cabelos brancos ou grisalhos, o que demonstra não só o bom clima da terra, sem geadas nem frios excessivos que perturbem o verdejar permanente dos campos e da vegetação, mas ainda que pouco se preocupam com as coisas deste mundo. E de fato nem bebem eles nessas fontes lodosas e pestilenciais que nos corroem os ossos, dessoram a medula, debilitam o corpo e consomem o espírito, esses fontes em suma que, nas cidades, nos envenenam e matam e que são a desconfiança e a avareza, os processos e intrigas, a inveja e a ambição. Nada disso tudo os inquieta e menos ainda os apaixona e domina, como adiante os mostrarei. E parece que haurem todos eles na Fonte da Juventude.14
De todas as maneiras, disse conhecer bem os brasis e ter entendido a diferença entre os que são iluminados pelo Espírito Santo e aqueles que foram abandonados e deixados à margem.15
Há na utopia do jardim uma construção histórica.16 O protestantismo saindo que estava da heteronomia medieval, fazia-se humanista por amor às fontes e pelo desejo de aprender no Livro e dos livros, incluído aí o livro da natureza. Tal visão foi particularmente atraente para o jovem Jean de Léry. Como decifrar os mistérios de Deus senão através de revelação que o Novo Mundo apresentava?
  1. 14  LERY, Jean de, Viagem à terra do Brasil, p. 97.
  2. 15  ZORN, Jean-François, « Calvin, début ou obstacle de la mission ? » in BOLLIGER, Daniel (et alli), Jean Calvin, les visages multiples d ́une réforme et de sa réception, Lyon, Editions Olivétan, 2009, pp. 239-260.
  3. 16  SCHAEFFER, Otto « Jardins entre terre et ciel : une perspective protestante » in Les jardins : utopie huguenote ?, Foi et Vie, revue de culture protestante, julho 2008, no. 3, vol. CVII, pp. 21-41.
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O calvinismo francês era rural, mas se fazia urbano principalmente pela curiosidade diante das novidades. Os huguenotes eram minoria que se aventurava em descobertas no Novo Mundo. Perseguidos, buscaram o paraíso em outras terras, desconhecidas, para eles virgens, fazendo viagens que nos remetem à terra-sem-mal dos guaranis.

