Reflexões sobre a construção
histórica do
Partido dos Trabalhadores (2)
Rubem Alves
Segunda parte
A presença cristã
Eu diria que tudo começou com a Conferência
do Nordeste -- Cristo e o Processo Revolucionário Brasileiro[1], em
1962, e com Towards a Theology of Liberation de Rubem Alves[2], mas foi,
sem dúvida, com o encontro da Conferência do Episcopado Latino-americano,
realizado em Medellín, em 1968, que a teologia da práxis adquiriu direito de
cidadania. Não nasceu naquela ocasião, mas foi a partir dela que se
intensificou a reflexão da teologia enquanto ação para a
libertação. [3]
E a partir das propostas do Concílio
Vaticano II, a conferência de Medellín fez três afirmações que nortearam o
pensamento dessa teologia: os países pobres estão submetidos ao imperialismo; a
igreja latino-americana vive num meio social em processo revolucionário; a
igreja latino-americana deve buscar sua transformação, diante da miséria e
injustiça. [4]
A Cristologia dos documentos de Medellín
teve um viés libertador. “É o próprio Deus que, na plenitude dos tempos,
envia seu Filho para que, feito carne, libere todos os homens de todas as
escravidões a que o pecado os mantêm subjugados: a ignorância, a fome, a
miséria e a opressão, numa palavra a injustiça e o ódio que têm origem no
egoísmo humano”. [5]
Assim, a Conferência do Episcopado
Latino-americano não viu a libertação reduzida à esfera espiritual, mas como
ação transformadora que deveria se estender ao ser humano enquanto totalidade,
cobrindo as esferas das relações familiares, políticas e sociais.
E se as opressões do homem
latino-americano direcionaram a teologia da libertação, por outro lado, ela sofreu
influência direta de teólogos europeus que procuravam interpretar a mensagem de
Cristo e a história da salvação em base política. Esses teólogos, entre os
quais podemos citar J. B. Metz, H. Cox e J. Moltmann, negavam a interpretação
escolástica e as abordagens existenciais. Procuraram na práxis política uma
interpretação da mensagem cristã. Ou como diz Metz:
“A salvação a que se refere a
esperança da fé cristã não é uma salvação privada. A proclamação desta salvação
empurrou Jesus para um conflito mortal com os poderes políticos de seu tempo.
(...) Ela está ‘fora’, como formula a teologia da Carta aos Hebreus. O véu do
templo foi definitivamente rasgado. O escândalo e a promessa desta salvação são
públicos”. [6]
Mas o exemplo cristão não chegou só de
além-fronteiras. No Brasil ele foi contundente. E jornal Versus explicou
porque.
“Hoje são quase 50 mil Comunidades
Eclesiais de Base, organizando cerca de um milhão e quinhentas mil pessoas, no
Brasil. Elas identificam o pecado-raiz de toda a opressão: “...esse grande
pecado é agora social e se chama sistema capitalista”, concluiu o III Encontro
Intereclesial de Comunidades de Base, em julho de 78 na Paraíba. Já não se
contam mais nos dedos as Comissões Diocesanas de Justiça e Paz. A Igreja
Católica foi, talvez, o primeiro setor organizado, com peso efetivo na
sociedade brasileira, a empunhar a bandeira de luta pelos direitos humanos.
Ligada às parcelas mais exploradas do povo, sofrendo a perda de padres e
freiras perseguidos e mortos, a Igreja se organizou para combater as ameaças à
Justiça e à Paz. Deixa, enfim, o regaço dos poderosos, não sem contradições e
conflitos dentro de sua própria estrutura”. [7]
E para entender os caminhos da
catolicidade, o jornal entrevistou D. Adriano Hipólito, bispo de Nova Iguaçu.
Mas, explicou Versus, “qualquer que seja o resultado da reunião, a
luta entre as tendências conservadoras da Igreja e os setores progressistas vai
continuar. Ela não é um fenômeno apenas superestrutural, ela reflete um
processo mais amplo de lutas sociais, e faz parte da movimentação política das
massas latino-americanas, hoje num processo irreversível de construção de sua
própria história”.
Nova Iguaçu era àquela altura, modelo brasileiro de cidade
dos pobres e excluídos:
“(...) oitavo município mais populoso do país, ali faltam esgotos, escolas,
hospitais, transportes, segurança pessoal (reina o esquadrão da morte). Região
de operários, funcionários mal
remunerados, comerciários, subempregados, que já não podem esperar soluções
senão de si próprios”.
Diante da desconfiança de muitos
socialistas ao engajamento da igreja na luta pelos direitos dos oprimidos, por
causa de sua tradição heteronômica, Versus argumenta que “se os homens são
aquilo que fazem, a Igreja está sendo aquilo que seus sacerdotes têm praticado.
E essa prática de discussão e organização das bases de nossa sociedade nós
precisamos compreender e avaliar”.
Assim, qual o espírito que orienta o
atual trabalho comunitário da Igreja Católica no Brasil? E dom Adriano
Hipólito respondeu:
“A Igreja, na sua essência, é comunidade
de fé, de esperança e de amor. Sua maior eficiência, fermentadora e renovadora
da comunidade humana, sempre dependeu de seu comportamento e de sua atuação com
comunidades. Sem dimensão comunitária a Igreja não é Igreja. Sem abertura para
os problemas da comunidade/sociedade, a Igreja não está em condições de realizar
sua missão, ser continuação da ação libertadora de Jesus Cristo, ser sinal de
esperança para o homem angustiado e sofredor”.[8]
Mas, Versus quer saber mais: o que são as CEBs, como
funcionam, quem as integra? E Dom Hipólito explicou:
“Comunidade: as pessoas
se aproximam livremente, se sentem responsáveis, descobrem e atuam nos mais
diversos elementos de interesse comum. Eclesial: o ponto de partida e de
chegada, os elementos formadores e aglutinadores, os métodos de ação, etc, são
os mesmos da Igreja. Base: a comunidade de base tem como princípio fundamental
o relacionamento primário das pessoas: pessoas que se conhecem, que se estimam,
se complementam, se ajudam mutuamente. Todos atuamos em nível de base. A CEB,
embora não seja constituída para fazer política, tem de se preocupar com os
problemas políticos e tem parte ativa no processo político. Tem a preocupação
de integrar as pessoas da base no processo social, como direito/dever da pessoa
humana, e de levá-la à participação consciente e crítica”.[9]
Como jornal socialista, envolvido com a organização dos
trabalhadores ao nível sindical e político, Versus queria conhecer o pensamento
de seu aliado cristão. E Dom Hipólito esclareceu sua posição.
“Para participar do processo social, o
Povo precisa de instrumentos válidos e eficientes. Entre esses instrumentos
estão, por exemplo, os sindicatos e os partidos políticos. Os sindicatos devem
ser órgãos de participação eficiente na defesa dos direitos dos seus
sindicalizados. Estão a serviço dos trabalhadores como comunidade de trabalho
que constrói a Pátria, e não a serviço de grupos do poder, de demagogos e
pelegos. O Estado onipotente conseguiu, também no Brasil, corromper a filosofia
dos sindicatos, reduzindo-os a instituições de beneficência e lazer”.
“Um partido trabalhista que corresponde
realmente a uma grande corrente do pensamento popular, na classe dos
trabalhadores será, mais cedo, ou mais tarde, uma necessidade imperiosa. (...)
Mas um Partido Trabalhista que esteja entregue a liderança dos trabalhadores, e
não seja manipulado por uma elite burguesa que deseja apenas conquistar o
poder”. [10]
E já no final da
entrevista, Versus fez uma pergunta que traduziu não apenas reflexão
sociológica, mas também teológica, com profundas implicações políticas para o momento.
“Como o senhor vê o possível
relacionamento entre Cristianismo e Socialismo diante das necessidades dos
trabalhadores?
-- Sem disfarçar as divergências em
pontos fundamentais, podemos admitir uma luta comum por uma causa comum: a
justiça social. Quero crer que sem o Cristianismo como pano de fundo, o
Socialismo não se explica suficientemente. Muitos elementos do Socialismo são
de fato cristãos”.[11]
Para dom Hipólito, assim como para o
jornal socialista Versus, a história da Igreja era passível de críticas. Muitas
vezes, suas opções e alianças com os grupos de poder fizeram com que se
afastasse e dificultasse seu relacionamento com parte da população excluída de
bens e possibilidades.
Tal situação facilitou e potencializou a
pregação do ateísmo e do materialismo. Mas, como explicou Tillich, não podemos
dizer que o ateísmo materialista seja um fenômeno constitutivo do socialismo.
Para ele, é uma herança da cultura burguesa, crítica e cética. Essa
herança foi adotada pelo socialismo sob a crença de que ajudaria a extirpar a
idéia de opressão e abriria o caminho para a construção de um novo mundo, mais
justo e digno.