Nota Dez
O que deve ser visto é que na dinâmica vivida por huguenotes e tupi- nambás, a incerteza e o caos eram gerados internamente pelo próprio encon- tro, devido à sua não-linearidade e não exclusivamente por fatores externos. Ou seja, a complexidade e o caos surgiam das regras de um e outro aplicadas de forma recursiva. As respostas, então, para as questões históricas suscitadas do relacionamento entre huguenotes e tupinambás não estão tanto na procura de mais informações para tentar encontrar uma relação de causa e efeito, mas em entender quais regras regeram os comportamentos da relação simbólica das duas religiosidades confrontadas. Ou que tipo de retroalimentação existiu e de que forma esta retroalimentação atuou nas relações.
O fato é que franceses e huguenotes eram adaptativos, suas regras de comportamento mudavam à medida que eram confrontados com realidades antes desconhecidas. Na verdade, este novo mundo huguenote não é aquele representado pela metáfora de uma máquina. As coisas são mais do que a soma de suas partes. Equilíbrio é morte. Causas são efeitos e efeitos são causas. Desordem e paradoxo estão presentes na simbologia do texto de Léry, Viagem à terra do Brasil.
A tarefa do caminhante é desmascarar os interesses que impedem a realização da pessoa e pautar a construção da linguagem sem limite e coa- ção. Por isso, situamos a base de atuação dos encontros/desencontros na comunicação. Foi no reconhecimento desse espaço que se constituiu a idéia reguladora da conversa livre da dominação entre Léry e os tupinambás. Ora, a comunicação, herança cultural de franceses e tupi-guaranis, foi criada e recriada pelas realidades da ideologia e da utopia.
Partindo de Heidegger,17 quando fala dos poetas, podemos dizer que o teólogo da cultura diante desses encontros e desencontros deve ser o vigia da casa do ser, daquilo que eram huguenotes e tupinambás. Por isso, as inter- pretações do texto de Léry devem ser ações de vigiar a casa do ser, sabendo não ser huguenote ou tupinambá. Caminhar não é explicar nem analisar, é conduzir à conversa poética, onde o real se manifesta na sua verdade dialó- gica. A caminhada não substitui a obra da ancestralidade, a matrifocalidade,
17 CARNEIRO LEãO, Emmanuel, O pensamento de Heidegger no silêncio de hoje. In: Revista Vozes, 4, 1977, ano 71, p. 6.
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Jean de Léry, meu irmão: notas antropofágicas sobre a questão Huguenote-Tupinambá 163
nem a antropofagia, mas possibilita a conversa. O teólogo da cultura não salvaguarda o mundo que a obra da ancestralidade, matrifocalidade e antro- pofagia abriu, mas salvaguarda a abertura de mundo. Salvaguardar a abertura de mundo manifesta a obra da ancestralidade, matrifocalidade e antropofagia como vigor de ter sido. Assim, a leitura da teologia da cultura é acontecer, que não se propõe, criticamente, como a única verdadeira.
Ancestralidade, matrifocalidade e antropofagia esconderam ideologias, fossem elas as predominantes na comunidade tupinambá ou aquelas que se encontravam à margem. Ora, a tendência daqueles que produzem idéias é separarem-se dos que produzem coisas e à medida que ancestralidade, matrifocalidade e antropofagia vão ficando cada vez mais distantes, quem se debruça sobre o texto de Léry começa a acreditar que a consciência e o pensamento estão, em si e por si mesmos, separados das coisas materiais, existindo em si e por si mesmos. Esse é um perigo presente na leitura de Viagem à terra do Basil, já que os caminhantes, devido à ideologia, tendem a acreditar na independência entre consciência e mundo material. Surge, então, a compreensão do texto como leitura predominantemente ideológica.
Assim, a ideologia torna-se ideologia quando aparece como explica- ção ideal das comunidades huguenote e tupinambá. A ideologia parte de um processo de distorção ou dissimulação, quando exprime uma situação, sem a conhecer de fato. A ideologia surge quando desloca as realidades da ancestralidade, matrifocalidade e antropofagia e apresenta idéias descoladas delas sobre o tupinambá. Esse tipo de leitura apoia-se em hermenêuticas que possibilitam imagens de ocultamente da realidade comum, apresentando uma lógica ideológica de dominação social e política. Por isso, ao fazer a Viagem à terra do Basil, somos chamados à conversa com o lado de ocultamento da ideologia, mas também a escutar a voz do real utópico na palavra da ances- tralidade, da matrifocalidade e da antropofagia. Nessa escuta, que advém da apropriação do que somos, o teólogo da cultura não está preso a uma mediação definida, mas conversa sem definir limites. O teólogo da cultura abre-se, então, para a escuta e o sentido do ser enquanto ethos.
Este abrir-se implica em leituras e não um exteriorizar-se diante do texto. Não consiste numa contemplação externa ou interna, mas um abrir-se para a vigência do real ideológico e utópico, construtor da imaginação social, pela qual se dá, nas leituras, experiências com a ancestralidade, matrifocalidade e antropofagia. E assim, quem advém é o real ideológico e utópico como mundo. Experienciar a verdade do real ideológico e utópico como mundo é, então, apropriar-se do que nos é próprio. Ou, como cantou o poeta sevilhano António Machado.
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164 Jorge Pinheiro dos Santos
Caminante, son tus huellas/ el camino, y nada más;/ caminante, no hay camino,/ se hace camino al andar./ Al andar se hace camino,/ y al volver la vista atrás/ se ve la senda que nunca/ se ha de volver a pisar./ Caminante, no hay camino,/ sino estelas en el mar.18

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Recebido: 31/05/2011 Aprovado: 20/12/2011
18 MACHADO, António, Antologia Poética, Editorial Cotovia, 1999, 2a; edição. Seleção, tradução, prólogo e notas de José Bento. “Caminhante, são teus rastros/ o caminho, e nada mais;/ caminhante, não há caminho,/ faz-se caminho ao andar./ Ao andar faz-se o caminho,/ e ao olhar-se para trás/ vê-se a senda que jamais/ se há-de voltar a pisar/. Caminhante, não há caminho,/ somente sulcos no mar”.
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Huguenotes e tupinambás

Huguenotes e Tupinambás - abordagem metodológica a partir da teologia da cultura

Pesquisador: Prof. Dr. Jorge Pinheiro dos Santos 
Faculdade Teológica Batista de São Paulo 
Departamento de graduação em Teologia 
Professor Pós-Doutor em Ciências da Religião 
Eixo temático: História e Teologia
Categoria: Mesa redonda 

INTRODUÇÃO 

Quando nos debruçados sobre a pesquisa dos encontros e desencontros do pensamento calvinista com a cultura tupi-guarani nas ilhas de Laje e Sirigipe, na baía de Guanabara, costa do Rio de Janeiro, entre os anos de 1555 e 1560, devemos levar em conta, numa leitura a partir da Teologia da Cultura, que protestantismo e política não são realidades estanques. Isto porque as raízes do pensamento protestante não são apenas pensamentos. Pensamento protestante é a expressão de seres políticos, de situações culturais, cuja eclosão situamos em 1517, com a exposição das 95 teses de Martinho Lutero. Não se pode entender o pensamento dos huguenotes quando se subestimam as realidades sociais que deram origem ao pensamento protestante. 

As raízes do pensamento religioso – e aqui devemos nos referir aos huguenotes e tupinambá -- não podem agir com uma força igual em todo momento e em todo grupo. Um ou outro pode predominar, depende da situação social, dos grupos ou formas de dominação presentes, pois se correlacionam às estruturas sociopsicológicas de interação com a situação social objetiva. 