Assim, embora haja razões históricas para
criticar a Igreja, o socialismo errou quando negou a existência da base
solidária e comunitária do ideal cristão. Versus evitou esse erro, quando
esclareceu aos seus leitores de que “se os homens são aquilo que fazem, a
Igreja está sendo aquilo que seus sacerdotes têm praticado. E essa prática de
discussão e organização das bases de nossa sociedade nós precisamos compreender
e avaliar”. [12]
Podemos fazer uma leitura deste
cristianismo a partir do pensamento de Emmanuel Lévinas. Lévinas reclama
prioridade para a vítima na figura dos excluídos. O não matarás,
princípio do humanismo de Lévinas, é uma marca constante nos escritos do
teólogo Enrique Dussel. Lévinas é o judeu embebido no pensamento europeu. Mas a
cultura européia não tem lugar para o outro, para o judeu oriental Lévinas. De
maneira semelhante, Dussel é o excluído da América latina, que faz a critica
teológica do pensamento europeu, que não consegue ver o outro.
Há aqui uma hermenêutica que se
fundamenta na razão da libertação enquanto imperativo ético: quando se vive num
mundo que não permite a produção e reprodução de nossas vidas latino-americanas,
em que sentido nos relacionamos com esse mundo? Torna-se evidente que Dussel
pretende uma teologia que parta de um retorno à realidade da América Latina.
Para ele, a teologia na América Latina nasce da reflexão sobre a realidade
econômica, cultural e política do continente. Dussel mostra a necessidade da
ruptura com a tradição latino-americana que pensava a cultura, economia e
política continental a partir da teologia européia. A situação latino-americana
é diferente da situação européia. Os caminhos que devem ser percorridos
divergem, segundo Dussel, dos caminhos dos países do centro.
Assim, Dussel construiu uma teologia que
partiu da situação do excluído, e neste sentido o horizonte dos
latino-americanos diverge da problemática européia, onde a centralidade do
pensamento repousa sobre a dominação. Para ele, por exemplo, o Discurso do
Método de Descartes é o manifesto do homem reduzido a ser um sujeito que
pensa, e essa metafísica do sujeito, é a “expressão
temática da experiência fática do domínio imperial europeu sobre as colônias”,
que se concretiza não somente como vontade universal do domínio, mas
historicamente como dialética de dominação versus dominado. Assim,
afirma, “se existe vontade de poder, existirá alguém que deve sofrer o seu
poderio”.
A teologia de Dussel tem por base uma
nova história, pois, as histórias universais são européias, e os
latino-americanos não podem se ver nessas histórias européias, porque o outro é
invisível para elas. Para Dussel, os que se libertam conduzem a história
para o seu futuro e constituem o momento essencial da história. Contraposto ao
destino europeu e norte-americano, é reservado aos excluídos um destino que
criar caminhos para a realização de uma humanização universal. Por isso, os
excluídos encontram-se em posição privilegiada. São os excluídos que têm
oportunidade de descobrir a situação de opressão, compreendendo quem é o
dominador -- aquele que crê tudo compreender e que na realidade nada
compreende.
Ora, quando a comissão nacional
provisória do Partido dos Trabalhadores fez o lançamento público no 1º de Maio
de 1979 de sua Carta de Princípios, afirmou que “os males profundos que se
abatem sobre a sociedade brasileira não poderão ser superados senão por uma
participação decisiva dos trabalhadores na vida da nação. O instrumento capaz
de propiciar essa participação é o Partido dos Trabalhadores”. Podemos
entender essa declaração a partir da análise de Dussel, quando diz que os
excluídos ao descobrir a situação de opressão criam os caminhos para uma nova
humanização.
Recado para os novos amigos leitores, se
você tiver interesse por conhecimento mais profundo sobre o tema leia: Jorge
Pinheiro, Teologia e Política, Paul
Tillich, Enrique Dussel e a Experiência Brasileira, São Paulo, Fonte
Editorial, 2006.
[1] Jorge Pinheiro dos Santos, Cristo e o Processo Revolucionário Brasileiro,
Uma releitura da Conferência do Nordeste, 1962, São Bernardo do Campo,
UMESP, apostila, 2000.
[2] Rubem Alves, Da Esperança, Campinas, Papirus Editora. Título original em inglês: Towards a
Theology of Liberation, Corpus Book, Washington, 1969. Tradução: João-Francisco Duarte Jr.
[3] R. Vidales, Acquisizioni e compiti
della teologia latinoamericana, Concilium, 1974, nº 4, p. 154. In: Batista Mondin, Os
teólogos da libertação, São Paulo, Edições Paulinas, 1980, p. 30.