Pensamento huguenote e cultura tupi-guarani
O primeiro referencial é a pessoa. Nesse sentido, ao analisar essa relação entre o pensamento huguenote e a cultura tupi-guarani devemos partir de uma fenomenologia política que leve em conta questões como a origem do pensamento político e religioso calvinista, enquanto simbologia do cristianismo reformado. É bom lembrar que a conversão de João Calvino (1509-1564) ao protestantismo se deu entre 1532 e 1533, quando tinha 23 ou 24 anos. Donde o protestantismo calvinista dos huguenotes, na baía de Guanabara dos anos 1555-1560, tinha ainda a plasticidade de um pensamento político/ religioso em construção. E é a partir daí, dessa plasticidade da simbologia reformada em construção, que devemos trazer à tona os elementos não reflexivos desse pensamento1 e analisar como ele se relacionou com uma cultura até aquele momento desconhecida. 
 
E a questão da pessoa, aí imbricada, leva-nos a uma antropologia existencial. Ora, a questão existencial é traspassada pela religião, que é dimensão de profundidade e espectro dessa profundidade no espírito humano. Tal metáfora tillichiana2 traduz a idéia de que o aspecto religioso aponta em direção àquilo que na vida do ser humano é último e incondicional. Assim, no sentido mais amplo e fundamental do termo, religião é preocupação última. E a preocupação última se manifesta em absolutamente todas as funções criativas do espírito humano. 

Nem sempre é necessário perguntar-se pelas raízes de um fenômeno social, mas quando não temos respostas para uma realidade que se apresenta como nova, então é necessário perguntar pelas raízes. É necessário procurar pelas raízes do pensamento político e religioso na própria pessoa humana. E é esse caminho, que parte da teologia da cultura, que nos direciona na análise do ethos tupinambá. 

A formação da consciência 

Sem uma imagem do humano, de suas forças e tensões, não se pode dizer nada sobre as fundações políticas do pensamento e do ser religioso. Sem uma teoria do humano não se pode construir uma teoria das orientações políticas e religiosas. Mas, o Tupinambá, e aqui estamos falando da cultura tupi-guarani, embora colado à natureza, é pessoa e por isso ser dividido. Não importa saber onde termina a natureza e onde começa o tupinambá, não importa que a passagem entre natureza e tupinambá se tenha feito através de transições ou por um salto. O importante é que em determinado momento, a diferença ficou clara. 

O tupinambá tem consciência de si mesmo, distingue-se da natureza enquanto ser que se desdobra, tornando-se pessoa consciente de si mesma. A natureza ignora esta divisão, por isso o tupinambá não é uma combinação de duas partes autônomas, tais como natureza e corpo, mas um só ser, fendido em sua unidade. Estas determinações gerais levam a algumas considerações no que se refere à pesquisa do tupinambá e da cultura tupi-guarani. Elas negam qualquer dedução da cultura tupi-guarani enquanto puro movimento reflexo frente à natureza. 

Mas, porque os pensamentos políticos e religiosos vêm do ser humano enquanto unidade, a relação entre huguenote e tupinambá está enraizada no ser que ambos são. É por isso que não se pode entender essa correlação entre pensamento huguenote e cultura tupi-guarani sem contextualizar seu enraizamento no ser humano enquanto ser imbricado a pulsões e interesses, constrangimentos e aspirações constituintes do humano. Mas também é impossível separar o huguenote de sua consciência, ou ver o tupinambá como simples subproduto do ser tupi- guarani. 

A consciência estrutura ser huguenote enquanto ser social, em cada um de seus elementos, inclusive as sensações pulsantes mais primitivas. Mas, quando se tenta desfazer laços passa-se ao largo da primeira e mais importante característica daquilo que é humano, de que há uma consciência inadequada ao ser, uma falsa consciência, que, no entanto, não invalida a unidade do ser e da consciência. Isto porque, não é possível haver falsa consciência quando o que é designado não é conhecido. 

A consciência ajustada é uma consciência que emerge da pessoa e ao mesmo tempo a determina. Não pode ser uma coisa sem ser a outra, porque o humano é uma unidade na divisão, e desta unidade nascem as raízes do pensamento político e religioso. O ser humano, quer seja o huguenote recém desembarcado no litoral do Rio de Janeiro, ou o tupinambá estabelecido na região, se encontra enquanto realidade dada, assim como seu ambiente. 

Este encontro do pensamento calvinista com a cultura tupi-guarani criou a possibilidade de algo novo, que não existia antes, que poderia produzir uma consciência, diferente das originais de cada grupo. A realidade daquilo que huguenote e tupinambá eram estava a priori colocada, era algo próprio. Mas, agora tínhamos uma tensão entre o ser-próprio huguenote e tupinambá e o ser-posto frente a frente no litoral do Rio de Janeiro. E aqui a origem não liberta. Não se pode dizer que eram e que não são mais. Sem dúvida, eram puxados pela origem, que os segurava firme, fazendo-os submergir. E se a origem é o que estabelecia como algo huguenote e tupinambá, ser-posto frente a frente supunha caminhar para a morte ou em direção ao novo. 

Teologia da Cultura e religiosidade 

A religiosidade não se dá simplesmente como processo de adequação da mente humana ao novo que lhe é apresentado. Impõe-se que o novo inerente ao processo cognoscitivo tenha um significado: uma relação em que o ser humano opera como ser significante e o novo como haver significado. Desta forma, a religiosidade não se processa entre realidades ahistóricas, mas em relação espacial e temporal, exigindo para que a interação humano/ realidade se estruture que haja algo maior, alguma coisa além de ambos, não causal, mas essencial. 

No processo de construção das religiosidades é o ser humano quem se encontra em construção, já que é partícipe, mas não senhor pleno do processo. É um ser colocado no tempo e no espaço, que estabelece relação com a realidade que o cerca dentro do processo cognoscitivo enquanto dimensão humana e histórica. 

Analisar as relações político-religiosas entre huguenotes e tupinambá, nos obriga pensar utilizar como referenciais teóricos Paul Tillich; Alfred Métraux e Florestan Fernandes, no que se refere à religiosidade, à organização social e à função da guerra entre os tupinambá; e a documentação produzida no período, em especial os textos de Jean de Léry, Cordelier André Thevet, e A Confissão de Fé da Guanabara, escrita por Jean du Bourdel, Matthieu Verneuil, Pierre Bourdon, André la Fon, em 1558, que foram condenados à morte e enforcados naquele ano. 

No que tange ao pensamento político dos huguenotes é importante fazer a leitura de seu republicanismo radical, expresso em teses constitucionalistas, contratualistas e na defesa da resistência com base no direito positivo e no direito natural, produzidas no período posterior, mas próximas da presença huguenote no Brasil. Temos, então, Luís de Condé, “La défense civile et militaire des innocents et de l'Église de Christ” (1563); François Hotman, “Franco-Gallia” (1573); Eusebe de Philadelphe (pseudônimo), “Reveille-Matin” (1573); Théodore de Bèze, “Du Droit des Magistrats” (1574) e “Le Politicien” (1574); anônimos, “Paroles Politiques” (1574), e Philippe Du Plessis-Mornay, “Vindiciae contra Tyrannos” (1579). 

A leitura do estado da arte no que se refere à presença francesa no litoral fluminense, em meados do século XVI, mostra a carência de estudos multiculturais destinados à compreensão do papel que o calvinismo jogou na elaboração do projeto colonial francês. Essa carência dificulta a compreensão do papel do protestantismo de invasão, conforme definição de Antonio Gouvêa Mendonça, na história brasileira. 
A familiaridade dos franceses com o litoral atlântico não foi suficiente para assegurar uma vida longa à tentativa de implantação de uma “República Cristã”, leia-se huguenote, em solo brasileiro. Este foi um diálogo fraturado por razões internas, religiosas, que envolveram entre outros temas uma controvérsia eucarística sobre a presença real ou não do corpo e do sangue de Jesus no pão e vinho servidos na Ceia. Tais questões teológicas levaram os huguenotes “a optar pela fúria canibal dos tupinambá à antropofagia da transubstanciação praticada pelos papistas”,1 abandonando assim o espaço geográfico da colônia recém plantada. 

Outras razões, continentais, mas também religiosas, aceleraram o processo de deterioração do projeto colonial francês no litoral fluminense: crescia na França a oposição entre católicos e protestantes. Dessa maneira, as desavenças entre Nicolau Durand de Villegaignon e os huguenotes foram apenas uma pálida antevisão do que estava por vir em todo o mundo francês. Tal situação acabou por desintegrar o projeto colonial francês na região e impossibilitou o desenvolvimento do diálogo aberto entre huguenotes e tupinambá. Mas a literatura produzida na época, tanto católica como protestante, nos permitem, à luz das Ciências da Religião, avaliar e projetar sinais sobre tal diálogo. 

CONCLUSÃO 

Toda documentação deve estar centrada em dois textos, singulares e fundamentais para a compreensão daquele momento histórico: Les Singularités de la France Antarctique, do padre Cordelier André Thevet, e L'Histoire d'un Voyage faict en la terre du Brésil, do huguenote Jean de Léry. O primeiro foi publicado em 1557-1558 e afirma que o fracasso da França Antártica se deveu às dissensões internas ao movimento huguenote, o que levou Jean de Léry a escrever seu livro a fim de opor-se “as mentiras e erros” contidos no trabalho de Thevet. 

Deve-se ressaltar que o livro de Léry desde sua primeira edição em 1578 (A La Rochelle, Pour Antoine Chuppin. M.D.LXXVIII, com reedições em francês e latim en 1585, 1586, 1592, na "Collection des Grands Voyages" de Théodore de Bry, em 1594, 1599, 1600), continua a ser sucesso editorial. 