[4] Mondin, op. cit., p. 31.
[5] Mondin, op. cit., p. 31.
[6] J. B. Metz, Sulla teologia del mondo, 1968, p. 11.
[7] “A
velha Igreja ainda pesa. Esse processo de descolamento se dá em toda a América
Latina. Desde Medellin, há 10 anos, nasce uma igreja combativa, voltada para os
problemas das sociedades pobres e dependentes. É aí que aparecem Pedro
Casaldáliga, Tomás Balduíno, D. Pelé, Benedito Uchoa, Cândido Padim. Para um
jornal que se coloca junto às lutas populares este é um debate fundamental.
Qual é o papel da Igreja hoje? O que acontecerá em Puebla? Dentro de alguns
dias, centenas de religiosos se encontrarão no México, para decidirem o destino
de suas comunidades, arduamente trabalhadas durante anos e anos. O Papa vai a
Puebla: rompe-se a tradição anticlerical da revolução mexicana, mas, é certo,
podemos esperar a aberta interferência de um Vaticano endividado, atolado na
falta do dinheiro, recebendo ajuda americana, e alemã... um papa polonês, um
golpe nos estados operários, golpe nas comunidades de base?” Renato
Lemos e Marcos Magalhães, O mandamento da liberdade, São Paulo, Versus no
28, janeiro de 1979, pp.14-15.
[8] “É
verdade que nem sempre a consciência comunitária da Igreja funcionou com tanta
clareza. Houve períodos históricos em que os cristãos, inclusive em nível de
hierarquia, se deixaram envolver demasiadamente pelos interesses de grupos do
poder, e assim se acomodaram. Essas colocações são importantes para entender o
interesse da Igreja pelos problemas da humanidade e os instrumentos que ela
criou, como por exemplo as Comunidades Eclesiais de Base (CEB), as Comissões de
Justiça e Paz, etc... Não visam dominar, elas visam servir melhor”. Idem, O
mandamento da liberdade, São Paulo, Versus no 28, janeiro
de 1979, p.15.
[9] “A CEB
aberta, integra-a quem quiser viver e agir em dimensão comunitária. É através
da educação de seus membros, empregando o método da reflexão bíblica-oração,
orientada para a via concreta: conscientização para a participação tanto na
atuação interna da comunidade e da Igreja, como na atuação social. A CEB não é
uma sociedade secreta, por isso não tem medo de serviços secretos, nem de
perseguição. É típico de uma ideologia de segurança e de desenvolvimento ter
medo da conscientização e da participação ativa do Povo, e por isso mesmo olhar
como subversivas as atividades da Igreja e das CEBs”. Idem, op. cit, p.15.
[10] “Olho a nossa América Latina. Apesar de certas aparências, nossos povos vivem à
margem do processo social. Uma elite, voltada inteiramente para a Europa, para
os EUA, para a Rússia, continua hoje o imperialismo colonial de séculos
passados. Só que agora o colonizador é interno. Apesar da chamada independência
política os nossos povos precisam ainda ser liberados, e ter os meios de
participar intensamente da vida nacional. Medellin quis dar um impulso forte
para o aceleramento deste processo integração e participação. Nossa esperança é
que a planejada Terceira Conferência, em Puebla, intensifique mais ainda o
esforço de Medellin.” Idem, op. cit., p.15.
[11] “Disse o sociólogo alemão Werner Sombart: ‘há mais de cem tipos de
Socialismos’. Certamente com vários tipos será possível uma aproximação do
Cristianismo. É por isso que as palavras de Pio XI no Quadragésimo Anno:
‘Ninguém pode ser ao mesmo tempo socialista e cristão’ (que em determinado
momento histórico visava ao socialismo radical, em sua forma extremada) têm de
ser entendidas corretamente. O Socialismo teve de adaptar-se, e moderar-se no
contato com a realidade concreta, que é sempre muito diferente do mundo dos
filósofos e dos ideólogos. A História, mestra da vida, corrigiu graves erros do
Socialismo primitivo, como está corrigindo (cf. Eurocomunismo e também as
formas políticas dos diversos países comunistas) o Marxismo. Para nós, os
cristãos, vale sempre o princípio de não absolutizarmos os momentos históricos,
que de sua natureza, são sempre contingentes e mutáveis. Isto vale para a
Política, para a Economia, para a Cultura, para as diversas Religiões. Isto
vale também para a própria história do Cristianismo”. Idem, op. cit., p.15.
[12] Idem, op.cit., p.15.