Dessa maneira, neste caminho sobre a relação entre política e religiosidade, deve-se discutir as razões do fracasso do projeto calvinista, tanto no que refere à tentativa colonizadora, como aquele de implantar uma República huguenote no Brasil. Mas deve apresentar também uma leitura da força cultural dos tupinambá, que sem serem passivos diante da invasão exerceram um papel ativo em suas relações com os huguenotes. Dessa forma, tal abordagem quebra paradigmas, preconceitos, e mostra a cultura tupinambá como hegemônica na relação huguenote/ tupinambá. Isto porque os huguenotes aqui desembarcados confessavam um protoprotestantismo e viviam o trânsito em direção a um protestantismo em construção, marcado ainda por séculos de presença católica na França.

Notas


1Paul Tillich, “La Décision Socialiste“, Écrits contre les nazis (1932-1935), Paris, Genève, Québec: Les Éditions du Cerf, Éditions Labor et Fides, Les Presses de l’Université Laval, 1994, p.27. “Die sozialistische Entscheidung”, in Christentum und soziale Gestaltung. Frühe Schriften zum religiösen Sozialismus, Evangelisches Verlagswerk Stuttgart, Gesammelte Werke II, 1962, pp. 219-265. Trad. fr. Nicole Grondin e Lucien Pelletier, introd. de Jean Richard. 

2Paul Tillich, Teologia de la cultura y otros ensayos, A dimensão religiosa na vida espiritual do homem, Buenos Aires, Amorrortu Editores, 1974, pp. 16-17. Man’s right to knowledge, Columbia University Press, 1954. 

1 Andrea Daher, «Récits français et histoires portugaises: Claude d’Abbeville et Pero de Magalhães Gandavo», Nuevo Mundo Mundos Nuevos, Número 1, 2001, mis en ligne le 4 février 2005, référence du 10 mars 2006. disponível em World Wide Web: http://nuevomundo.revues.org/document238.html.

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Estado da arte/ teses 

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Jorge Pinheiro: Sexo e rede no colo da cunhã

Jorge Pinheiro: Sexo e rede no colo da cunhã: A alegria é a prova dos nove ou sexo e rede no colo da cunhã Jorge Pinheiro  “Tupi or not tupi that is the question”. (Oswald de Andrade, Ma...

jeudi 29 novembre 2018

Dieu ... pour les débutants


Dieu ... pour les débutants
Jorge Pinheiro, PhD


L'idéal d'objectivité des Lumières et la compréhension de l'esprit en tant que simple copie du réel ont été rassemblés par chèque au XXe siècle. Pour la psychanalyse, le champ des représentations symboliques ne peut pas être compris, selon une raison empirique, qui donne aux symboles une correspondance immédiate avec des contenus sensibles objectifs.

Les rêves ne peuvent pas être interprétés, selon cette logique, car les symboles, contrairement aux signes qui indiquent simplement certains objets d'expérience consciente, sont des moyens par lesquels l'être humain représente pour lui-même les relations vécues inconsciemment avec le monde.

Du théologien Sören Kierkegaard [1], l'existence montre que la conscience révèle comment la relation avec la réalité se produit.

Pour la science, le regard objectif est conditionné par les attitudes de valeur que l'on retrouve dans la vie consciente. L'être humain ne voit pas le monde de manière désintéressée : sa vision est déterminée par sa vie mentale, qui tourne autour d'une matrice émotionnelle. Cette perspective, qui est la lecture de la Haute Modernité, récupère le concept de Dieu en tant que symbole chargé de signification. Non plus en tant que signe placé en dehors de l'expérience, mais en tant que symbole dont le contenu est la condition même de l'homme. L'étude du sens de Dieu apparaît maintenant comme un besoin traduisant le sens dans la vie humaine. Feuerbach dans L'essence du christianisme, considérait Dieu comme le journal secret dans lequel l'être humain exposait ses idées les plus hautes sur lui-même.

Aujourd'hui, nous voyons différents. Dieu est la raison d'être de la théologie, car il lui faut-il une centralité anthropologique, car la révélation est un dialogue entre Dieu et l'humaine et sans anthropologie, il est impossible de savoir qui est cette personne à qui Dieu parle.

Friedrich Schleiermacher [2] était déjà parvenu à une conclusion similaire dans De la religion, affirmant que le symbole Dieu ne fait pas référence à un objet, mais plutôt à un type de sentiment. Schleiermacher a été à l'origine de la théologie du sentiment qui a traduit une recherche à l'exploration de l'âme humaine. Par lui, être en relation avec Dieu est en vrai la conscience de la dépendance absolue.

Le même critère anthropologique se retrouve encore chez Paul Tillich [3], lorsqu'il identifie Dieu avec la préoccupation centrale (ultimate concern) de l'être humain et chez Rudolph Bultmann [4], lorsqu'il dit que tout énoncé sur Dieu est en même temps un énoncé sur la personne et vice versa. Ce critère implique cependant un subjectivisme total.

Comme l'observe Rodolphe Otto [5] dans sa phénoménologie du divin, dans Le Sacré, la conscience a toujours un point de référence objectif. La conscience n'existe pas en elle-même, mais est toujours un type de relation : "conscience de". Par conséquent, la conscience de Dieu, si elle est essentiellement un fait anthropologique, ne peut être confondue avec une production ou une illusion de conscience. Dieu est le nom d'une relation vraiment vécue.



[1] Søren Kierkegaard, né le 5 mai 1813 et mort le 11 novembre 1855 à Copenhagen, était un écrivain, théologien protestant et philosophe danois.
[2] Friedrich Daniel Ernst Schleiermacher (Breslau, 21 novembre 1768Berlin, 12 février 1834) était un théologien protestant et un philosophe allemand.
[3] Paul Johannes Tillich (20 août 1886 Starzeddel, Allemagne - 22 octobre 1965, Chicago) était un écrivain, un philosophe de la religion, et un théologien protestant allemand et américain.
[4] Rudolf Bultmann, né le 20 août 1884 et mort le 30 juillet 1976, était un théologien allemand de tradition luthérienne.
[5] Rudolf Otto (25 septembre 18696 mars 1937) était un théologien luthérien, chercheur en religion comparée, de nationalité allemande. Dans Le Sacré il a proposé le terme de « numineux » pour qualifier la sphère au-delà du rationnel. 





Deus ... para principiantes

O ideal de objetividade dos iluministas e a compreensão da mente como simples cópia do real foram colacados em cheque no século vinte. Para a psicanálise, o campo das representações simbólicas não pode ser compreendido segundo a razão empírica, que aos símbolos correspondência imediata a conteúdos sensíveis objetivos. Os sonhos não podem ser interpretados segundo essa lógica, porque os símbolos, ao contrário dos signos que simplesmente apontam para certos objetos da experiência consciente, são maneiras pelas quais o ser humano representa para si mesmo as relações vividas de forma inconsciente com o mundo. 

A partir do teólogo Soren Kierkegaard, a existência mostra que a consciência revela o como de sua relação com a realidade.

Para a ciência, o olhar objetivo está condicionado pelas atitudes de valor que se encontram na vida consciente. O ser humano não vê o mundo de forma desinteressada: sua visão é determinada por sua vida mental, que gira em torno de uma matriz emocional. Essa perspectiva, que é leitura da alta Modernidade, recupera o conceito Deus como símbolo carregado de significação. Não mais como signo que se coloca fora da experiência, mas como símbolo cujo conteúdo é a própria condição do humano. O estudo do significado de Deus se coloca, agora, como necessidade que traduz sentido para a vida humana.  

Feuerbach na A essência do cristianismo, 1841, via Deus como o diário secreto em que o ser humano colocava suas mais altas ideias sobre si mesmo.  

Hoje vemos diferente. Deus é a razão de ser da teologia, já que esta necessita de uma centralidade antropológica, porque a revelação é um diálogo entre Deus e o humano, e sem antropologia é impossível saber quem é este humano a quem Deus fala.

Friedrich Schleiermacher já havia chegado a uma conclusão semelhante em A fé cristã, ao afirmar que o símbolo Deus não se refere a um objeto, mas antes a uma forma de sentimento:

"Estar em relação com Deus é o mesmo que a consciência de absoluta dependência".

O mesmo critério antropológico é ainda encontrado em Paul Tillich, quando identifica Deus com a preocupação última do ser humano, e em Rudolph Bultmann, quando diz que cada afirmação sobre Deus é, ao mesmo tempo, uma afirmação a respeito do humano e vice-versa. Esse critério, no entanto, implica total subjetivismo. 

Como Rudolf Otto observa na sua fenomenologia do divino, em O sagrado, a consciência tem sempre um ponto objetivo de referência. A consciência não existe em si, mas é sempre uma forma de relação: "consciência de". A consciência de Deus, portanto, se é essencialmente um fato antropológico, não pode confundir-se com uma produção ou ilusão da consciência. Deus é o nome de uma relação realmente vivida.


mercredi 28 novembre 2018

A adoração, caminhos

ADORATORES ADORABUNT PATREM IN SPIRITU ET VERITATE

Prof. Dr. Jorge Pinheiro


“No entanto, está chegando a hora, e de fato já chegou, em que os verdadeiros adoradores adorarão o Pai em espírito e em verdade. São estes os adoradores que o Pai procura. Deus é espírito e é necessário que os seus adoradores o adorem em espírito e em verdade”. João 4.23-24.

Introdução

A adoração pode ser definida como veneração ou culto que se rende a alguém ou algo que se considera sobrenatural, divino e sagrado, bem como rituais e códigos morais que expressam a ação de adorar.

A palavra portuguesa adorar deriva do latim adoratìo, ónis. No mundo helênico, anterior ao nascimento do cristianismo, adoração referia-se a realização de um serviço sacerdotal, no grego leitourgeo. Mas, depois, no cristianismo passou a ser visto como um estilo de comportamento marcado pelo amor, veneração, ou mesmo idolatria por alguém ou alguma coisa que se considerava excepcional, singular. Donde adorar passou a ser entendido como uma forma de paixão.

A palavra adoração foi usada durante séculos no contexto cultural da Europa, marcado pela presença do cristianismo que se apropriou do termo latino. E tanto na antropologia, como na sociologia, foi compreendida como expressão de um tropismo humano em direção ao transcendente, ou seja, como expressão de espiritualidade.

Se tomarmos, por exemplo, o filme “A Paixão de Cristo”, de Mel Gibson, vemos que tanto os críticos como milhões de espectadores não notaram que o filme tratava de um dos temas centrais do cristianismo: a questão da espiritualidade cristã. E é esse tema que pretendo abordar, adoração/ espiritualidade, a partir de um texto clássico, o diálogo entre Jesus e a samaritana.

Para os povos semitas, o que nós hoje entendemos por adoração era traduzido nos gestos de curvar-se, prostrar-se, colocar a cabeça no chão, num ato de total submissão, de entrega, já que aquele diante de quem a pessoa se prostrava poderia decepar-lhe a cabeça. Mas havia um outro gesto, o do beijo, que significava o abrir-se ao espírito e ser por ele possuído. Assim, adorar foi entendido através desses gestuais como submissão e possessão.

Mas a adoração não é exclusiva dos povos semitas. Os hindus têm, por exemplo, o culto ao rio Ganges, pois acreditam que é mais antigo que a terra e que jorrou do céu e, por isso, pode libertar o homem de seus pecados em vidas anteriores, curar e purificar o corpo e a alma. E eles adoram o Ganges. A adoração é chamada puja e consiste de orações e oferendas. Assim, a idéia de adoração é enriquecida também pelo ato de entregar algo, algo vital, que pode ser alimento, bebida ou mesmo riquezas.

Entendidos esses três componentes do conceito adoração, vamos à discussão do texto onde Jesus conversa com a samaritana e trata da adoração/ espiritualidade cristã. E pensar os versículos 23 e 24. De forma abrangente podemos dizer que espiritualidade é aquela relação do ser com a transcendência, que dá sentido à vida. E exatamente por isso intercalo na nossa reflexão o belo poema de Ada Negri,[1] Atto d´amore.[2]

"Não sei dizer-te quanto te amo Deus/ no qual creio, Deus que é a vida/ vivente, aquela já vivida e aquela/ que é para ser vivida além dos confins/ do mundo e onde não existe o tempo."

O ser humano, unidade multiforme, tem em seu espírito não uma dimensão parcial da vida, mas irredutível, conforme afirma Lossky.[3] Nesse sentido, o espírito é a totalidade da vida. Nas situações de perda, falta de sentido e de ameaça à vida há sempre experiência com a transcendência, pois mesmo na negação dela há um sentido transcendente.

Na reconstrução da Europa, depois da Segunda Guerra mundial, o teólogo teuto-americano Paul Tillich disse que a desintegração espiritual da sociedade ocidental já tinha sido prevista por teólogos e estudiosos, no século XIX, mas a necessidade de compreender este fenômeno exigia que nos aprofundássemos em seu estudo.

Assim, para Tillich, “se não houver espírito, as construções humanas não poderão produzi-lo. Ele, o espírito age ou não age nos indivíduos e nos grupos. E quando age cria seu próprio meio de comunicação. Assim, o espírito se manifesta por meio das palavras, das formas de vida, das instituições sociais e dos símbolos religiosos”.[4]

A idéia espírito, de que nos fala Jesus, nos leva a uma compreensão abrangente de espiritualidade, que não pode ser entendida apenas como sinônimo de piedade ou como conhecimento dos princípios de que se compõe a piedade.

Partindo do senso comum da igreja brasileira, a espiritualidade pode ser vista como uma interpretação particular do ideal evangélico, mas se partimos do que Jesus nos transmite e da contextualização realizada por Tillich podemos dizer que há uma espiritualidade comum à espécie humana, que ela se expressa existencialmente por sermos todos imago Dei.

Quando multidões assistem a um filme como A Paixão de Cristo e são despertadas, cada qual a sua maneira, acerca da miserabilidade humana, constatamos que as pessoas têm atributos potenciais para a espiritualidade. Esses atributos, presentes na imagem de Deus que somos, e que chamo de tropismo à transcendência, nos leva à questão da adoração.

“Eu não soube; mas a Ti nada escondo / daquele que está no profundo. Cada ato/ da vida, em mim, foi amor. E eu acreditei/ que fosse pelo homem, ou a obra, ou a pátria/ terrena, ou nascido do meu próprio peso, / ou das flores, das plantas, das frutas que caem no chão, / da substância, alimento e luz/ mas foi o Teu amor, que em cada coisa/ e criatura estás presente. E agora/ que um a um caíram ao meu lado, / os companheiros de estrada, e submissas sopram as vozes da terra, a tua/ face refulge de esplendor mais forte/ e tua voz é cântico do gloria”.

A espiritualidade e o sagrado

Otto, um dos teóricos que se debruçou sobre esta questão, diz que a experiência humana diante do sagrado tem sempre algo intenso e profundo, que ele chama de mysterium tremendum, que traduz o numinoso, o que é transcendente para a realidade do crente, que diante daquilo que o esmaga desenvolve senso de temor.[5] Esse temor é um medo qualitativo, motivo para reflexão e energia que transformado em poder faz dele um adorador.

Tais experiências com o sagrado encorajam e incorporam no adorador aquilo que lhe é distinto. Apesar dessa relação de aparente intimidade de relacionamento, permanece o abismo entre adorador e sagrado. Dessa maneira, este desejo de saltar sobre o abismo que separa humano e sagrado é em última instância o móvel que dará origem à espiritualidade.

Se por um lado a crise ocidental pode ser traduzida como uma crise espiritual, por outro essa busca frenética de bens materiais e de consumo aumenta o vazio humano e favorece a busca da espiritualidade como experiência de vida coerente e recomendável. Assim, vivemos numa sociedade em crise espiritual, que procura encontrar a espiritualidade perdida.

A espiritualidade cristã

A espiritualidade cristã foi construída ao redor da cruz. A paixão de Cristo sempre foi entendida por teólogos e crentes como o derramar do dom da vida de Deus sobre os seres humanos. E porque a morte de Jesus Cristo não é derrota, mas sacrifício livremente aceito, a espiritualidade cristã tem sempre dois movimentos:

1. Um movimento em relação ao outro, ao próximo, ao desvalido, àquele que sofre, que é um chamado ao compromisso. Este movimento da espiritualidade em relação ao próximo nós chamamos de serviço.

A partir desse momento em que a espiritualidade torna-se caminho para Deus através do serviço ao próximo, a espiritualidade tem algo a dizer a todos os nossos relacionamentos, tanto pessoais, como sociais e políticos.

Pode parecer desconcertante relacionar espiritualidade e relacionamentos pessoais, sociais e políticos, mas ao falar de espiritualidade estamos falando do exercício do amor e por relacionamentos pessoais, sociais e políticos entendemos a transformação da sociedade na direção do reino de Deus, para que se faça justiça aos excluídos de tal forma que encontrem vida e salvação. Nesse sentido, a espiritualidade dá sentido à vida pessoal, social e política e torna-se além de profética, transformadora.

2. Mas a espiritualidade tem um outro movimento, que se por um lado está ligado ao rigor da fé, como vemos na oração e nos momentos de contrição, ela se realiza existencialmente, enquanto encontro com Deus. Esse encontro, conforme no diz Jesus, é a adoração e está na raiz da conversão e de todo processo de santificação. É um processo místico, no sentido que mostra nossa miserabilidade diante do insondável mistério de Deus.

Considerações finais

Por isso, a espiritualidade e, por extensão, a sua expressão de submissão, possessão e entrega, que é a adoração, é profética e transformadora no encontro com o outro, com o humano, e um ato místico de adoração diante da majestade de Deus.

Ou, conforme nos diz Galilea, a contemplação de Jesus Cristo no irmão que sofre e a contemplação de Deus no Cristo ressurreto são sempre frutos da ação do Espírito em nossas vidas.[6] Esses dois encontros devem ser a base da espiritualidade cristã na alta modernidade e fundamentam todo ato de adoração daquele que crê.

“Ora, Deus que sempre amei – te amo sabendo/ amar-te; com a inefável certeza/ que tudo foi justiça, mesmo a dor, / tudo foi bem, mesmo o meu mal, tudo/ para mim Tu foste e sei, me faz temente/ de uma alegria maior que a morte. / Permanece comigo, pois a noite desce/ sobre minha casa com misericórdia/ de sombras e estrelas. Que Tu participas, à mesa/ humilde, o pouco pão e a água pura/ da minha pobreza. Permanece Tu apenas/ junto de mim a tua serva; e no silêncio/ dos seres, o meu coração te entende único”.


Notas

[1] Ada Negri nasceu em Lodi, na Lombardia, em 1870, filha de camponeses. Seus primeiros livros refletiam uma consciência social que se opunha às tendências dominantes no fim do século. Mais tarde, a sua poesia incluiu uma afirmação de sexualidade feminina, diferente das tradicionais poesias de amor (Il Libro di Mara, 1919). Ada Negri faleceu em 1945.

[2] Tradução do italiano para o português por Jorge Pinheiro.

[3] Vadlimir Lossky, A l’image et la ressemblance de Dieu, Paris, 1967, p. 118.

[4] Paul Tillich, A Era Protestante, São Paulo, Ciências da Religião, 1992, pp. 275-276.

[5] Rudolf Otto, O Sagrado, Lisboa, Edições 70, 1992, pp. 21-22.

[6] Segundo Galilea, Espiritualidade da Libertação, Petrópolis, Vozes, 1975, pp. 15-16.